RECURSO
VALOR DA CAUSA
RECONVENÇÃO
Sumário

I – Respeitando o recurso à parte da decisão que apreciou e julgou improcedente o pedido reconvencional e sendo este, isoladamente considerado, de valor inferior à alçada do tribunal de primeira instância, não se encontra preenchido o primeiro dos requisitos de admissibilidade de recurso estabelecidos no n.º 1 do artigo 629.º do CPC;
II – A admissibilidade da interposição de recurso deverá ser apreciada tendo em conta cada um dos pedidos cumulados na ação individualmente considerados, devendo o pedido deduzido pela autora e o pedido reconvencional formulado pela ré ser apreciados separadamente, considerando que cada pedido mantém autonomia, existindo uma pluralidade de pedidos autónomos;
III – Não admite recurso a decisão que apreciou e julgou improcedente pedido reconvencional cujo valor não é superior à alçada do tribunal recorrido, se o recurso não tiver por fundamento qualquer das situações previstas no n.º 2 do artigo 629.º do CPC.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 2843/20.0T8STR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo Central Cível de Santarém


Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

Na presente ação declarativa, com processo comum, intentada por (…) – Petróleos e (…), S.A. contra (…) – Distribuição (…), Lda., na qual foi deduzida reconvenção, a ré/reconvinte, não se conformando com a sentença de 21-06-2022 – que julgou procedente a ação e improcedente a reconvenção, em consequência do que decidiu: a) Condenar a ré a pagar à autora a quantia de € 569.588,96 (quinhentos e sessenta e nove mil, quinhentos e oitenta e oito euros e noventa e seis cêntimos), acrescida de juros de mora que se tiverem vencido desde 2/6/2022, à taxa legal prevista para as obrigações de natureza comercial, até integral pagamento; b) Absolver a autora/reconvinda do pedido reconvencional; c) Condenar a ré no pagamento das custas a que deu causa –, interpôs recurso de apelação, limitado à parte da decisão que apreciou e julgou improcedente o pedido reconvencional, dele absolvendo a autora/reconvinda, nos termos constantes da alínea b) do segmento decisório.
Nas contra-alegações apresentadas, a autora/reconvinda pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade do recurso, por entender que a decisão que apreciou o pedido reconvencional não é recorrível, considerando que o valor da reconvenção não é superior à alçada da primeira instância.
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Face à questão suscitada nas contra-alegações, foi determinada a audição da recorrente, a qual se pronunciou no sentido da admissibilidade do recurso, sustentando que o valor da causa a atender, para efeitos de admissibilidade de recurso, corresponde à soma do pedido reconvencional deduzido pela ré com o pedido formulado pela autora.
Foi proferida decisão singular, na qual se rejeitou o recurso interposto, por se ter entendido que a apelação interposta pela ré/reconvinte é inadmissível.
Novamente inconformada, a apelante requereu que recaísse acórdão sobre a decisão singular proferida, sustentando dever ser admitido o recurso de apelação interposto.
Cumpre apreciar se é de admitir o recurso de apelação interposto pela ré/reconvinte.

2. Fundamentos

2.1. Tramitação processual
Além dos elementos constantes do relatório supra, releva para a apreciação da questão suscitada ainda o seguinte:
i) a autora atribuiu à ação o valor de € 617.775,04, que não foi impugnado;
ii) a ré atribuiu à reconvenção o valor de € 2.000,00, que não foi impugnado;
iii) por despacho de 08-09-2021, foi fixado à causa o valor de € 619.775,04;
iv) a sentença recorrida apreciou o pedido deduzido pela autora e o pedido reconvencional deduzido pela ré;
v) a ré/reconvinte interpôs recurso da parte da decisão que apreciou e julgou improcedente o pedido reconvencional.

2.2. Admissibilidade do recurso de apelação
Está em causa apreciar se é de admitir o recurso de apelação interposto pela ré/reconvinte da sentença de 21-06-2022, limitado à parte da decisão que apreciou e julgou improcedente o pedido reconvencional, dele absolvendo a autora/reconvinda.
Sob a epígrafe Decisões que admitem recurso, dispõe o artigo 629.º do Código de Processo Civil, no n.º 1, o seguinte: O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.
Decorre deste preceito que a admissibilidade de recurso está dependente, desde logo, da verificação cumulativa de dois requisitos, a saber: i) que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre; ii) que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre.
Considerando que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação, há que ter em conta o disposto no artigo 44.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08), em vigor à data da propositura da ação e que, em matéria cível, fixa a alçada dos tribunais de primeira instância em € 5.000,00.
Como tal, é este o valor a atender para efeitos do disposto no citado artigo 629.º, n.º 1.
Extrai-se dos elementos elencados em 2.1. que a sentença recorrida apreciou o pedido deduzido pela autora, no valor de € 617.775,04, e o pedido reconvencional deduzido pela ré, no valor de € 2.000,00, tendo a apelante limitado o recurso interposto à parte da decisão que apreciou e julgou improcedente o pedido reconvencional.
Tendo a sentença apreciado o pedido deduzido pela autora e o pedido reconvencional deduzido pela ré, cumpre aferir se o valor da causa a atender, para efeitos de admissibilidade de recurso, consiste no valor da ação, conforme defende a apelante, ou no valor de cada pedido autonomamente considerado.
Dispõe o artigo 299.º do CPC, no n.º 1, que na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, exceto quando haja reconvenção ou intervenção principal; acrescenta o n.º 2 que o valor do pedido formulado pelo réu ou pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 530.º; esclarece o n.º 3 do preceito, por seu turno, que o aumento referido no número anterior só produz efeitos quanto aos atos e termos posteriores à reconvenção ou intervenção.
É sabido que o reconvinte deve declarar o valor da reconvenção (artigo 583.º, n.º 2, do CPC) e que o valor atribuído à reconvenção releva para a determinação do valor da causa, sendo somado ao valor do pedido formulado pelo autor se os pedidos forem distintos (artigo 299.º, n.º 2, do citado código).
Não está em causa, porém, determinar o valor da causa – o qual foi fixado por despacho de 08-09-2021 em € 619.775,04, correspondente à soma do valor do pedido formulado pela ré ao valor do pedido formulado pela autora –, mas aferir os efeitos decorrentes de tal fixação, apreciando se contendem com a admissibilidade do recurso de apelação interposto apenas da decisão que apreciou o pedido reconvencional.
No que respeita à influência da atribuição de valor à causa, há que ter em conta o disposto no artigo 296.º do CPC, preceito que, no n.º 1, estatui que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido e, no n.º 2, que se atende a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal.
Regulando as consequências da decisão do incidente do valor, dispõe o artigo 310.º do CPC, o seguinte: 1 - Quando se apure, pela decisão definitiva do incidente de verificação do valor da causa, que o tribunal é incompetente, são os autos oficiosamente remetidos ao tribunal competente, sem prejuízo do disposto no n.º 3; 2 - Se da fixação definitiva do valor resultar ser outra a forma de processo correspondente à ação, mantendo-se a competência do tribunal, é mandada seguir a forma apropriada, sem se anular o processado anterior e corrigindo-se, se for caso disso, a distribuição efetuada; 3 - O tribunal mantém a sua competência quando seja oficiosamente fixado à causa um valor inferior ao indicado pelo autor.
Em anotação do citado artigo 299.º, afirma Miguel Teixeira de Sousa [CPC online, Artigos 130.º a 376.º (vs. 2022.12), Blog do IPPC, in: https://drive.google.com/file/d/14YLriRh5IyGBt-IKy7pCZfSTeaIzRGwd/view] o que segue: «25 (a) A alteração do valor da causa resultante de uma modificação do objecto do processo releva sempre para os efeitos que são comuns aos artigos 296.º, n.º 2, e 310.º: competência do tribunal e forma do processo. Estes efeitos são os únicos que são constantes qualquer que seja a conformação do objecto da causa depois da sua alteração, ou seja, independentemente de se manter um único pedido ou de sobrevir uma cumulação de pedidos. (b) A produção de outros efeitos pela alteração do valor da causa tem de ser apreciada de forma casuística segundo o critério da unidade ou da pluralidade de pedidos. (c) Se o pedido permanecer único, ou seja, se houver uma ampliação pedido, produzem-se todas as consequências inerentes à alteração do valor da causa. O novo valor do processo releva, p. ex., para o número de testemunhas (artigo 511.º, n.º 1) e para a admissibilidade do recurso ordinário (artigo 629.º, n.º 1). (d) Se ocorrer uma cumulação superveniente de pedidos, cada um dos pedidos mantém a sua autonomia e os efeitos respeitantes ao valor que não se refiram à competência do tribunal e à forma do processo devem ser apreciados separadamente para cada um deles. P. ex.: a alteração do valor do processo na sequência da dedução de um pedido reconvencional não obsta a que a admissibilidade da interposição do recurso ordinário (artigo 629.º, n.º 1) tenha de ser apreciada separadamente para o pedido do autor e para o pedido reconvencional do réu.»
Não estando em causa, no caso presente, a competência do tribunal ou a forma do processo, verifica-se que os efeitos decorrentes da dedução do pedido reconvencional, no que respeita ao valor, deverão ser apreciados separadamente para o pedido da autora e para o pedido reconvencional da ré, considerando que cada pedido mantém autonomia, assim existindo uma pluralidade de pedidos autónomos.
Como tal, a admissibilidade da interposição de recurso deverá ser apreciada tendo em conta cada um dos pedidos cumulados na ação individualmente considerados, devendo o pedido deduzido pela autora e o pedido reconvencional formulado pela ré ser apreciados separadamente.
Neste sentido, afirma Miguel Teixeira de Sousa [Reconvenção, valor da causa e admissibilidade de recurso ordinário, Blog do IPPC, in: https://blogippc.blogspot.com/search?q=reconven%C3%A7%C3%A3o+valor+admissibilidade+recurso] o seguinte: «(…) havendo uma cumulação de pedidos (seja por iniciativa do autor, seja por iniciativa do autor e do réu), a regra é a da autonomia de cada um deles para efeitos da interposição de recurso ordinário, não havendo nenhuma transferência do valor de um dos pedidos para o outro pedido para determinar a admissibilidade desse recurso. (…) A regra é, pois, a seguinte: só há cumulação de pedidos entre pedidos distintos e autónomos entre si; por isso, cada pedido cumulado vale per se para efeitos da aferição da admissibilidade da interposição de recurso ordinário da decisão que aprecia cada um deles».
O pedido reconvencional formulado pela ré tem o valor de € 2.000,00, o qual não excede a alçada do tribunal de primeira instância (€ 5.000,00), sendo certo que se trata de um pedido distinto e autónomo do pedido deduzido pela autora.
Nesta conformidade, impõe-se concluir que a decisão que apreciou e julgou improcedente o pedido reconvencional, cujo valor não é superior à alçada do tribunal recorrido, não admite recurso, dado não se mostrar preenchido o primeiro dos requisitos estabelecidos no n.º 1 do supra citado artigo 629.º do CPC.
Se o valor correspondente à pretensão deduzida pela ré em sede de reconvenção não permitiria, caso tivesse sido intentada uma ação autónoma com o mesmo objeto, a interposição de recurso da decisão que apreciasse o mérito da causa, nenhuma razão justifica que passe a admitir recurso em resultado de ter sido formulada a título reconvencional numa ação respeitante a pretensão de valor superior à alçada da primeira instância, sendo certo que não foi interposto recurso da parte da decisão que apreciou o pedido deduzido pela autora.
Respeitando o recurso interposto apenas à parte da decisão que apreciou e julgou improcedente o pedido reconvencional e sendo este, isoladamente considerado, de valor inferior à alçada do tribunal de primeira instância, não se encontra preenchido o primeiro dos indicados requisitos de admissibilidade de recurso, sendo certo que não tem por fundamento qualquer das situações previstas no n.º 2 do artigo 629.º do CPC.
Verificando-se que a apelação interposta pela ré é inadmissível, cumpre rejeitar o recurso, não se conhecendo do seu objeto.

Em conclusão:
(…)

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em rejeitar o recurso interposto pela ré/reconvinte, não se conhecendo do respetivo objeto.
Custas pela apelante.
Notifique.

Évora, 16-03-2023
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
José Manuel Barata
(1.º Adjunto)
Cristina Dá Mesquita
(2.ª Adjunta)