COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO CENTRAL CÍVEL
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA EFETUADA PELO AUTOR
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Sumário

I – A questão da competência material deve ser decidida de acordo com o pedido deduzido na ação e com a causa de pedir em que o mesmo se funda.
II – O erro do autor na qualificação jurídica da relação que serve de fundamento à ação não releva para efeitos de competência em razão da matéria.
III – Assim como os juízos do trabalho são competentes, em razão da matéria, para o conhecimento de uma ação baseada numa relação contratual que o autor qualifica erradamente de trabalho subordinado, também os juízos centrais cíveis são competentes, em razão da matéria, para o conhecimento de uma relação contratual que o demandante considere, ainda que erradamente, como contrato de prestação de serviços.

Texto Integral


Relator: Emídio Francisco Santos
1.ª Adjunta: Catarina Gonçalves
2.ª Adjunta: Maria João Areias



Processo n.º 2489/22.8T8CBR.C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente na Rua ..., ... ..., propôs, no Juízo Central Cível do tribunal judicial da comarca ..., acção declarativa com processo comum contra A..., com sede em ..., freguesia ..., Apartado ...5, ... ..., pedindo:
1. Se declarasse que o contrato de prestação de serviços celebrado entre ele e o réu se renovava anualmente por mais três anos;
2. Se declarasse que a denúncia antes do decurso dos três anos, operada que fosse a renovação, obrigava o réu a pagar ao autor uma indemnização igual ao tempo em falta até ao termo do contrato;
3. Se declarasse que o contrato celebrado entre o autor e o réu se renovou automaticamente em 1 de Janeiro de 2021 até 31 de Dezembro de 2023;
4. Se declarasse que, tendo o réu denunciado o contrato com efeito partir de 31 de Dezembro de 2021, tem que indemnizar o autor em 24 remunerações que lhe pagava mensalmente com IVA incluído (15.024,00€ x 24) = 360.576,00€ (trezentos e sessenta mil quinhentos e setenta e seis euros);
5. Se condenasse a ré a pagar ao autor a quantia 360.576,00€ (trezentos e sessenta mil quinhentos e setenta e seis euros).

Para o efeito alegou em síntese:
· Ele e a ré celebraram, em 5 de Janeiro de 2005, um contrato de prestação e serviços que regulou as relações de trabalho entre ambas as partes;
· Em 1 de Janeiro de 2021, o contrato renovou-se por mais três anos, passando a ser válido até 31 de Dezembro de 2023;
· Com data de 28 de Outubro de 2021, o réu comunicou-lhe a intenção de proceder à denúncia do contrato com efeitos a partir de 31 de Dezembro de 2021;
· Tendo denunciado o contrato antes do termo dos três anos anos, o réu tem que pagar uma indemnização correspondente ao período restante do serviço contratado, no montante de € 360 576,00.

O réu contestou, alegando, em síntese, que a prestação de serviços cessou, validamente, no dia 31 de Dezembro de 2021. Pediu, em consequência, se julgasse improcedente a acção.

Findos os articulados e após dar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a competência do tribunal a quo em razão da matéria para o conhecimento da acção, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo declarou o juízo central cível incompetente em razão da matéria para o conhecimento da acção e, em consequência, absolveu a ré da instância.

Recurso:

O autor não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse a decisão recorrida e se substituísse a mesma por decisão que declarasse o tribunal competente em razão da matéria e que ordenasse o prosseguimento dos ulteriores trâmites.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Pretendendo as partes que uma delas implementasse um projecto por si concebido e reconhecido como muito importante em propriedades da outra parte, de modo a diminuir a área ardida e as árvores queimadas, objectivo a alcançar mediante a direcção da pessoa contratada, que dirigira um grupo de trabalho, sem ordens, direcção ou fiscalização da outra parte, não podemos concluir que houve a celebração de um contrato de trabalho, não obstante houvesse o pagamento de uma quantia anual, acrescida de despesas e conste do contrato denominado prestação de serviços, que uma parte era contratada como director executivo;
2. O contratante pretendia um resultado do desempenho do contratado: preservação da floresta;
3. Que realizava sem ordens, direcção ou fiscalização: realizava o seu projecto;
4. Não havia, assim, subordinação jurídica;
5. Tendo o contrato entre as partes sido celebrado em 5 de Janeiro de 2005, a análise de presunção legal estabelecida nos artigos 12.º do Código de Trabalho de 2003 e 2009 tem que ser analisado de acordo com a norma vigente à data da sua celebração, conforme jurisprudência pacífica acerca desta matéria, tendo-se citado, aleatoriamente, três dessas decisões no n.º 10 destas alegações;
6. Mal andou, com todo o respeito, o tribunal recorrido ao decidir com recurso à presunção estabelecida no art.º 12.º do Código vigente;
7. Os factos do artigo 12.º do Código de 2003 eram de verificação cumulativa;
8. Tinha que se verificar cada um deles;
9. Diferentemente dispõe o art.º 12.º do Código actual, permitindo que o julgador mediante a verificação de algumas características possa presumir e declarar a existência de um contrato de trabalho;
10. Não se verifica no caso dos autos a existência cumulativa dos factos previstos no art.º 12.º do Cód. de 2003, em vigor em 5 de Janeiro de 2005, que viria a ser alterado ainda antes do Código de 2009, concretamente em 20 de Março de 2006, através da Lei 9/2006, inaplicável ao caso dos autos;
11. Não há factos que revelem que a actividade do autor era desenvolvida sob a direcção do réu, não ser verificando a característica da al. a) do art.º 12.º do Código de 2003;
12. Nem o trabalho era realizado essencialmente na empresa, nem em local controlado por esta e o autor não estava sujeito a horário de trabalho, não se verificando as exigências previstas na al. b) do mesmo preceito;
13. O autor não era pago em função do tempo despendido no seu serviço, não se verificando a al. c);
14. O autor não desenvolvia o seu trabalho com instrumentos da ré, não se verificando a al. d);
15. Donde se impõe concluir que não há factos que revelem a existência de uma subordinação jurídica do autor à ré, sendo que a norma em vigor à data da celebração do contrato que enumerava as circunstâncias cumulativas em que se presumia existir essa subordinação e estarmos presente um contrato de trabalho não se aplica manifestamente à situação dos autos.

A ré não respondeu ao recurso.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

Saber se a decisão recorrida errou ao julgar que o tribunal a quo era incompetente em razão da matéria para o conhecimento da acção.


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Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos termos do pedido deduzido pelo autor e pelos factos narrados na petição para fundamentar tal pedido.

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Descritos os factos, passemos à resolução da questão suscitada pelo recurso.

A decisão sob recurso julgou o juízo central cível ... incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção com base, em síntese, na seguinte fundamentação:
· Que as cláusulas do contrato celebrado entre o autor e o réu, que servia de base aos pedidos, apontavam no sentido da verificação das presunções de contrato de trabalho previstas no artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, que aprovou o Código do Trabalho, concretamente:
· O desempenho de funções de director executivo (funções de direcção), por 3 anos, renovável automaticamente em cada ano, até ao limite de 3 anos …;
· Dependência do Conselho de Administração e inclusão no sistema de saúde privado e segurança social (também do seu núcleo familiar) que as empresas do réu tinham para os seus funcionários;
· À remuneração anual globalmente fixada (mas paga em duodécimos) acrescia o valor de despesas de deslocação, alojamento à remuneração periodicamente fixada como contrapartida dessa actividade.

O recorrente contesta a decisão com a seguinte linha argumentativa:
· A decisão errou ao recorrer às presunções de contrato de trabalho do artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009 porque, tendo o acordo entre as partes sido celebrado em 5 de Janeiro de 2005, ele tem de ser analisado à luz das normas vigentes à data da sua celebração, concretamente o Código de trabalho de 2003;
· Os factos que, segundo o artigo 12.º do Código do Trabalho de 2003, faziam presumir a celebração de um contrato de trabalho eram de verificação cumulativa;
· No caso não havia factos que revelassem que a actividade do autor era desenvolvida sob a direcção da ré;
· Nem que o trabalho era realizado essencialmente na empresa, nem em local controlado por esta, nem que o autor estava sujeito a horário de trabalho;
· Nem que autor não era pago em função do tempo despendido no seu serviço;
· Nem que o autor desenvolvia o trabalho com instrumentos do réu.

Apreciação do tribunal:

O recurso é de julgar procedente, embora não pelas exactas razões alegadas pelo recorrente.

Considerando que o que está em causa é a questão da competência em razão da matéria importa tomar em consideração, antes de mais, o seguinte:

1. Que “constitui jurisprudência pacífica que a competência em razão da matéria se fixa em função dos termos em que o autor propõe a acção, atendendo ao direito que o mesmo se arroga e pretende ver judicialmente reconhecido, devendo, por isso, a questão da competência ser decidida em conformidade com o pedido deduzido e com a causa de pedir em que o mesmo se funda” (acórdão do STJ de 26-03-2019, proferido no processo n.º 2468/15.1T8CHV-AG, publicado em dgsi.pt.);

2. Que os tribunais judiciais são competentes para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. É o que resulta do n.º 1 do artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa, do n.º 1 do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e do artigo 64.º do CPC; ´

3. Que a competência em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de 1.ª instância, é determinada pelas leis de organização judiciária (n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – LOSJ -, e o artigo 65.º do CPC).

No caso está em questão a competência dos seguintes tribunais de competência especializada (artigo 81.º, n.º 3, alíneas a) e h) da LOSJ): Juízos Centrais Cíveis e Juízos do Trabalho.

Em relação àqueles está em questão a competência prevista no artigo 117.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ – competência para a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior a € 50 000; em relação a estes a prevista no artigo 126.º, n.º 1, alínea b), 1.ª parte – competência para conhecer das questões emergentes de relações de trabalho subordinado.

A razão estaria do lado da decisão recorrida se, tendo em conta os termos em que o autor, ora recorrente, propôs a acção, o pedido procedesse de uma relação de trabalho subordinado.

Não é o que acontece. O pedido que está em questão na acção é o de condenação do réu no pagamento da quantia de 360.576,00€ (trezentos e sessenta mil quinhentos e setenta e seis euros) e, segundo os termos da petição, o direito de exigir o pagamento de tal quantia procede de um contrato de prestação de serviços celebrado com o réu e não de uma relação de trabalho subordinado. Na verdade, um dos critérios que distingue o contrato de trabalho, cuja noção consta do artigo 1152.º do Código Civil e do artigo 11.º do Código de Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, do contrato de prestação de serviços, cuja noção consta do artigo 1154.º do código Civil, é precisamente a subordinação jurídica: naquele, uma pessoa obriga-se a prestar a sua actividade a outra pessoa sob a autoridade e direcção desta; neste, uma pessoa obriga-se a proporcionar a outra a sua actividade, mas sem subordinação jurídica a esta. Este critério distintivo entre os dois contratos pode considerar-se pacífico tanto na doutrina, como na jurisprudência. Na doutrina, cita-se a título de exemplo, João Leal Amado, que afirma a este propósito: “… o verdadeiro critério distintivo reside, no fundo, na (in)existência de subordinação jurídica entre as partes da relação; se esta existir, aí teremos um contrato de trabalho; se esta não existir, aí teremos uma qualquer modalidade do contrato de prestação de serviço” [Contrato de Trabalho, Noções Básicas, 4.ª Edição, página 68]. Na jurisprudência, citam-se a título de exemplo, o acórdão do STJ de 26-10-2017, processo n.º 1175/14.7TLSB.L1.S1., o acórdão de 4-07-2018, proferido no processo n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1, acórdão de 17-03-2022, proferido no processo n.º 251/18.1T8CSC.L2.S1, e acórdão proferido em 12-10-2022, proferido no processo n.º 3347/19.9T8BRR.L1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.

É certo que a qualificação jurídica dada pelo autor à relação de onde procede o direito que invoca na acção pode estar errada, por a exacta qualificação de tal relação poder ser a de um contrato de trabalho. Sucede que este erro de qualificação não é relevante para efeitos de competência do tribunal. A relevância dele é para efeitos de decisão de mérito. Como se escreveu no acórdão do Tribunal de Conflitos proferido em 1-10-2015 (conflito n.º 8/14), publicado em www.dgsi.pt, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.

Por o erro do autor na qualificação jurídica da relação que serve de fundamento à acção não relevar para efeitos de competência em razão da matéria, os juízos do trabalho são competentes para conhecer de uma acção fundada numa relação contratual, configurada na petição como relação de trabalho subordinado, ainda que tal qualificação seja controvertida e possa estar errada. Assim decidiram, por exemplo, o acórdão do STJ proferido em 22-06-2022, processo n.º 825/21.3T8VCT.G1.S1 e o acórdão do STJ de 6-07-2022, no processo n.º 459/21.2T8VRL-A.G1.S1, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Deste modo, como os juízos do trabalho são competentes, em razão da matéria, para o conhecimento de uma acção baseada numa relação contratual que o autor qualifica erradamente de trabalho subordinado, também o juízo central cível é competente, em razão da matéria, para o conhecimento de uma relação contratual que o demandante considere, ainda erradamente, como contrato de prestação de serviços.

Pelo exposto, responde-se à questão suscitada pelo recurso, afirmando-se que o a decisão sob recurso incorreu em erro ao julgar o tribunal a quo incompetente em razão da matéria para o conhecimento da presente acção declarativa.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se e substitui-se a decisão recorrida por decisão a julgar o tribunal a quo competente em razão da matéria para o conhecimento da acção.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de o recorrido ter ficado vencido no recurso, condena-se o mesmo nas custas do recurso.

Coimbra, 28-02-2023