QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
PRAZO PEREMPTÓRIO
CASH-POOLING
CULPA
INDEMNIZAÇÃO AOS CREDORES
Sumário

I – O prazo de 15 dias para abertura de incidente de qualificação da insolvência é um prazo peremptório.
II – Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.
III – “Cash-pooling”, corresponde a uma gestão centralizada de tesouraria, onde surgem diferentes contas bancárias tituladas por sociedades pertencentes a um mesmo grupo, que são compensadas entre elas, resultando um só saldo positivo ou negativo. Para que se esteja perante um sistema de cash pooling é necessário que se verifiquem uma série de requisitos, designadamente, que tipo de relacionamento efectivamente existe entre as duas sociedades, que tipo de contrato foi efectivamente acordado entre as duas e a instituição bancária.
IV – A sentença de qualificação da insolvência deverá fixar o grau de culpa, caso haja mais do que uma pessoa atingida pela qualificação da insolvência culposa.
V – Na fixação do período de inibição dever-se-á ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e a moldura abstracta da inibição prevista pelo legislador.
VI – Na fixação da indemnização aos credores, nº 2, al. e) e do nº 4 do artigo 189.º do CIRE deve aproximar-se do montante dos danos causados pelo comportamento do afectado que conduziu à qualificação da insolvência.

Texto Integral

PROC. N.º[1] 2084/21.9T8VNG-G.P1

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Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia J5

RELAÇÃO N.º 18
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Maria da Luz Seabra
Artur Dionísio Oliveira
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
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I - RELATÓRIO.
AS PARTES
Insolvente:
A..., S.A.
Administrador de insolvência:
AA
Credores:
B..., Lda.,
Herança Jacente aberta por óbito de BB,
Banco 1..., S.A.,
CC e
DD
Afectados da qualificação:
EE e
FF
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“Por[2] apenso ao processo de insolvência em que foi declarada insolvente a sociedade comercial
“A..., S.A.”, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, vieram os credores “B..., Lda.”, Herança Jacente aberta por óbito de BB, “Banco 1..., S.A.”, CC e DD apresentar alegações para efeito da qualificação da insolvência como culposa.

As credoras “B..., Lda.” e Herança Jacente aberta por óbito de BB indicaram como afectados FF e EE, alegando, para o efeito, que foram retirados equipamentos, móveis e outros bens dos imóveis onde a insolvente desenvolvia a sua actividade, assim como benfeitorias realizadas nos mesmos e propriedade das credoras por força dos contratos de arrendamento celebrados, tendo existido uma descapitalização da devedora, por força da concessão de empréstimos à sua única accionista, a sociedade comercial “C..., S.A.”, para além de que o financiamento concedido a 13 de Maio de 2020, no âmbito da “Linha de Apoio à Economia Covid 19”, não foi utilizado para liquidar qualquer responsabilidade da devedora.
A credora “Banco 1..., S.A.” indicou como afectados a sociedade comercial “C..., S.A.”, FF e EE. Alegou que a insolvente, para além de ter transferido para a única accionista montantes avultados, sem justificação, canalizou o financiamento concedido pela credora ao abrigo da linha específica “Covid 19 – Apoio Empresas do Turismo”, com a garantia do Estado, para a mesma accionista, em vez de ter sido utilizado para liquidar as suas responsabilidades, nomeadamente, as rendas devidas pela ocupação dos imóveis onde estava instalado o seu estabelecimento comercial, resultando a descapitalização e o desequilíbrio da insolvente do desvio do seu património para a única accionista.
Os credores CC e DD aderiram às alegações apresentadas pelas credoras “B..., Lda.”, Herança Jacente aberta por óbito de BB e “Banco 1..., S.A.”, acrescentando que a insolvente, durante o ano de 2020, transmitiu os cinco veículos automóveis que constavam do balancete em Dezembro de 2019, com prejuízo para a mesma e para a massa insolvente, não tendo a devedora, desde Julho de 2020, contabilidade organizada.

A 7 de Setembro de 2021 foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.

O Sr. Administrador da Insolvência, notificado para o efeito, apresentou parecer, propondo a qualificação da insolvência como culposa, com fundamento na alínea d) do n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, indicando como afectados EE e FF.
Alegou que a única accionista da insolvente é a sociedade comercial “C..., S.A.”, a qual tem como administrador EE. A partir de Julho de 2020 houve uma mudança do gabinete de contabilidade, sendo desconhecida a identificação do contabilista certificado responsável pela elaboração da contabilidade, sendo que, quanto ao exercício de 2020, não foi disponibilizada informação relativa às demonstrações financeiras, o mesmo se verificando quanto ao ano de 2021. No final do exercício de 2018, o saldo devedor da accionista da insolvente, decorrente da prática de cash-pooling ou de empréstimos, ascendida a 1.394.898,58 euros, o qual, em 2019, foi reduzido para 790.995,98 euros, redução de passivo que terá resultado, pelo menos em parte, da distribuição de resultados transitados e de reservas, continuando a verificar-se, no mesmo período, saídas de saldos das contas bancárias da insolvente para a sua accionista. A prática de retirada de liquidez da devedora para a acionista manteve-se no exercício de 2020, mesmo após o impacto da pandemia, como se verificou com grande parte do montante mutuado pela credora “Banco 1..., S.A.”, ao abrigo da Linha Específica “Covid-19 – Apoio Empresas de Turismo” (a devedora dispôs a favor da accionista a quase totalidade do financiamento). A insolvente e os seus administradores sabiam que os montantes transferidos para a accionista eram imprescindíveis para a satisfação do passivo, sendo certo que a falta de pagamento das rendas levaria à resolução dos contratos de arrendamento, como veio a verificar-se, impossibilitando o prosseguimento da actividade da primeira. O crédito detido sobre a “C..., S.A.” e os montantes que foram transferidos para a mesma pela insolvente nos anos de 2019 e 2020 seriam suficientes para fazer face à quase totalidade dos créditos reconhecidos.

O Ministério Público aderiu ao parecer apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa, com fundamento nas alíneas d) e f) do n.º 2 do art. 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, indicando como afectados por tal qualificação EE e FF.
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Os requeridos EE e FF foram citados nos termos e para os efeitos previstos no art. 188º, n.º 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Não foi determinada a citação da sociedade comercial “C..., S.A.” pelas razões constantes do despacho de 14 de Outubro de 2021.

A insolvente não deduziu oposição.

O requerido FF não deduziu oposição.

O requerido EE deduziu oposição.
Invocou a nulidade da citação e a extemporaneidade da abertura do presente incidente de qualificação da insolvência, com os fundamentos que aqui damos por reproduzidos, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita. Alegou que a insolvente, até ao início da pandemia, mantinha as suas responsabilidades em dia, sem dívidas vencidas e não pagas. A insolvente encontrava-se em situação de domínio total, pelo que a “sociedade-mãe”, a “C..., S.A.” se tornou responsável pelas dívidas, podendo os credores exigir o cumprimento da obrigação à mesma, sem terem de recorrer previamente ao património da “sociedade-filha”.
O requerido pediu, ainda, a destituição do Sr. Administrador da Insolvência.
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A nulidade da citação foi julgada parcialmente procedente.
O requerido, notificado para, no prazo de 15 dias, complementar a sua oposição, nos termos que constam do despacho de 24 de Março de 2022, remeteu-se ao silêncio.
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Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi declarada sanada a nulidade da citação, julgada improcedente a excepção relativa à extemporaneidade do incidente de qualificação da insolvência, julgado improcedente o pedido de destituição do Sr. Administrador da Insolvência, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, de que não houve reclamações.
No início da audiência de discussão e julgamento, o requerido EE invocou a extemporaneidade do parecer do Sr. Administrador da Insolvência, com os fundamentos que aqui damos por reproduzidos, o que foi indeferido.
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Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA, nos seguintes termos:
Nestes termos, decido:
a) Qualificar a insolvência da devedora “A..., S.A.” como culposa;
b) Absolver do pedido de qualificação da insolvência como culposa o requerido FF;
c) Declarar afectado por tal qualificação o requerido EE;
d) Decretar a sua inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 4 (quatro) anos;
e) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido EE, condenando-se o mesmo a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
f) Condenar o afectado EE a indemnizar os credores da insolvente, considerando as forças dos respectivos patrimónios, em montante a quantificar em sede de liquidação de sentença, com o limite de 904.792,44 euros (novecentos e quatro mil setecentos e noventa e dois euros e quarenta e quatro cêntimos).
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Custas do incidente a cargo do afectado pela qualificação (art. 303º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).”.
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O afectado com declaração de insolvência culposa, EE, vem desta decisão interpor recurso, acabando por pedir o seguinte:
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, em que deve ser dado provimento ao presente recurso de Apelação e em consequência:
a) Ser considerado legalmente inadmissível a abertura do presente incidente por manifestamente extemporâneo e, consequentemente, declarar a nulidade de todo o processado, devendo ser a sentença recorrida revogada, encerrando-se o presente apenso de imediato declarando-se a presente insolvência como FORTUITA, com todas as devidas e legais consequências, o que desde já se requer.
b) Ser revogada a decisão recorrida, qualificando-se a Insolvência como fortuita, com todas as devidas e legais consequências;
Ainda que se entenda diversamente,
c) A sanção aplicada ao recorrente afectado pela qualificação especialmente atenuada nos precisos termos formulados nas conclusões,
Com todas as devidas e legais consequências, assim se se fazendo, a sempre tão desejada e acostumada JUSTIÇA “.
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O ora recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
I. O aqui recorrente EE, foi notificado na pessoa do seu mandatário. da douta sentença ora posta em crise, por transmissão eletrónica elaborada no sistema informático CITIUS em 07-09-2022, com a refª 439761975 (notificação essa que se presume efetuada no 3.° dia seguinte ao da sua elaboração no sistema informático CITIUS ou no 1.° dia útil posterior a esse, quando o não seja ex ví artigo 248º nº 1 do CPC), pelo que a notificação se presume efectuada no dia 12 de setembro de 2022.
II. O prazo de recurso é de 15 dias, ao qual acrescem 10 dias nos termos do n.º 7 do artigo 638.º do CPC aplicável ex vi artº 17º do CIRE, iniciando-se a contagem no dia 13 de setembro de 2022 e terminando no dia 7 de Outubro de 2022.
III. O acto pode ainda ser praticado nos três dias uteis subsequentes, mediante o pagamento de multa nos termos do art 139º nº 5 do CPC, aplicável ex vi artº 17º do CIRE, apenas terminado em 12 de outubro de 2022 (mediante pagamento de multa), sendo, pois, o presente recurso tempestivo.
IV. No processo de insolvência de A..., Lda., mais concretamente no apenso de qualificação, foi proferida a sentença de qualificação de insolvência que aqui se recorre.
V. A sentença recorrida decreta a qualificação da Sociedade Comercial como culposa, determinando a afetação de tal qualificação a EE.
VI. Não se conformando com a decisão proferida em primeira instância, visa o recorrente, com o presente recurso, questionar a apreciação e valoração da prova produzida, assim como evidenciar a evidente inconformidade entre os factos dados como provados e a decisão aqui recorrida, que determinou a incorrecta aplicação das normas jurídicas aplicáveis.
VII. Primeiramente, cumpre afirmar que estamos perante uma situação de Nulidade da Sentença (nos termos do artigo 615º, nº 1 al d) do CPC), uma vez que o Tribunal a quo tomou conhecimento de questões que não podia tomar conhecimento, porquanto o incidence de Qualificação da Insolvência é extemporâneo, por se encontrar ultrapassado o prazo perentório previsto no artº 188º, nº 1 do CIRE para a abertura do mesmo, sendo legalmente inadmissível.
VIII. O prazo fixado no nº 1 do art. 188º para a apresentação do parecer, não é um prazo meramente regulador ou ordenador, mas sim perentório (conforme doutamente decidido entre outros pelos Ac. da Rel. de Coimbra de 10.03.2015, proc. Nº 2037/14.3TBGRD-L.C1, Ac. Rel. Coimbra de 8.9.2015, proc. 132/13.5TBVZL-A.C1, relatora Maria Catarina Gonçalves e Ac. Rel. Guimarães de 30.5.2018, proc. 1193/13.2TBBGC-A.G1, relator José Amaral, ambos disponíveis in www.dgsi.pt), que prevê uma iniciativa processual – que pode ser exercida pelo administrador ou por qualquer interessado – no sentido de desencadear a possível abertura do incidente de qualificação da insolvência e que apenas poderá ser admitida se for apresentada dentro do prazo que está fixado na lei.
IX. Ainda que se admitisse, nos termos gerais que estão definidos na lei processual civil, a possibilidade de o acto ser praticado para além do prazo fixado na lei, sempre se impunha, no mínimo, que, aquando da sua prática, fosse invocado o justo impedimento ou a superveniência dos factos, o que não aconteceu no presente caso.
X. Após ter sido ultrapassado o decurso do prazo estipulado no artº 188º nº 1 do Cire
– atendendo a que a Assembleia de Credores de Apreciação do Relatório a que alude o artº 155º do CIRE realizada em 02-08-2021 , e cujo termo ocorreu em 17-08-2021, e 27-08- 2021 respetivamente, surge, e salvo sempre o devido respeito que é muito por m.o.c., foi , em 08-09-2021, indevida e ilegalmente declarado aberto , o presente Apenso- G- incidente de qualificação de insolvência.
XI. Decorrido o prazo estipulado no artº 188º nº 1 do Cire – atendendo a que a Assembleia de Credores de Apreciação do Relatório a que alude o artº 155º do CIRE foi realizada em 02-08-2021, surge, e salvo sempre o devido respeito que é muito por m.o.c., indevida e ilegalmente o presente Apenso- G- incidente de qualificação de insolvência.
XII. Fluindo, pois, de todo o supra exposto que deverá ser considerado legalmente inadmissível a abertura do presente incidente por manifestamente extemporâneo – ex vi nº 1 do artº 188º do CIRE - Apenso-G-, sendo, deste modo, a Sentença recorrida NULA – artigo 615º, nº 1 al d) do CPC – tendo o juiz tomado conhecimento de questões que não podia tomar conhecimento- Qualificação da Insolvência.
XIII. Por inadmissibilidade legal do presente incidente sendo pois nulos, também – por violação do disposto no artº 188º nº 1 do CIRE- os despachos referidos em 9) da presente Apelação, nulidade essa atempadamente arguida para todos os devidos e legais efeitos, devendo ser a sentença recorrida revogada, encerrando-se o presente apenso de imediato considerando-se a presente insolvência como FORTUITA, com todas as devidas e legais consequências, o que desde já se requer.
XIV. Caso assim não se entenda, o que não se concede, mas por mera cautela de patrocínio se admite, mais se impugna a matéria de facto.
XV. Existe, assim, e desde logo, uma primeira questão que se traz ao conhecimento de V. Exas., qual seja, a de ter ocorrido errada decisão quanto à matéria de facto do sexto tema da prova/ questão a resolver em que se indagava: “ 6. A situação da contabilidade da insolvente desde Julho de 2020”.
XVI. Quanto a este tema de prova, na sentença aqui recorrida foram dados como provados, com relevância para a decisão da causa, os factos P, Q, R, S, SS, TT, UU e VV, supra transcritos, aos quais desde já se remete, não sendo os mesmos novamente transcritos por economia processual.
XVII. O Tribunal a quo entendeu que “os factos provados permitem, também, concluir pelo preenchimento da previsão da alínea h) do n.º 2 do art. 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Vejamos.
(…)
Assim, perante tais factos, cremos que a insolvente incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada. Na verdade, a contabilidade destina-se a dar uma imagem correcta e transparente da situação económica e financeira da sociedade, o que não se verifica no caso em apreço, uma vez a insolvente apenas tem contabilidade organizada até ao final do exercício de 2019, o que não deixou de prejudicar a compreensão da sua situação, nomeadamente, no que diz respeito ao activo, recordando-se que a insolvente, a 29 de Junho de 2020, apresentou processo especial de revitalização e que obteve o financiamento descrito nas alíneas aaa) a ccc) dos factos provados.
Concluímos, pois, pela qualificação da insolvência como culposa.”
XVIII. No entanto a prova produzida relativamente ao mesmo tema, desde logo a vasta prova documental junta com o PER apenso aos presentes autos, bem como a prova testemunhal, impunham decisão diversa, tendo em conta e desde logo as declarações – “claras, objectivas, concretas e fundamentadas na análise dos documentos que lhe foram disponibilizados.”- prestadas pela insuspeita testemunha AA, AI em exercício de funções nos presentes autos, conforme depoimento gravado no sistema de gravação digital integrado, em uso no Tribunal na Audiência 02-06-2022, , sob o ficheiro numero 20220602095612_16005934_3995032, mais especificamente no que respeita à prova produzida entre os minutos 00:22:12 e 00:24:49.
XIX. Deste modo impõe-se alterar a redação dada ao facto provado “uu” o qual, e salvo sempre m.o.c., deverá passar a ter a seguinte redação:
“uu) A insolvente tem contabilidade organizada até junho de 2020, não tendo, no entanto, sido disponibilizados pela “D...” os elementos relativos a demonstrações financeiras, balancete analítico de fecho e balancete actualizado dos exercícios de 2020 e 2021, continuando no entanto a insolvente a dar continuidade ás suas obrigações declarativas”.
XX. Assim sendo, como é, não se vislumbra como pode ser posto em causa, como acabou por ser efetuado na decisão em crise, que a insolvente tenha incumprido em termos substanciais a obrigação manter a contabilidade organizada, pois tudo fez para que tal acontecesse, contratando em julho de 2020 um novo gabinete para o efeito, a – D....
XXI. Bem como, a compreensão da sua situação, nomeadamente, no que diz respeito ao activo,, uma vez que este estava devida e corretamente espelhado no Requerimento Inicial e documentos a este anexos, no PER que a insolvente se apresentou a 29 de Junho de 2020, Apenso - A- dos presentes autos não sendo, pois, a sua conduta jamais subsumível no artigo 186º nº 2 alª h) do CIRE.
XXII. Ocorreu, ainda, nova e errada decisão quanto à matéria de facto do quarto tema da prova/ questão a resolver em que se indagava “4. A situação e o destino dos 5 veículos automóveis que constavam do balancete da devedora em 2019”.
XXIII. Relativamente a este tema da prova, a sentença aqui recorrida deu como provados com relevância para a decisão da causa, os factos NNN e OOO, supra transcritos, aos quais desde já se remete, não sendo os mesmos novamente transcritos por economia processual.
XXIV. No entanto a prova produzida relativamente ao mesmo tema, desde logo a vasta prova documental junta com o PER apenso aos presentes autos, bem como a prova testemunhal, impunham decisão diversa, tendo em conta e desde logo as declarações – “claras, objectivas, concretas e fundamentadas na análise dos documentos que lhe foram disponibilizados.”- prestadas pela insuspeita testemunha AA, AI em exercício de funções nos presentes autos, conforme depoimento gravado no sistema de gravação digital integrado, em uso no Tribunal na Audiência 02-06-2022, , sob o ficheiro numero 20220602095612_16005934_3995032, mais especificamente no que respeita à prova produzida entre os minutos 00:20:10 a 00:20:55 e 00:29:27 a 00:30:22
XXV. Pelo que, ter-se-á que alterar a redação do ponto nnn) dos factos provados, o qual, e salvo sempre m.o.c., deverá passar a ter a seguinte redação:
“nnn) Aquando da apresentação do processo especial de revitalização constavam do balancete da insolvente (reportado ao final de 2019) cinco veículos automóveis, no valor de 229.000,00 euros (com as matrículas ..-..-ZA, ..-LD-.. e ..-QG-.., como proprietária, e com as matrículas ..QN-.. e ..-RI-.., como locatária), sendo que, na data da apresentação do Relatório previsto no art. 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (24 de Julho de 2021), pelo menos, não constava no registo automóvel qualquer registo de propriedade a favor da insolvente, em virtude de tais viaturas terem sido apreendidas e as demais entregues às locadoras ;”
XXVI. Acrescendo, não pode o Apelante aceitar a decisão proferida quanto á matéria de facto relativamente ao segundo tema de Prova, e da subsequente subsunção jurídica dos mesmos, em que se indagava: “2. “As saídas de saldos das contas bancárias da insolvente para a sua única accionista, “C..., S.A.”, nos anos de 2019 e 2020, incluindo a canalização para tal accionista de grande parte dos montantes mutuados pela “Banco 1..., S.A.”, através do acordo de 13 de Maio de 2020, sem justificação ou contrapartida”.
XXVII. Sendo relativamente a tal tema, considerados provados, entre outros, os seguintes factos WW, XX, YY e III supra transcritos, aos quais desde já se remete, não sendo os mesmos novamente transcritos por economia processual.
XXVIII. Decorre da inúmera prova documental junta aos atos, e nomeadamente da prova testemunhal produzida valoração factual diversa da efetuada pela sentença recorrida, tendo em conta e desde logo as declarações prestadas pela testemunha GG na Audiência de 02-06-2022, ficheiro: 20220602103639_16005934_3995032 nomeadamente nos minutos 00:01:48 a 00:06:16.
XXIX. Tendo sobre o mesmo tema da prova a testemunha HH, ROC da insolvente, dito na Audiência de 23-06-2022 gravada no Ficheiro: 20220623110016_16005934_3995032, nomeadamente nos minutos 00:01:56 a 00:04:29.
XXX. Face a tais depoimentos impõe-se dar como provado um facto que contemple a factual e evidente “relação de domínio” existente entre a sociedade comercial dominante “C..., S.A.” e a insolvente e a “gestão global de grupo”, detendo aquela a totalidade do capital social desta desde dezembro de 2015, sendo as transferências realizadas pela insolvente a favor da sua única accionista resultantes do sistema de cash pooling - modelo de gestão centralizada de tesouraria, que era extensivo a outras empresas do grupo.
XXXI. As quais têm como denominador comum o facto de serem geridas pelo requerido e ora apelante EE, o qual face ao advento do “pandemia da doença Covid 19”, tentou sem sucesso, apresentando-se a PER, salvar as empresas do grupo, atendendo a que o sector de actividade da insolvente foi dos mais afectados, sendo que a Massa Insolvente já pediu a declaração de insolvência da referida accionista, não conseguindo evitar o seu encerramento definitivo.
XXXII. Pelo que, ter-se-á que alterar a redação do ponto ww) dos factos provados, o qual, e salvo sempre m.o.c., deverá passar a ter a seguinte redação:
“ww) No final do exercício de 2018, o saldo credor da insolvente relativamente à sua única accionista “C..., S.A.” ascendia a 1.394.989,58 euros, resultantes do sistema de cash pooling - modelo de gestão centralizada de tesouraria, que era extensivo a outras empresas do grupo numa “relação de domínio” ou “gestão global de grupo”, existente entre a sociedade comercial dominante “C..., S.A.” e as demais empresas do grupo, a qual se verificou até à declaração de insolvência da A...– SA”.
XXXIII. Face a tal alteração da matéria de facto supra exposta, fez o tribunal a quo uma incorreta aplicação do preceituado nos artºs 488.º, 489.º, 491.º 501º, 503 e 512º do Código da Sociedades Comerciais, vide a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de maio de 2005 (Fernando Magalhães), processo 05A1413, bem como do artº 21º do Código dos Valores Mobiliários, do artº 7º do Código do Imposto de Selo, e ainda do disposto no artº 186º nº 2 alªs. d) e f) do Cire.
XXXIV. Não praticou, pois, - e face a tudo o que sobredito fica, relativamente ao erro de julgamento sobre a matéria de facto e às alterações que se impõe operar na sentença recorrida -, o ora recorrente e requerido, atos que impliquem a qualificação da insolvência sempre como culposa -a do devedor-, visto não ter:
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
XXXV. Resultando, pois, que as condutas do ora apelante, EE, não preenchem nenhum dos elementos típicos das presunções – legais - das alíneas do nº 2 do artº 186 do CIRE, as alªs. d) f) e h) mais concretamente.
XXXVI. Bem como das presunções de culpa grave enunciadas na alªs. a do nº 3 do supracitado artigo.
XXXVII. Devendo, pois, a douta sentença recorrida, ser substituída por outra que qualifique a presente insolvência como FORTUITA, o que desde já se requer, com todas as devidas e legais consequências.
XXXVIII. Visto o tribunal a quo ter incorrido em erro de julgamento quanto à matéria de facto, decidindo mal, fazendo uma incorreta aplicação do disposto no artº 607º,nº 5 -livre apreciação da prova- do CPC ex vi artigos 392º a 396º do CC, e artº 350º do CC, fazendo pois uma incorreta subsunção dos factos ao estatuído no artº 186º do CIRE, bem como uma incorreta aplicação do preceituado nos artºs 488.º, 489.º, 491.º 501º, 503 e 512º do Código da Sociedades Comerciais, vide a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de maio de 2005 (Fernando Magalhães), processo 05A1413, bem como do artº 21º do Código dos Valores Mobiliários, do artº 7º do Código do Imposto de Selo,
XXXIX. Deste modo, e não se encontrando em momento algum da sentença recorrida, alegada e provada a culpa – nos seus diversos graus- dos requeridos ora recorrentes, bem como não se estabelecendo o nexo de causalidade entre a conduta destes e a criação ou agravamento da situação de insolvência – nos três anos anteriores ao início do processo.
XL. Visto que seria ao interessado na qualificação da insolvência que incumbiria a demonstração do nexo de causalidade entre os factos e a situação de insolvência ou do seu agravamento, razão porque, não resultando dos factos provados a demonstração desse nexo causal e na dúvida sobre o mesmo, a qualificação da insolvência não poderá ser declarada culposa pelo tribunal.
XLI. Impõe-se, também por tal fundamento, caso se entenda não se verificar a nulidade da sentença recorrida, a revogação desta por outra que qualifique a insolvência como FORTUITA, com todos os legais efeitos.
XLII. Caso, que mesmo assim tal não se entenda, o que não se concede mas por mero dever de patrocínio se admite,
XLIII. Deverão ser reduzidas as sanções aplicadas ao requerido, atendendo ao disposto nas alªs. b), c) e e) do nº 2 do art.º 189º do CIRE;
XLIV. A dois anos quanto ao período de inibição aplicado a cada um dos requeridos para administrar patrimónios de terceiros, bem como para o exercício de comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil;
XLV. Devendo, ainda, a alínea e) ser interpretada em termos hábeis quando conjugada com o subsequente nº 4: a indemnização não pode ultrapassar a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago aos credores pelas forças da massa insolvente, e também não pode ser desproporcional relativamente à gravidade da situação prejudicial criada pelos afetados na insolvência de acordo com o preceituado nos artºs., 483º, nºs. 1 e 2, 562º e do Código Civil
XLVI. Atendendo-se que a douta sentença recorrida é completamente omissa quanto à:
- culpa do afetado ora recorrente
- prejuizo efetivo causado á massa insolvente pelas suas condutas
XLVII. Pelo exposto, andou mal o Tribunal a quo. “, realçado nosso.
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O Ministério Público apresentou contra alegações, tendo pugnado pela falta de fundamento do recurso, devendo a sentença recorrido manter-se na sua totalidade.
***
*
II-FUNDAMENTAÇÃO.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:
a) Nulidade da sentença proferida por a sentença ter tomado conhecimento de questões que não podia conhecer, por o incidente de qualificação de insolvência ter dado início fora do prazo do artigo 188.º, n.º 1 do CIRE – conclusões VII a XIII;
b) Impugnação da matéria de facto dos pontos uu), nnn) e ww) dos factos provados – conclusões XIV a XXXII);
c) Em consequência da peticionadas alterações da matéria de facto, retirar as ilações de direito e concluir por a qualificação da insolvência não ser culposa – conclusões XXXIII) a XLI);
d) Das consequências da qualificação da insolvência como culposa, designadamente, período de inibição e o montante da indemnização – conclusões XLII) a XLVI).
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***
A)
Da nulidade da sentença.
Como flui do antedito, o aqui recorrente em sede de oposição aos requerimentos dos credores, supra identificados, veio sustentar a extemporaneidade da abertura do presente incidente de qualificação de insolvência.
O requerido/recorrente, EE, por requerimento datado de 11.11.2021, veio deduzir oposição n os termos do artigo 188.º, n.º 6 do CIRE e 139.º, n.º 5, alínea c) do Código de Processo Civil – cfr. REFª: 40430845, destes autos.
Como terceira questão arguida, sustenta a “inadmissibilidade legal do presente incidente por extemporaneidade”, título, imediatamente antes do artigo 11.º da oposição.
Feita a leitura da alegação de tal requerimento de oposição, as mesmas são na sua quase totalidade reproduzidas agora em sede de alegação e conclusão do presente recurso.
Assim, a questão a apreciar – extemporaneidade do presente incidente de qualificação de insolvência, e consequente nulidade arguida – não é nova.
Em seu devido tempo (03.05.2022) e no local próprio (despacho saneador) o Tribunal a quo pronunciou-se expressamente, nos seguintes termos:
O requerido EE pediu que seja declarado nulo por extemporaneidade o presente incidente de qualificação da insolvência.
Alegou, em síntese, que o despacho que declarou aberto o incidente é nulo, por violar o disposto no art. 188º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, uma vez que o juiz apenas pode oficiosamente declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência na sentença que declara a insolvência se dispuser de elementos relevantes, o que não se verificou no caso, ou na sequência da iniciativa do administrador da insolvência ou de qualquer interessado dentro do prazo previsto na referida norma legal, o que não se verificou também.
*
É de considerar que:
a) A 4 de Junho de 2021 foi proferida sentença que declarou a situação de insolvência da sociedade comercial “A..., Lda.”;
b) Tal sentença não declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência;
c) A 2 de Agosto de 2021 teve lugar a assembleia de apreciação do relatório, onde, para além do mais, se determinou o desentranhamento do requerimento com a referência 39297427, entrado em juízo a 28 de Junho de 2021, e a sua autuação por apenso – incidente de qualificação da insolvência;
d) O requerimento referido na alínea anterior foi apresentado pelas credoras “B..., Lda.” e Herança Jacente aberta por óbito de BB e diz respeito às alegações para efeito de qualificação da insolvência como culposa;
e) A credora “Banco 1..., S.A.”, a 6 de Agosto de 2021, apresentou alegações para efeito da qualificação da insolvência como culposa;
f) Os credores CC e DD, a 17 de Agosto de 2021, apresentaram alegações para efeito da qualificação da insolvência como culposa;
g) A 7 de Setembro de 2011 foi proferido despacho que declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência e determinou a notificação do Sr. Administrador da Insolvência para, no prazo de 20 dias, apresentar parecer nos termos e para os efeitos previstos no art. 188º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
h) O despacho referido na alínea anterior foi publicitado a 8 de Setembro de 2021;
i) O Sr. Administrador da Insolvência, notificado nos termos e para os efeitos referidos na alínea g), por expedição de 8 de Setembro de 2021, apresentou o parecer a que se refere o n.º 3 do art. 188º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a 15 de Setembro de 2021;
j) O parecer do Ministério Público foi junto aos autos a 4 de Outubro de 2021.
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O tribunal teve em consideração os elementos constantes dos autos e do processo principal, nomeadamente, no que diz respeito à data da realização da assembleia de apreciação do relatório.
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Nos termos do disposto no art. 188º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [na redacção anterior à introduzida pela Lei 9/2022, de 11 de Janeiro], “Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.”.
O despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência é irrecorrível, sendo publicado no portal Citius (cfr. n.º 2).
O n.º 3 da mesma disposição legal dispõe que: “Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa.”.
O parecer e as alegações referidos nos ns.º 1 e 3 vão com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie (cfr. n.º 4 da referida disposição legal).
No caso em apreço, a assembleia de apreciação do relatório teve lugar no dia 2 de Agosto de 2021 e as alegações das credoras foram apresentadas a 28 de Junho, a 6 e a 17 de Agosto de 2021, na sequência do que, a 7 de Setembro de 2021, foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Assim sendo, concluímos que as alegações apresentadas pelos credores nos termos do disposto no art. 188º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas são tempestivas, não padecendo o despacho de 7 de Setembro de 2021 de qualquer nulidade [o vício invocado pelo requerido deve-se, cremos, ao facto de a citação não ter sido acompanhada pelas alegações dos credores, pese embora, o mesmo, notificado das peças processuais em falta, nada tenha dito].
Resta acrescentar que o parecer do Sr. Administrador da Insolvência foi apresentado dentro do prazo concedido para o efeito.
Conclui-se, pois, que a excepção invocada não se verifica, pelo que deve ser julgada improcedente.
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Pelo exposto, julgo improcedente a excepção invocada pelo requerido EE, devendo os autos prosseguir os seus termos.

O requerido/recorrente, EE, no início da audiência de julgamento veio novamente pugnar pela extemporaneidade do incidente de qualificação da insolvência.
Novamente, pela M.ma Juíza foi indeferida a questão suscitada, com os mesmos fundamentos, e que aqui se dão por reproduzidos – cfr. acta de audiência de julgamento de 02.06.2022.
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O Ministério Público nas suas contra-alegações sustenta que “o presente incidente foi atempadamente requerido, a sentença recorrida conheceu os factos que devia conhecer, pelo que não padece do alegado vício da nulidade previsto no art,º 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil. “, realçado nosso a negrito.
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Como primeira nota, é de afirmar que a redacção do artigo 188.º do CIRE a ter em devida conta é a decorrente da redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30.06, e, portanto, não releva a redacção dada pela Lei n.º 9/2022, de 11.01.

Desde já afirmamos que não se verifica a apontada nulidade. Vejamos.
Damos aqui integralmente reproduzida a factualidade descrita na decisão proferida pela M.ma Juíza em sede de saneador, e que supra é realçada a negrito.

O presente incidente de qualificação da insolvência teve o seu início com o requerimento de credores – alínea d) dos factos descritos – na sequência da realização da assembleia de apreciação do relatório do Administrador de Insolvência e ainda antes de iniciados os quinze dias.

Nos termos do art. 188.º, n.º 1 e 5, o juiz poderá declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, através de despacho (irrecorrível), publicado no portal Citius, de imediato.
A abertura ulterior do incidente tem que ser solicitada538 (A lei não prevê a admissibilidade de o juiz declarar oficiosamente a abertura ulterior do incidente.) pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado na qualificação da insolvência, através de requerimento, autuado por apenso, apresentado no prazo perentorio de 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, onde é alegado, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeitos de qualificação como culposa e são indicadas as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação (art. 188.º, n.º 1). Se não tiver sido convoca a assembleia de apreciação relatório, o prazo de 15 dias conta-se a partir da junção aos autos do relatório de apreciação previsto no art. 155.º.
Com a alteração introduzida pelo art. 2.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, o legislador pós fim a um dissenso sobre a natureza, dilatória ou perentória, do prazo, qualificando-o expressamente como prazo perentorio. A natureza perentória era justificada por razões de segurança jurídica e de proteção dos potenciais afetados; já a natureza meramente ordenadora encontrava respaldo na finalidade do incidente qualificador da insolvência – o reforço da tutela dos credores concursais, que não se basta com a mera responsabilização patrimonial do insolvente e a privação do seu poder de disposição. Conciliando estes dois interesses antagónicos, o legislador temperou a rigidez do prazo de 15 dias (imposta pela tutela dos potenciais afetados), com a possibilidade de prorrogação do mesmo, com o fundamento previsto no n.º 2 do artigo 188.º (agora, em nome dos interesses sancionatórios e indemnizatórios dos credores concursais), isto é, "quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas dentro dele, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, e que não sus- pende o em curso". Todavia, a prorrogação não pode em caso algum exceder os seis meses após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º (art. 188.º, n.º 3). A decisão do juiz sobre o requerimento de prorrogação deve ser rápida, ultra-rápida, segundo a lei, 24 horas (art. 188.º, n.º 4). Será importante que os juízes estejam habilitados a responder tão prontamente à solicitação, pois o requerimento de prorrogação do prazo não suspende o mesmo (n.º 2 do artigo 188.º).”, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed., MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, pág 177/178.

Estando perante um prazo peremptório, de 15 dias.
O mesmo tem o início, no caso dos autos, no dia da realização da assembleia de credores que prova relatório do Administrador de Insolvência.
Como decorre dos factos a considerar, a assembleia de credores teve a sua realização no dia 02.08.2021, tendo sido votado o relatório do Administrador de Insolvência.
Nesse preciso dia e momento, pela M.ma Juíza foi ordenado a autuação por apenso, incidente de qualificação da insolvência, do requerimento apresentado pelos credores “B..., Lda.” e Herança Jacente aberta por óbito de BB- requerimento que deu entrada em juízo 28.06.2021 – para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
Por sua vez a credor credora “Banco 1..., S.A.”, deu entrada em juízo a 06.08.2021, apresentou alegações para efeito da qualificação da insolvência como culposa, e os credores CC e DD, a 17.08.2021, apresentaram alegações para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
Constata-se assim, que o último dos requerimentos deu entrada em juízo precisamente no décimo quinto dia após a realização da assembleia de credores.
Está assim totalmente cumprido o comando legal do prazo peremptório dos quinze dias.
O afectado/recorrente na conclusão X), confunde o prazo de quinze dias, que diz directamente respeito ao prazo para “administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação“, com a data da prolação do despacho que declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Compulsadas as alegações de recurso, e as suas conclusões parece que o afectado/recorrente confundirá o âmbito de aplicação dos quinze dias, com a data da prolação do despacho que declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência, que ocorreu a 07.09.2021 – conclusão X). Mas, como dispõe o artigo 188.º, n.º 2, actual n.º 5, “O despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência é irrecorrível, sendo de imediato publicado no portal Citius.”.
O prazo de quinze dias é somente aplicável à iniciativa do Administrador de Insolvência ou outro interessado em alegar quanto à qualificação da insolvência e não à prolação do despacho que declara aberto o incidente de qualificação de insolvência.
Pelo exposto, julga-se como não verificada a arguida nulidade.
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B)
Da impugnação da matéria de facto.
Iremos transcrever a factualidade dada como prova e não prova em primeira instância.
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OS FACTOS
A sentença ora em crise deu como prova e não provada a seguinte factualidade.
Mostram-se provados os seguintes factos:
a) A sociedade comercial “A..., S.A.” está registada na Conservatória do Registo Comercial com o NIPC ..., com sede na Rua ..., Porto, tendo como objecto o desenvolvimento e gestão de empreendimentos turísticos, desenvolvimento de actividade do ramo turístico, aluguer de curta duração de veículos ligeiros e pesados, quer de passageiros, quer para o transporte de mercadorias, sem condutor, com ou sem serviços de manutenção, incluindo o aluguer de veículos recreativos, compra, venda e revenda de imóveis, com o capital de 65.000,00 euros, sendo administrador único FF;
b) Foi constituída a 10 de Setembro de 2010, como sociedade por quotas, com sede na Rua ..., Porto, tendo como objecto o desenvolvimento e a gestão de empreendimentos turísticos e o desenvolvimento de actividades no ramo turístico, com o capital de 20.000,00 euros, dividido em duas quotas, cada uma no valor nominal de 10.000,00 euros, uma titulada por CC, casado com DD, e a outra titulada por II, casado com JJ, tendo ambos sido nomeados gerentes;
c) Através da inscrição com a ap. ..., de 24 de Janeiro de 2014, foi registado um aumento de capital de 22.000,00 euros, em numerário, subscrito pelo sócio CC, passando o mesmo a ser titular de uma quota no valor nominal de 32.000,00 euros;
d) II renunciou à gerência a 12 de Setembro de 2014, acto objecto de registo através da inscrição com a ap. ..., de 5 de Setembro de 2014;
e) O sócio II transmitiu a sua participação social ao sócio CC, a 26 de Setembro de 2014;
f) A 15 de Dezembro de 2015 verificou-se um novo aumento de capital, de 23.000,00 euros, por entradas em dinheiro, sendo 3.000,00 euros pelo sócio CC (que aumentou a sua quota) e 500,00 euros por DD, 18.500,00 euros por “C..., S.A.”, 500,00 euros por EE e 500,00 euros por KK, passando o capital para o montante de 65.000,00 euros [inscrição com a ap. ..., de 15 de Dezembro de 2015];
g) Nessa data, a sociedade comercial foi transformada em sociedade anónima, passando a firma a ser “A..., S.A.”, tendo sido designados como administradores CC e EE;
h) Através da inscrição com a ap. ..., de 16 de Maio de 2016, mostra-se registada a cessação de funções de administrador de CC;
i) Através da inscrição com a ap. ..., de 31 de Maio de 2016, mostra-se registada a cessação de funções de administrador de EE;
j) Através da inscrição com a ap. ..., de 16 de Maio de 2016, mostra-se registada uma alteração ao contrato de sociedade, passando a administração a ser exercida por um administrador único;
k) Através da inscrição com a ap. ..., de 31 de Maio de 2016, mostra-se registada a designação como administrador único de EE;
l) O objecto da sociedade comercial “A..., S.A.” foi alterado a 2 de Outubro de 2018, passando a ser o desenvolvimento e gestão de empreendimentos turísticos, desenvolvimento de actividade do ramo turístico, aluguer de curta duração de veículos ligeiros e pesados, quer de passageiros, quer para o transporte de mercadorias, sem condutor, com ou sem serviços de manutenção, incluindo o aluguer de veículos recreativos [inscrição com a ap. ..., de 2 de Outubro de 2018];
m) O objecto social foi novamente alterado a 30 de Dezembro de 2020, passando a ser o descrito na alínea a) – inscrição com a ap. ..., de 30 de Dezembro de 2020;
n) FF foi designado administrador único por deliberação de 4 de Janeiro de 2021, objecto de registo a 9 de Fevereiro de 2021 [inscrição com as aps. ... e ...];
o) A sociedade comercial “A..., S.A.” declarou, nas IES dos anos de 2018 e 2019, que a totalidade do seu capital social é detido, desde 15 de Dezembro de 2015, pela sociedade comercial “C..., S.A.”;
p) É fiscal único “E... – SROC” e fiscal suplente LL;
q) A contabilidade da insolvente foi elaborada, até ao mês de Junho de 2020, pelo contabilista certificado KK, altura em que foi substituído no exercício de tais funções, tendo a sociedade comercial “A..., S.A.” contratado um novo gabinete de contabilidade, sem que tal facto tenha sido comunicado à Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo aquele renunciado às funções em Fevereiro de 2021;
r) A única accionista da sociedade comercial “A..., S.A.” é a sociedade comercial “C..., S.A.”, a qual tem como administrador único EE;
s) A sociedade comercial “A..., S.A.”, a 29 de Junho de 2020, deu início a um processo especial de revitalização, com os fundamentos que aqui damos por reproduzidos, tendo a deliberação social correspondente sido tomada na assembleia geral extraordinária de 26 de Junho de 2020;
t) A 15 de Julho de 2020 foi nomeado administrador judicial provisório;
u) O plano de recuperação apresentado pela devedora não foi aprovado pelos credores e, a 11 de Fevereiro de 2021, foi proferida sentença que determinou o encerramento do processo negocial;
v) O Sr. Administrador Judicial Provisório apresentou o parecer, considerando que a devedora se encontrava em situação de insolvência;
w) O processo de insolvência teve início a 17 de Março de 2021;
x) A 18 de Maio de 2021 foi nomeado administrador judicial provisório;
y) A devedora, citada, reconheceu a situação de insolvência e requereu que a administração da massa continuasse a ser por si assegurada, comprometendo-se a apresentar um plano de insolvência;
z) A 4 de Junho de 2021 foi proferida sentença que declarou a situação de insolvência e que, para além do mais, deferiu o pedido referido na alínea anterior;
aa) O plano de insolvência foi apresentado a 24 de Julho de 2021;
bb) Na assembleia de apreciação do relatório, realizada a 2 de Agosto de 2021, foi deliberado pelos credores o prosseguimento do processo para liquidação e foi determinado o termo da administração da massa insolvente pela devedora;
cc) A insolvente tem como CAE principal ... Hotéis – Apartamentos com restaurante, estando a sua actividade centrada na exploração dos estabelecimentos hoteleiros conhecidos como ... e ... (este formado por apartamentos turísticos), comunicados entre si através de um pateo;
dd) Tais unidades têm entrada, respectivamente, pela Rua ..., e pela Rua ..., no Porto;
ee) As unidades hoteleiras estavam instaladas em imóveis pertença de terceiros, mediante dois contratos de arrendamento, um com início a 1 de Maio de 2011 e fim previsto para 30 de Abril de 2026, ascendendo a renda, à data da declaração de insolvência ao montante mensal de 7.231,51 euros, e outro com início a 1 de Julho de 2014 e fim previsto para 31 de Julho de 2026, ascendendo a renda, na mesma data, ao montante mensal de 12.920,56 euros;
ff) O contrato de arrendamento que tem por objecto o prédio urbano sito na Rua ..., ..., no Porto, foi celebrado a 1 de Maio de 2011, nos termos e condições que constam do documento junto com o parecer do Sr. Administrador da Insolvência, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
gg) Relativamente ao contrato de arrendamento referido na alínea anterior, a senhoria “B..., Lda.”, em Novembro de 2020, requereu a Notificação Judicial Avulsa da agora insolvente, com os fundamentos que aqui damos por reproduzidos, dando-lhe conhecimento da resolução do contrato de arrendamento não habitacional por falta de pagamento das rendas vencidas relativamente aos meses de Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2020, devendo o locado ser restituído livre de pessoas e bens no prazo de 8 dias a contar da notificação, requerendo, ainda, a sua notificação para pagar as rendas vencidas, no montante global de 28.942,03 euros, sujeito a retenção na fonte à taxa legal em vigor (25%), acrescido do valor de 21.706,52 euros, a título de indemnização nos termos do disposto no art. 1045º do Código Civil;
hh) A insolvente foi notificada a 26 de Novembro de 2020;
ii) O contrato de arrendamento que tem por objecto o prédio urbano sito na Rua ..., no Porto, foi celebrado a 1 de Julho de 2014, nos termos e condições que constam do documento junto com o parecer do Sr. Administrador da Insolvência, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
jj) Relativamente ao contrato de arrendamento referido na alínea anterior, os senhorios MM, NN e OO, herdeiros na Herança Jacente aberta por óbito de BB, em Novembro de 2020, requereram a Notificação Judicial Avulsa da agora insolvente, com os fundamentos que aqui damos por reproduzidos, dando-lhe conhecimento da resolução do contrato de arrendamento não habitacional por falta de pagamento das rendas vencidas relativamente aos meses de Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2020, devendo o locado ser restituído livre de pessoas e bens no prazo de 8 dias a contar da notificação, requerendo, ainda, a sua notificação para pagar as rendas vencidas, no montante global de 51.682,24 euros, sujeito a retenção na fonte à taxa legal em vigor (25%), acrescido do valor de 38.761,68 euros, a título de indemnização nos termos do disposto no art. 1045º do Código Civil;
kk) A insolvente foi notificada a 26 de Novembro de 2020;
ll) Os serviços administrativo e de apoio à actividade estavam instalados num outro imóvel, sito na Rua ..., Porto, mediante contrato de arrendamento celebrado a 26 de Abril de 2016, a começar no dia 1 de Maio de 2016 e a terminar no dia 30 de Abril de 2021, nos termos e condições constante dos documento cuja cópia foi junta com o parecer do Sr. Administrador da Insolvência;
mm) Relativamente ao contrato de arrendamento referido na alínea anterior, a senhoria Herança Jacente aberta por óbito de BB, em Novembro de 2020, requereu a Notificação Judicial Avulsa da agora insolvente, com os fundamentos que aqui damos por reproduzidos, dando-lhe conhecimento da resolução do contrato de arrendamento não habitacional por falta de pagamento das rendas vencidas relativamente aos meses de Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2020, devendo o locado ser restituído livre de pessoas e bens no prazo de 8 dias a contar da notificação, requerendo, ainda, a sua notificação para pagar as rendas vencidas, no montante global de 7.130,29 euros, sujeito a retenção na fonte à taxa legal em vigor (25%), acrescido do valor de 5.347,32 euros, a título de indemnização nos termos do disposto no art. 1045º do Código Civil;
nn) A insolvente foi notificada a 26 de Novembro de 2020;
oo) O imóvel referido na alínea ll) foi entregue ao senhorio a 30 de Abril de 2021;
pp) A insolvente, no que diz respeito aos contratos de arrendamento referidos nas alíneas ff), ii) e ll), não paga as rendas desde o mês de Abril de 2020;
qq) A senhoria “B..., Lda.”, a 22 de Março de 2021, instaurou contra a insolvente, entre outros, acção comum onde pede, para além do mais, o pagamento das rendas vencidas e vincendas e a desocupação do imóvel, a qual corre termos com o n.º 4522/21.1T8PRT, do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3;
rr) Os senhorios MM, NN e OO, herdeiros na Herança Jacente aberta por óbito de BB, a 22 de Março de 2021, instauraram contra a insolvente, entre outros, acção comum onde pedem, para além do mais, o pagamento das rendas vencidas e vincendas e a desocupação do imóvel, a qual corre termos com e acção n.º 4523/21.0T8PRT, do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 6;
ss) À data da declaração de insolvência, no portal das finanças, figurava como contabilista certificado da insolvente KK;
tt) A contabilidade, desde Julho de 2020, estava a ser assegurada por “D..., Lda.”, desconhecendo-se a identificação do contabilista certificado responsável pela elaboração da contabilidade, por não se encontrar cadastrado como tal junto da Autoridade Tributária e Aduaneira;
uu) A insolvente tem contabilidade organizada até ao final do exercício de 2019, não tendo sido disponibilizados os elementos relativos a demonstrações financeiras, balancete analítico de fecho e balancete actualizado dos exercícios de 2020 e 2021;
vv) Relativamente ao ano de 2020 apenas foram entregues as declarações periódicas de IVA, não tendo sido entregues o Modelo 22 e a IES, figurando no cadastro da insolvente junto da Autoridade Tributária e Aduaneira o nome do anterior contabilista certificado;
ww) No final do exercício de 2018, o saldo credor da insolvente relativamente à sua única accionista “C..., S.A.” ascendia a 1.394.989,58 euros, resultante de empréstimos;
xx) Em 2019, tal valor é reduzido para 790.995,98 euros;
yy) A redução da dívida referida na alínea anterior resultou, pelo menos em parte, da distribuição de resultados transitados e de reservas e não da entrada de valores provenientes da accionista;
zz) Durante o ano de 2019 a insolvente transferiu, da conta bancária titulada junto da “Banco 1..., S.A.” com o n.º ..., para a sua única accionista “C..., S.A.” o valor total de 397.200,00 euros, nos seguintes termos:
● O montante de 32.000,00 euros a 7 de Maio de 2019;
● O montante de 30.000,00 euros a 23 de Maio de 2019;
● O montante de 11.500,00 euros a 12 de Junho de 2019;
● O montante de 10.600,00 euros a 14 de Junho de 2019;
● O montante de 5.100,00 euros a 16 de Junho de 2019;
● O montante de 250.000,00 euros a 27 de Junho de 2019;
● O montante de 3.000,00 euros a 22 de Agosto de 2019;
● O montante de 6.000,00 euros a 14 de Outubro de 2019;
● O montante de 10.000,00 euros a 31 de Outubro de 2019;
● O montante de 10.000,00 euros a 11 de Novembro de 2019 e
● O montante de 29.000,00 euros a 19 de Novembro de 2019;
aaa) A insolvente, a 13 de Maio de 2020, celebrou com a “Banco 1..., S.A.” um contrato de abertura de crédito, através do qual esta lhe emprestou a quantia de 500.000,00 euros, que aquela recebeu, nos termos e condições constantes do documento junto com o parecer do Sr. Administrador da Insolvência;
bbb) Tal empréstimo destinava-se exclusivamente a financiar necessidades de tesouraria, ao abrigo da Linha Específica “Covid 19 – Apoio Empresas do Turismo”, criada pelo Protocolo que definiu uma linha de apoio com a designação “Linha de Apoio à Economia – Covid-19”, celebrado entre o “IAPMEI – Agência para a Competitividade e Inovação, I.P.”, a “F..., S.A.”, na qualidade de Sodicedade Gestora da Linha de Apoio, a “G..., S.A.”, a “H..., S.A.”, a “I..., S.A.”, a “J..., S.A.” e a “Banco 1..., S.A.”;
ccc) A “J..., S.A.” prestou a favor da “Banco 1..., S.A.” uma garantia autónoma, à primeira solicitação, em garantia de 90% ou 80% do capital em cada momento em dívida, nos termos previstos no referido contrato [cláusula 18.];
ddd) A insolvente, em 2020, transferiu, da conta bancária titulada junto da “Banco 1..., S.A.” com o n.º ..., para a sua única accionista “C..., S.A.” o valor total de 356.000,00 euros, nos seguintes termos:
● O montante de 5.000,00 euros a 8 de Janeiro de 2020;
● O montante de 10.000,00 euros a 17 de Janeiro de 2020;
● O montante de 5.000,00 euros a 24 de Janeiro de 2020;
● O montante de 30.000,00 euros a 31 de Janeiro de 2020;
● O montante de 5.000,00 euros a 24 de Fevereiro de 2020;
● O montante de 6.000,00 euros a 6 de Março de 2020;
● O montante de 5.000,00 euros a 29 de Maio de 2020;
● O montante de 250.000,00 euros a 2 de Junho de 2020 e
● O montante de 40.000,00 euros a 29 de Junho de 2020;
eee) Após tais movimentações, entre outras, a conta bancária encontra-se saldada desde 16 de Abril de 2021;
fff) A insolvente, a 26 de Março de 2020, transferiu, da conta bancária titulada junto da “Banco 1..., S.A.” com o n.º ..., para a sua única accionista “C..., S.A.” o montante de 5.000,00 euros;
ggg) Após tal movimentação, entre outras, a conta bancária encontra-se saldada desde 16 de Abril de 2021;
hhh) A insolvente transferiu, da conta bancária titulada junto do “Banco 2..., S.A.” com o n.º ..., para a sua única accionista “C..., S.A.” o montante de 2.000,00 euros, a 2 de Janeiro de 2020, e o montante de 592,44 euros, a 30 de Janeiro de 2020;
iii) Após tais movimentações, entre outras, a conta bancária apresentava, a 8 de Junho de 2021, o saldo de 332,52 euros;
jjj) A insolvente transferiu, da conta bancária titulada junto da “Banco 3..., S.A.” com o IBAN ..., para a sua única accionista “C..., S.A.” o valor global de 190.000,00 euros, nos seguintes termos:
● O montante de 30.000,00 euros a 27 de Abril de 2020;
● O montante de 10.000,00 euros a 20 de Maio de 2020 e
● O montante de 150.000,00 euros a 29 de Maio de 2020;
kkk) Após tais movimentações, entre outras, a conta bancária apresentava, a 31 de Maio de 2021, o saldo de 20,00 euros;
lll) A acionista “C..., S.A.”, no ano de 2020, transferiu para a insolvente o montante de 30.000,00 euros, a 4 de Fevereiro, o montante de 6.000,00 euros, a 6 de Março, e o montante de 10.000,00 euros, a 3 de Julho;
mmm) O montante de cerca de 440.000,00 euros que foi transferido para a única accionista, a “C..., S.A.”, provinha do financiamento referido nas alíneas aaa) a ccc), destinado exclusivamente a financiar necessidades de tesouraria, ao abrigo da Linha Específica “Covid 19 – Apoio Empresas do Turismo”;
nnn) Aquando da apresentação do processo especial de revitalização constavam do balancete da insolvente (reportado ao final de 2019) cinco veículos automóveis, no valor de 229.000,00 euros (com as matrículas ..-..-ZA, ..-LD-.. e ..-QG-.., como proprietária, e com as matrículas ..-QN-.. e ..-RI-.., como locatária), sendo que, na data da apresentação do Relatório previsto no art. 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (24 de Julho de 2021), pelo menos, não constava no registo automóvel qualquer registo de propriedade a favor da insolvente;
ooo) A insolvente, durante o ano de 2020, fez diversos pagamentos relativos a tais veículos automóveis;
ppp) Aquando da apresentação do Relatório referido na alínea nnn), a insolvente não tinha trabalhadores ao serviço há vários meses;
qqq) A insolvente tinha atrasos no pagamento de salários a partir de Junho de 2020;
rrr) A insolvente recorreu ao regime de lay-off simplificado, na modalidade de suspensão do contrato de trabalho, entre, pelo menos, 21 de Março de 2020 e 31 de Julho de 2020;
sss) A insolvente encerrou os estabelecimentos comerciais temporariamente na sequência da declaração do estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública ocasionada pela doença COVID-19 e das medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19, decretadas;
ttt) A insolvente encerrou definitivamente os estabelecimentos comerciais no início de Janeiro de 2021;
uuu) O passivo da insolvente, no ano de 2018, ascendia ao montante de 1.132,167 euros e, no ano de 2019, ascendia ao montante de 1.183.996,00 euros;
vvv) No apenso de reclamação de créditos, foram reconhecidos créditos no valor global de 2.382.079,74 euros;
www) O crédito da “K..., Lda.”, no montante global de 1.977,48 euros, relativo a produtos de higiene, limpeza e decoração, diz respeito a facturas vencidas entre 5 de Abril de 2020 e 8 de Agosto de 2020;
xxx) O crédito da “J..., S.A.” ascende ao montante global de 648.501,78 euros, onde se inclui o pagamento efectuado à “Banco 1..., S.A.”, no montante de 450.000,00 euros, nos termos e condições constantes do acordo referido nas alíneas aaa) a ccc) [garantia bancária n.º ...];
yyy) O crédito da “L..., Lda.”, no montante de 673.88 euros, diz respeito a facturas vencidas entre 5 de Março e 4 de Junho de 2020;
zzz) O crédito da Herança Aberta por óbito de BB, no montante de 23.173,41 euros, diz respeito a rendas em dívida e relativas aos meses de Abril a Junho de 2020, por força do contrato de arrendamento referido na alínea ii);
aaaa) O crédito do Instituto da Segurança Social, I.P., no montante global de 109.372,66 euros, diz respeito a contribuições e juros de mora, relativas aos meses de Fevereiro, Março, Abril, Junho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021;
bbbb) O crédito de “M...– Sociedade Unipessoal, Lda.”, no montante de 4.792,36 euros, emerge do fornecimento de vinhos e diz respeito a facturas vencidas entre 8 de Abril e 14 de Novembro de 2020;
cccc) O crédito de “N..., Unipessoal, Lda.”, no montante de 418,78 euros, emerge do fornecimento de carne e diz respeito a facturas vencidas entre 31 de Março e 9 de Abril de 2020;
dddd) O crédito de “O..., S.A.”, no montante de 20.325,21 euros, emerge do fornecimento de café, açúcar, adoçante, sumos, cacau, pau de canela, bem como do empréstimo de equipamentos, sendo que as facturas têm vencimentos entre 6 de Fevereiro e 9 de Abril de 2020;
eeee) O crédito de “P..., S.A.”, no montante de 14.262,15 euros, relativo a serviços de lavandaria, diz respeito a facturas vencidas entre 1 de Março e 30 de Dezembro de 2020, 14 e 30 de Janeiro de 2021;
ffff) O crédito do “Banco 2..., S.A.”, no montante global de 328.816,88 euros, provém do contrato de aluguer e promessa de compra n.º ..., tendo por objecto o veículo automóvel matrícula ..-RI-.., e de aval prestado pela insolvente no âmbito do Contrato Capitalizar 2018 – Linha Específica – Fundo de Maneio, celebrado entre o mesmo e a “C..., S.A.”;
gggg) O crédito da “Q..., Unipessoal, Lda.”, no montante de 5.472,57 euros, provém do fornecimento de produtos alimentares e diz respeito a facturas vencidas entre 16 de Fevereiro e 19 de Julho de 2020;
hhhh) O crédito da “B..., Lda.”, no montante de 108.532,60 euros, diz respeito a rendas em dívida e relativas aos meses de Abril a Junho de 2020, por força do contrato de arrendamento referido na alínea ff);
iiii) O crédito de “R..., S.A.”, no montante de 1.576,54 euros, provém de serviços de limpeza nas instalações do Hotel ... e diz respeito a três facturas vencidas a 30 de Março e a 15 de Abril de 2020;
jjjj) O crédito da “S..., S.A.”, no montante de 3.022,56 euros, provém do fornecimento de produtos alimentares e diz respeito a facturas vencidas entre 16 de Fevereiro e 9 de Abril de 2020;
kkkk) O crédito da “Banco 1..., S.A.”, no montante global de 477.907,66 euros, emerge do acordo referido nas alíneas aaa) a ccc) e de um contrato de um contrato de mútuo, celebrado a 30 de Abril de 2019, nos termos e condições constantes do documento junto com a respectiva reclamação de créditos;
llll) O crédito de MM, NN e OO (herdeiros), no montante de 193.808,40 euros, diz respeito a rendas em dívida e relativas aos meses de Abril a Junho de 2020, por força do contrato de arrendamento referido na alínea ii);
mmmm) Foram aprendidos os bens identificados no apenso H;
nnnn) As credoras “B..., Lda.” e MM, NN e OO, herdeiros na Herança Jacente aberta por óbito de BB, instauraram, a 26 e 27 de Julho de 2011, respectivamente, por apenso ao processo de insolvência, acções comuns onde pretendiam a fixação de uma indemnização devida pela ocupação dos imóveis, desde a data da declaração de insolvência e até à sua entrega efetiva [apensos D e E];
oooo) A Massa Insolvente da “A..., S.A.”, a 20 de Dezembro de 2021, pediu a declaração de insolvência da “C..., S.A.”, processo que corre termos neste Juízo de Comércio – Juiz 3, com o número 9688/21.8T8VNG.
*
Não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente, os alegados nos artigos 4º e 5º das alegações das credoras “B..., Lda.” e Herança Jacente aberta por óbito de BB, nos artigos 5º, quanto ao requerido FF em data anterior a 4 de Janeiro de 2021, e 15º, das alegações dos credores CC e DD, e no artigo 31º da oposição do requerido EE.”, realçado nosso.
*
Da impugnação da matéria de facto – pontos uu), nnn) e ww) dos factos provados – conclusões XIV a XXXII).

Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.
A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.
Nesta sede, releva ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita. Vejamos.
a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;
b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;
c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;
d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).
Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).
Assim, será caso de rejeição total ou parcial do recurso da impugnação da decisão da matéria de facto, nos seguintes casos:
a) Ocorrer a falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
b) Ocorrer a falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
c) Ocorrer a falta de indicação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes dos autos, designadamente, documentos, relatórios periciais, ou registados, designadamente, depoimentos antecipadamente prestados, ou nele gravados, com expressa indicação das passagens da gravação que funda diversa decisão.
d) E por fim, ocorrer a falta de indicação expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido por cada segmento da impugnação.
Como refere, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in ob. cit, 5.ª Ed., pág. 169, em anotação ao artigo supratranscrito, a apreciação rigorosa destes requisitos deve ocorrer sempre, pois só assim se dá efectiva validade ao princípio da auto-responsabilidade das partes. Com efeito, são as partes e não o Tribunal que fixam o objecto do recurso através das conclusões. O Tribunal de 2.ª instancia deste modo poderá proceder a um verdadeiro novo julgamento da matéria de facto, tendo como baliza a fixação do tema a decidir, os concretos pontos de facto.

Ponderando e apreciando a instância de recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, o recorrente preenche claramente os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento.

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.
Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.
Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade.”, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.
Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.

A primeira instância fundamentou a sua convicção do seguinte modo[3]:
O tribunal atendeu aos documentos juntos aos presentes autos, bem como aos elementos constantes dos autos principais (com relevo para o relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência), do apenso F (reclamação de créditos, incluindo as reclamações de créditos que foram dirigidas ao Sr. Administrador da Insolvência no prazo fixado na sentença que declarou a situação de insolvência) e do apenso H (apreensão de bens), bem como o que resulta dos apensos D e E (acções comuns propostas contra a massa insolvente) e do processo especial de revitalização apensado.
O tribunal procedeu à consulta electrónica das acções pendentes no Juízo Central Cível do Porto, identificadas nas alíneas qq) e rr), bem como do pedido de insolvência referido na alínea oooo).
O Sr. Administrador da Insolvência foi ouvido em declarações e, no essencial, corroborou o alegado no parecer que oportunamente apresentou no âmbito dos presentes autos, esclarecendo, ainda, que, relativamente aos veículos automóveis, os que eram objecto de contratos de leasing foram entregues e os restantes foram vendidos no ano de 2019, sem que tenha identificado as correspondentes entradas de dinheiro nas contas da insolvente.
A testemunha GG, administrador da insolvência e nomeado administrador judicial provisório no processo especial de revitalização, referiu-se a uma “relação de domínio” existente entre a sociedade comercial “C..., S.A.” e a insolvente e a uma “gestão global de grupo”. Contudo, o seu depoimento nada acrescentou em concreto aos elementos já existentes no processo de insolvência e seus apensos, incluindo no presente incidente de qualificação da insolvência.
A testemunha HH foi ROC da insolvente (até 2019 e desde que a “C..., S.A.” adquiriu o seu capital). Referiu que tratava dos assuntos relacionados com o exercício de tais funções com o requerido EE, sendo que, embora existisse domínio total da insolvente por parte da “C..., S.A.”, embora fossem geridas como um “grupo” e houvesse uma “unidade de interesses”, era a administração da agora insolvente que tomava as decisões respeitantes à condução dos negócios, etc. Disse, também, que a “A..., S.A.” era credora da “C..., S.A.” (aquela “naturalmente financiava a accionista” e “seria ressarcida com os lucros”, “resolveria esses saldos”), desconhecendo as transferências realizadas no ano de 2020, uma vez que não acompanhou as contas nesse período.
O depoimento da testemunha HH suscitou dúvidas quer quanto ao período de tempo em que exerceu funções, tendo em conta o registo com a ap. ... e ... de 9 de Fevereiro de 2021 (do qual resulta a nomeação de Fiscal Único para o quadriénio 2020/2023), quer no que concerne à forma como a insolvente seria ressarcida dos montantes entregues à sua accionista, afigurando-se-nos existir alguma confusão entre os créditos sobre a acionista e a distribuição de lucros [as transferências foram realizadas e não existe qualquer elemento concreto acerca do acordo estabelecido entre a insolvente e a sua accionista, nomeadamente, quanto à restituição dos montantes em causa].
O requerido EE, como resulta da sua oposição, não impugnou a factualidade alegada pelo Sr. Administrador da Insolvência [apenas discordando do “enquadramento legal dado à factualidade”], sendo certo que, relativamente às alegações apresentadas pelos credores, nada disse.
Por outro lado, as alegadas “relação de domínio”, responsabilidade da sociedade dominante (a “C..., S.A.”) pelas dívidas da sociedade dominada (a insolvente) ou instruções emitidas pela primeira, para além de constituírem meras alegações de direito ou conclusivas, são circunstâncias irrelevantes para a apreciação do presente incidente de qualificação da insolvência. Não havendo dúvidas acerca da titularidade do capital da insolvente, a eventual responsabilidade da “sociedade dominante” não afasta a responsabilidade da “sociedade dominada”.
Como já referimos, o requerido EE não pôs em causa as transferências identificadas nos autos [estranhando-se o alegado no artigo 54º, segunda parte, da oposição], assim como não pôs em causa a sua administração de facto [o requerido FF foi designado administrador único a 4 de Janeiro de 2021 – cfr. inscrição com as aps. ... e ..., de 9 de Fevereiro de 2021].
O Sr. Administrador da Insolvência baseou-se na análise dos extractos bancários e dos elementos contabilísticos relativos a 2018 e 2019, uma vez que não foram disponibilizados documentos relativos a 2020 e 2021 e, nas suas declarações, para além do mais, deu novamente conta das diligências que realizou, nomeadamente, junto do gabinete de contabilidade e com vista a identificar os bens titulados pela insolvente e susceptíveis de apreensão.
As declarações do Sr. Administrador da Insolvência foram claras, objectivas, concretas e fundamentadas na análise dos documentos que lhe foram disponibilizados.
No que diz respeito às transferências realizadas pela insolvente a favor da sua única accionista (e ao direito de crédito daí resultante), contudo, cremos que os elementos constantes dos autos não permitem concluir que tal resulte do sistema de cash pooling [modelo de gestão centralizada de tesouraria], estando-se apenas perante simples empréstimos. Por seu turno, quanto aos veículos automóveis identificados nos autos, não constam dos autos quaisquer documentos relativos à venda dos veículos automóveis de que a insolvente era dona no ano de 2019, sendo certo que os mesmos constam do balancete no final desse ano e foram identificados pela insolvente no processo especial de revitalização; no que concerne aos veículos automóveis de que a insolvente era locatária, tendo sido feitos pagamentos no ano de 2020, a verdade é que nada permite concluir que os contratos subjacentes tenham sido cumpridos pela insolvente, tendo tais veículos automóveis, como foi referido pelo Sr. Administrador da Insolvência, sido entregues às locadoras.
Resta referir que não foi produzida prova acerca da alegada retirada de bens ou benfeitorias dos locais onde a insolvente desenvolvida a sua actividade, sendo certo que não foram tais bens ou benfeitorias identificados e que o Sr. Administrador da Insolvência, no relatório que apresentou, apenas se referiu às informações prestadas pelos senhorios, não tendo apurado qualquer facto em concreto a tal propósito [importa referir que o silêncio do requerido após a notificação das alegações dos credores não tem efeito cominatório pleno].“, realçado nosso.

Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.
Com vista a este Tribunal ficar habilitado a conhecer dos factos em discussão, e deste modo formar a sua convicção autónoma, própria e fundamentada, teve de analisar todos os meios de prova produzidos em 1.ª instância.

Deste modo, este Tribunal ponderou a prova documental junta aos autos e citada na sentença em crise e que aqui se dá por reproduzido.
De seguida, procedeu-se à audição integral e completa das gravações da sessão de audiência de julgamento, depoimentos das testemunhas.

Quanto à ponderação dos meios probatórios produzido em audiência final, mormente a prova por confissão ou a prova testemunhal, a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as partes ou as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.

O princípio básico do nosso ordenamento jurídico é o da livre apreciação da prova – artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
Vigora, entre nós, um sistema hibrido ou misto. Consagra, com efeito, o citado preceito o princípio da «liberdade de julgamento» («o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção» acerca de cada facto»). Apenas com a exceção de a lei exigir para a existência ou prova do facto qualquer formalidade especial, a qual não poderá ser dispensada" (cfr. o art. 607, n° 5, 2º segmento).
Assiste, pois, ao julgador o poder de livremente decidir - depois de ponderada apreciação e avaliação - os diversos pontos da matéria de facto (reportados às questões constantes do elenco dos temas de prova) segundo a sua prudente e íntima convicção. Convicção esta alicerçada em regras técnicas ou em máximas da experiência, bem como em conhecimentos pessoais de ordem lógico-dedutiva sobre as realidades da vida e da convivência social. Elementos esses conducentes à prova direta do facto controvertido ou à ilação (dedução lógica) da realidade ou verosimilhança desse facto, através da prova de um facto indiciário (instrumental), nesta segunda hipótese se fundando a prova numa presunção natural ou judicial (arts. 351º do CC e 607°, nº 4). Poder que se exerce, não apenas no que respeita à admissibilidade dos meios de prova propostos ou requeridos pelas partes, como também no que se refere à determinação do seu valor probatório. E tudo por reporte ao material probatório carreado pelas partes ou recolhido oficiosamente para o processo, quiçá mesmo face à conduta processual por elas concretamente adotada.”, in Direito Processual Civil, FRANCISCO MANUEL FERREIRA DE ALMEIDA, Vol I, 2ª ed, pág 109.
(…) o princípio da livre apreciação da prova significa que o julgador deve decidir sobre a matéria de facto da causa a sua íntima convicção, formada no confronto dos vários meios de prova. Compreende-se como este novo princípio se situa na linha lógica dos anteriores: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que forem aplicáveis.
(…) Hoje, a liberdade de apreciação da prova pelo julgador constitui a regra, sendo excepção os casos em que a lei lhe impõe a conclusão a tirar de certo meio de prova. Mas as excepções são importantes.
Estão, de acordo com essa regra, sempre sujeitas à livre apreciação do julgador a prova testemunhal (art. 396 CC), a prova por inspecção (art. 391 CC) e a prova pericial (art. 389 CC). Têm, pelo contrário, valor probatório fixado na lei os documentos escritos, autênticos (art. 371-1 CC) ou particulares (art. 376-1 CC), e a confissão escrita, seja feita em juízo (art. 358-1 CC), seja feita em documento autêntico ou particular, mas neste caso só quando dirigida à parte contrária ou a quem a represente (art. 358-2 CC); mas quer o documento (art. 366 CC) quer a confissão (art. 361 CC) que não reúna os requisitos exigidos para ter força probatória legal fica sujeito à regra da livre apreciação. Valor probatório fixado por lei têm também as presunções legais stricto sensu (art. 350 CC) e a admissão (supra, 2, nota 34).
(…)
No âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que o necessário recurso às presunções judiciais (arts. 349 e 351 CC) por natureza implica, mas que não dispensa a máxima investigação para atingir, nesse juízo, o máximo de segurança. Quando no espírito do julgador, em vez da convicção, se forma a dúvida sobre a realidade dos factos a provar, nomeadamente como resultado do confronto entre a prova produzida pela parte onerada com o respectivo ónus e a contraprova oposta pela parte contrária (art. 346 CC), o facto não pode ser dado como provado, em prejuízo da parte onerada ou, na dúvida sobre a determinação desta, em prejuízo da parte quem o facto aproveitaria (art. 516).”, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, JOSÉ LEBREE DE FREITAS, 1996, pág 157 e seguintes.

Dos factos das alíneas uu) e ww) – existência de contabilidade até 2019 e a existência de saldo credor da insolvente relativamente à sociedade sua única accionista, C... SA.
Vejamos, uma breve súmula do que resultou dos vários meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
O Administrador de Insolvência AA, da insolvente destes autos – A... –, a presentou depoimento escorreito, linear sem quaisquer contradições ou imprecisões que se lhe possa assacar uma menor credibilidade ou veracidade do teor do seu depoimento. O relato por si apresentado é consistente com os demais meios de prova, designadamente prova documental. É revelador o seu depoimento quanto às transferências de dinheiro entre a insolvente e a sociedade dominante (C..., S.A.). É precisamente neste aspecto que o seu depoimento é de relevo, sendo de o valorar muito positivamente. Permita-se aqui acompanhar e repetir o exposto pela M.ma Juíza: “O Sr. Administrador da Insolvência baseou-se na análise dos extractos bancários e dos elementos contabilísticos relativos a 2018 e 2019, uma vez que não foram disponibilizados documentos relativos a 2020 e 2021 e, nas suas declarações, para além do mais, deu novamente conta das diligências que realizou, nomeadamente, junto do gabinete de contabilidade e com vista a identificar os bens titulados pela insolvente e susceptíveis de apreensão.
As declarações do Sr. Administrador da Insolvência foram claras, objectivas, concretas e fundamentadas na análise dos documentos que lhe foram disponibilizados.
No que diz respeito às transferências realizadas pela insolvente a favor da sua única accionista (e ao direito de crédito daí resultante), contudo, cremos que os elementos constantes dos autos não permitem concluir que tal resulte do sistema de cash pooling [modelo de gestão centralizada de tesouraria], estando-se apenas perante simples empréstimos. “.
O Administrador de Insolvência GG, no PER da insolvente, A.... Esta testemunha veio relatar o tipo de relação existente entre insolvente e única sócia, C... Sa. Explicou o circuito do dinheiro entre as duas. Nada mais de relevante veio trazer.
HH, ROC, da insolvente e da C..., com contas certificadas até 2019. Relata a existência da relação existente entre insolvente e única sócia, sendo que a mesma nunca foi formalizada em contrato tipo societário. Relata que nos anos de 2018 e 2019 a insolvente era credora da C..., servindo aquela como geradora de dinheiro da segunda. A insolvente iria ser ressarcida por via dos lucros. Os montantes nunca foram “devolvidos”. Relativamente ao que efectivamente se passou no ano de 2020, declarou desconhecer as mesmas.

Do facto da alínea nnn) – veículos automóveis.
Nesta sede chamamos novamente à liça o depoimento do sr Administrador de Insolvência AA. Damos como reproduzido o que anteriormente mencionamos quanto ao seu depoimento e valor probatório atribuído.
O Administrador de Insolvência GG, no PER da insolvente, A.... Nada de relevante relata.
HH, ROC, da insolvente e da C..., com contas certificadas até 2019. Nada de relevante relata.
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Compulsados os autos, aqui incluindo os autos principais de insolvência da A..., e apensos, resulta que existia entre a insolvente e a sociedade sua única sócia, C..., uma prática semelhante ou análoga a “cash-pooling”, ie, gestão centralizada de tesouraria, onde surgem diferentes contas bancárias tituladas por sociedades pertencentes a um mesmo grupo, que são compensadas entre elas, resultando um só saldo positivo ou negativo.
Contudo esta prática ou sistema pressupõe “a existência de um ou mais contratos, que envolvem (i) as diversas sociedades em relação de domínio ou de grupo, (ii) o Centro de Tesouraria, sendo este uma das sociedades ou a que seja dominante, e por fim, (iii) um banco.
O contrato carateriza-se nomeadamente por conter os seguintes requisitos:
(i) Cada sociedade do grupo compromete-se a transferir (por transferência real ou virtual) o saldo das suas contas bancárias para uma conta global, a qual é titulada pelo Centro de Tesouraria;
(ii) O banco responsabiliza-se pelo débito ou crédito dos juros resultantes da taxa aplicável sobre o saldo da conta bancária global (titulada pelo Centro de Tesouraria) e não sobre os saldos das contas bancárias individuais de cada sociedade pertencente ao grupo;
(iii) O Centro de Tesouraria poderá utilizar os fundos disponíveis na conta bancária global para fazer face à necessidade de financiamento de qualquer das empresas do grupo. “, in Cash Pooling em Portugal, desafios jurídico-fiscais, Tese de Mestrado em Direito Fiscal, Univ Católica, DANIELA DIAS NEVES GERALDES[4].
Como é aí mencionado, para que se esteja perante um sistema de cash pooling é necessário que se verifiquem uma série de requisitos – ainda que tal figura ou instituto não esteja expressamente previsto em letra de Lei –, que tipo de relacionamento efectivamente existe entre as duas sociedades, que tipo de contrato foi efectivamente acordado entre as duas e a instituição bancária.
Deste modo, face à mingua de prova quanto a estes diversos aspectos, que são essenciais e determinantes para que fique demonstrado que efectivamente existia um sistema/prática de cash pooling, teremos que concluir tal como o fez a M.ma Juíza, quanto à redacção da alínea ww), devendo a mesma manter-se.
De igual modo, não se vislumbra de que dos depoimentos das testemunhas se possa identificar a existência de um sistema de cash pooling, existente entre insolvente, A... e única sócia desta, C.... Da prova testemunhal e da documental nada se retira em tal sentido. Deste modo, ter-se-á que concluir que a resposta à matéria de facto não deverá ser alterada.

Igual raciocínio foi feito quanto à contabilidade e veículos – alíneas uu) e nnn).
Quanto à contabilidade, o processado dos autos principais de insolvência são esclarecedores, designadamente, o relatório do Administrador de Insolvência quanto a este preciso aspecto – diligências feitas pelo Administrador de Insolvência no sentido de aceder à contabilidade da sociedade insolvente, que foram relatadas em sede de audiência de julgamento.
Por fim, as apontadas viaturas, são profusamente mencionadas nos autos de insolvência e novamente relatadas no depoimento do Administrador de Insolvência em sede de audiência de julgamento.
Não se compreende, que tal factualidade pudesse ter sido dada como provada sustentada no depoimento de uma testemunha, sem que tivesse uma consistente e precisa demonstração documental.

Tudo visto, trazendo à colação as considerações anteriormente afirmadas, quanto ao grau de certeza que o Tribunal terá que chegar para declarar um facto como provado, não vislumbramos que ocorra algum vício no raciocínio exposto pela M.ma Juíza na sua decisão da matéria de facto. Isto é, ponderada a prova existente nos autos, toda ela, não podemos de deixar de chegar à mesma conclusão – decisão da matéria de facto provada e não provada – tendo feito o mesmo percurso lógico e dedutivo de valoração dos meios de prova.

Pelo exposto terá que se manter na integra a decisão quanto à matéria de facto e por conseguinte improcede nesta parte o recurso do afectado/recorrente.
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C)
Em consequência da peticionadas alterações da matéria de facto, retirar as ilações de direito e concluir por a qualificação da insolvência não ser culposa – conclusões XXXIII) a XLI).

Como se verifica da análise das conclusões formuladas pelo apelante, o objecto deste recurso consistia essencialmente na alteração da decisão proferida sobre a matéria controvertida.
Dessa alteração, antes de qualquer outro fundamento, dependia a pretendida alteração da solução decretada na sentença em crise, pois sem isso a tese do afectado/apelante continuaria desprovida de substrato factual apto à sua afirmação.

Nas conclusões XXXIX e XL, o afectado ora recorrente sustenta que não está estabelecido o nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência, e em consequência, conclui por a insolvência não ser culposa.
Sobre esta questão importa trazer à colação o que foi decidido pela M.ma Juíza:
Da norma do n.º 1 do art. 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas resulta claramente que para a insolvência ser qualificada como culposa é necessário que interceda em termos de causalidade – criando-a ou agravando-a – a actuação do devedor, actuação que tem de ser dolosa ou com culpa grave.
No n.º 2 do mesmo artigo, porém, estabelece-se uma presunção iure et de iure (considera-se sempre) da verificação daqueles requisitos; as situações aí previstas determinam, inexoravelmente, a atribuição de carácter culposa à insolvência (cfr. Carvalho Fernandes, A Qualificação da Insolvência, in Themis, Edição Especial Sobre o Novo Direito da Insolvência, pág. 94).
E, enquanto no n.º 2 se considera sempre culposa a insolvência, no n.º 3 apenas se estabelece uma presunção de culpa grave, presunção que é ilidível.
Neste último caso, portanto, tem de demonstrar-se ainda que a actuação com culpa grave presumida criou ou agravou a situação de insolvência.

A este propósito, afirma-se (cfr. Raposo Subtil, Matos Esteves, Maria José Esteves e Luís Martins, CIRE Anotado, pág. 265) que a qualificação da insolvência como culposa exige uma relação de causalidade entre a conduta do devedor e o estado declarado de insolvência, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas sem nada ter contribuído para a “criação” ou “agravamento” da insolvência.
Fora dos casos previstos no n.º 2, deve ser provada a culpa e o nexo de causalidade. O n.º 2 do artigo não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de causalidade entre a actuação dos administradores do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência.
Dito de outro modo, num caso (o do n.º 2), a verificação dos factos aí, taxativamente, previstos implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa; no outro (o do n.º 3), faz, tão só, presumir a culpa grave dos administradores, os quais podem ilidi-la, fazendo a prova em contrário (cfr. art. 350º, n.º 2, do Código Civil). (…)
Contudo, afigura-se-nos que os factos apurados integram a factualidade a que alude o art. 186º, n.º 2, alíneas d) e f), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, bem como a factualidade prevista na alínea h).
Vejamos.
A sociedade comercial “A..., S.A.” tem como única accionista a sociedade comercial “C..., S.A.”, a qual tem como administrador único o requerido EE.
No final do exercício de 2018, o saldo credor da insolvente relativamente à sua única accionista, “C..., S.A.”, ascendia a 1.394.989,58 euros, resultante da prática de empréstimos, sendo certo que, em 2019, tal valor é reduzido para 790.995,98 euros. Contudo, esta redução da dívida resultou, não da entrada de valores provenientes da única acionista, mas antes da distribuição de resultados transitados e de reservas, pelo menos em parte.
Apesar da dívida referida, a insolvente, durante o ano de 2019, transferiu, da conta bancária titulada junto da “Banco 1..., S.A.” com o n.º ..., para a sua única accionista, “C..., S.A.”, o valor total de 397.200,00 euros, nos seguintes termos:
● O montante de 32.000,00 euros a 7 de Maio de 2019;
● O montante de 30.000,00 euros a 23 de Maio de 2019;
● O montante de 11.500,00 euros a 12 de Junho de 2019;
● O montante de 10.600,00 euros a 14 de Junho de 2019;
● O montante de 5.100,00 euros a 16 de Junho de 2019;
● O montante de 250.000,00 euros a 27 de Junho de 2019;
● O montante de 3.000,00 euros a 22 de Agosto de 2019;
● O montante de 6.000,00 euros a 14 de Outubro de 2019;
● O montante de 10.000,00 euros a 31 de Outubro de 2019;
● O montante de 10.000,00 euros a 11 de Novembro de 2019 e
● O montante de 29.000,00 euros a 19 de Novembro de 2019.
As transferências de dinheiro da insolvente para a sua única accionista continuaram no ano de 2020.
Nesse ano, a insolvente transferiu, da conta bancária titulada junto da “Banco 1..., S.A.” com o n.º ..., para a sua única accionista, “C..., S.A.”, o valor total de
356.000,00 euros, nos seguintes termos:
● O montante de 5.000,00 euros a 8 de Janeiro de 2020;
● O montante de 10.000,00 euros a 17 de Janeiro de 2020;
● O montante de 5.000,00 euros a 24 de Janeiro de 2020;
● O montante de 30.000,00 euros a 31 de Janeiro de 2020;
● O montante de 5.000,00 euros a 24 de Fevereiro de 2020;
● O montante de 6.000,00 euros a 6 de Março de 2020;
● O montante de 5.000,00 euros a 29 de Maio de 2020;
● O montante de 250.000,00 euros a 2 de Junho de 2020 e
● O montante de 40.000,00 euros a 29 de Junho de 2020;
Após tais movimentações, entre outras, a conta bancária encontra-se saldada desde 16 de Abril de 2021.
A insolvente, a 26 de Março de 2020, transferiu, da conta bancária titulada junto da “Banco 1..., S.A.” com o n.º ..., para a sua única accionista “C..., S.A.” o montante de 5.000,00 euros, sendo que, após tal movimentação, entre outras, a conta bancária encontra-se saldada desde 16 de Abril de 2021.
A insolvente transferiu, da conta bancária titulada junto do “Banco 2..., S.A.” com o n.º ..., para a sua única accionista, “C..., S.A.”, o montante de 2.000,00 euros, a 2 de Janeiro de 2020, e o montante de 592,44 euros, a 30 de Janeiro de 2020, sendo que, após tais movimentações, entre outras, a conta bancária apresentava, a 8 de Junho de 2021, o saldo de 332,52 euros.
A insolvente transferiu, da conta bancária titulada junto da “Banco 3..., S.A.” com o IBAN ..., para a sua única accionista, “C..., S.A.”, o valor global de 190.000,00 euros, nos seguintes termos:
● O montante de 30.000,00 euros a 27 de Abril de 2020;
● O montante de 10.000,00 euros a 20 de Maio de 2020 e
● O montante de 150.000,00 euros a 29 de Maio de 2020
Após tais movimentações, entre outras, a conta bancária apresentava, a 31 de Maio de 2021, o saldo de 20,00 euros.
Resulta, ainda, dos factos provados que o montante de cerca de 440.000,00 euros que foi transferido para a única accionista, a “C..., S.A.”, provinha do financiamento referido nas alíneas aaa) a ccc), destinado exclusivamente a financiar necessidades de tesouraria, ao abrigo da Linha Específica “Covid 19 – Apoio Empresas do Turismo”.
Como sabemos, a insolvente, a 13 de Maio de 2020, celebrou com a “Banco 1..., S.A.” um contrato de abertura de crédito, através do qual esta lhe emprestou a quantia de 500.000,00 euros, que aquela recebeu, nos termos e condições constantes do documento junto com o parecer do Sr. Administrador da Insolvência.
Tal empréstimo destinava-se exclusivamente a financiar necessidades de tesouraria, ao abrigo da Linha Específica “Covid 19 – Apoio Empresas do Turismo”, criada pelo Protocolo que definiu uma linha de apoio com a designação “Linha de Apoio à Economia – Covid-19”, celebrado entre o “IAPMEI – Agência para a Competitividade e Inovação, I.P.”, a “F..., S.A.”, na qualidade de Sociedade Gestora da Linha de Apoio, a “G..., S.A.”, a “H..., S.A.”, a “I..., S.A.”, a “J..., S.A.” e a “Banco 1..., S.A.” [a “J..., S.A.” prestou a favor da “Banco 1..., S.A.” uma garantia autónoma, à primeira solicitação, em garantia de 90% ou 80% do capital em cada momento em dívida, nos termos previstos no referido contrato].
A insolvente, após ter sido decretado o estado de emergência em Portugal, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública ocasionada pela doença COVID-19, qualificada pela Organização Mundial de Saúde como uma pandemia internacional (Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março) e após ter acedido às linhas de apoio à economia para fazer face aos efeitos negativos originados pelas medidas excepcionais e temporárias de resposta à pandemia decretadas em Portugal [designadamente, através do Contrato de Abertura de Crédito celebrado com a “Banco 1..., S.A.” a 13 de Maio de 2020, nos termos descritos nas alíneas aaa) a ccc)], a insolvente transferiu para a sua única accionista cerca de 440.000,00 euros, sem que haja justificação para o efeito, o mesmo se verificando quanto às restantes transferências realizadas [uma das transferências foi efectuada no dia em que a insolvente apresentou o processo especial de revitalização].
Importa realçar que a “J..., S.A.” prestou a favor da “Banco 1..., S.A.” uma garantia autónoma, à primeira solicitação, em garantia de 90% do capital mutuado [cfr. reclamação de créditos], sendo certo que as garantias emitidas pelas sociedades de garantia mútua [SGM], no âmbito da referida linha de apoio à economia, beneficiam de uma contragarantia de 100% do Fundo de Contragarantia Mútuo [FCGM], gerido pelo “Banco 4...”, e, nesses termos, beneficiam de uma contragarantia do Estado Português.
A insolvente, em vez de canalizar o montante financiado para a satisfação das suas dívidas, nomeadamente, rendas, salários e fornecedores, transferiu para a sua única accionista [não obstante a dívida já existente] a quase totalidade do financiamento concedido para fazer face aos efeitos negativos provocados pela pandemia, para apoiar as necessidades de tesouraria emergentes do estado de emergência [500.000,00 euros], sendo certo que, a 30 de Abril de 2019, a insolvente tinha obtido da “Banco 1..., S.A.” um mútuo no montante de 500.000,00 euros.
A insolvente, apesar da dívida já existente em 2018, manteve nos anos de 2019 e 2020, incluindo após a obtenção do apoio aludido, a política de transferências de dinheiro a favor da sua única accionista, olvidando as suas responsabilidades para com os credores, nomeadamente, os senhorios e os trabalhadores [a manutenção dos contratos de arrendamento constituía circunstância essencial à manutenção da sua actividade nos locais identificados nos autos], importando referir que a Massa Insolvente já pediu a declaração de insolvência da referida accionista.
A insolvente actuou da forma descrita e, a 26 de Junho de 2020 [cerca de um mês após o acordo descrito nas alíneas aaa) a ccc)], foi deliberada a sua apresentação a processo especial de revitalização, com o desfecho conhecido e com a consequente declaração de insolvência, sem que tenham sido detectados depósitos bancários de relevo, pelo contrário.
A insolvente, por um lado, viu-se confrontada com a pandemia da doença Covid-19 e com as medidas de contenção adoptadas (pelo Presidente da República, pela Assembleia da República e pelo Governo) – o sector de actividade da insolvente foi dos mais afectados, mas, por outro lado, tomou decisões em benefício da sua única accionista, cujo administrador único era também administrador único da insolvente, e que inviabilizaram a manutenção da sua actividade, conduzindo ao seu encerramento definitivo.
Assim, perante os factos provados, podemos concluir pelo preenchimento das previsões das alíneas d) e f) do n.º 2 do art. 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a tal não obstando, como nos parece evidente, o facto descrito na alínea lll) dos factos provados.
Os factos provados permitem, também, concluir pelo preenchimento da previsão da alínea h) do n.º 2 do art. 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Vejamos.
À data da declaração de insolvência [4 de Junho de 2021], no portal das finanças, figurava como contabilista certificado da insolvente KK.
A contabilidade da insolvente foi elaborada, até ao mês de Junho de 2020, pelo contabilista certificado KK, altura em que foi substituído no exercício de tais funções, tendo a sociedade comercial “A..., S.A.” contratado um novo gabinete de contabilidade, sem que tal facto tenha sido comunicado à Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo aquele renunciado às funções em Fevereiro de 2021.
A contabilidade, a partir de Julho de 2020, passou a ser assegurada por “D..., Lda.”, desconhecendo-se a identificação do contabilista certificado responsável pela elaboração da contabilidade, por não se encontrar cadastrado como tal junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.
A insolvente tem contabilidade organizada até ao final do exercício de 2019, não tendo sido disponibilizados os elementos relativos a demonstrações financeiras, balancete analítico de fecho e balancete actualizado dos exercícios de 2020 e 2021.
Relativamente ao ano de 2020 apenas foram entregues as declarações periódicas de IVA, não tendo sido entregues o Modelo 22 e a IES.
Assim, perante tais factos, cremos que a insolvente incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada. Na verdade, a contabilidade destina-se a dar uma imagem correcta e transparente da situação económica e financeira da sociedade, o que não se verifica no caso em apreço, uma vez a insolvente apenas tem contabilidade organizada até ao final do exercício de 2019, o que não deixou de prejudicar a compreensão da sua situação, nomeadamente, no que diz respeito ao activo, recordando-se que a insolvente, a 29 de Junho de 2020, apresentou processo especial de revitalização e que obteve o financiamento descrito nas alíneas aaa) a ccc) dos factos provados.
Concluímos, pois, pela qualificação da insolvência como culposa.”.

Quanto ao expendido, este Tribunal não dissente.
É jurisprudência pacífica neste Tribunal da Relação, quanto à distinção das situações/hipótese legais do n.º e do n.º 3 e as suas consequências legais.
“Destarte, fora dos casos previstos no nº 2, (de automática qualificação da insolvência) tem de existir culpa (efetiva (nº 1) ou presumida (nº 3)) e tem de estar demonstrado o nexo de causalidade para que a insolvência possa ser qualificada como culposa.
Nos casos do nº 2, que constituem situações, taxativas, de presunção de culpa (“sempre culposas”), não é necessária a prova de culpa, sequer se admite prova em contrário. E o nº 2, não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de nexo de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor (que não seja uma pessoa singular) e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. Decorre, pois, deste artigo que, verificando-se uma das vicissitudes contempladas no n.º 2, aplicável, com as necessárias adaptações, ao insolvente pessoa singular, ex vi n.º 4, tem de se considerar a insolvência como culposa, atenta a presunção inilidível ou iuris et de iuris nele consagrada, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário – não é necessária prova da culpa nem é admitida prova em contrário – art. 350º, nº2, in fine, do Código Civil. Só a presunção de culpa nos casos do nº2 é que é inilidível (presunção absoluta). A presunção derivada da qualificação da culpa como grave, prevista no nº3 é iuris tantum, ilidível (presunção relativa) “, Ac Tribunal da Relação do Porto 908/12.0TYVNG-A.P1, de 06.09.2021, relatado pela Des EUGÉNIA CUNHA, in dgsi. Entre outros no mesmo sentido, 3668/18.8T8STS-B.P1, de 21.04.2022, relatado pelo Des PAULO DIAS DA SILVA, 252/20.0T8AMT-A.P1, de 13.04.2021, relatado pelo Des RODRIGUES PIRES, 876/13.1TYVNG-A.P1, de 13.07.2022, relatado pelo Des JORGE SEABRA e 1067/12.4TYVNG-A.P1, de 13.07.2021, relatado pelo Des CARLOS QUERIDO, todos disponíveis em dgsi.pt
Face à factualidade dada como provada, e supra descrita na transcrição dos factos e bem como da fundamentação da sentença em crise, não há como não concordar com o decidido pela M.ma. Juíza.
Desta feita, terá que improceder por aqui a alegação do recorrente, afectado.

Não tendo obtido vencimento quanto à alteração da matéria de facto, mantem-se a decisão quanto ao fundo da questão conhecida pelo tribunal a quo – declarar a insolvência com culposa, nos termos o artigo 186.º, n.º 2, alíneas d), f) e h) do CIRE, sendo o afectado/apelante com tal declaração o requerido, aqui recorrente, EE, nos termos do artigo 189.º, n.º 2, alínea b) e c) do CIRE.
**
D)
Das consequências da qualificação da insolvência como culposa, designadamente, i) período de inibição e ii) o montante da indemnização – conclusões XLII) a XLVI).
Dispõe o artigo 189.º, n.º 2 do CIRE o seguinte:
2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados. (…)
4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.”

Sustenta o recorrente/afectado que deverão ser reduzidas as sanções aplicadas, fixação do período de inibição para o mínimo legal de dois anos – alínea c) – e bem como na fixação do montante da indemnização, “não pode ultrapassar a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago aos credores pelas forças da massa insolvente, e também não pode ser desproporcional relativamente à gravidade da situação prejudicial criada pelos afetados na insolvência de acordo com o preceituado nos artºs., 483º, nºs. 1 e 2, 562º e do Código Civil” – alínea e).

Vejamos.
Entende o recorrente que a sentença é omissa quanto fixação da culpa do afectado – alínea a), do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE.
Na sentença em crise pode-se ler o seguinte:
Vejamos, então, se ambos os requeridos devem ser afectados pela qualificação da insolvência como culposa.
No que concerne ao requerido EE não existem dúvidas de que deve ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa. De facto, exerceu funções de administrador único no período relevante e teve intervenção nos actos que fundamentam a qualificação da insolvência, nomeadamente, no que diz respeito às transferências realizadas a favor da única accionista, a sociedade comercial “C..., S.A.”, da qual também era administrador único.
Contudo, cremos que o requerido FF não deve ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa.
Na verdade, o requerido FF foi designado administrador único por deliberação de 4 de Janeiro de 2021, objecto de registo a 9 de Fevereiro de 2021, na pendência do processo especial de revitalização e já próximo da sua fase final [a sentença que determinou o encerramento do processo negocial foi proferida a 11 de Fevereiro de 2021], não havendo notícia de que tenha exercido funções de administrador de facto em data anterior a 9 de Fevereiro de 2021. Por outro lado, apesar da falta de contabilidade organizada a partir de Janeiro de 2020, tendo o mesmo iniciado funções a 9 de Fevereiro de 2021, cremos que não lhe pode ser imputada essa circunstância – recordemos que o requerido foi designado administrador único na pendência do processo especial de revitalização, já na sua fase final, processo especial de revitalização que foi convolado em processo especial de insolvência, iniciado a 17 de Março de 2021, tendo a situação de insolvência sido declarada por sentença proferida a 4 de Junho de 2021.
O requerido FF deve, pois, ser absolvido do pedido.
Qualificada, então, a insolvência como culposa, importa, agora, decretar o período estabelecido no art. 189º, n.º 2, alíneas b) e c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, relativamente ao requerido EE.
Assim, fixa-se o período de inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, em 4 anos, por se considerar que este é o período que melhor se adequa aos contornos do caso em apreço.”
Constata-se assim, que a sentença não é omissa quanto ao afectado EE.
Tal como é entendimento de LUÍS a CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., pág. 694, a sentença terá que fixar o grau de culpa, caso haja mais do que uma pessoa atingida pela qualificação da insolvência culposa. No mesmo sentido MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, ob cit, pág. 156.
Desta feita, terá que improceder a pretensão do recorrente – conclusão VLVI.
*
i) Quanto à fixação do período de inibição – alínea c), do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE.
Sustenta o recorrente que deverá se fixado pelo período mínimo de dois (2) anos a inibição “para o exercício do comércio (…), bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa”.
A M.ma Juíza fundamentou a decisão do seguinte modo:
Qualificada, então, a insolvência como culposa, importa, agora, decretar o período estabelecido no art. 189º, n.º 2, alíneas b) e c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, relativamente ao requerido EE.
Assim, fixa-se o período de inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, em 4 anos, por se considerar que este é o período que melhor se adequa aos contornos do caso em apreço.”

A letra da Lei não nos aporta os caminhos que o julgador terá de percorrer para fixar o período de inibição.
Como consequência da qualificação da insolvência como culposa, o juiz deve, na sentença de qualificação decretar a inibição para o exercício do co pelas pessoas afetadas durante um período de 2 a 10 anos (art. 189º, nº2, al. c)). (…)
Os critérios orientadores da decisão também não estão previstos na lei. Porém, a doutrina tem entendido que o juiz deverá ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento – gravidade do comportamento poderá ser aferida em função do preenchimento do n° 2 ou do nº 3.
Por inibição para o exercício do comércio deve entender-se a proibição de exercício de comércio, seja este realizado de forma direta ou indireta (por interposta pessoa: vg, o exercício do comércio por intermédio de familiares do inibido), seja este realizado em nome próprio ou em nome alheio.”, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, ob cit, pág. 166.

Chamamos à colação o expendido no Ac do Tribunal da Relação do Porto, de, de 13.04.2021, 252/20.0T8AMT-A.P1, relatado pelo Des RODRIGUES PIRES, dgsi.pt, sobre esta questão, dando aqui por reproduzidas as considerações sobre este efeito:
Escrevendo sobre o fundamento da inibição prevista na alínea c) do nº 2, Carvalho Fernandes e João Labareda (in ob. cit., págs. 734/5) salientam que aqui se revela “uma atitude de desconfiança quanto à atuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência.
É, aliás, este mesmo sentimento que justifica a extensão da inibição à administração de quaisquer patrimónios de terceiros (…)”
Sobre esta mesma questão escreve Menezes Leitão (in ob. cit., pág. 291):
“Esta inibição não constitui uma incapacidade em sentido técnico, sendo antes uma incompatibilidade resultante do estado de insolvência culposa. O seu fundamento é a defesa geral da credibilidade do comércio e dos cargos vedados, que poderia ser posta em causa se os mesmos fossem ocupados por pessoas reconhecidamente culpadas de insolvência.”
Por seu turno, Maria do Rosário Epifânio (in “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina, 7ª ed., pág. 159), referindo-se à inibição prevista na alínea b), escreve que esta “apresenta uma dupla faceta preventiva e sancionatória: por um lado, destina-se a proteger terceiros que poderiam ver os seus patrimónios prejudicados pela atuação de pessoa que não oferece a confiança necessária; por outro lado, tem um carácter repressivo, pois não se aplica às hipóteses de culpa leve.”
E mais adiante, reportando-se agora à inibição mencionada na alínea c) (in ob. cit., págs. 160/161), diz-nos que os critérios orientadores da decisão não estão previstos na lei, escrevendo, em seguida, que “a doutrina tem entendido que o juiz deverá ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento…”.
No plano jurisprudencial tem-se entendido igualmente que os períodos de inibição relativos às pessoas afetadas pela qualificação da insolvência a que se referem as alíneas b) e c) devem ser graduados em função da gravidade do seu comportamento e da sua relevância na verificação da situação de insolvência, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e a moldura abstrata de inibição prevista pelo legislador [neste sentido, por ex., Ac. Rel. Guimarães de 20.9.2018, proc. 7763/16.0 8VNF-A.G1; Ac. Rel. Porto de 8.3.2019, proc. 2538/15.6T8AVR-D.P1; Ac. Rel. Guimarães de 25.6.2015, proc. 293/12.0TBVCT-A.G1 e Ac. Rel. Coimbra de 5.2.2013, proc. 380/09.2TBAVR-B.C1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.]

Deste modo, teremos que nos ater à factualidade dada como provada nestes autos, para fixar o período de inibição.
Face à actuação do afectado EE, em primeira linha a concreta e efectiva actuação nas várias transferências monetárias da sociedade insolvente para a sociedade C..., sua única sócia, o que inculca e faz sugerir uma motivação reiterada no tempo em persistir em tal actuação. É de valorar os montantes em causa. E por fim, a situação a que a sociedade insolvente A... chegou em face de tal actuação.
O período de inibição relativamente às pessoas afectadas pela qualificação da insolvência deve ser graduado em função da gravidade do seu comportamento e da sua relevância na verificação da situação de insolvência, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e a moldura abstracta da inibição prevista pelo legislador.
De igual modo, é de considerar que a referência legal a grau de culpa respeita à culpa grave ou dolosa, pois que só estas determinam a qualificação da insolvência como culposa.
O requerido/apelante era a força da engrenagem de ambas as sociedades. Tinha pleno domínio e conhecimento da situação financeira de ambas as empresas. Tendo tal domínio de facto, o requerido/apelante conscientemente tomou opções que, conscientemente, sabia que iriam prejudicar a sociedade insolvente e beneficiando a sociedade C....
O requerido/apelante sabia que com foi esta conduta que agravou a situação dos credores e contribuiu decisivamente para a insolvência da sociedade requerida, A....
Deste modo, face a esta factualidade, podemos afirmar que sobre o requerido/apelante existe de um juízo de censura compatível com a afirmação de um grau de culpa próximo do seu limite mediano.
Tudo ponderado, somos de concordar com a fixação do período que a primeira instância determinou.
Deste modo, nada há a alterar ou a censurar no determinado pela M.ma Juíza.
*
ii) Quanto à fixação da indemnização nos termos da alínea e), a sentença fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
Na sentença que qualifica a insolvência como culposa o juiz deve condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respectivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afectados (art. 189º, n.º 2, alínea e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
O n.º 4 do mesmo preceito acrescenta que ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença.
A condenação a indemnizar os credores da insolvente, estabelecida na alínea e) do n.º 2 do art. 189º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deve ser entendida em conjugação com o n.º 4 da mesma disposição legal, pelo que tal indemnização não tem obrigatoriamente que abarcar todos os créditos não satisfeitos (caso contrário, o referido n.º 4 seria um preceito inútil).
Nestes termos, no caso em apreço, considerando os factos provados, o afectado deverá responder até ao limite de 904.792,44 euros, correspondente à soma das transferências realizadas em 2019 e 2020 a favor da única accionista “C..., S.A.”, deduzidos os montantes indicados na alínea lll) dos factos provados [cfr. alíneas zz), ddd), fff), hhh), jjj) e lll) dos factos provados].
A responsabilidade do requerido terá, assim, como limite o valor referido no parágrafo anterior [904.792,44 euros], sempre até às forças do respectivo património.
Contudo, uma vez que o estado actual da liquidação não permite definir, desde já, o valor que será obtido com a liquidação do activo e o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, a indemnização deverá ser liquidada posteriormente, em liquidação de sentença, como se prevê no art. 189º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
Entendemos que o decidido não merece censura.
Vejamos.

Segundo o art. 189º, n.º 2, al. e), na sentença o juiz deve "condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados" (sublinhado nosso). Este efeito foi introduzido pela Lei n.º 16/2012 de 20 de abril e recentemente alterado pelo art. 2.º da Lei n.º 9/2022, de 1 de janeiro (modificações destacadas no texto).
(…)
Consideramos que se trata de uma responsabilidade insolvencial, que se caracteriza pela prossecução de uma tripla finalidade, a saber (embora sem a mesma intensidade): i) o ressarcimento dos credores pelo prejuízo decorrente da insatisfação dos respetivos créditos em sede de processo de insolvência; ii) o sancionamento das atuações, com culpa qualificada, que contribuíram para a criação ou o agravamento da situação de insolvência; iii) a prevenção (geral e especial) destas atuações.
Esta responsabilidade aquiliana é subsidiária, pois só quando a massa é insuficiente para a satisfação de todos os credores é acionada - fica, por isso, sujeita a uma condição suspensiva. O momento do apuramento do montante indemnizatório depende da tramitação do processo em concreto - mas, se for aprovado um plano de insolvência, em que momento e em que termos se fo valor da indemnização? O art. 189.º, n.º 4, preceitua que, caso não seja possível no momento da prolação da sentença qualificadora calcular o montante do prejuízo sofrido, deverá pelo menos estabelecer os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.
(…)
Esta responsabilidade é limitada, pois abrange apenas o "passivo a descoberto". Isto significa, desde logo, que, ao abrigo deste artigo, o montante da indemnização não poderá ser superior ao passivo a descoberto. E se o dano concretamente causado for inferior? A lei (ao contrário do art. 126.º-B, n.º 1, do CPEREF, que expressamente preceituava a condenação dos responsáveis a satisfazerem o passivo a descoberto ou apenas o montante do dano por eles causado, se fosse considerado inferior) não é muito clara. A Doutrina e a Jurisprudência divergiam à luz da redação inicial do preceito (que mandava fixar a "no montante dos créditos não satisfeitos"), entre duas teses: os afetados pela qualificação da insolvência deverão ser sempre condenados a indemnizar os credores do insolvente no montante dos créditos não satisfeitos no processo de insolvência (tal como resulta da letra da alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º) ou deverão ser obrigados a reparar apenas os prejuízos concretamente causados aos credores do insolvente (segundo uma interpretação corretiva do mesmo preceito legal)?
Consideramos que, não obstante a intenção clarificadora subjacente à alteração da redação do preceito, a questão (à luz da nova redação - "até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos") continua a colocar-se (ficando apenas definitivamente esclarecido que o montante do passivo a descoberto constitui um limite máximo do quantum respondeatur). Pela natureza e função desta responsabilidade insolvencial, o montante indemnizatório deverá ser o valor do passivo a descoberto e, apenas em casos absolutamente excecionais (em nome do princípio constitucional da proporcionalidade), deverá ser inferior, aproximando-se o montante dos danos concretamente causados.”, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, ob cit, pág. 169 e seguintes.

Renovando aqui a citação da jurisprudência citada pela autora, Ac Supremo Tribunal de Justiça, 439/15.7T8OLH-J.E1.S1, de 22.06.2021, relatado pelo Cons ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS, dgsi.pt, podemos transcrever quanto a esta questão o seguinte:
Pelo que, independentemente do tipo de responsabilidade que se considere ter sido consagrada no art. 189.º/2/e) – seja de cariz meramente ressarcitório, seja de cariz sancionatório, seja de cariz misto – quer-nos parecer que sempre a mesma terá que ser considerada como sujeita a algum controlo de proporcionalidade, ou seja, por exigência do princípio constitucional da proporcionalidade e da proibição do excesso (que decorre da própria ideia de Estado de Direito e que é claramente traçado no art. 18.º/2 da CRP, na parte em que se diz que devem “as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos”), o dever de indemnizar estabelecido no art. 189.º/2/e) do CIRE tem que ter “limites”, tem de algum modo que se relacionar com o grau de culpa das pessoas afetadas e/ou com a gravidade da ilicitude (contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência).
Sem prejuízo, claro está, dos “limites” e do controlo de proporcionalidade (ou porventura mais exatamente de não desproporcionalidade) não ter que ser exatamente o mesmo, quer se considere que o art. 189.º/2/e) do CIRE enuncia uma sanção (ou também uma sanção), quer se considere que tem um cariz meramente ressarcitório.
Sendo que para nós – enfrentando tal questão – a obrigação de indemnizar consagrada no art. 189.º/2/e) do CIRE e a responsabilidade aí imposta (sobre as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa) deve ser considerada como tendo, com todo o respeito por opinião diversa, uma função/cariz misto, ou seja, sem prejuízo da sua função/cariz ressarcitório, terá também uma dimensão punitiva ou sancionatória.
O art. 126.º-B/1 do CPEREF limitava o dever de indemnizar dos administradores à conexão causal entre o comportamento ilícito e o dano: o administrador só respondia (só tinha de responder) pelo montante do dano concretamente causado; ora, não parece, atento o texto do art. 189.º/2/e) e 4 do CIRE, que se tenha querido recuperar o art. 126.º-B/1 do CPEREF e limitar o dever de indemnizar dos administradores à conexão causal entre o seu comportamento ilícito e o dano.
Perante os problemas/dificuldades de prova do dano e principalmente de prova da relação de causalidade entre o comportamento ilícito dos administradores e o dano, a responsabilidade (por insolvência culposa) legislativamente consagrada tem justamente o propósito de tornar desnecessária a prova do dano que foi causado pelo comportamento ilícito da pessoa afetada.
É isto que, a nosso ver, se extrai do texto do art. 189.º/2/e) e 4 do CIRE (e do seu confronto com o texto do art. 126.º-B/1 do CPEREF), que não inclui, entre os pressupostos de tal responsabilidade, qualquer referência ao dano causado pelo comportamento ilícito da pessoa afetada e que não exige que a concreta atuação da pessoa afetada seja causa da insuficiência do património do insolvente para a satisfação dos créditos não satisfeitos.
Embora tal responsabilidade, prevista e regulada pelo direito da insolvência, tenha em vista, no caso de pessoas coletivas como sociedades, responsabilizar os administradores pelos danos indiretos causados aos credores e nessa medida cumpra uma função ressarcitória, de indemnização de danos, a verdade é que é diferente – pelos seus pressupostos e por utilizar uma “técnica” que, ao contrário da responsabilidade ressarcitória, não se baseia na prova do dano e da relação de causalidade entre o comportamento ilícito e o dano – “especifica” e autónoma da responsabilidade civil dos administradores prevista e regulada pelo direito das sociedades comerciais (cfr. arts. 72.º e 78.º do CSC), desempenhando também uma função punitiva dos administradores – sendo, nesta medida, uma responsabilidade também sancionatória – que são condenados, não no dano que causaram, mas sim, na redação do art. 189.º/2/e) do CIRE, nos “créditos não satisfeitos”, o mesmo é dizer, no deficit patrimonial que decorre da liquidação do património da sociedade.
(…)
Não nos parece pois, com todo o respeito por opinião diversa, que o art. 189.º/2/e) do CIRE consagre uma inversão do ónus da prova: uma presunção de dano e de causalidade, ou seja, a presunção de que a contribuição dos administradores para a insolvência causou um dano aos credores e, em segundo lugar, a presunção de que o dano causado corresponde aos créditos não satisfeitos; e que, nesta linha de raciocínio, o art. 189.º/4 do CIRE reflita o facto de tais presunções serem ilidíveis, querendo-se com isto dizer que as pessoas afetadas poderão alegar e provar que o seu comportamento não causou nenhum dano ou que o seu comportamento causou um dano inferior ao montante dos créditos não satisfeitos (e que, se não o alegarem ou não o conseguirem provar, se a aplicará a alínea e) do n.º 2).
A qualificação como culposa duma insolvência – consistindo no escrutínio das condições em que eclodiu ou se agravou uma situação de insolvência – tem em vista aplicar certas medidas/sanções ao(s) culpado(s) por tal criação ou agravamento, ou seja, o propósito da qualificação duma insolvência como culposa é não permitir que, havendo culpado(s), o(s) mesmo(s) passe(m) “impune(s)” e, no fundo, “moralizar o sistema” (fazendo com que o direito/processo de insolvência proteja realmente os interesses públicos, relacionados com a economia, e os interesses privados, da satisfação dos credores). (…)
Tudo isto para dizer que não pode ser automaticamente, mas sim atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (o que está provado no processo e o que levou à qualificação), que o juiz pode-deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas.
E entre as circunstâncias com significado para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização.
(…)
É que, voltando ao que supra se referiu, importa não esquecer que a obrigação de indemnizar consagrada no art. 189.º/2/e) do CIRE tem também uma dimensão punitiva ou sancionatória, pelo que a observância do principio da proporcionalidade não exige que a indemnização imposta tenha que ser avaliada como justa, adequada, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável.
O princípio da proporcionalidade remete-nos sempre e no essencial para a indagação acerca da adequação entre dois termos ou entre duas grandezas variáveis e comparáveis, ou seja, no caso, a atuação ilícita e culposa do recorrente, enquanto gerente de direito e de facto da devedora insolvente, e o montante da indemnização a impor-lhe.(…)
Como acima se referiu e aqui se repete, a qualificação como culposa duma insolvência – consistindo no escrutínio das condições em que eclodiu ou se agravou uma situação de insolvência – tem em vista aplicar certas medidas/sanções ao(s) culpado(s) por tal criação ou agravamento, ou seja, o propósito da qualificação duma insolvência como culposa é não permitir que, havendo culpado(s), o(s) mesmo(s) passe(m) “impune(s)” e, no fundo, “moralizar o sistema”, fazendo com que o direito/processo de insolvência proteja realmente os interesses públicos, relacionados com a economia, e os interesses privados, da satisfação dos credores.“.

Termos que ponderar igualmente o decidido por este Tribunal da Relação, em Ac de 13.04.2021, 252/20.0T8AMT-A.P1, relatado pelo Des RODRIGUES PIRES, dgsi.pt: “(…) na sentença em que se qualifique a insolvência como culposa as pessoas afetadas pela qualificação deverão ser condenadas a indemnizar os credores da insolvente pela diferença que existe entre aquilo que cada um deles recebe em pagamento pelas forças da massa insolvente, após liquidação, e o valor do seu crédito, não podendo a indemnização ser superior ao valor do prejuízo causado à massa com a prática dos factos que fundamentaram a qualificação – cfr. Ac. Rel. Porto de 29.6.2017, proc. 2603/15.0T8STS-A.P1, disponível in www.dgsi.pt.
Do nº 4 do mesmo preceito flui que na aplicação do disposto na alínea e) o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas. Caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, deverá pelo menos estabelecer os critérios a utilizar para a sua quantificação a efetuar em liquidação de sentença.
A propósito desta indemnização afirma Maria do Rosário Epifânio (in ob. cit., pág. 165) que a responsabilidade aqui em causa é subsidiária, pois só quando a massa é insuficiente para a satisfação de todos os credores é que ela é acionada, ficando, por isso, sujeita a uma condição suspensiva.
Por seu turno, João Labareda e Carvalho Fernandes (in ob. cit., págs. 736/737) escrevem que “o modelo em que está desenhada esta responsabilidade revela que, a mais da função ressarcitória que realiza, assume manifestamente um carácter de penalização pela culpa da insolvência.
Entendem estes autores que este modelo recuperou substancialmente a solução que fora acolhida nos arts. 126º-A e 126º-B do CPEREF, introduzidos pelo Dec. Lei nº 315/98, de 20.10., embora com diferenças relevantes, onde se salienta o facto de a nova lei não fazer nenhuma referência à possibilidade de a responsabilidade ser limitada ao dano efetivamente causado pelo culpado quando inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa, diferentemente do que sucedia com a parte final do nº 1 do art. 126º-B.
Referem ainda que o significado relevante do nº 4 do art. 189º será o de permitir ao juiz referenciar fatores que, designadamente em razão das circunstâncias do processo, devam mitigar o recurso, puro e simples, a meras operações aritméticas de passivo menos resultado do ativo, abrindo-se assim espaço para uma reflexão atinente ao grau de culpa atribuído aos atingidos pela qualificação da insolvência.
Já o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 280/2015, de 20.5.2015, abordando lateralmente esta questão, entendeu o seguinte: “…a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal.”
Por outro lado, no Acórdão da Relação de Coimbra de 16.12.2015 (proc. 1430/13.3TBFIG-C.C1, disponível in www.dgsi.pt) sublinha-se que a fonte inspiradora do legislador português quanto ao preceito aqui em apreciação é a Lei Concursal Espanhola, que coloca nas mãos do juiz a decisão de condenar – ou não – os afetados com a qualificação a cobrirem, total ou parcialmente, o défice, na medida em que a conduta que determinou a sua qualificação como culposa tenha criado ou agravado a insolvência.
Ora, tendo em conta a solução da lei inspiradora e porque o severo regime que emerge da aplicação conjugada dos arts. 186º e 189º vincula a uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade, conjugando o teor das als. a) e e) do nº 2 e o nº 4 do art. 189º, considerou-se nesse aresto que encontra acolhimento no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afetado, que responderá na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.
E continuando a seguir-se o Ac. Rel. Coimbra de 16.12.2015 colocou-se neste a seguinte questão: A favor de quem deverá reverter a indemnização fixada? Respondeu-se que, no silêncio da lei, há que recorrer ao elemento sistemático pelo que, tendo em atenção o princípio “par condito creditorum”, afigurando-se que os valores indemnizatórios fixados deverão ser integrados na massa e distribuídos pelos credores cujos créditos, reconhecidos, não hajam obtido satisfação.
A indemnização a suportar ao abrigo do nº 2, al. e) e do nº 4 do art. 189º do CIRE deve assim aproximar-se do montante dos danos causados pelo comportamento do afetado que conduziu à qualificação da insolvência. Se, por exemplo, a qualificação da insolvência decorre de um comportamento que se traduziu na destruição ou dissipação de todo ou parte considerável do património do devedor, a indemnização deve ascender ao valor do património destruído ou dissipado que se não fosse esse comportamento iria responder pela satisfação dos créditos. É por isso que as normas em apreço estabelecem que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas e se isso não for possível deve fixar, ao menos, os critérios que permitirão liquidar o seu valor, o que não seria necessário se a indemnização devesse corresponder apenas à diferença entre o valor dos créditos e o pagamento a ser obtido na distribuição do produto da liquidação do ativo - cfr. Ac. Rel. Porto de 29.6.2017, proc. 2603/15.0T8STS-A.P1, disponível in www.dgsi.pt

Em sentido semelhante temos Ac Tribunal da Relação de Guimarães, de 24.09.2020, 8502/17.3T8VNF-A.G1,relatado pela Des CONCEIÇÃO SAMPAIO, dgsi.pt: “O critério matricial de fixação da indemnização que o legislador impôs para este efeito é o expressamente estabelecido na alínea e), ou seja, a indemnização deve ser fixada, tendo em atenção dois factores:
1. em função dos montantes dos créditos não satisfeitos;
2. e até às forças dos patrimónios das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa.
Admitindo-se que esses montantes não possam ser logo concretizados, remete-se para liquidação de sentença (nº 4 do artigo 189.º do CIRE).
Da exegese das alíneas a) e e) do nº 2, do artigo 189.º, do CIRE, extrai-se que para a declaração de inibição para o exercício do comércio deverá ter-se em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência, já para a condenação na indemnização aos credores o legislador, numa primeira aproximação, parece não atender a esse critério (do grau de culpa), uma vez que expressamente se prevê como critério especial que a indemnização é fixada em função dos montantes dos créditos não satisfeitos e até às forças dos respetivos patrimónios.
Perante os credores da massa insolvente prejudicados pela atuação da insolvente (do seu gerente ou administrador), a pessoa afetada, em princípio, tem que responder integralmente pelos montantes dos créditos não satisfeitos decorrentes daquela sua atuação (artigo 497.º e 512º do Código Civil).
Como defendem Carvalho Fernandes e J. Labareda, em termos objetivos, o que está em causa é a diferença entre o valor global do passivo da insolvência e o que o activo pode cobrir. Esse por isso será o critério matricial a adoptar pelo juiz (16). Ou seja, em princípio, neste âmbito o legislador apenas impõe que seja efetuada uma mera operação matemática de passivo menos resultado do ativo.
O princípio da condenação na indemnização dos créditos não satisfeitos, derivados da atuação culposa dos administradores, não viola os limites da proporcionalidade e da adequação, tanto mais que só respondem até às forças dos respetivos patrimónios.
Definido o critério geral, só excecionalmente poderá ser ponderada a eventual diminuição do montante indemnizatório por consideração a um grau de culpa diminuída por o ato praticado pouca influência teve na verificação dos prejuízos ou contou mesmo com a aprovação ou contributo dos credores.”

Aderindo a estes considerandos teóricos e bem como à jurisprudência citada, a operação que a M.ma Juíza fez na sentença em crise não viola norma legal.
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III DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
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Porto, 07 de Fevereiro de 2023
Alberto Taveira
Maria da Luz Seabra
Artur Dionísio Oliveira
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.
[3] Faz-se a transcrição da totalidade da fundamentação de facto, dada a interconexão dos factos em apreço.
[4] https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/20171/1/Tese%20Cash%20Pooling%20em%20Portugal%20desafios%20juridico-fiscais_20140830.pdf