LEI PENAL
APLICAÇÃO RETROACTIVA DA LEI MAIS FAVORÁVEL
MODALIDADE DA EXECUÇÃO
ALTERAÇÃO DO REGIME
COMPETÊNCIA
Sumário

I - Ainda que se trate de condenado em cumprimento de pena de prisão em estabelecimento prisional do Estado, a decisão sobre as circunstâncias de facto e de direito que reclamem a aplicação retroativa de lei penal mais favorável, cuja entrada em vigor haja ocorrido em data posterior ao trânsito em julgado da sentença condenatória, e tenha a virtualidade de vir a implicar uma alteração da modalidade de execução efetiva da pena de prisão aplicada para a de regime de permanência na habitação, de harmonia com o agora estabelecido no art.º 43º, nº 1, al. b), do CP, é da competência do tribunal da condenação e não do tribunal de execução das penas;
II - Uma tal decisão, sob pena de nulidade insanável, nos termos e consequências previstos nos art.ºs 321º, nº 1, 119º, al. c), e 122º do CPP, deverá ser proferida através de uma nova sentença e após a reabertura da audiência a que alude o art.º 371º-A do CPP.

[Sumário da exclusiva responsabilidade do Relator]

Texto Integral

Processo n.º 315/15.3PFPRT.P1 - 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro

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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO
1.1. Por despacho de 02/02/2022, proferido no Processo n.º 315/15.3PFPRT, em que foi arguido, e agora condenado, AA, que corre termos no Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 7, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi decidido o seguinte:
Julgamos, pois, que a execução da pena em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de execução da pena de prisão.
Nisso expressamente consentiu o arguido, assim como as pessoas com quem o mesmo irá coabitar (conforme resulta das declarações juntas aos autos e colhidas pela DGRSP), motivo pelo qual a pena aplicada passará a ser cumprida em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, a executar nos termos previstos nos artigos 1º, al. b) e 19º, nº 2 da Lei nº 33/2010, de 2/9, na residência sita na Rua ..., ..., Penafiel.
Notifique.”
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“1º Nos presentes autos de processo comum singular, o arguido AA foi condenado, por sentença cumulatória datada de 08.09.2017, transitada em julgado em 18.10.2017, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão efetiva.
2º Em face de requerimento do arguido nesse sentido, por força do despacho recorrido (fls. 522 a 523 vº, ref.ª 442488768) datado de 02.12.2022, o Tribunal a quo determinou que o remanescente daquela pena – 1 ano, 5 meses e 28 dias - passasse a ser executado em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, a executar nos termos previstos nos art.ºs 1.º, al. b), e 19.º, n.º 2, da Lei n.º 33/2020, de 2/09.
3.º Porém, nos termos do disposto no artigo 138.º, n.º 2, do CEPMPL, a competência para apreciação de tal questão, salvo melhor opinião, cabe ao Tribunal de Execução de Penas.
4.º Assim, ao proferir tal despacho (subsequente à sentença que determinou a medida e espécie da pena aplicada ao arguido – já transitada em julgado – e ao despacho que homologou a liquidação da referida pena, determinando a modificação desta) o Tribunal a quo extravasou a sua competência material.
5.º Por violar as regras de competência material, a decisão recorrida enferma de nulidade insanável, tendo violado o disposto nos artº.s 10.º, 18.º e 119.º, al. c), do CPP., e 138.º, n.º 2, do CEPMPL.
6.º O regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão. Não se trata, pois, de um mero regime de cumprimento da pena de prisão que possa ser aplicado em momento posterior ao da condenação [Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, 182, nota 1].
7. O desconto previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 43.º é aquele que é passível de ser feito e valorado logo no momento da prolação da decisão condenatória e não posteriormente, após o cumprimento parcial da pena de prisão.
A não ser assim, a possibilidade de cumprimento em regime de permanência na habitação ali prevista ficaria dependente não de um juízo do Tribunal da condenação mas do momento em que fosse efetuada a liquidação da pena (tantas vezes dependente de circunstâncias fortuitas).
8.º O Tribunal a quo lançou mão do disposto no artigo 43.º, n.º 1, al. b), do CP fora das condições e momento em que poderia ser aplicado, pois quaisquer alterações da forma de cumprimento de uma pena de prisão que se encontra em execução, como é caso em apreço, são reguladas pelo Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009 de 12/10.
9.º A posição do Tribunal a quo é violadora do caso julgado formado pela sentença cumulatória datada de 08.09.2017 (a qual afasta expressamente a possibilidade de penas de substituição, designadamente, que permitissem o cumprimento fora de meio prisional) e acaba por criar um regime ad hoc concorrente com o da liberdade condicional e, inclusivamente, com o próprio regime da modificação da execução da pena de prisão plasmada no CEPMPL, à revelia do seu pressuposto subjectivo de aplicação exclusivamente a reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada – art.ºs 118.º e 120.º, do CEPMPL.
10.º A aplicação da pena de substituição prevista no art.º 43.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, depende da verificação dos pressupostos formais da medida concreta da pena de prisão efetiva (não superior a dois anos) – que, nos termos supra expostos, se reitera não estar verificado – e do consentimento do condenado e do pressuposto material da “adequação às finalidades da punição. A escolha desta pena de substituição, como de qualquer outra, é determinada exclusivamente por considerações de natureza preventiva, quer de prevenção geral quer especial” [Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., 183], que no caso também se não verifica.
11.º No caso vertente, não se provou nenhum dos factos alegados pelo arguido no seu requerimento de fls. 513 a 515 – desde logo, por nenhuma prova ter sido oferecida -, os quais, de resto, se reconduzem a situações psicológicas insuscetíveis de demonstração, meras intenções e, sem quebra do devido respeito, “palavras de circunstância”.
12.º Dos elementos constantes do processo não se vislumbram que razões preventivas poderiam conduzir a aplicar a pretendida pena de substituição, sendo certo que o despacho recorrido também não faz, salvo o devido respeito, a necessária ponderação dessas exigências de prevenção geral e especial (note-se que duas das condenações em cúmulo se referem a crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, o qual pode ser praticado a partir do domicílio).
13.º A decisão recorrida violou as normas dos art.ºs 10.º, 18.º e 119.º, al. c), do CPP., 118.º, 120.º 138.º, n.º 2, do CEPMPL, e 43.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
Termos em que se entende dever ser concedido provimento ao presente recurso, julgando-se nula a decisão recorrida ou, subsidiariamente, determinando-se a sua revogação e a substituição por outra que indefira o requerimento do arguido de cumprimento do remanescente da pena de prisão efetiva em regime de permanência na habitação (…)”
1.3. Respondeu o arguido, concluindo pela improcedência do recurso;
1.4. Antes de determinar a remessa dos autos a este Tribunal, o Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no art.º 414º, nº 4, do CPP, declarou manter o despacho recorrido nos seus precisos termos.
1.5. O Exmo. Senhor Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal, emitiu douto parecer, concluindo pela procedência do recurso.
1.6. Foi cumprido o artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo o arguido respondido ao parecer, concluindo novamente pela improcedência do recurso.
1.7. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto e os poderes de cognição deste Tribunal, importa agora apreciar e decidir se o Tribunal recorrido é ou não competente para, em função da entrada em vigor de uma lei penal nova, determinar o cumprimento em regime de permanência na habitação da pena de prisão anteriormente aplicada por sentença transitada em julgado, encontrando-se atualmente o condenado em cumprimento dessa pena, e ainda se uma tal decisão pode ser proferida, como foi no caso dos autos, por mero despacho.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Factos a considerar – tendo por base a certidão junta aos autos, bem como o teor das cópias dos documentos por ela certificadas:
a) Nos presentes autos, por sentença de 05/05/2016, transitada em julgado a 18/01/2017, foi o arguido condenado na pena de 2 anos de prisão efetiva, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22/01;
b) Por seu turno, no Processo nº 61/13.2GTPRT, da 1.ª Secção Criminal do Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 10, por acórdão de 01/07/2015, transitado em julgado a 16/09/2015, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, relativamente a factos de 02/07/2013, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, com regime de prova, por ter desferido, juntamente com outra pessoa, murros e pontapés no ofendido, após ser atirado ao chão na via pública, provocando-lhe ferimentos e dores. Vindo posteriormente a ser revogada a suspensão da execução de tal pena, sendo ordenado o cumprimento pelo arguido dos 10 meses de prisão efetiva, conforme a decisão de 09/05/2016, transitada em 21/06/2016.
c) No Processo nº 49/13.3PEPRT, do Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 1, por sentença de 18/02/2015, confirmada parcialmente em 16/09/2015, transitada em julgado a 23/10/2015, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22/01, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23/02, relativamente a factos de 24/10/2013, respetivamente, nas penas de 18 meses e 4 meses de prisão, e na pena única de 20 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regras de conduta;
d) Por sentença de 08/09/2017, proferida nos presentes autos, transitada em julgado em 18/10/2017, após realização da audiência de julgamento com vista à efetivação do cúmulo jurídico das penas aplicadas nos presentes autos e nos autos com os processos nºs 61/13.2GTPRT e 49/13.3PEPRT foi o arguido condenado na pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão efetiva.
e) À data em que foi proferida a sentença referida em d), já o arguido tinha cumprido 1 dia de privação da liberdade, à ordem dos presentes autos, dois dias de privação da liberdade à ordem do processo nº 49/13.3PEPRT, e 10 meses de privação da liberdade à ordem do processo nº 61/13.2GTPRT;
f) O arguido iniciou o cumprimento da pena à ordem do presente processo em 01/08/2022;
g) Na respetiva liquidação considerou-se como data relevante para o início do cumprimento da pena o dia 28/09/2021, correspondente à data de 10 meses e 3 dias anteriores a 01/08/2022;
h) E ainda que metade da pena seria atingida a 28/11/2022, os dois terços a 17/04/2023, o termo da pena a 28/01/2024 e a possibilidade de aplicação do regime de adaptação à liberdade condicional a 01/02/2023.
i) Notificado da liquidação da pena, veio o condenado, a 04/10/2022, requerer ao Tribunal a alteração do cumprimento da execução da pena de prisão efetiva para o seu cumprimento em regime de permanência na habitação, invocando o disposto no art.º 43º, nº 1, al. b), do Código Penal.
j) Sobre a pretensão deduzida pelo condenado, pronunciou-se o Ministério Público, nos seguintes termos:
Salvo melhor opinião, a pena aplicada ao arguido nos presentes autos em cúmulo jurídico é superior a dois anos (já considerados os descontos a que alude o art.º 80º do CP), pelo que, salvo melhor opinião, deve improceder o requerido pelo arguido quanto à permanência na habitação.”;
k) Após ter determinado a realização de várias diligências, o Tribunal a quo proferiu o despacho recorrido, no qual aduziu os seguintes fundamentos:
“Assim, na contagem da pena efetuada foram descontados 10 meses e 3 dias de prisão em obediência ao disposto nos artigos 80º, nº 1 e 81º, nº 1, ambos do Código Penal, já cumprida antes da detenção à ordem destes autos, restando assim, por cumprir a pena que foi liquidada, a saber: 1 ano 5 meses e 28 dias.
E, na verdade, esta pena a cumprir é passível de ser executada em regime de permanência na habitação ao abrigo do disposto no artigo 43º, nº 1, al. b) do Código Penal, desde que o tribunal conclua que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir.
No caso dos autos, há que atentar que estamos perante uma sentença cumulatória que englobou a prática de dois crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, um crime de detenção de arma proibida e um crime de ofensa à integridade física simples, e que remonta ao ano de 2017, tendo transitado em julgado em 18/10/2017, sendo certo que apenas se logrou deter o arguido à ordem destes autos em 01/08/2022.
Do teor da informação social elaborada pela DGRSP – refª 33897293, resulta que o arguido “dispõe das condições logísticas e de retaguarda de apoio necessárias para o cumprimento da pena de prisão na habitação, sendo, todavia, de salientar que não apresentaram rendimentos formais, alegando possuírem poupanças capazes de salvaguardar as necessidades de subsistência”.
Julgamos, pois, que a execução da pena em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de execução da pena de prisão.
Nisso expressamente consentiu o arguido, assim como as pessoas com quem o mesmo irá coabitar (conforme resulta das declarações juntas aos autos e colhidas pela DGRSP), motivo pelo qual a pena aplicada passará a ser cumprida em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, a executar nos termos previstos nos artigos 1º, al. b) e 19º, nº 2 da Lei nº 33/2010, de 2/9, na residência sita na Rua ..., ..., Penafiel.”
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
A primeiro questão suscitada pelo recorrente prende-se com a incompetência do Tribunal recorrido para decidir da modificação da execução da pena, por para tal, no seu entender, ser competente o tribunal de execução das penas, nos termos previstos no art.º 138º, nº 2, do Código de Execução das Penas e das Mediadas Privativas da Liberdade (CEPMPL), quando estabelece que “Após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respetiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal”.
Se colocássemos, como faz o recorrente, a questão sub iudice no domínio legal específico da modificação da execução da pena de prisão de recluso, previsto no art.º 118º e 120º, nº 1, do CEPMPL, seríamos de facto levados a concluir que a decisão sobre a determinação ou não do cumprimento da pena de prisão na modalidade de regime de permanência na habitação, que tem como alternativa a modalidade de internamento do condenado em estabelecimentos de saúde ou de acolhimento adequados, nos termos das al. a) e b) do nº 1 daquele último artigo, com a potencial possibilidade de serem substituídas uma pela outra, nos termos do nº 4, al. a), do mesmo artigo, não seria da competência do tribunal da condenação, mas sim do tribunal de execução das penas.
Porém, para que tal pudesse acontecer, isto é, para que interviesse o tribunal de execução das penas, na decisão sobre se o recluso podia ou não beneficiar das referidas modalidades de modificação da pena de prisão, necessário seria a invocação de algum dos seguintes pressupostos, todos eles descritos no art.º 118º do CEPMPL:
a) Encontrar-se o recluso gravemente doente com patologia evolutiva e irreversível, não respondendo às terapêuticas disponíveis;
b) Ser portador de grave deficiência ou doença irreversível que, de modo permanente, obrigue à dependência de terceira pessoa e se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional; ou
c) Ter idade igual ou superior a 70 anos e o seu estado de saúde, física ou psíquica, ou de autonomia se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional ou afete a sua capacidade para entender o sentido da execução da pena.
Ora, como é bom de ver, tendo em conta a pretensão concretamente formulada, e os respetivos fundamentos, não foi isso que foi pedido ou suscitado pelo condenado nos presentes autos, mas sim que o Tribunal da condenação alterasse o decidido na sentença condenatória, já transitada em julgado, de molde a que na pena de prisão de 2 anos e 4 meses em que foi condenado se tivesse em conta o tempo de prisão já cumprido, aplicando-se, como consequência, ademais comprovada que esteja a verificação dos restantes pressupostos legais, o disposto no art.º 43º, nº 1, al. b), do CP, cujo preceito não vigorava aquando da prolação da sentença, nem à data do seu trânsito em julgado, para assim poder o requerente cumprir a pena de prisão remanescente de um modo que considera ser para si mais favorável, ou seja, em regime de permanência na habitação, e já que o pressuposto formal legalmente imposto à data do trânsito em julgado da sentença, isto é, que o remanescente da pena de prisão efetiva que excedesse o tempo de privação da liberdade a que o arguido tivesse estado sujeito em regime de detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, não fosse superior a 1 ano, foi alterado, após esse trânsito, com a redação dada ao art.º 43º do CP pela Lei nº 94/2017, publicada a 23 de agosto, fazendo com que aquele remanescente passasse a ser de 2 anos, em vez de apenas 1, e, ainda, por agora se estender a todos os casos previstos nos art.ºs 80º a 82º do CP, contemplando o art.º 81º, precisamente as situações em que haja sido dado cumprimento ao disposto no art.º 78º do CP, ou seja, a determinação da pena única no âmbito do conhecimento superveniente do concurso de crimes[1], pois o art.º 81º, nº 1, do CP diz expressamente que “Se a pena imposta por decisão transitada em julgado for posteriormente substituída por outra, é descontada nesta a pena anterior, na medida em que já estiver cumprida”. Sendo ainda certo que a sentença, na qual foi aplicada a pena única resultante do concurso superveniente de crimes, transitou em julgado a 18/10/2017, enquanto a Lei nº 94/2017, nos termos do seu art.º 14º, entrou em vigor 90 dias após a data da sua publicação, isto é, mais de um mês depois daquele trânsito em julgado.
Chegados a este ponto, podemos agora dizer que não vislumbramos como no caso dos autos se possa suscitar a questão da incompetência do Tribunal recorrido, porquanto, exista ou não fundamento legal para a aplicação do art.º 43º, nº 1, al. b), do CP, na versão que lhe confere a qualidade de lei nova face ao anteriormente decidido, a competência para a decisão sobre a pretensão deduzida pelo condenado, ao contrário do propugnado pelo recorrente, cabe ao tribunal da condenação e não ao tribunal de execução das penas, e já que nela se suscita necessariamente, e ainda que de forma implícita (que o requerente torna clara na resposta que deduz ao parecer produzido pelo Ministério Público neste Tribunal), a aplicação do art.º 371º-A do CPP, com base em circunstâncias de facto e de direito que reclamam a aplicação da lei penal nova mais favorável, objetivamente superveniente, e não uma modificação da pena de prisão, nas modalidades acima referidas, com fundamento em deficiência ou doença grave ou irreversível do recluso, a que alude o art.º 118º do CEPMPL. E assim também excluída fica a competência do tribunal de execução das penas, nos termos expressamente previstos no art.º 138º, nº 2, do CEPMPL, acima citado. Um tal sentido normativo, quanto à competência do tribunal da condenação, resultava já expresso na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 109/X, ao justificar-se a opção pela reabertura da audiência de julgamento, a que agora alude o art.º 371º-A do CPP, nos seguintes termos: “Esta solução é preferível à utilização espúria do recurso extraordinário de revisão ou à subversão dos critérios de competência funcional (que resultaria da atribuição de competência para julgar segundo a nova lei ao tribunal de execução de penas)”.
Por outro lado, parece-nos resultar infundada a posição do recorrente, reiteradamente assumida nos autos, de que a pena aplicada ao arguido é superior a 2 anos, defendendo por isso não ter aplicação o art.º 43º do CP. Mas não é manifesto que assim seja. Pelo contrário. Sem descurarmos o facto de não ser possível a este Tribunal tomar conta do mérito do recurso, no segmento em que se pretende ver inviabilizada a aplicação das normas dos art.ºs 371º-A do CPP e 43º, nº 1, al. b), do CP, a verdade é que sempre nos cumprirá dizer que a posição assim adotada só poderá assentar na desconsideração da redação que foi dada ao art.º 43º, nº 1, al. b), do CP pela Lei nº 94/2017, em conjugação com os art.ºs 80º a 82º, bem como dos factos dados como assentes no processo à data da prolação da sentença do cúmulo jurídico, pois nessa data, caso já se encontrasse em vigor tal normativo, seria incontornável a necessária ponderação da sua aplicação ao caso dos autos, tendo em conta a factualidade acima considerada assente, na al. e), ou seja, que à data em que foi proferida a sentença que aplicou ao condenado a pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, já este tinha cumprido 1 dia de privação da liberdade, à ordem dos presentes autos, dois dias de privação da liberdade à ordem do processo nº 49/13.3PEPRT, e 10 meses de privação da liberdade à ordem do processo nº 61/13.2GTPRT. Assim sendo, seria então, como necessariamente o é agora, aliás por imposição do art.º 29º, nº 4, da CRP e, indissociavelmente, dos art.º 2º, nº 4, do CP e 371º-A do CPP[2], de ponderar a aplicação do regime legal penal mais favorável ao condenado, no sentido de se apurar se é ou não de determinar o cumprimento da pena remanescente em regime de permanência na habitação.
Dito isto, resulta para nós claro que a decisão de aplicação retroativa da lei penal mais favorável ao condenado, a proferir após o trânsito em julgado da sentença condenatória, e antes de se verificar a cessação da respetiva pena, só é possível através de uma nova sentença, a ser proferida depois de reaberta e realizada a audiência prevista no art.º 371º-A do CPP.
Ora, no caso dos autos, a decisão recorrida poi proferida por mero despacho e sem que previamente fosse determinada a reabertura e muito menos realizada a audiência legalmente prevista.
A imprescindibilidade da reabertura da audiência, legalmente imposta, assenta desde logo na circunstância de com ela se visar a alteração de uma sentença condenatória, já transitada em julgado, que por sua vez foi necessariamente proferida no âmbito de uma audiência de julgamento que também foi pública, e necessariamente pública, sob pena de nulidade insanável, nos termos do disposto no art.º 321º, nº 1, do CPP.
Como é realçado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 15/2009, mas cujo raciocínio também é válido para justificar a realização da própria audiência, subjacente à necessidade do pedido por parte do condenado para se determinar a reabertura da audiência prevista no art.º 371º-A do CPP, está a necessidade de se assegurar “o direito do arguido ao julgamento único, a não modificação arbitrária da sentença e a certeza de que a lei posterior só será aplicada se lhe for indiscutivelmente mais favorável”, e ainda, “por outro lado, o direito dos demais sujeitos processuais e da comunidade à estabilidade do decidido em sentença com trânsito em julgado, enquanto meio de tutela dos bens jurídicos e de defesa da ordem jurídica, através da garantia de participação na decisão de aplicação da lei nova de conteúdo mais favorável ao condenado.
Ora, foram tais desideratos que não foram atingidos no caso dos autos, ou seja, não se realizando uma audiência pública, o que constitui uma nulidade insanável, como resulta expresso no art.º 321º, nº 1, do CPP, nem se dando a possibilidade ao arguido de ser ouvido pessoalmente nessa audiência, o que em si traduz também uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119º, al. c), do mesmo diploma, com as consequências de se considerarem inválidos os atos processuais logicamente por elas afetados, nos termos do art.º 122º do CPP, nomeadamente o despacho recorrido que, na tramitação legalmente exigível, deveria assumir a forma de uma sentença e não a de um mero despacho.
Razão por que irá ser revogada a decisão recorrida, embora com fundamentação diversa da propugnada no recurso, a qual deverá ser substituída por outra na qual se pondere a designação de data para reabertura da audiência a que alude o art.º 371º-A do CPP.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, pese embora com fundamentação diversa da ali propugnada, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro no qual se pondere a designação de data para reabertura da audiência a que alude o art.º 371º-A do CPP.
Sem custas

Porto, 2023-03-08
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva
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[1] Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, p. 422.
[2] O art.º 29º, nº 4, da CRP ao estabelecer que “Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”, o art.º 2º, nº 4, do CP, que “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posta”, e o art.º 371º-A do CPP ao determinar que “Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”