CRIME DE VIOLAÇÃO
AGRAVAÇÃO
ELEMENTOS DO TIPO
CIRCUNSTÂNCIAS DE TEMPO DA PRÁTICA DOS FACTOS
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I -  No âmbito do  crime de violação agravada previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal e do  crime de violação agravada previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, a falta de indicação dos dias e horas em que os factos ocorreram não consubstancia insuficiência da matéria de facto para a decisão nem viola o direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrado.
II – Determinante é que os factos sejam descritos de uma forma objectiva, que permita localizá-los no espaço e no tempo, o que não passa necessariamente pela indicação do dia, hora e lugar preciso, e não de modo tão vago que impossibilite a sua inteligibilidade e a completa caracterização da conduta criminal do arguido à luz dos preceitos legais invocados.
III – Se a factualidade descrita permite a cabal compreensão e identificação por parte do arguido das condutas em causa no âmbito destes autos e este apresentou contestação, prestou declarações, e rebateu pormenorizadamente os factos que lhe foram imputados, ele exerceu de forma plena o direito de defesa quanto aos mesmos, que identificou de forma inequívoca.
IV – Não se verifica erro na qualificação jurídica dos factos porquanto decorre da factualidade provada que o arguido utilizou a força física para subjugar a assistente e constrangê-la a sofrer os actos de cópula e coito oral que praticou, bem como que o mesmo  exerceu violência psíquica para esmagar a resistência da assistente e forçá-la a sofrer os actos de  cópula e coito oral descritos , que se reconduz à  a ameaça de exibir à mãe desta  um vídeo com gravações de actos sexuais entre eles , a qual atenta a idade da vítima e o contexto em que desenrolaram estes factos tem de qualificar-se como ameaça grave .
V – Não é excessiva nem desproporcionada a pena única de 13 (treze) anos de prisão aplicada em cúmulo jurídico ao arguido pela prática entre 7.8.2017 e 6.8.2018 de  10 (dez) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal e pela prática entre Novembro de 2018 e 6.3.2020 de  58 (cinquenta e oito) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b),  do Código Penal .
VI - Considerando a natureza e frequência dos actos praticados pelo Recorrente , o período de tempo em causa e o contexto em que se desenrolaram , a idade da assistente, o  sofrimento desta e as inevitáveis e gravosas repercussões no desenvolvimento da sua personalidade nenhum reparo há a fazer à decisão do tribunal a quo de condenar o arguido a pagar a  título de reparação pelos danos morais  sofridos pela ofendida a quantia de 15.000€ (quinze mil euros).

Texto Integral

Acordam em conferência os Juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
No âmbito dos autos de processo comum nº­­ 440/20.9PBBRR, com julgamento por tribunal colectivo, o arguido A foi condenado:
- pela prática, em autoria material e, em concurso real, de 10 (dez) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um;
- pela prática, em autoria material e, em concurso real, de 58 (cinquenta e oito) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um;
- em cúmulo jurídico, na pena única de 13 (treze) anos de prisão;
- na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 10 (dez) anos, nos termos do artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal;
- na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores (em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança), pelo período de 10 (dez) anos, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal;
- a pagar à ofendida/assistente B o montante de 15.000€ (quinze mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09.
Não se conformando com esta decisão o arguido veio interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões, que se passam a transcrever:
 “ I. O Acórdão recorrido é injusto por muito gravoso para o recorrente;
II. O Tribunal “a quo”, condenou o ora recorrente em autoria material e, em concurso real, de 10 (dez) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um; e em autoria material e, em concurso real, de 58 (cinquenta e oito) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um;
Em cúmulo jurídico, na pena única de 13 (treze) anos de prisão;
III. Condenar ainda na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 10 (dez) anos, e de proibição de assumir a confiança de menores (em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento
civil, entrega, guarda ou confiança), pelo período de 10 (dez) anos;
IV. E ainda na condenação do arguido a pagar à ofendida a título de indemnização civil a quantia de 15.000,00€, a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09;
V. Considera o recorrente existir no acórdão clara, contraditória e notória insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º, n.º 2 alínea a) do Código Processo Penal;
VI. O Douto Acórdão limitou-se a considerar como provada a acusação;
VII. Relativamente à factualidade a que aludem os pontos 7) a 12) e 14) a 28) o Tribunal ad quo ponderou, primeiramente, as declarações prestadas pela ofendida B em audiência de discussão e julgamento que se consideraram verosímeis, espontâneas, escorreitas, sinceras e por esses motivos persuasivas, no entanto para o recorrente o depoimento da ofendida foi “levado ao colo” pelo tribunal sendo que pela audição do depoimento a ofendida responde a conta gotas, a saca rolhas ou responde sim /não, deve ser por aí….;
VIII. A credibilidade das declarações da ofendida é reforçada pelo teor do relatório de avaliação psicológica da menor, elaborado pelo Gabinete de Psicologia Forense do Laboratório de Ciências Forenses e Psicológicas Egas Moniz, em 28/10/2020, que diz em
conclusão que é provável que tenha acontecido….não é com certeza!;
IX. Ao ler o douto Tribunal “a quo” considerado como provado que o recorrente ao longo de todo o período de convivência, e no período compreendido entre o dia 7/8/2017 e o dia 06/08/2018, bem como com particular incidência e a partir do mês de novembro de 2018 a B, a partir desse momento até ao dia 06/03/2020 o arguido intensificou as condutas vindas de descrever, violando a ofendida, (não esquecendo que o arguido em 14 de agosto de 2018 sofre acidente de trabalho vindo a padecer durante alguns meses com uma recuperação longa e dolorosa);
X. Bem como quando o douto acórdão refere que: com o tempo e a partir de data não concretamente apurada;
Ou
XI. Em outras duas ocasiões (mas quais ocasiões, qual dia, qual hora?) entende o recorrente, salvo melhor opinião que as expressões utilizadas não passam de afirmações genéricas que impossibilitam o recorrente a qualquer defesa;
XII. Dizer como fez o Douto Acórdão, que a actuação do recorrente, no período compreendido entre o dia 7/8/2017 e o dia 06/08/2018, bem como com particular incidência partir desse momento (novembro de 2018) até ao dia 06/03/2020 o arguido intensificou as condutas vindas de descrever, tendo abordado a B com a regularidade de pelo menos uma vez por semana para o efeito, perfazendo, pelo menos, 56 (cinquenta e seis) ocasiões, referir que como em outras duas ocasiões;
XIII. São expressões conclusivas e genéricas do número de vezes que o mesmo violou a ofendida, naquele período temporal, não concretizando o tempo, o modo e o espaço;
XIV. Aliás, a conclusão a que o tribunal ad quo de que na segunda residência e no período compreendido entre novembro de 2018 e 06 de março de 2020 é quase aritmético, se não vejamos:
“tendo em consideração as declarações da ofendida, que referiu que o arguido a obrigava a ter relações, pelo menos, uma vez por semana (ocorrendo inclusivamente quando o arguido esteve em casa, de baixa médica) e descontado o período em que estiveram ausentes em Cabo Verde (quatro semanas, em agosto de 2019, conjugando as declarações do arguido, com as de C e de B) bem como o período que o arguido se ausentou da residência para trabalhar noutras localidades (não superior a dez semanas num ano, de acordo com as declarações de C, sendo certo que o arguido apenas teve alta médica e regressou ao trabalho em 23/3/2019, cfr. fls. 210), conclui-se que os actos que se traduziram em relações de cópula vaginal com a ofendida
tiveram lugar em, pelo menos, cinquenta e seis ocasiões”.
XV. Relata o XIII – (no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 110/14.7JASTB.E1.S1- 5ª SECÇÃO) “Casos há em que não é possível apurar o número exacto de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos actos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de actos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura”, (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 110/14.7JASTB.E1.S1- 5ª SECÇÃO);
XVI. Relativamente à delimitação espácio temporal dos abusos, cumpre referir que a ofendida não foi capaz de esclarecer cabalmente qual o número concreto de actos de cópula vaginal mantidos com o arguido, no entanto, situou-os em dois locais distintos: os locais onde residiu (mas isso é a parte mais fácil desta história)….quando residia com a sua mãe na Rua D e posteriormente quando passou a coabitar com o arguido na residência da mesma Rua E;
XVII. Apenas e tão só perante uma imputação concreta, devidamente circunstanciada no tempo e no espaço, do número de violações feitas, espécie e gravidade das mesmas e respectivas consequências, não descrevendo a acusação, quais os factos que justificavam o aludido comportamento reiterado, considera o recorrente evidente que não se verifica o crime de violação agravado;
XVIII. Deste modo foi claramente violado o artigo 32.º, n.º 1 da C.R.P., pois impediu-se, de facto, o exercício do direito de defesa ao arguido;
XIX. A acusação era obrigada a alegar factos, nomeadamente, o circunstancialismo de tempo, modo e lugar capazes de caracterizar o crime de violação agravado;
XX. Ao não o fazer, não podia o acórdão recorrido condenar o recorrente pela prática de tal crime;
XXI. Isto porque não podia o arguido impugná-los especificamente e daí a sua irrelevância jurídica, por serem conclusivos e desenquadrados do tempo, modo e lugar em que terão ocorrido e, portanto, incapazes de ser subsumidos no artigo 152.º do Código
Penal;
XXII. O único facto concreto alegado pela acusação e dado como provado pelo tribunal “a quo”, foi tão só o ocorrido no dia 06 de Março de 2020, em que o arguido confessa ter existido uma relação consentida mas a ofendida à contrario nega o consentimento (o único acto sexual entre ambos);
XXIII. A acusação não continha os factos indiciados, de modo a permitir que o arguido se pudesse efectivamente defender, tal como disciplina o artigo 283.º C.P.P.;
XXIV. Estas expressões não passam de afirmações genéricas que impossibilitam qualquer defesa!!;
XXV. Tanto para mais e ainda que por mera hipótese académica se julguem provados em autoria material e, em concurso real, de 10 (dez) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um, Mas depois dá-se como facto não  provado:
c) No período compreendido entre dia não apurado do Verão de 2017, mas em momento posterior ao dia 7 de agosto (data em que a B completou 15 anos de idade) e o Verão de 2018, na residência sita na Rua F, pelo menos em 15 ocasiões o arguido introduziu o pénis na vagina de B.
XXVI. Nunca poderia ser o crime de violação agravada ser punido pelo artigo 164.º n.º 2 al. A) não ficando demonstrado no depoimento da ofendida que o recorrente tenha usado de violência, ameaça grave, ou a ter tornado inconsciente, bem como prevê o artigo 177.º n.º 6 a agravação de um terço apenas e não de metade como fez o tribunal ad quo;
XXVII. Bem como, em autoria material e, em concurso real, de 58 (cinquenta e oito) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um; ou seja, com todo respeito e salvo melhor opinião,
XXVIII. Mais uma vez andou mal o tribunal ad quo, quando condena pelos artigos 164.º n.º 2 não ficando demonstrado no depoimento da ofendida que o recorrente tenha usado de violência, ameaça grave, ou a ter tornado inconsciente, bem como prevê o artigo 177.º n.º 1 que as penas previstas no art.º 164 são apenas agravadas de um terço e não de metade como fez o tribunal ad quo, tanto para mais que se DÃO COMO NÃO PROVADOS, os seguintes factos:
e) Na ocasião referida em 10) o arguido falou com voz alta e num tom firme e sério e ordenou-lhe que percorresse o pénis com movimentos ascendentes e descendentes.
f) Nas ocasiões referidas em 20) o arguido usou a força física para virar B de costas, não obstante aquela o empurrar e gritar que parasse, com dores e o arguido ejaculou.
g) O arguido usou sempre força física e B empurrou-o sempre com força, com as mãos ou com os pés e pedindo-lhe para parar
B mudou o número do seu telemóvel para não ter contactos com o arguido.
XXIX. Do ilícito praticado considerou o tribunal condenar o recorrente a pagar à assistente o montante de 15.000€ (quinze mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos;
XXX. Quais foram os danos que ficaram provados, em audiência de discussão e julgamento, à ofendida em consequência das alegadas eventuais 68 violações que o tribunal dá como provado?!
XXXI. Não conseguiu o Tribunal “a quo” concretizar os factos e consequentemente os danos quer físicos, quer psicológicos que daí advieram, para poder concluir por esta condenação tão excessiva e gravosa;
XXXII. A situação descrita nos autos, dada a sua deficiente narração dos factos descritos na acusação e acolhidos no acórdão, não permite delimitar, com o menor rigor em que medida a ofendida ficou, de facto, condicionada e tolhida na sua vivência;
XXXIII. Nem sequer que os danos sofridos pela ofendida, foram consequência directa e necessária da conduta ilícita e culposa do arguido;
XXXIV. Não pode o tribunal a quo ao dar como provados os factos na versão que consta da fundamentação do acórdão violando, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127, do C.P.P;
XXXV. Principio que, conforme salienta Figueiredo Dias in “Direito Processual…”, p.139, está associado ao ”… dever de perseguir a chamada “verdade material”, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto em geral susceptível de motivação e controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos);
XXXVI. Neste mesmo sentido, Henriques Eiras in “Processo Penal Elementar”, Quid Iuris, 2003, 4.ªedição, p.102, refere que este princípio “…não significa que o tribunal possa utilizar essa liberdade à sua vontade, de modo discricionário e arbitrário, decidindo como entender, sem fundamentação;
XXXVII. O juiz tem de orientar a produção de prova para a busca da verdade material e, ao decidir, há-de fundamentar as suas decisões: a apreciação da prova que faz reconduz-se a critérios objectivos, controláveis através da motivação. A sua convicção, que o levará a decidir de certa maneira e não de outra, embora pessoal é objectivável;
XXXVIII. Sem prescindir e admitindo por mera hipótese académica como provados os factos em que assentou o acórdão objecto de recurso, constatamos, claramente, que o recorrente não praticou os crimes de em autoria material e, em concurso real, de 68 (sessenta e oito) crimes de violação agravado;
XXXIX. Pelo acima exposto, conclui o recorrente que:
possa ser absolvido dos crimes pelos quais foi condenado, pela aplicação do princípio do in dúbio pro reo;
XL. No entanto se o tribunal tiver entendimento diferente, então:
Consigna o artigo 40º, nº1 do C.P. que a aplicação das penas tem por fim a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade:
 “A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos, incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos, por parte dos cidadãos” – Ac. do STJ de 2000/11/30;
XLI. Na medida concreta da pena, segundo o art.º 71.º do C.P., há que atender-se à culpa do agente ainda que tendo em conta as exigências de prevenção, sendo que para graduar concretamente a pena ter-se-á que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, conforme resulta do n.º 2 do artigo 71.º do C.P.;
XLII. Refere a este propósito o Acórdão do STJ, de 2006/04/06 “a medida da pena será, portanto encontrada em função da culpa do agente, que impõe uma retribuição justa, ponderando as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente, às exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade e levando ainda em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente”.
XLIII. E ao facto de o mesmo não ter quaisquer antecedentes criminais no que toca ao crime em apreço, nem a outro de qualquer
XLIV. Assim, atendendo aos bens jurídicos em causa, às pessoas visadas e à situação concreta em que se desenrolou o comportamento do arguido, a punição proferida pelo Tribunal a quo é claramente excessiva e desproporcionada ao caso concreto.
XLV. Que a pena seja aplicada de acordo com o estipulado nos art.º 177, ou seja o agravamento de um terço e um terço de 3, é 4 e não 6.
XLVI. Por inerência bem como a redução do cúmulo jurídico;
XLVII. Reduzir as penas acessórias bem como a redução da indemnização arbitrada pelo tribunal.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, e com o Douto Suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser revogado o douto recorrido e, em consequência ser o recorrente absolvido dos crimes em que foi condenado com base no princípio in dúbio pro reo, ou caso não seja este o entendimento de V. Exas,
a) que a pena seja aplicada de acordo com o estipulado nos art.º 164.º n.º 1 e art.º 177, ou seja o agravamento de um terço (e um terço de 3, é 4 e não 6);
b) Por inerência bem como a redução do cúmulo jurídico;
c) Reduzir as penas acessórias bem como a redução da indemnização arbitrada pelo tribunal. “
O Ministério Público apresentou resposta, pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida.
Remetidos os autos a este tribunal de recurso o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.

II – DECISÃO RECORRIDA
É o seguinte o teor da decisão   recorrida, que se transcreve na parte relevante:
“1.1) Matéria de facto provada
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a decisão de mérito:
1) B nasceu no dia 7 de agosto de 2002 e é filha de C ...e de H.
2) Os progenitores de ofendida B separaram-se, sendo que a sua mãe iniciou um relacionamento amoroso com o arguido desde o ano de 2011.
3) Em 2016, a B veio de Cabo Verde para Portugal, passando a residir com a sua mãe e com o seu irmão, na residência sita na Rua F.
4) Nessa altura, a mãe da B já mantinha o relacionamento amoroso com o arguido, embora ainda não vivessem em condições análogas às dos cônjuges, o que só viria a suceder a partir do mês de novembro de 2018, altura em que a B, a sua mãe e o seu irmão se mudaram para uma residência, também localizada na Rua São João Batista de Ajudá, mas no n.º …, no Barreiro.
5) O arguido exercia autoridade idêntica à de pai para com os filhos de C, indo, por exemplo, a reuniões escolares, constando os seus dados e contacto nas fichas de aluno dos filhos de C.
6) Os filhos de C, incluindo a B, reconheciam e respeitavam tal autoridade por parte do arguido, que viam como figura paterna.
7) No período compreendido entre o dia 7/8/2017 e o dia 06/08/2018, quando B vivia na residência sita na Rua F, em, pelo menos, 10 (dez) ocasiões, o arguido aguardou ficar a sós com B e tirou-lhe roupa que ela usava, não obstante aquela sempre o empurrar para se libertar dele e lhe pedir para parar e, com o pénis já erecto, introduziu-o, em todas aquelas ocasiões, na vagina de B, aí o friccionando, através de movimentos de vai e vem, vindo a ejacular no exterior.
8) Assim sucedeu, designadamente e pela primeira vez, em data não concretamente apurada do Verão de 2017, mas situada em momento posterior ao dia 7 de agosto de 2017, quando a B se encontrava na sua residência com o seu irmão H e com o arguido, estando a sua mãe a trabalhar.
9) Em determinada altura, o arguido pediu a H que fosse comprar gelados, para ficar a sós com B, o que aquele fez.
10) De seguida, o arguido abeirou-se de B, que estava sentava num cadeirão, e começou a baixar os calções que aquela tinha vestido.
11) Nesse momento, não obstante a B empurrar o arguido, para se libertar dele e de lhe pedir para parar, este conseguiu, usando a sua força física, introduzir o pénis erecto na vagina de B, vindo a ejacular no exterior.
12) Nessa ocasião, B ainda não tinha tido qualquer contacto sexual com nenhum homem.
13) No mês de novembro de 2018 a B, a sua mãe e o seu irmão mudaram-se para a residência sita na Rua E, no Barreiro, altura em que o arguido começou a viver com C, naquela habitação, em condições análogas às dos cônjuges.
14) A partir desse momento até ao dia 06/03/2020 o arguido intensificou as condutas vindas de descrever, tendo abordado a B com a regularidade de pelo menos uma vez por semana para o efeito, perfazendo, pelo menos, 56 (cinquenta e seis) ocasiões, nas quais e em cada uma delas, o arguido abordou a B, sempre na habitação que partilhavam enquanto padrasto e enteada, conseguiu sempre tirar-lhe a roupa, indiferente à repulsa que a B demonstrava ao pedir-lhe para parar e conseguiu sempre, em todas e cada uma daquelas ocasiões, introduzir o seu pénis, erecto, na vagina de B, aí o friccionando até ejacular, sabendo que o fazia contra a vontade de B, mesmo quando esta já não se debatia fisicamente mas ainda assim anuía ao seu comportamento receando que o mesmo fosse contar à sua mãe acerca dos actos sexuais anteriormente praticados entre ambos.
15) Tais abordagens ocorriam no quarto da B ou na sala.
16) Inicialmente, B empurrava o arguido, para se libertar dele, sendo que o arguido a dominava devido à sua superioridade física.
17) Com o tempo e a partir de data não concretamente apurada, B foi percebendo que, não obstante tentar impedir o arguido de concretizar os seus intentos, usando a sua força física, empurrando-o e pontapeando-o, nunca conseguiria demovê-lo e impedi-lo de os concretizar pelo que já não se debatia fisicamente.
18) Com efeito, em data não concretamente apurada, B pediu ao arguido para parar com aqueles comportamentos, tendo o mesmo negado, afirmando que tinha um vídeo com gravações de actos sexuais entre eles que exibiria à sua mãe, caso ela lhe contasse o que se passava entre ambos.
19) Nesse contexto, na residência sita na Rua E, no Barreiro, em outras duas ocasiões, o arguido baixou os boxers e, com o pénis já erecto, ordenou a B, que ali colocasse a sua boca, o que B fez por receio do arguido e para evitar que o mesmo colocasse o pénis na sua vagina.
20) Em duas ocasiões, o arguido fez menção de introduzir o pénis no ânus de B, o que só não sucedeu, por esta ter chorado, tendo de seguida o arguido colocado o pénis na sua vagina.
21) No dia 6 de março de 2020, cerca das 22 horas, altura em que a mãe e o irmão da B se foram deitar, ficando o arguido e a B na sala, sentados no sofá, sendo que esta estava a ver “animes” (desenhos animados japoneses) no seu telemóvel.
22) Por seu lado, o arguido estava a ver televisão, mas a fazer tempo até se certificar que a mãe da B estava no quarto, a dormir.
23) Passados uns minutos, o arguido colocou as suas mãos no cinto das calças da B, para o desapertar, sendo que, de imediato, a B impediu-o, colocando as suas mãos em cima das dele, imobilizando-as.
24) Não obstante, o arguido desapertou o cinto, baixou as calças, bem como as cuecas de B, ciente que o fazia contra a vontade desta, que se posicionou de costas para o arguido, para não ter de olhar para a cara dele, tendo o arguido introduzido o seu pénis, já erecto, na vagina da B, aí o friccionando, com movimentos de vai e vem, sabendo que o fazia contra a vontade de B, não obstante esta já não se debater fisicamente.
25) Nesse momento, foram surpreendidos pela mãe da B que, entretanto, se havia levantado para ir à casa de banho e se apercebeu de movimentos de corpos na sala.
26) Após a prática dos factos vindos de descrever, a mãe da B separou-se do arguido, que foi residir para outra casa, onde reside actualmente.
27) B nunca mais teve quaisquer contactos com o arguido.
28) B nunca relatou os factos vindos de descrever a ninguém, nem à sua mãe, por vergonha e por pensar que esta zangar-se-ia consigo.
29) Ao obrigar B, através da força física, a sofrer penetração vaginal e a manipular o seu pénis erecto com a boca, sempre contra a vontade da mesma, aproveitando-se da sua superioridade física, da relação e ascendente familiar que tinha sobre B, filha da sua companheira e da incapacidade de B para evitar que aquele concretizasse os seus intentos, o arguido quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, mesmo ciente que B era menor de idade e que não consentia na sua actuação, ofendendo, assim, a liberdade sexual da mesma.
30) Ao obrigar B a sofrer penetração vaginal, sempre contra a vontade da mesma, aproveitando-se da sua superioridade física, da relação e ascendente familiar que tinha sobre B, filha da sua companheira e da incapacidade de B para evitar que aquele concretizasse os seus intentos, o arguido quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, mesmo ciente que B era menor de idade e que não consentia na sua actuação, ofendendo, assim, a liberdade sexual da mesma.
31) O arguido agiu sempre de forma livre, porque capaz de se determinar segundo a sua vontade, e de forma deliberada e consciente, querendo actuar da forma supra descrita.
32) Mais sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Da contestação
33) C e o arguido adquiriram habitação em setembro de 2018, porém a mesma necessitava de arranjos.
34) Quando C, B e o irmão foram residir para a casa nova, as irmãs mais velhas de B ficaram na anterior residência.
35) O arguido “adoptou” a família de C, sua mulher, como sua e também a filha do arguido e companheiro desta, foram “adoptados” pela família de C e viviam todos como se de uma só família fosse, com os seus ralhetes como qualquer família, mas eram unidos e felizes.
36) No período compreendido entre dia não apurado mas no Verão de 2017 e o Verão de 2018, o arguido não vivia com a C e os seus filhos.
37) A actividade profissional do arguido era e é feita de segunda a sexta-feira, ao serviço da empresa I para quem trabalha desde 2016, trabalhando, por vezes, fora da sua área de residência e tendo de pernoitar fora e às vezes até mesmo ao fim de semana.
38) Em 6/9/2017 o arguido foi a Cabo Verde tendo regressado em 01/10/2017.
39) No dia 14/8/2018 o arguido sofreu um acidente de trabalho tendo que ser submetido a uma intervenção cirúrgica ao ombro.
40) A sua recuperação foi lenta e dolorosa, tendo inicialmente que precisar de ajuda até para tomar banho, teve a ajuda da sua filha que na altura residia consigo.
41) O arguido só voltou a trabalhar em março de 2019.
42) No dia 06/03/2020, quando C chegou à sala o arguido estava sentado junto da B, C levantou o que estava a tapar B e percebeu que a filha tinha as calças nos joelhos.

Das condições pessoais do arguido
43) O arguido nasceu e cresceu na Ilha do Sal, no contexto de família numerosa e de baixa condição socio-económica.
44) Dos treze irmãos, cinco são consanguíneos, seis são uterinos e dois são irmãos germanos.
45) A mãe do arguido veio para Portugal em 1975, aquando da independência, com uma das irmãs de A, tendo este ficado entregue aos cuidados do seu pai, e posteriormente aos cuidados da sua madrasta, com a qual terá mantido um relacionamento cordial.
46) O arguido denotou sentimentos de mágoa pela saída da progenitora, a qual foi experienciada como um abandono, tendo relevado o papel do pai “ele não quis sair de Cabo Verde, porque gostava dos filhos e quis ficar com eles” (sic).
47) No seu país de origem, o arguido referiu ter morado em casa construída pelo pai, a qual descreveu como tendo tido boas condições de acomodação.
48) O pai do arguido, trabalhador na TAP e posteriormente nos Transportes Aéreos de Cabo Verde (TACV), terá tentado suprir as necessidades básicas da sua família, pese embora tenham sido vivenciadas carências pelo arguido.
49) Neste contexto, o arguido apenas terá concluído o 4º ano de escolaridade, por falta de condições económicas para prosseguir a sua escolaridade.
50) Ainda adolescente, o arguido começou a sua vida laboral na área da construção civil, tendo em 1997 começado a trabalhar nos TACV na área de catering.
51) Em 1995 conheceu Maria de Fátima, com a qual manteve um relacionamento afetivo até 2012 e do qual nasceram 3 filhos: J, 27 anos; L, 23 anos e M, 19 anos.
52) Em 2000, na sequência de despedimentos na referida companhia, o arguido afirmou ter conseguido negociar e ter conseguido, nesse contexto, um visto para vir para Portugal, tendo vindo com a sua filha mais velha.
53) Posteriormente, o agregado reunificou-se.
54) Em Portugal, o arguido trabalhou, até 2013, como estucador, tendo, nessa altura, a empresa com a qual tinha vínculo contratual iniciado processo de falência, pelo que o arguido ficou em situação de desemprego.
55) Em 2011, o arguido estabeleceu ligação afectiva com ..., mãe da ofendida, com a qual mais tarde veio a coabitar.
56) Em 2016, a ofendida B, filha de ..., veio de Cabo Verde para Portugal, tendo integrado o agregado reconstituído do arguido composto pela companheira e por um filho desta.
57) O agregado veio a fixar residência no Barreiro.
58) Nessa altura, o arguido começou a trabalhar na empresa “O”, tendo passado a auferir de um ordenado de cerca de 1.100 euros.
59) Aquando dos alegados factos, o arguido residia com a companheira, a ofendida e filho desta, em casa arrendada, com condições satisfatórias de acomodação e conforto.
60) O arguido mantinha contactos regulares com os seus filhos, fruto da sua primeira relação e relacionamentos de amizade sobretudo com pessoas da sua comunidade residencial e do seu trabalho.
61) Em termos laborais, o arguido dispunha de uma situação estável, beneficiando de uma condição socioeconómica suficiente para as suas necessidades.
62) O arguido tendeu a atribuir a sua situação jurídico-penal ao facto de a ofendida pretender voltar para casa da progenitora.
63) Após os alegados factos, o arguido terá regressado a casa da sua primeira mulher, Maria de Fátima, na qual permanece.
64) Em contacto com esta, os serviços de reinserção social verificaram que desconhecia o processo, bem como os motivos subjacentes ao mesmo, denotando acreditar que o regresso do arguido ao agregado se deveu exclusivamente a arrependimento pela separação.
65) O arguido manterá as suas rotinas habituais, centradas no trabalho, convívio com amigos pró-sociais e vivências familiares.
66) Não foram indicados aos serviços de reinserção social problemas de saúde ou qualquer tipo de consumos de substâncias psicotrópicas.
67) O arguido centrou a avaliação do impacto da sua situação jurídico-penal sobre si, tendo referido como negativa a separação da mãe da ofendida de quem referiu ainda gostar, bem como a divulgação na comunidade dos alegados factos por esta, o que terá prejudicado a imagem que gosta de manter junto de vizinhos e amigos.
68) Aquando da entrevista, o arguido não expressou simpatia ou empatia para com a vítima, tendo sido inteligíveis distorções no que concerne à sexualidade.
69) O arguido, de 50 anos, terá mantido um percurso de forma geral normativo, apesar das condicionantes associadas a baixa escolaridade e ausência de formação especifica.
70) Os alegados factos terão tido como contexto, o afastamento emocional entre o arguido e a companheira (mãe da ofendida), a insatisfação sexual/dificuldade de controlo dos impulsos, a presença de distorções cognitivas associadas à sexualidade e a desvalorização do impacto deste tipo de conduta.
71) Os serviços de reinserção social sugerem que, em caso de condenação, o arguido frequente Programa para Agressores Sexuais, o qual se encontra em fase experimental e tem duração não inferior a um ano.
72) O arguido não regista antecedentes criminais.
 
1.2) Matéria de facto não provada
Da audiência de discussão e julgamento não resultou provado que:
a) C ...e o arguido iniciaram um relacionamento amoroso em 2013.
b) O arguido e C ...começaram a viver em condições análogas às dos cônjuges no mês de agosto de 2018.
c) No período compreendido entre dia não apurado do Verão de 2017, mas em momento posterior ao dia 7 de agosto (data em que a B completou 15 anos de idade) e o Verão de 2018, na residência sita na Rua F, pelo menos em 15 ocasiões o arguido introduziu o pénis na vagina de B.
d) Na ocasião referida em 11) B empurrou o arguido com força, este baixou os calções e as cuecas até meio da coxa e posicionou-a com força, de frente para si e levantou-lhe as pernas para cima, friccionando o seu pénis na vagina da mesma, através de movimentos de vai e vem.
e) Na ocasião referida em 0 o arguido falou com voz alta e num tom firme e sério e ordenou-lhe que percorresse o pénis com movimentos ascendentes e descendentes.
f) Nas ocasiões referidas em 20) o arguido usou a força física para virar B de costas, não obstante aquela o empurrar e gritar que parasse, com dores e o arguido ejaculou.
g) O arguido usou sempre força física e B empurrou-o sempre com força, com as mãos ou com os pés e pedindo-lhe para parar.
h) B mudou o número do seu telemóvel para não ter contactos com o arguido.
i) Em 2011, a mãe de B foi acometida de uma anemia e foi o arguido que a ajudou quer nos tratamentos quer no pagamento de contas durante cerca de um ano.
j) Quando esta se sentiu melhor regressou a cabo Verde para junto do pai dos filhos, deixando o arguido sozinho.
k) Uma vez que o pai da ofendida já tinha outro relacionamento e não quis a mulher de volta, veio esta para Portugal e o arguido voltou a iniciar o relacionamento porque sempre gostou muito dela.
l) Em 2016 a B veio para Portugal mais dois irmãos (H e o ...).
m) O arguido pela sua personalidade de homem honesto, integro, trabalhador, pacificador encontrou na C mulher que amava a companheira e “adoptou” a família desta como sua.
n) A filha do arguido chegou muitas vezes a ser a ouvinte de todos eles, nas confidências que em si depositavam.
o) A B sempre teve mais corpo que cabeça para a idade, mas fazia tudo de acordo com a idade, saindo com amigas/amigos em convívios, sabendo todos em casa de alguns namoricos próprios da idade.
p) Mas nunca o arguido olhou para a filha da sua companheira com desejo ou vontade fosse do que fosse.
q) A relação entre arguido e assistente sempre primorou pelo respeito de pai e filha, e sabe bem a C porque o dizia muitas vezes à filha: “onde vais tu vai o A”, porque por exemplo a mãe pedia à filha um favor de ir à rua buscar algo, e a filha dizia ah sozinha não vou mas se o A for comigo!! E por vezes ao fim de semana a descansar lá se vestia o arguido e lá ia, e de certa forma ser tratado daquela forma pela mais pequena da família até o deixava orgulhoso.
r) Em meados de agosto de 2017, foram todos para Cabo Verde deixando o arguido sozinho.
s) O arguido nunca deu dinheiro a nenhum dos “seus filhos” para ficar a sós com a B.
t) O arguido nunca lhes deixou faltar nada, nunca diferenciou os seus dos da sua companheira, que tudo o que ganhava era para a casa, para o conforto e bem-estar material e psicológico de todos.
u) Depois da viagem a Cabo Verde o arguido nota que a sua companheira não vem bem, não tendo nenhum problema físico, questionava este o que se tinha passado durante a sua ausência e o porquê de esta não estar bem e estar cada vez mais afastada do arguido, tendo inclusive este passado a dormir no sofá em dezembro de 2018.
v) Nunca forçou o arguido a sua companheira a nada, teve várias conversas com a mesma para saber o que se passava, mas sem sucesso.
w) No dia 6/3/2020, pelas 22 horas, o arguido estava sentado no sofá da sala com a assistente a ver televisão e a falarem como muitas vezes era hábito e envolveu-se sexualmente com a sua enteada, sem que tal tenha sido forçado, pensado ou premeditado e com o consentimento da mesma.
x) Quando o arguido foi ao quarto buscar uma cueca para tomar banho, passados dois minutos apareceu a C.
y) Quanto C chegou à sala levantou a colcha que estava a tapar B.
z) Avançou na direcção da filha e bateu nesta.
aa) B ia dizendo que o arguido não a tinha forçado a nada e ligou de imediato à filha do arguido que se deslocou a casa com o namorado.
bb) A filha do arguido conversou com a assistente que lhe relatou o sucedido e disse-lhe que não tinha sido forçada a nada.
cc) A mãe expulsou a assistente e o arguido de casa nessa noite.
dd) O arguido passa a noite na casa da sua filha.
ee) A assistente vai para a residência da sua irmã mais velha durante 15 dias.
ff) O arguido muda-se para a sua actual / antiga residência, mas continua a pagar o empréstimo da residência onde todos ainda habitam.
gg) O arguido andou mais de um mês angustiado, triste, confuso, a dormir mal, quis pedir desculpas à mãe da assistente, à assistente e à Avó.
hh) O ano passado no dia de natal tentou lá ir a casa falar com a assistente mas assim que entrou na porta estavam ao telefone para chamar a policia e o arguido saiu.
1.3) Justificação da convicção do tribunal
Em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, cumpre expor, de forma tanto quanto possível, completa, ainda que concisa, os motivos que fundamentam a antecedente decisão fática, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento globalmente considerada, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova, nos termos do disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal.
Assim, fundamentaram a antecedente decisão fáctica e contribuíram para formar a convicção do Tribunal, os seguintes elementos de prova produzidos e examinados em audiência de discussão e julgamento:
- O teor da prova pericial de fls. 115 a 127 (relatório de Perícia Psicológica de B, realizado pelo Laboratório de Ciências Forenses e Psicológicas Egas Moniz);
- O teor da prova documental de fls. 19-20 (auto de denúncia); 183-193 (cópia de contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca), 194 (cópia de contrato de trabalho por tempo indeterminado), 195 (cópia de declaração), 195 verso (cópia de passaporte), 197 (cópia de passagem de 6/7/2017), 198 (cópia de passagem de 30/09/2017), 199 (cópia de condições de contrato de bilhete aéreo), 200-202 (descrição e orientações relativas a “reparação artroscópica da coifa dos rotadores”), 203 (cópia de pedido de consulta médica), 204 (cópia de boletim de incapacidade), 205-206 (cópia de declarações do Sport Lisboa e Benfica), 207 (cópia de ficha de aptidão para o trabalho), 208 (cópia de declaração de consentimento), 209-210 (cópia de declaração para os serviços de medicina para o trabalho da “Fidelidade”), 211 (cópia de registo fotográfico do arguido), 214 a 217 (cópia de registos fotográficos), 238-239 (relatório social) e 242 (Certificado de Registo Criminal actualizado) cujo conteúdo não foi impugnado;
- As declarações do arguido prestadas em audiência de discussão e julgamento, o qual afirmou, em síntese, que ele e C começaram o seu relacionamento em 2011. Antes de começar a viver com esta morava com mais duas filhas numa casa de duas assoalhadas da mãe das suas filhas. Quando a B veio de Cabo Verde com o irmão, ficaram ambos no quarto com outras duas irmãs. Foram morar juntos, noutra casa, em novembro de 2018, depois de fazer a escritura. O que se diz acerca do seu relacionamento com B é mentira, porque até trabalhava muito fora. Tinha boa relação com a ofendida. No dia 6 de março de 2020 ficou na sala, já não estava com boa relação C, trabalhava muito fora e já não tinha relações sexuais com ela, dormia no sofá, sendo que ela já não o aceitava, rejeitava-o. Nesse dia 6 de março ele e a B, envolveram-se, mas ela quis que acontecesse a situação. Ele estava sentado no sofá e a B sentou-se ao seu lado, a passar a mão nas suas pernas, ela tirou a calça que tinha vestido e envolveram-se os dois. Depois de terem relações foi apanhar os boxers e voltou para o pé dela e assim que se sentou a mãe da B veio do quarto, foi diretamente ter com ela e viu que a B que estava tapada com um cobertor e tinha as calças e cuecas até aos joelhos, sendo que ela própria é que tinha descido as calças e ele estava só vestido de boxers. Depois a C expulsou-o a si e à B de casa, a sua filha mais velha ... Sofia ligou-lhe e veio com o companheiro. Nessa altura a B disse que fez porque quis, e foi para casa da irmã mais velha, só voltou para casa da mãe quinze dias depois. Foi o seu maior erro e podia tê-lo evitado. A B era muito chegada a si, estava sempre a procurar lutar consigo, brincavam muito, ia à escola dela, tratava-a de pai para filha. Não sabe explicar como deixou chegar a este ponto. A casa onde viviam na altura tinha três quartos e uma sala comum com cozinha. Quando não vivia com a C, passava o fim-de-semana com ela e com os filhos, no quarto dela e durante a semana, quando estava a trabalhar por perto, ia estar com ela um bocado. Chegou a pagar gelados ao H, que tem 6 anos de diferença da B. Em 2019 foram todos para Cabo Verde, passar três semanas, no mês de agosto, ele foi uma semana depois, no princípio de setembro e voltou uma semana mais tarde. Em 2017 foi ele e as duas filhas mais velhas. Em 14/8/2018, teve um acidente de trabalho e foi operado ao braço. Nos primeiros dois meses as suas filhas ajudavam-no. Em novembro de 2018, já não tinha o braço ao peito, tinha tala e fazia autonomamente as suas refeições, para lavar as costas. Tem problemas de saúde e consegue ter relações com dificuldade.
- O depoimento da ofendida e assistente B ... a qual declarou que o arguido é namorado da sua mãe, os quais viveram como marido e mulher. Ela veio para Portugal no final de 2015, quando tinha 13 anos e só nessa altura é que soube da relação da mãe com o arguido, relação que aceitou bem. Aquilo começou quando ela tinha 15 anos, no verão e desde aí até aquele dia.
Naquele dia (6/3/2020) ela estava na sala a ver “animes” (desenhos animados japoneses) com “fones” (sic), a mãe e o irmão foram dormir e ela e o arguido ficaram os dois na sala. Ela estava deitada a ver animes e depois o arguido começou a tocar e ela anda sempre de cinto (que gosta de usar para dificultar as “coisas”) ele começou a tirar o cinto, ela não estava a deixar mas ele insistia e ela voltou-se de costas no sofá e ele fez aquilo que queria fazer, introduzindo o pénis na vagina (mais tarde esclareceu que ele tirou os boxers que não houve palavras). Não sabe se o arguido ejaculou, ele foi de imediato para o quarto. Entretanto, a sua mãe chegou, tocou-lhe no braço, ela estava de costas e virou a cara para a mãe. Depois disse “porque é que fizeram isso comigo” e foi para o quarto a chorar. O arguido disse que ela tinha estragado a sua vida e disse-lhe para ela dizer que só tinham sido duas semanas e que ele nunca o obrigou a nada. A filha do arguido foi lá a casa, falou consigo, perguntou há quanto tempo acontecia, ela disse que acontecia há duas semanas, ela perguntou se tinha sido obrigada e ela não respondeu nada, ficou com a cabeça para baixo. Depois saiu da sua casa da sua mãe e foi para casa da irmã na Moita, mas já voltou a casa da sua mãe, com quem voltou a ter uma boa relação.
A primeira vez que aconteceu foi no verão, ela ainda tinha quinze anos, em casa da sua mãe. O arguido mandou o irmão mais novo (que tem 5 anos de diferença de si), comprar gelados, ela estava no telemóvel a ver “animes” e depois veio para cima de si, não se lembra bem se, perguntou o que ele estava a fazer e ele disse que estava tudo bem, ele baixou as calças ou afastou os shorts, ele meteu o pénis, só me lembra daquilo doer muito e ter sido muito rápido. Disse ao arguido para parar, a afastar e a empurrar e ele não parou. Ele não usou camisinha, foi para o quarto. Depois o seu irmão chegou. Nessa altura ainda vivia em casa da sua mãe e ele conseguia aproximar-se de si porque às vezes dormia lá em casa, as suas irmãs chegavam mais tarde porque trabalhavam, a casa tinha dois quartos, isto acontecia quase sempre na sala, à noite, a sua mãe estava no quarto dela. Na antiga casa eram cinco (ela, os seus três irmãos e a sua mãe). Acontecia quase sempre da mesma maneira, contra a sua vontade e o arguido ejaculava para fora. O arguido tentava quase todas as semanas ter relações consigo, até mudar de casa ele tentou várias vezes, mas às vezes não conseguia, não sabendo indicar o número de vezes em que conseguiu, mas julgando que terão sido mais de dez vezes. Quando se mudaram para a casa nova, ela praticamente não saia de casa, porque a sua mãe não a deixava, só de vez em quando é que ia ao Colombo com mais duas amigas. Nessa casa, bastava estarem sozinhos, de dia e à noite, sendo que à noite ele ia ter consigo mais na sala e depois também no seu quarto, quase todos os dias. Nalguns dias, ela empurrava-o, começava a falar mais alto, saia do seu quarto, mas o arguido ia atrás dela. No ânus não chegou a acontecer porque ela chorou. Chegou a colocar o pénis na boca e ela aceitou porque ele disse que se fizeres isso eu não faço o outro (sendo o outro colocar o pénis na vagina) e ela preferiu fazer isso. Houve uma vez que houve um acidente, ela disse para ele não fazer mais e ele continuou a fazer na mesma e depois ele foi comprar comprimido que, ao que parece, era a pílula do dia seguinte. Na casa nova acontecia com muita regularidade, mais do que uma vez por semana. Começou a aceitar o comportamento do arguido porque “era mais rápido” porque se resistisse demorava mais tempo. Quando o arguido ficou com o braço ao peito a situação piorou, porque ele passava mais tempo em casa, não tendo nenhuma dificuldade em ter relações sexuais, pensando que ele teve o acidente de trabalho quando já estavam na casa nova. Por vezes acontecia ele ficar fora, às vezes dois a quatro dias. Foi a Cabo Verde em 2019, onde esteve duas semanas, com a sua mãe, com o irmão, irmã também foi, sendo que o arguido também foi mas não ficou na mesma casa e não teve contacto consigo.
Quando foram para a casa nova o arguido obrigava-a a ter relações, pelo menos, uma vez por semana, excepto quanto foi para Cabo Verde, durante duas semanas e quando o arguido ia trabalhar para fora e não estava em casa.
Acrescentou ainda que, nos primeiros tempos, tinha uma relação normal com o arguido e que ele ia a algumas reuniões da escola. O arguido interagia bem consigo e com os seus irmãos, nunca tinha reparado em nenhum comportamento estranho, consigo ou com eles. Depois da primeira vez que tiveram relações ele disse-lhe que já tinha feito isto com as suas irmãs e qual é que era a melhor. Na primeira vez que aquilo aconteceu o arguido foi para o quarto e ele ficou na sala. Não era habitual o arguido usar proteção, mas às vezes usava. A abordagem era sempre a mesma, ele começava a mexer-lhe e houve situações em que ele começava a mexer em si próprio também.
Não queria que mais ninguém, a sua mãe e as suas irmãs, soubessem e por isso o seu comportamento era normal ao pé das pessoas. Não contou à sua mãe, não queria que soubesse porque tinha vergonha e porque ela ia ficar triste. O arguido disse que tinha um vídeo seu, que se ela contasse ele dizia que era mentira, que ela é que queria. Mudaram-se para a casa nova quando já era inverno e a casa nova teve de ter obras, tendo sido o arguido e as irmãs que fizeram as obras. O arguido tentou pelo ânus, duas vezes mas como ela chorou ele colocou na vagina e colocou, no máximo, duas vezes o pénis na sua boca, o que ocorreu na casa nova. Falou com o arguido para ele parar e ele disse que sim, que a relação era só uma curtição, mas não parou. De acordo com o que lhe foi dito, a casa onde residiam pertencia à sua mãe, sendo o arguido o fiador. O arguido não voltou contactar consigo, tendo tentado contactar com a sua mãe.
- O depoimento da testemunha C, mãe da ofendida, qual afirmou, em síntese, que ela e o arguido viveram juntos e moraram juntos entre os anos de 2016 e 2018, sendo que atualmente não tem qualquer relação com o arguido. Ela chegou a Portugal em 11/11/2011 e nessa altura ela e o arguido já saiam. A B chegou a Portugal em 2016 com o irmão H/Pedro e viveu sempre consigo. Em 2016, ela e o arguido tinham uma relação de namoro mas não moravam juntos. Nesse período em que o arguido não vivia consigo, ele vinha sempre a sua casa, fazia as refeições em sua casa, estava sempre em sua casa. No ano anterior tinham chegado as duas filhas mais velhas. Ela comprou uma casa e ela, a B e o H foram para a casa nova e as suas duas filhas ficaram sozinhas na casa anterior. O arguido era como se fosse um pai e um amigo. Até ao dia 6 de março de 2020 não tinha qualquer suspeita quanto ao comportamento do arguido. Nesse dia encontraram-se no barco as 17:45 horas, chegou a casa as 18 horas, começou a tratar do jantar, estava cansada e disse que ia tomar banho e se quiserem podem ir comendo. Eles esperaram por si para jantar, como sempre, ficaram sentados, ela, o arguido e a B, no sofá a ver televisão e depois foi para a cama. Ficou com os olhos fechados para ver se dormia. Recorda-se do arguido a entrar no quarto e a encostar a porta do quarto. Saiu do quarto para ir para a casa de banho, como a casa é aberta, a sala e a cozinha ficam logo ali, viu um movimento, o arguido já estava sentado, ao lado dela e ela aproximou-se e tirou a almofada do rabo da B, que estava deitada, a calça e as cuecas estavam despidas até à perna e disse a ele, “o que estás a fazer, é tua filha”. Do jeito que viu sabe que estava a acontecer ali algo porque a sua filha estava despida e o arguido também. A sua filha estava com fones no ouvido, não ouviu e depois ela gritou pelo nome dela e ela respondeu “ah, ah” e depois ficou a chorar. O arguido respondeu que já tinha acabado com a sua vida. Ela foi para o quarto para ligar para a sua filha e o arguido disse para não ligar a ninguém, para conversarem mas ela ligou para a filha e para a filha dele. Nesse dia ele saiu de casa e não voltou a viver com elas. Depois ela saiu e deixou toda a gente em casa. Disse à sua filha ... para levar a ... com ela porque queria ficar sozinha. Hoje em dia a ... vive consigo. A ... sentou-se à mesa consigo e com as irmãs e disse que isto aconteceu desde a outra casa e desde que veio para a casa nova que foi um inferno e ela estava à espera de fazer 18 anos para desaparecer, que aos sábados quando ela ia trabalhar era pior. Na escola tinham o número dele. Ela disse que isto aconteceu quando ele chegava em casa primeiro e quando ela trabalhava ao sábado. Explicou que não foi muito tempo depois de vir de Cabo Verde, a primeira vez tinha 15 anos e o arguido deu dinheiro ao miúdo para comprar gelado. Ele exigia que os seus filhos o respeitassem como pai, ele apresentava os miúdos como se fosse o pai, e os filhos dele como se fossem irmãos. A B disse-lhe que não conseguia falar porque a língua travava. Foi a casa a seguir ..., ... (filha dela), ..., (filha do arguido) e o marido/companheiro dela. Depois o A mandou mensagens a desculpar-se, que tinha acabado com a família linda que tinha. Não expulsou a B da sua casa, ela deixou toda a gente em casa. A relação durou desde 2012 e nessa altura o arguido não trabalhava com a I mas com outro patrão. O arguido saia para trabalhar fora durante uma semana e também trabalhava aos fim-de-semana e vinha para casa ao fim do dia. Recorda-se que ele teve um acidente de trabalho, queixava-se e teve algum tempo sem trabalhar, 3, 4 ou 5 meses, foi operado saiu do hospital e foi para casa dele, passado uma ou duas semanas ele foi para casa, tendo o braço imobilizado. A filha ... fazia massagens nele. Nessa altura não moravam juntos. No mês de agosto foram para Cabo Verde. Fizeram a escritura em setembro e foram morar para a casa nova em novembro de 2018. Quando começaram a viver juntos o facto do arguido ter o braço imobilizado não o impediu de ter relações, movimentava-se, conduzia. O arguido não ia todos os meses trabalhar para fora, foram poucas semanas, não chegou a dez semanas fora. Quando não viviam juntos, normalmente, as vezes o arguido passava lá depois do trabalho e encontravam-se no barco, frequentemente, no ano em que estavam juntos. A B saia da escola e chegava em casa 15/16 horas. A sua filha ficava a ver bonecos “animes” e ela ia dormir, porque acordava cedo. O arguido ficava a ver televisão. O irmão H tem 5 anos de diferença e ia dormir mais cedo.
- O depoimento da testemunha ... ..., filha do arguido, a qual afirmou, em síntese, sempre teve uma boa relação com a ..., sendo a sua irmã da idade dela. Sempre foram muito amigos, a ofendida “vivia colada” ao arguido, ela queria ir com ele ver jogos de futebol, o que para si era uma situação normal porque todas as filhas da sua companheira sempre foram amigas do seu pai. Desde 2016 que o arguido trabalha com o patrão de Paços de Ferreira, sendo que, num ano esteve sempre fora menos quando teve o braço ao peito, só permanecendo em casa quando não tem trabalho por fora, mas praticamente é sempre fora, no algarve e no porto. Em 2018, o pai teve um acidente, foi operado no verão de 2018, a recuperação foi feita na casa dele, onde ele esteve até eles comprarem casa e irem para casa deles. Quando foi para a casa nova o arguido ainda tinha o braço ao peito e só quando começou a fazer fisioterapia é que ele tirou aquilo do braço. Só passado um ano é que ele começou a mexer o braço em condições. Não se recorda quando é que ele começou a trabalhar mas pensa que foi praticamente um ano, em 2019. Depois do arguido e da mulher mudarem de casa continuaram a ser visita habitual de casa. A B andava sempre “em cima” (sic) do arguido, a mãe dela dizia que ela não o largava. A ofendida era muito fechada, não podia fazer quase nada, em termos de sair a mãe privava-a muito. No dia 6/3/2020 foi jantar com o seu marido a Almada, recebeu chamada da C e foram a correr porque ela não adiantou o que se tinha passado. Quando chegaram estava a ... e o ..., o namorado dela e, entretanto, chegou a outra filha da C. Quando chegou não quis acreditar, quem lhe contou foi a C, disse que o seu pai e a ... tinham-se envolvido, que tinha apanhado a B com as calças a meio das pernas e o seu pai com as calças desabotoadas. Foi ter com o seu pai e falou com ela, a única coisa que ela lhe disse foi que se tinha envolvido que o seu pai não lhe fez mal nenhum e pediu-lhe desculpas, disse que o pai não a tinha obrigado. A C não chamou a polícia. Bateu a B e expulsou ambos de casa. No dia seguinte a C ligou-lhe a perguntar quando ia la buscar as coisas e questionar se não passaria um papel no notário a passar a casa para nome dela, ela disse-lhe que não. Passados uns dias ela apresentou queixa. Pensa que o seu pai não o teria feito anteriormente, uma vez que teve várias amigas que foram la a casa. Sempre cuidou bem dos seus irmãos e foi muito amigo das irmãs. Conheceu a ... quando ela veio de Cabo Verde em 2012 ou 2013. Ela e o arguido sempre se trataram pelo nome, a relação era boa, era uma relação de pai para filho, amigo ou confidente. Quando era necessário o arguido repreendia a B.
- O depoimento da testemunha P, companheiro da filha do arguido, o qual afirmou, em síntese, o arguido sempre tratou bem as filhas. Acompanhou a fase em que o arguido teve o acidente de trabalho, tendo andado com o braço ao peito, não se recorda quando teve alta. Na noite em que a foram chamados a casa do arguido, estava ele, a mãe, e a B na sala com o namorado e a irmã. A C contou que tinha encontrado a B, não presenciou a conversa, ficou no quarto, estava em choque, sem reação, o A estava a chorar a C também. Depois a mãe bateu na filha, deu-lhe uma chapada e meteu-a fora de casa, porque lhe disse que tinha feito porque quis e ela foi com a irmã. Esteve 2 ou 3 semanas fora de casa. Não acha possível ter acontecido aquilo que vem na acusação, davam-se todos bem. A ofendida não estava triste, estava sempre bem disposta, alegre, brincalhona.
- O depoimento da testemunha ... ..., filha de C e irmã da ofendida B, que referiu conhecer o arguido, não estando de boas relações com ele. Em determinada ocasião recebeu um telefonema da sua mãe, passava das 11 da noite e percebeu ela dizer que tinha pegado o arguido e a ... na sala a fazer sexo. Quando chegou quem lá estava eram eles e o seu irmão que estava no quarto. A sua irmã estava na sala sentada, com os joelhos para cima e os braços por fora. A sua mãe estava no quarto com o arguido, a chorar, nervosa, até sair de casa. A filha do arguido chegou e perguntou o que tinha acontecido, foi perguntar a B mas o que ela perguntou não ouviu. Ela foi atrás da sua mãe, quando saiu a B já tinha ido para o quarto sozinha e não foi ninguém com ela. Depois a filha do arguido foi atrás dela para o quarto. Voltou sozinha porque o arguido ligou-lhe a dizer que queria falar consigo e que não tinha obrigado a ... a nada. Perguntou ao arguido porque fez aquilo e ele disse “eu não sei eu não sei” e a sua irmã pedia desculpa a dizer “desculpa”. Foi ela que disse à sua mãe para deixar levar a sua irmã para as coisas ficarem mais calmas e foi atrás dela. No dia não viu a sua mãe a agredir a B. No dia do acontecido, a mãe só dizia porque é que ela fez isso, ela dizia para ter calma e para ver o que tinha acontecido. Falou com a sua irmã, disse que queria ajudar, para ela lhe contar e ela não conseguia e ficava escondida. A sua irmã nunca disse que queria, ela disse-lhe que nunca quis nada, que não tinha sido só daquela vez. Mais tarde disse-lhe que tinha começado há dois anos atrás, que o arguido tinha pedido ao irmão para ir comprar gelado, tinha 15 anos, que não queria, que ela a forçava. Quando a B lhe contou isso, no dia seguinte ela foi leva-la a casa da sua mãe para ela lhe contar. A sua mãe confiava muito no arguido, parecia uma cega, não estava a acreditar e tentou bater na sua irmã. Depois saíram e foram apresentar queixa na esquadra do Barreiro e uns dias depois na Polícia Judiciária. A relação com o arguido era de pai e filha, ele tratava todos por igual. Conhece o arguido desde que veio para Portugal, com convívio inicialmente quase todos os dias. Era um bom pai, bom marido. Ele ia fazer campos de ténis para fora, designadamente para o Algarve, ficava alguns dias fora, as vezes três dias seguidos e depois voltava, mas num mês não estava duas semanas fora. Lembra-se que ele teve um acidente de trabalho, ficou com dores no braço e teve ferros no braço, ainda não viviam na casa nova, moravam na casa antiga, ele fez a recuperação em casa dele, que foi lenta e quando ele foi para a casa nova ainda se queixava, o braço mexia pouco. B é sempre alegre, brincalhona, com toda a gente, era assim com o arguido como era com todos, era carinhosa com ele como com toda a gente. A sua irmã dizia que não queria, mas à pergunta se gostava ela dizia “eu não sei”. A sua irmã não tinha namorado e não dá chance a nenhum rapaz. Nos primeiros dias ela ficava muito quieta, passava o dia todo a ver animes e demorou algum tempo até que ela voltasse a ficar bem disposta.
Apreciando.
Tendo presente o manancial probatório produzido e examinado em audiência de discussão e julgamento, entende-se que não poderão subsistir quaisquer dúvidas quanto à positividade dos factos dados como assentes.
Os factos constantes do ponto 1) quanto à data de nascimento e filiação da ofendida B foram atestados pelo teor do seu título de residência (fls. 277 verso), assento de nascimento (fls. 281) e passaporte (fls. 282).
O início do relacionamento amoroso do arguido com a mãe da ofendida B – factos do ponto 2) - situou-se no ano de 2011, atenta a conjugação das declarações de ambos, referindo C, em concordância com o arguido que, quando chegou a Portugal, em novembro de 2011, ela e o arguido já saíam.
Por sua vez, quanto aos factos descritos nos pontos 3) a 6) e 13) foram geHcamente reconhecidos pelo arguido (que, quanto à autoridade exercida quanto aos filhos de C referiu inclusivamente que ia à escola de B e a tratava de pai para filha) e pelos demais familiares com relações próximas, inclusivamente C (que refere, por exemplo, que o arguido exigia que os seus filhos o respeitassem como pai), ... Almeida, filha do arguido, que mencionou que a relação do arguido com B era como de pai para filho, amigo ou confidente e que este repreendia B, quando necessário e igualmente ..., filha de C e irmã da ofendida B que mencionou que a relação com o arguido era de pai e filha e que ele tratava todos por igual. Quanto ao início da coabitação, quer o arguido, quer C a reportam ao início de 2018. A vinda da ofendida B é temporalmente situada no ano de 2016 pela sua mãe C, declarações que se reputaram como verosímeis, atendendo a que a ofendida situa a sua vinda, sensivelmente nesse período e o próprio arguido não os pôs em causa, referindo que inicialmente a mãe da ofendida e as duas filhas mais velhas viviam numa casa de duas assoalhadas, para onde foram morar a ofendida e o irmão quando vieram de Cabo Verde.
Relativamente à factualidade a que aludem os pontos 7) a 12) e 14) a 28) o Tribunal ponderou, primeiramente, as declarações prestadas pela ofendida B em audiência de discussão e julgamento que se consideraram verosímeis, espontâneas, escorreitas, sinceras e por esses motivos persuasivas.
Com efeito, a descrição produzida pela ofendida B revestiu-se de fortes indicadores de veracidade, pelo grau de detalhe dos elementos narrados (designadamente das circunstâncias em que ocorreu o primeiro acto sexual e da situação em que, por descuido, o arguido ejaculou para dentro de si e subsequentemente comprou um comprimido para ela tomar), não revelando ser permeável à sugestão, utilizando linguagem adequada à sua idade, demonstrando afectos apropriados à situação, nomeadamente vergonha quando aborda as questões relativas à situação abusiva, manifestação de emoções e sensações corporais, características da situação abusiva e referência a expressões e ameaças proferidas pelo arguido com vista à ocultação das situações abusivas. Decorre igualmente, com clareza, do relato da ofendida, que todas as situações ocorreram contra a sua vontade, sendo que inicialmente manifestava claramente a sua oposição, dizendo-lhe para parar, empurrando-o, sendo dominada pela força física do arguido, mas que, com o decorrer do tempo, tendo percepcionado que as suas manifestações de vontade não eram atendidas pelo arguido, tentava dificultar a sua acção ou colocando o cinto ou distanciando-se dele ou acedendo a fazer-lhe sexo oral, sendo certo que, quando o interpelou para que deixasse de manter esse comportamento, o arguido a ameaçou que se ela contasse ele mostraria um vídeo que teria realizado dos actos sexuais entre eles praticados, o que a levou a manter-se em silencio quanto à situação. Deste modo, decorreu claramente das declarações da ofendida B e é convicção deste Tribunal de que não subsiste qualquer dúvida de que o arguido a constrangeu a manter os actos sexuais consigo ou através da força física, colocando-a na impossibilidade de resistir, sendo indiferente às suas manifestações de oposição ou através da ameaça de revelação à sua progenitora dos actos sexuais mantidos entre ambos em momento anterior.
A credibilidade das declarações da ofendida B é reforçada pelo teor do relatório de avaliação psicológica da menor, elaborado pelo Gabinete de Psicologia Forense do Laboratório de Ciências Forenses e Psicológicas Egas Moniz, em 28/10/2020 (cfr. fls. 106 a 112), no âmbito se refere, quanto à credibilidade do conteúdo das declarações, que:
- “No que diz respeito ao estado emocional experienciado durante as alegadas situações de abuso, assim como do contexto e dinâmicas abusivas, a avaliada demonstrou-se capaz de o verbalizar de forma objectiva, clara e emocionalmente compatível com o descrito na literatura de referência; - “Paralelamente B demonstrou-se capaz de dar detalhes específicos e/ou inusuais acerca das estratégias utilizadas para tentar evitar ou minimizar os abusos”;
- “Fica ainda clara a perspectiva de incapacidade para resistir às situações, procurando apenas encontrar uma solução emocionalmente viável para lidar com os episódios por si descritos”;
- “Estabelecendo por base de análise os relatos da avaliada, consideram-se as suas declarações como sendo provavelmente credíveis”.
Estabelece, assim, a referida avaliação, em concordância com a ponderação pelo tribunal das declarações prestadas pela ofendida B em audiência de discussão e julgamento, além do mais, que a mesma manifestou a sua incapacidade para reagir às situações de abuso, acabando por adoptar uma posição passiva ou de alheamento, de modo a ultrapassar rapidamente esses momentos (“para despachar mais rápido”) e, com isso salvaguardar a sua integridade (física e psíquica).
Conclui-se ainda naquele relatório que “o relato de B se apresenta como provavelmente credível, não existindo também, aparentemente, limitações que comprometam a sua capacidade de testemunho”, ao nível da personalidade “demonstra insegurança e baixa auto-estima, agindo em conformidade com as regras e opinião de terceiros”, apresenta “sintomatologia activa e significativa ao nível da sensibilidade interpessoal, ansiedade fóbica e psicoticismo”, “apresenta algumas vulnerabilidades na ligação emocional que, à falta de melhor explicação poderão encontrar nexo de causalidade com os eventos alegadamente ocorridos, isto é, as situações de violência sexual”. Por estes motivos, “sugere-se a sua integração, com carácter de urgência, em acompanhamento psicológico estruturado, por forma a explorar a origem da intensidade dos sintomas apresentados, que pode estar fortemente associada à alegada situação de abuso que, a comprovar-se, se demonstrou prolongada no tempo e com impacto bastante significativo nas diversas esferas de vida” da ofendida.
Resulta, pois, da avaliação psicológica da ofendida B que a mesma fez o relato das situações de forma contextualizada, sendo os seus relatos credíveis e reveladores de violência sexual, os quais tiveram impacto significativo ao nível do funcionamento da ofendida, designadamente no âmbito da sua sensibilidade interpessoal, revelando ansiedade fóbica e psicoticismo, bem como vulnerabilidades na ligação emocional.
Deste modo, deverá considerar-se, perante as considerações e conclusões da avaliação psicológica da ofendida, que as suas declarações são merecedoras de crédito.
Acresce que C, mãe da ofendida B, num registo caracterizado por um sofrimento ainda hoje perceptível, relatou de forma objectiva, circunstanciada e credível os factos a que assistiu (reportados ao dia 06/03/2020), referindo, além do mais, que a sua filha estava com “fones” no ouvido, não ouviu e só respondeu quando ela gritou pelo nome dela. Tal descrição é congruente com a narração da ofendida, quando refere que se alheava do comportamento do arguido (vendo “animes”, para aquilo passar mais rápido), sendo também concordante com o relato que fez à sua progenitora e expressões que utilizou para descrever o comportamento do arguido ao longo dos anos, dizendo-lhe nomeadamente que, quando veio para a casa nova foi “um inferno”, que quando ela ia trabalhar aos sábados o comportamento do arguido era ainda pior e que estava “à espera de fazer 18 anos para desaparecer”.
Por seu turno, resultou do depoimento da irmã da ofendida ..., que se reputou como espontâneo e sincero, não se vislumbrando qualquer motivo para a mesma faltar à verdade nas declarações que prestou, que, pese embora nunca se tivesse apercebido da existência destes contactos entre o arguido e a sua irmã, o comportamento da mesma, depois de surpreendida pela mãe, foi primeiramente de se desculpar mas acabando mais tarde por revelar a origem dos abusos, muito anterior àquela data e descrevendo os factos com detalhe, afirmando que nunca os pretendeu e que o arguido a forçava.
Do relato da testemunha ..., filha do arguido, sobressai a tentativa de imputar à ofendida os comportamentos do arguido e de a descredibilizar, sob o pretexto, por um lado, da mesma demonstrar grande proximidade com o arguido e, por outro, fazendo menção a circunstâncias que teriam impedido o arguido de concretizar os actos de natureza sexual. Simplesmente, quanto à circunstância do arguido ter sofrido um acidente de trabalho que o incapacitou para o trabalho, seguido de um período em que esteve em sua casa, certo é que, quando se iniciou a coabitação com C, o mesmo já tinha autonomia, inexistindo qualquer elemento que permita afastar a sua capacidade em manter relações sexuais. Aliás, a este propósito, a ofendida B não deixou de referir, de forma espontânea e que se reputou como credível que o período em que o arguido esteve de baixa em casa foi o pior, porque lhe permitir maiores oportunidades de a abordar e concretizar os seus intentos. A este respeito também C referiu que, durante o período de convalescença na casa de ambos, o arguido não mostrou quaisquer limitações de mobilidade, conduzia e tal não o impedia de ter relações sexuais consigo.
Relativamente ao facto da ofendida B ter sempre agido naturalmente, não dando mostras de sofrer qualquer abuso por parte do arguido, a própria justificou esse comportamento, explicando que ocultou quaisquer emoções para evitar que as pessoas se apercebessem do que se passava, o que vai de encontro às asserções constantes da sua avaliação psicológica, na qual se refere que a mesma “aparenta ser uma pessoa insegura, com baixa auto-estima, com tendência para neutralizar quaisquer sentimentos angustiantes e bastante receio em demonstrar as suas emoções negativas.” (cfr. fls. 113). Deste modo e atentas as características da sua personalidade não poderá entender-se o comportamento socialmente adoptado pela ofendida, até de proximidade com o arguido, como revelador de que pretendia ou anuía em manter um relacionamento de natureza sexual com o mesmo.
Decorreu também das declarações de ... e P, companheiro da mesma que, na data em que o arguido foi surpreendido dos factos, a ofendida afirmou que o pai não a tinha obrigado e que a sua mãe C a expulsou de casa. Simplesmente, para além de contrariadas pelas declarações da ofendida B, de C e de ... , não é verosímil que a ofendida tenha feito tal afirmação, de forma voluntária, nessas circunstâncias mas mesmo que o tivesse feito, por algum motivo, tal não levaria a conclusão inversa, na medida em que todo o seu comportamento, quer ao nível da postura corporal, quer a sua acção posterior aos acontecimentos são reveladoras precisamente do contrário, isto é, que a ofendida B nunca quis manter aqueles actos de natureza sexual com o seu padrasto. Na realidade, não se vislumbra que assuma verosimilhança que a ofendida, surpreendida na execução pelo arguido de um acto sexual, para se defender perante a sua progenitora, tenha posteriormente efabulado, de forma tão explicita, contextualizada e detalhada, um conjunto elevado de abusos que perduravam desde que tinha 15 anos, nem quaisquer ganhos que pudesse obtiverem resultado de tal revelação, sobretudo tendo presente os receios que manifestou em que a sua mãe tivesse conhecimento desses factos. Assim, neste particular, única explicação plausível é que ofendida B tenha aproveitado aquela situação para, finalmente, expor toda a situação de violência que vivenciava há vários anos.
Relativamente à delimitação espácio temporal dos abusos, cumpre referir que a ofendida não foi capaz de esclarecer cabalmente qual o número concreto de atos de cópula vaginal mantidos com o arguido, no entanto, situou-os em dois locais distintos: quando residia com a sua mãe na Rua D e posteriormente quando passou a coabitar com o arguido na residência da mesma Rua E.
Quanto ao primeiro período, que a ofendida afirma ter perdurado desde o primeiro acto sexual de cópula, que teve lugar no verão, quando já tinha 15 anos (que completou em 07/08/2017) até começar a relação marital com a mãe da ofendida e de coabitação com o arguido, em novembro de 2018, refere que o arguido tentava quase todas as semanas ter relações consigo, até mudar de casa tentou várias vezes, mas às vezes não conseguia, não sabendo indicar o número de vezes em que conseguiu, julgando que terão sido mais de dez vezes. Assim, ainda que este período temporal se inicie quando a ofendida tinha quinze anos (que completou em 07/08/2017) e seja provável, face às declarações da mesma, que o mesmo tenha conseguido manter relações de cópula vaginal contra a sua vontade em número de vezes superior, certo é que o Tribunal, face a tais declarações e ponderando-as probatoriamente de modo mais favorável ao arguido, apenas poderá considerar demonstradas dez relações de cópula nesse período.
No que concerne ao período subsequente, em que se iniciou a relação marital com a mãe da ofendida e consequentemente de coabitação entre ambos, o qual se situa a partir de novembro de 2018 até 6/3/2020 (data em que o arguido é surpreendido pela mãe da ofendida) o Tribunal, tendo em consideração as declarações da ofendida, que referiu que o arguido a obrigava a ter relações, pelo menos, uma vez por semana (ocorrendo inclusivamente quando o arguido esteve em casa, de baixa médica) e descontado o período em que estiveram ausentes em Cabo Verde (quatro semanas, em agosto de 2019, conjugando as declarações do arguido, com as de C e de B) bem como o período que o arguido se ausentou da residência para trabalhar noutras localidades (não superior a dez semanas num ano, de acordo com as declarações de C, sendo certo que o arguido apenas teve alta médica e regressou ao trabalho em 23/3/2019, cfr. fls. 210), conclui-se que os actos que se traduziram em relações de cópula vaginal com a ofendida tiveram lugar em, pelo menos, cinquenta e seis ocasiões. A acrescer a esses, há ainda a considerar os actos de coito oral que tiveram lugar em, pelo menos, mais duas ocasiões. Note-se que, este corresponde ao período subsequente ao acidente de trabalho sofrido pelo arguido em 14/8/2018 (tendo como lesões resultantes: traumatismo indirecto do ombro direito com ruptura do supraespinhoso e subescapular, tratados cirurgicamente, cfr. fls. 204), seguido de cirurgia em 10/09/2018 (reparação artroscópica do supra-espinhoso e desbridamento do subescapulra+tenodese suprapeitoral da LBS - cfr. fls. 209) ao qual se seguiu um período de convalescença em sua casa, até ao final do mês de outubro, período que não foi levado em conta na contabilização que antecede.
Relativamente a esse período, para além de não existirem dúvidas de que a ofendida foi sujeita aos actos de cópula vaginal praticados pelo arguido contra a sua vontade, também resulta do seu relato que, num primeiro momento, continuou a resistir fisicamente a esses actos empurrando o arguido, sendo que o mesmo prosseguiu os seus intentos indiferente à sua recusa e que posteriormente, deixou de reagir porque compreendeu que o arguido se mantinha indiferente, dominando-a fisicamente e porque, quando lhe pediu para parar o mesmo a ameaçou de contar à sua mãe o que havia sucedido entre ambos, dizendo-lhe inclusivamente que tinha um vídeo e que iria imputar-lhe a ela a responsabilidade pelo sucedido.
Deste modo, adquiriu-se a convicção que a ofendida suportou, durante esse período, os actos de cópula com o arguido ou porque este a subjugou fisicamente ou porque a constrangeu a praticar esses actos sob a ameaça de que revelaria à sua mãe um vídeo, imputando-lhe a responsabilidade pelo sucedido, o que a ofendida receou, cedendo, deste modo, aos desejos do arguido.
A propósito da versão apresentada pelo arguido, no sentido de que a relação entre ambos teria sido consensual e apenas naquela única ocasião em que foi surpreendido (6/3/2020), considerou-se a mesma inteiramente insubsistente para contrariar as declarações prestadas pela ofendida B e demais prova produzida.
Na verdade, tudo indica, atento o relato de C, pelo contexto apurado (na residência em que se encontravam a mulher do arguido e o filho desta, ao lado do quarto em que se encontrava a mulher, numa divisão comum da casa, estando a ofendida de costas, com auriculares), pela displicência, desatenção e falta de cuidado que o arguido revelou, bem como a própria ofendida (que não se apercebeu sequer, de imediato, da presença da mãe) que os actos ocorridos em 6/3/2020 não tiveram lugar numa única ocasião. Na verdade, a própria postura em que a ofendida foi encontrada por C (de costas para o arguido, alheada, com auriculares nos ouvidos) é claramente reveladora de que a mesma obedecia à vontade do arguido e não era movida pelos seus próprios desejos.
Por seu turno, não nos assistem dúvidas de que o arguido não poderia desconhecer a falta de voluntariedade da ofendida em manter consigo contactos sexuais, sobretudo tendo em conta que o primeiro acto sexual, de cópula vaginal teve lugar, de acordo com o relato da ofendida, quando a mesma tinha apenas 15 anos de idade e não tinha ainda mantido relações sexuais com outra pessoa, tendo-se prolongado no tempo, de forma velada e secreta, enquanto ele mantinha o relacionamento amoroso com a mãe da ofendida. Na verdade, não assume qualquer verosimilhança, à luz das regras da experiência comum, a suposição de que o arguido avaliasse como consensual a manutenção de uma relação que envolvia a mera satisfação sexual, quando, por um lado, a relação se iniciou quando a ofendida era menor de idade - não tendo por conseguinte, capacidade de autodeterminação nesse âmbito - e por outro, ele se encontrava numa posição de autoridade e ascendência em relação à ofendida, sua enteada, tendo cerca de 47 anos de idade e ela 15 quando o relacionamento se iniciou (uma diferença de idades de mais de 30 anos). Por outro lado, é igualmente de afastar uma aproximação por motivo de enamoramento entre ambos, que em momento algum foi invocada pelo arguido e muito menos pela ofendida que, posteriormente à revelação, deixou de contactar o arguido, claramente aliviada pelo final daquela situação.
Acresce que é manifesto que a ofendida nunca pretendeu que o arguido iniciasse e mantivesse aquele comportamento, porque manifestou oposição expressa ao mesmo, reagindo fisicamente e porque o interpelou para que ele o cessasse, tendo o arguido, nesse momento, tido necessidade de manter a sua subjugação mediante a ameaça de revelação dos actos sexuais anteriormente mantidos entre ambos à sua progenitora, o que ele bem sabia que a ofendida receava.
Pelo exposto, a convicção quanto à atitude interior do arguido no cometimento destes factos - dos pontos 29 a 32 - foi inferida a partir dos referidos elementos probatórios, que permitiram a demonstração dos demais factos e a partir da ponderação das circunstâncias do caso, com necessário recurso aos dados da experiência comum e à lógica, não se tendo suscitado dúvidas acerca da sua voluntariedade em cometer os factos que lhe são imputados. Com efeito, mostra-se evidente que o arguido não podia desconhecer a censurabilidade destes comportamentos, consciência que corresponde a um conhecimento que qualquer cidadão possui e que o arguido não podia deixar de ter, considerando a natureza dos factos que praticou, a sua forte censura ética e social, não podendo desconhecer, atenta até a relação de proximidade familiar e afetiva, a idade de ofendida B.
Relativamente à factualidade descrita em sede de contestação – factos dos pontos 43) a 42) - o Tribunal atendeu aos elementos documentais juntos pelo arguido, designadamente quando à data de aquisição da habitação, factos do ponto 33 (cfr. fls. 182, cópia de contrato de compra e venda com mútuo), da actividade profissional do arguido, factos do ponto 37 (cfr. fls. 195, declaração da entidade empregadora), da viagem do arguido a Cabo Verde (cfr. fls. 197, passagem aérea); do seu acidente de trabalho e alta médica, factos do ponto 39 e 41 (cfr. fls. 200 a 210, documentação para seguradora, ficha de aptidão e relatório para os serviços de medicina do trabalho). Quanto aos factos descritos nos pontos 34), 35), 36), 40) e 42), foram relatados pelo arguido e atestados pelas demais testemunhas, designadamente C.
O universo fáctico respeitante às condições pessoais do arguido - pontos 43 a 71) - estribou-se no teor do relatório social do arguido, elaborado pela D.G.R.S.P. a solicitação do Tribunal, o qual foi submetido a contraditório em audiência de discussão e julgamento, expurgados dos factos respeitantes às declarações prestadas pelo arguido aos serviços de reinserção social e daqueles que respeitam a processos pendentes, sem decisão transitada em julgado.
A ausência de antecedentes criminais do arguido foi atestada pelo teor do seu Certificado de Registo Criminal.
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Quanto à materialidade negativamente ajuizada, cumpre referir que relativamente aos factos descritos não se produziu prova que permitisse dar como provados outros factos para além dos descritos nessa qualidade.
Em particular, relativamente aos factos descritos nos pontos c) a h) não foram confirmados ou descritos pela ofendida nesses termos.
Os factos descritos nos pontos a) e b), foram afastados pelo arguido e por C, que os situaram em período temporal distinto.
Os factos descritos nos pontos i) a k), q), r), y) e dd) a hh) não foram atestados por qualquer meio de prova.
O facto a que alude a alínea l) decorre da circunstância da ofendida B apenas ter um irmão mais novo, Pedro, também apelidado de H.
Os factos constantes das alíneas v) a x) são contrários aos dados como provados, que se ancoraram nos meios de prova acima descritos, em particular no depoimento da ofendida B. O facto descrito na alínea p) é negado pelo arguido nas suas declarações, quanto ao sucedido no dia 6/3/2020.


Relativamente os demais factos, entende-se não decorrer dos meios de prova produzidos a demonstração dos mesmos, sendo de reiterar, quanto ao sucedido no dia 06/03/2020, alíneas z) a cc) a apreciação que antecede, quanto à valoração das declarações do arguido, da sua filha ...  e TC, não se afigurando credíveis tais factos que foram expressamente contrariados pela ofendida B, por ... e por ... , que negaram ter sido a ofendida expulsa de casa e agredida fisicamente pela sua progenitora.


2.1) Enquadramento jurídico penal da causa
Dos crimes de violação agravados
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material, de setenta crimes de violação agravado, previstos e punidos pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) e pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea b), e n.º 6, ambos do Código Penal (factos descritos até ao artigo 17.º do despacho acusatório) e de vinte e sete crimes de violação agravado, previstos e punidos pelo artigo 164.º, nºs 1 e 3, e pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal (factos descritos do artigo 18º ao artigo 24.º do despacho acusatório).
Dispunha o artigo 164.º, n.º 1 do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5/8 que:
“1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.”
A mesma exacta redacção com igual moldura penal, mantém-se actualmente no n.º 2 do mesmo normativo, na redacção introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6/9, que introduziu ainda, no mesmo normativo legal o n.º 3 que estabelece:
“Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos actos referidos nas respectivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima”.
O Capítulo V do Código Penal – em que o presente tipo penal se insere – diz respeito aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, dedicando uma secção a cada um dos bens jurídicos.
Ambos se prendem com a esfera sexual da pessoa e a razão de ser da distinção recai no facto de no primeiro se proteger a liberdade e/ou autodeterminação sexual de todas as pessoas, enquanto no segundo se dirige a protecção a casos que ou não seriam crime se praticados entre adultos ou o seriam dentro de limites menos amplos, ou assumiriam, em todo o caso, menor gravidade e estende-a em razão da idade da vítima – uma criança ou um menor de certa idade.
Neste último caso, o bem jurídico protegido é também a liberdade e autodeterminação sexual, mas ligado a um outro bem jurídico constituído pelo livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual.
Assim, na II Secção do Capítulo V, consagram-se condutas de natureza sexual ou factores agravantes que, em consideração da pouca idade da vítima podem prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade.
É o caso previsto no artigo 177.º do Código Penal, onde se estabelecia, na redacção vigente a partir da entrada em vigor da Lei n.º 103/2015, de 24/08:
“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
2 - As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º
3 - As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível.
4 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 175.º, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 176.º e no artigo 176.º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas.
5 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos.
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
8 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.”
Difere tal redacção da introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 06/09, por ter sido introduzida por este diploma uma alínea c) no n.º 1 que estabelece como agravante tratar-se a vítima de “pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez” e ainda que alterações nos números 6 e 7, sendo qualificados tais comportamentos quando sejam praticados na presença de menor de 16 anos e 14 anos, respectivamente.
Por sua vez, a Lei n.º 40/2020, de 18/08, também introduziu alterações no número 7 do artigo 177.º, excluindo o artigo 174.º do seu âmbito de aplicação.
O conteúdo da acção prevista no tipo penal de violação é a cópula (entendendo-se por esta a penetração da vagina pelo pénis), o coito anal (penetração do ânus pelo pénis), coito oral (penetração da boca pelo pénis), ou a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.
Impõe este preceito que seja o agente a ter cópula, coito anal ou oral com a vítima, quer esta assuma a posição activa ou passiva, não se considerando a hipótese de a levar a tê-los com terceiros.
O tipo pressupõe ainda o constrangimento da vítima por um dos meios aí previstos (a violência, a ameaça grave, ou a colocação num estado de inconsciência ou impossibilidade de resistir), impondo-se a existência de um nexo causal entre a prática dos actos sexuais referidos e o meio utilizado para alcançar esse fim.
No tocante ao conceito de violência, defende Jorge de Figueiredo Dias1 que: “Como tal deverá ser considerado (…) apenas o uso da força física (…) destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. (…) Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso (..,.) a vencer a resistência efectiva ou esperada da vítima”.
1 In “Comentário Conimbricense do Código Penal” Tomo I, pág. 453
Já quanto ao conceito de ameaça, refere o mesmo autor que “deve por tal entender-se a manifestação de um propósito de causar um mal ou um perigo se a pessoa ameaçada não consentir no acto sexual”, entrando neste conceito a violência psíquica, impondo-se que essa ameaça seja grave, no seu conteúdo, medida e intensidade, podendo o mal da ameaça ser dirigido contra o agente ou contra terceiro, desde que represente para o agente essa ameaça grave.
Para aferir da gravidade da ameaça há-de sempre atender-se à perspectiva da vítima, designadamente à sua maturidade pessoal, ao grau de conhecimento que esta tem quanto à possibilidade de o agente concretizar o mal ameaçado, etc.
Relativamente ao elemento subjectivo do tipo, exige-se no normativo em análise, a verificação de dolo, ainda que eventual.
Uma palavra apenas para a circunstância agravante prevista no artigo 177.º, n.º 1 alínea b), na medida em com a Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto se transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, em cujo art.º 9.º se prevê expressamente, sob a epígrafe “circunstâncias agravantes”, que na medida em que tal circunstância não seja já elemento constitutivo do tipo, os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para garantir que possam ser consideradas circunstâncias agravantes dos crimes relativos ao abuso sexual se: “b) O crime foi cometido por um membro da família da criança, por uma pessoa que coabita com a criança ou por uma pessoa que abusou de posição manifesta de confiança ou de autoridade”.
*
No caso dos autos, resultou provado que, no período compreendido entre o dia 07/08/2017 e o dia 06/08/2018, quando a ofendida B tinha 15 anos e ainda tinha vivia na residência sita na Rua F, em, pelo menos, 10 (dez) ocasiões, o arguido aguardou ficar a sós com B e tirou-lhe roupa que ela usava, não obstante aquela sempre o empurrar para se libertar dele e lhe pedir para parar e, com o pénis já erecto, introduziu-o, em todas aquelas ocasiões, na vagina de B, aí o friccionando, através de movimentos de vai e vem, vindo a ejacular no exterior.
Por seu turno, resultou ainda provado que, a partir de novembro de 2018, até 06/03/2020, quando a ofendida B, a sua mãe e o seu irmão se mudaram para a residência sita na Rua E, no Barreiro e o arguido começou a viver com a mãe da menor também naquela habitação, em condições análogas às dos cônjuges, que este abordou a ofendida com a regularidade de, pelo menos, uma vez por semana para o efeito, perfazendo, pelo menos, 56 (cinquenta e seis) ocasiões, nas quais, conseguiu sempre tirar-lhe a roupa, indiferente à repulsa que a B demonstrava ao pedir-lhe para parar e conseguiu sempre, em todas e cada uma daquelas ocasiões, introduzir o seu pénis, erecto, na vagina de B, aí o friccionando até ejacular, sabendo que o fazia contra a vontade de B, mesmo quando esta já não se debatia fisicamente, sendo certo que, inicialmente B resistia aos avanços do arguido, empurrando-o para se libertar dele e posteriormente, quando B pediu ao arguido para parar com aqueles comportamentos, o mesmo negou, afirmando que tinha um vídeo com gravações de actos sexuais entre eles que exibiria à sua mãe, caso ela lhe contasse o que se passava entre ambos.
Também resultou provado que, nesse contexto, na residência sita na Rua E, no Barreiro, em outras duas ocasiões, o arguido baixou os boxers e, com o pénis já erecto, ordenou a B, que ali colocasse a sua boca, o que B fez por receio do arguido e para evitar que o mesmo colocasse o pénis na sua vagina.
Verifica-se, pois, que resultou provado que o arguido praticou sobre a ofendida actos de cópula vaginal e oral e que o fez num contexto de violência física (forçando-a a suportar esses actos, independentemente da mesma o empurrar e lhe pedir para parar) e de violência psicológica (ameaçando-a de que revelaria um vídeo dos actos sexuais à sua mãe).
Resultou ainda provado que inicialmente a ofendida contava, à data, 15 anos de idade, ainda não coabitando ambos na mesma residência e que, durante o período de coabitação, o arguido continuou a factos sobre a menor (então já com 17 anos de idade).
Assim, preenchidos que se mostram os elementos objectivos do crime de violação, constata-se ainda que foi possível individualizar dez situações, quando a ofendida ainda contava 15 anos de idade, o que importa para o preenchimento da circunstância qualificativa prevista no artigo 177.º, n.º 6 do Código Penal.
Por outro lado, depois de começarem a coabitar, provou-se que o arguido praticou 56 (cinquenta e seis) actos de violação, mediante cópula vaginal e 2 (dois) actos de violação, mediante coito oral, o que releva para o preenchimento da circunstância qualificativa prevista no artigo 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.
Finalmente, resultou ainda provado que o arguido conhecia perfeitamente a idade da ofendida B e sabia que as suas condutas eram susceptíveis de pôr em causa o são desenvolvimento e liberdade de determinação da mesma, quer como pessoa quer como mulher, actuando nos termos descritos com intenção de por meio do corpo da ofendida, aproveitando-se da sua superioridade física, da relação e ascendente familiar e da incapacidade da ofendida B para evitar que concretizasse os seus intentos, se satisfazer sexualmente e estando bem ciente do caracter ilícito da sua conduta.
Tal traduz o preenchimento do elemento subjectivo do tipo penal, na forma agravada, na modalidade de dolo directo.
Assim, não ocorrendo quaisquer causas de justificação, ao actuar nos termos descritos na factualidade dada como provada, a conduta do arguido integrou o cometimento do crime de violação na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2 alínea a), agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal.
No tocante ao número de vezes que o arguido preencheu a conduta típica, sufraga-se, a este propósito, a posição vertida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de a posição vertida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/05/20172 em cujo sumário se pode ler:
2 Proc 110/14.7JASTB.E1.S1; Rel. Helena Moniz, in www.dgsi.pt
“VII - Porém, ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada acto sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes. Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles actos no crime continuado, previsto no art.º 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art.º 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art.º 30.º, n.º 1, do CP. Entender que tendo sido o mesmo tipo legal de crime preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, ainda assim devemos entender como estando apenas perante um único crime, será decidir contra legem.
VIII - Além do mais, a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art.º 34.º) pretendendo-se documentar o trato, a traditio da coisa, sucessivamente; ora, num crime sexual não há traditio.
IX - E crime exaurido ou consumido dá a ideia de que logo no primeiro acto se consuma, tornando irrelevantes os actos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos actos.
X - O “crime de trato sucessivo” tal como tem sido caracterizado pela jurisprudência corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (Figueiredo Dias). No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art.º 29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na lei.
XI - A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada acto, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos art.ºs 171.º e 172.º, ambos do CP.
XII - Em parte alguma os tipos legais de crime de abuso sexual de criança e de abuso sexual de menor dependente permitem que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos — mais de 10 —, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos actos sexuais de relevo.
XIII - Casos há em que não é possível apurar o número exacto de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos actos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de actos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura.
XIV - Considerando a inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade, subjacente ao entendimento de redução da prática de vários actos integradores de per si de vários crimes contra a autodeterminação sexual em um só crime, concluímos não ter matéria de facto provada suficiente para a decisão. (…).”
Subscrevendo-se esta posição e afastada que fica a possibilidade de reconduzir os factos imputados ao arguido a um único crime (atento o afastamento da figura designada por “crime de trato sucessivo”) o que se constata da análise da factualidade dada como provada, é que foi possível individualizar 10 (dez) situações concretas de violação, subsumíveis ao disposto nos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal e 56 (cinquenta e seis) situações de violação, relativas à prática de cópula vaginal, bem como de 2 (duas) situações de violação, relativas à prática de coito oral, subsumíveis ao disposto nos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b) ambos do Código Penal, pelo que importa a condenação do arguido pela prática destes ilícitos.
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2.2) Determinação da medida das penas
O crime de violação, previsto pelo artigo 164.º, n.º 2, do Código Penal é punido com pena de 3 (três) a 10 (dez) anos de prisão.
O crime de violação agravado, previsto pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal – com pena agravada de um terço, nos seus limites mínimo e máximo - é punido com pena de prisão de 4 (quatro) anos a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
Por sua vez, o crime de violação agravado, previsto pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal – com pena agravada de um terço, nos seus limites mínimo e máximo - é igualmente punido com pena de prisão de 4 (quatro) anos a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
Dentro da moldura indicada, deverão as penas ser determinadas em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção.
O modelo mais adequado de determinação da pena é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e cujo limite mínimo corresponde às irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico e, por último à prevenção especial de integração a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exacto de pena que melhor sirva as exigências de socialização.
No que concerne às necessidades de prevenção geral deste tipo de ilícitos, o Supremo Tribunal de Justiça tece as seguintes considerações, no Acórdão de 05/11/20203:“Os crimes de abuso sexual de crianças e de pornografia de menores, do tipo dos crimes comprovadamente praticados pelo arguido recorrente, constituem um dos factores que provoca maior perturbação e comoção social, designadamente em face dos riscos (e danos) para bens e valores fundamentais que causam e da insegurança que geram e ampliam na comunidade”.
3 Cfr. proc. 114/18.2TELSB.S1 in www.dgsi.pt
Devem, com efeito, ser consideradas muito fortes as exigências da prevenção geral deste tipo de criminalidade, extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador.
Considerando agora os critérios parametrizadores enunciados no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, e reportando-nos aos factores concretos concernentes à execução dos factos evidenciam-se as seguintes circunstâncias com relevo para a correspondente ponderação:
- O grau de ilicitude dos factos praticados é intenso, atento o tipo de ilícitos em apreciação, sendo grave o modo de execução dos mesmos, com aproveitamento da relação amorosa com a mãe da ofendida e da proximidade propiciada por essa relação, sendo a sua conduta essencialmente homogénea ao longo do tempo, mas tendo sido intensificada no período de coabitação com a ofendida;
- O grau de culpa do arguido no cometimento dos factos é elevado, tendo agido com dolo directo, actuando com total desprezo pela idade da menor, a partir dos seus 15 anos de idade e pelas consequências nefastas que poderiam advir para a sua formação e desenvolvimento sexual, sendo certo que o arguido, ainda assim, justificou o seu comportamento com a insatisfação sexual com a companheira e a dificuldade de controlo de impulsos sexuais, demonstrando um profundo desprezo e indiferença pelo desenvolvimento psicológico e sexual da ofendida;
- A conduta do arguido, anterior aos factos, é de molde a considerar que o mesmo tem adoptado um comportamento de conformidade com a ordem jurídica, uma vez que não regista quaisquer antecedentes criminais;
- As condições pessoais do arguido sugerem que o mesmo se encontra socializado, tendo mantido um percurso normativo, pese embora a baixa escolaridade e ausência de formação específica.

Tudo visto e ponderado, entende-se equilibrado, satisfazendo as necessidades de prevenção geral e especial que o caso requer, aplicar ao arguido a pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos 10 (dez) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal e dos 58 (cinquenta e oito) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal que praticou.
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2.3) Da pena unitária
Atentos os crimes imputados e preenchidos pelo arguido, dir-se-á que estamos perante um concurso efectivo, verdadeiro ou puro, em que a ilicitude de um dos tipos legais não abrange a ilicitude contida no outro, pelo que as duas normas concorrem paralelamente na aplicação concreta.
Ora, esta aplicação concreta, tem lugar na nossa lei, através do sistema do cúmulo jurídico, consagrado no artigo 77.º do Código Penal.
De acordo com este preceito legal, dever-se-á proceder à fixação das penas parcelares respeitantes a cada um dos crimes em concurso. Posteriormente, somam-se as penas parcelares e obtém-se o limite superior da moldura abstracta aplicável, dentro dos limites absolutos agora expressamente previstos no n.º 2. O limite mínimo é constituído pela mais grave das penas parcelares fixadas.
Encontrada desta forma a moldura abstracta, a pena única é determinada, nos termos da última parte do n.º 1, isto é, considerando “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, assim se respeitando o essencial da pena unitária.
Considerando os parâmetros a que alude o artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, entende-se que se deverá salientar, com relevância para a determinação da pena única a aplicar ao arguido:
- Os factos praticados pelo arguido contra a autodeterminação sexual da ofendida B foram realizados por um período de cerca de dois anos, desde que a mesma completou 15 anos e cometidos de forma essencialmente homogénea, assumindo carácter muito invasivo;
- O arguido assumiu uma postura de distanciamento quanto à vítima, não tendo expressado qualquer empatia relativamente mesma, sendo que, quanto ao acto sexual praticado, justificou-o, além do mais, com a sua insatisfação sexual e dificuldade de controlo dos seus impulsos, o que é revelador de distorções cognitivas associadas à sexualidade e da sua desvalorização do impacto deste tipo de conduta;
- Por outro lado, o arguido, tendo actualmente 50 anos de idade, não regista antecedentes criminais e mostra-se social e profissionalmente inserido.

Assim, operando o cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77.º do Código Penal e considerados em conjunto os factos e a personalidade do arguido, acima enunciados, reputa-se ajustada a pena única de 13 (treze) anos de prisão.
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3) Da pena acessória de proibição do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual – artigo 69.º- B do Código Penal
Vem ainda o arguido acusado nos termos do artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal que estabelece:
“É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.”
Assinala Paulo Pinto de Albuquerque4 que o pressuposto formal de aplicação desta pena acessória é a condenação por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, independentemente da pena principal aplicada e que o pressuposto material é a “conexão do facto criminoso com a função exercida pelo agente e a concreta gravidade do facto”, defendendo o autor que a lei exige que “a concreta gravidade da conduta contra a liberdade ou a autodeterminação sexual revele a indignidade do agente” para exercer tal atividade.
4 Cfr. “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 3ª Edição, p. 354
Contudo, a referida pena acessória é de aplicação obrigatória quando a vítima seja menor.
No caso vertente, mostram-se inequivocamente preenchidos os pressupostos de aplicação da referida pena acessória, uma vez que o arguido deverá ser punido pelo crime previsto no artigo 164.º, n.º 2 do Código Penal, sendo a vítima menor de idade.
Considerando que o arguido é primário, sendo certo que o comportamento que resultou demonstrado é altamente censurável, demonstrando total indiferença pela liberdade de autodeterminação sexual da vítima, tendo-se repetido consecutivamente, por um período temporal considerável, entende-se necessária e adequada às finalidades de prevenção e à culpa do arguido a fixação da pena acessória em apreço pelo período de dez anos.
4) Da pena acessória de proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais – artigo 69.º- C do Código Penal
À conduta do arguido vem ainda imputada a pena acessória prevista no artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal que preceitua:
“É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.”
A este propósito Paulo Pinto de Albuquerque5 assinala que o pressuposto formal de aplicação desta pena acessória é também a condenação por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, independentemente da pena principal aplicada, sendo pressuposto material desta pena acessória a “conexão do facto criminoso com a função exercida pelo agente e a concreta gravidade do facto”, exigindo a lei apenas que “a concreta gravidade da sua conduta contra a liberdade ou a autodeterminação sexual revele a indignidade do agente para assumir a confiança de menores ou exercer as suas responsabilidades parentais”.
5 Cfr. “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 3ª Edição, p. 354
Sendo a vítima menor, a pena acessória em apreço é de aplicação obrigatória.
No caso vertente, mostram-se inequivocamente preenchidos os pressupostos de aplicação da referida pena acessória, uma vez que o arguido deverá ser punido pelo crime previsto no artigo 164.º, n.º 2 do Código Penal, sendo a vítima menor de idade.
Considerando que o arguido não regista antecedentes criminais, se encontra inserido socialmente, não tendo responsabilidades parentais, uma vez que os seus filhos são maiores de idade, mas não olvidando a necessidade de prevenir comportamentos como os que adoptou, enquanto coabitava com a vítima, então menor de idade, mostrando total indiferença quanto ao impacto da sua conduta, entende-se suficiente e adequada às finalidades de prevenção e à culpa do arguido a fixação da pena acessória em apreço pelo período de dez anos.
5) Do arbitramento oficioso de reparação à vítima
Nos termos dos artigos 16.º n.º 2 do Estatuto da Vítima e artigo 82.º-A n.º 1 do Código de Processo Penal impõe-se ainda aferir oficiosamente da verificação ou não ou dos pressupostos da responsabilidade civil para eventual condenação do arguido no ressarcimento dos danos que hajam sido provocados aos ofendidos nestes autos.
Nos termos do artigo 82.º-A do Código do Processo Penal, o Tribunal em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
O arguido foi notificado da possibilidade de ser realizado tal arbitramento e para, querendo, exercer o contraditório (cfr. despacho proferido em 09/07/2021, refª 407207372, fls. 171 verso).
O Estatuto da vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04/09, no n.º 2 do seu artigo 16.º estabeleceu que há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
Por seu turno, o artigo 67.º-A, n.º 1, alínea b) e 3 do Código de Processo Penal (introduzido pela Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro) define o que se deverá entender por “vítima especialmente vulnerável”, sendo aquela cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social, estabelecendo ainda que as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta – conceitos concretizados no artigo 1.º, alínea j) e l) do mesmo Código - são sempre integradas nesse conceito.
A reparação, prevista no aludido normativo legal, tem em vista a pretensão, por parte do legislador, de atalhar a uma situação de urgência, a qual poderá abranger, não só as vítimas em sentido estrito, mas todos os que reclamem particulares exigências de protecção em virtude do cometimento do crime.
Acresce que o arbitramento de indemnização, nos termos do artigo 82.º-A do Código do Processo Penal, poderá ser reconduzido aos fins das penas, ou “encarada como instrumento que garante com probabilidade de sucesso a ressocialização do delinquente, uma vez que este toma real consciência da repercussão que os factos praticados tiveram na vítima e, ao assumir a sanção, interioriza mais correcta e profundamente o valor da norma penal, a sua responsabilidade pela prática dos factos, assim restabelecendo, pelo menos em parte, a ordem jurídica violada6.
6 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/10/2011, Proc. 88/09.9PESNT.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
7 Cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, I, pág. 356 e Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 3.ª ed., pág. 367.
8 Cfr. Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, Almedina, 1991, p. 478
Por seu turno, nos termos do artigo 129.º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, ou seja, de acordo com as normas previstas nos artigos 483.º, 496.º, 562.º a 564.º e 566.º do Código Civil.
Preceitua o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que “aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer outra disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São, pois, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: a violação de um direito, a ilicitude, o vínculo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.7
Verificados que estejam tais requisitos nasce para o responsável a obrigação de indemnizar.
Com a indemnização, procura-se ressarcir todos os danos causados, patrimoniais e não patrimoniais, por forma a reconstituir a situação em que o lesado se encontraria se não tivesse acontecido a lesão.
Os danos de natureza não patrimonial definem-se por referência a “valores de ordem espiritual, ideal ou moral”8, constituindo “prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado” como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a honra, a reputação e o bom-nome.
Na fixação do montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais, deve atender-se ao disposto no artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil que, enquanto princípio geral para a responsabilidade civil, estabelece “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. Por sua vez, o n.º 3 daquele preceito legal preceitua que “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º” – isto é: o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste, a situação económica do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
*
No caso dos autos, tendo presente a natureza dos contactos de natureza sexual que o arguido protagonizou em, pelo menos, sessenta e oito ocasiões, sendo que, em consequência de tal, o arguido provocou uma situação de sofrimento psicológico à ofendida B, sendo conhecido o efeito e impacto que tais abusos, sofridos por parte de pessoas de confiança em fases precoces do desenvolvimento, poderão ter no futuro e na forma como a vítima se irá relacionar com os outros, designadamente ao nível sexual, não poderão deixar de se considerar muito graves as lesões provocadas na sua esfera e integridade pessoal e psíquica.
Por seu turno, atendendo ao grau de culpa evidenciado pelo arguido, muito intenso, considerando que aproveitou a proximidade propiciada, primeiramente, pela relação amorosa com a mãe da ofendida e posteriormente pela relação de coabitação em que se encontravam, sem olvidar as condições económicas do arguido (que aufere salário no montante de mil e cem euros), entende-se fixar, a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela ofendida a quantia de 15.000€ (quinze mil euros), a suportar pelo arguido. II. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas que compõem este Tribunal Colectivo em julgar parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, decidem:
a) Absolver o arguido A da prática de 2 (dois) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea b) e 3 e 177.º, n.º 1, alínea b) e n.º 6, ambos do Código Penal;
b) Absolver o arguido A da prática de 27 (vinte e sete) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1 e 3 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;
c) Condenar o arguido A pela prática, em autoria material e, em concurso real, de 10 (dez) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um;
d) Condenar o arguido A pela prática, em autoria material e, em concurso real, de 58 (cinquenta e oito) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um;
e) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido A na pena única de 13 (treze) anos de prisão;
f) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 10 (dez) anos, nos termos do artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal;
g) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores (em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança), pelo período de 10 (dez) anos, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal;
h) Condenar o arguido A a pagar à ofendida/assistente B o montante de 15.000€ (quinze mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09 “

III – OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões formuladas pelo Recorrente na motivação do recurso em apreciação, estando vedado a este Tribunal conhecer de questões aí não contempladas, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se impõe (artigos 410º, nº 2, 412º, nº1 e 417º do C.P.P.)
Deste modo, e considerando as conclusões do recurso, cumpre apreciar:
- a insuficiência da matéria de facto para a decisão e consequente violação do direito de defesa do arguido constitucionalmente tutelado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa;
- da aplicação do princípio in dúbio pro reo;
- erro na qualificação jurídica   dos factos como crime de violação p.p. pelo artigos 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal;
 - o excesso e desajustamento da medida da pena aplicada;
- se a quantia fixada a título de arbitramento de indemnização por danos não patrimoniais é excessiva.
IV – FUNDAMENTAÇÃO
A insuficiência da matéria de facto para a decisão e consequente violação do direito de defesa do arguido constitucionalmente tutelado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa;
Defende o Recorrente que a sentença recorrida enferma do vício previsto no artigo 410º, nº 2, a), do C.P.P., referente à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. 
Para tanto sustenta que os   comportamentos do arguido dados como provados no acórdão recorrido não se mostram contextualizados temporal e circunstancialmente por falta de indicação dos dias e horas concretos ou, sequer, de um espaço de tempo minimamente balizado em que terão eles ocorrido, bem como das circunstâncias e número de vezes em que se terão verificado, e que por conseguinte esses factos não permitem fundar a conclusão constante da sentença recorrida do preenchimento dos elementos subjectivo e objectivo dos  crimes pelos quais o Recorrente veio a ser condenado.
Conforme refere Fernando Gama Lobo “ é unânime a jurisprudência no sentido de que só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada , quando do acervo de factos vertidos na sentença se constata faltarem elementos que , podendo e devendo ser indagados e julgados ( provados ou não provados ) , são necessários para se formular um juízo seguro de condenação ( ou de absolvição ) e se determinar a natureza e a medida da sanção , ou noutra formulação , quando a matéria de facto considerada provada na sentença é considerada insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta , legal e justa , o que se verifica quando o tribunal recorrido deixou ou não conseguiu apurar matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objecto do processo , tal como este está configurado pela acusação e pela defesa , o que conduz à formação incorrecta de um juízo , porque a conclusão ultrapassa as premissas ou nelas não se ancora.”
Com efeito “o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. “(Acórdão da Relação de Lisboa de 18.7.2013, disponível em www.dgsi.pt )
Desde logo o legislador  exige  relativamente à acusação pelo Ministério Público ( ou à pronúncia pelo juiz ) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada , exigência que não pode deixar de se reflectir em sede de sentença.
No entanto, e conforme decorre do artigo 283º, nº 3, b), do C.P.P., “a indicação na acusação do lugar e do tempo em que ocorreram os factos e bem assim da motivação e do grau de participação do arguido no cometimento dos factos e de outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção está sujeita a um juízo de possibilidade (se possível diz o texto legal) “. (Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4ª ed., pág. 614).
Na verdade, e conforme decidido no Acórdão da Relação de Coimbra de  25.2.2015:
“I. Se é certo que a acusação deve ser, em princípio, precisa em relação à concretização temporal da prática do crime, tal não significa, porém, que essa indicação tenha necessariamente de se reportar a uma data específica.
II. Isso mesmo decorre da alínea b) do n.º 2 do art.º 283.º do CPP, quando a propósito da referida peça processual dispõe sobre a necessidade de fazer da mesma constar «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, (...) o tempo (...) da sua prática (...)».
III. A interpretação normativa, no sentido descrito, daquele preceito legal não traduz uma compressão inadmissível do direito de defesa do arguido e, em consequência, não padece de inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, desde que, os limites temporais da acção se mostrem suficientemente demarcados, adstritos a um concreto período de tempo. “(disponível em www.dgsi.pt )
Com efeito “  no âmbito das garantias da defesa o indiscutível e sensível princípio do contraditório, deve assegurar que o facto em discussão, não obstante se situar num período de tempo sem data precisa (…) deve manter a sua “singularidade” por forma a ser identificável pela defesa e assim ser plenamente contraditado, se for o caso. “(Acórdão da Relação do Porto de 16.3.2022, rel. Nuno Salpico, disponível em www.dgsi.pt )
Deste modo impõe-se que os factos sejam descritos de uma forma objectiva, que permita localizá-los no espaço e no tempo, o que não passa necessariamente pela indicação do dia, hora e lugar preciso, e não de modo tão vago e evanescente que impossibilite a sua inteligibilidade e a completa caracterização da conduta criminal do arguido à luz dos preceitos legais invocados.
Ora o que ressalta da factualidade a que o Recorrente aponta o vício do artigo 410º, nº 2, a), do C.P.P., é que esta cumpre esse desiderato.
Com efeito no que respeita à actuação do Recorrente o tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
“7) No período compreendido entre o dia 7/8/2017 e o dia 06/08/2018, quando B vivia na residência sita na Rua F, em, pelo menos, 10 (dez) ocasiões, o arguido aguardou ficar a sós com B e tirou-lhe roupa que ela usava, não obstante aquela sempre o empurrar para se libertar dele e lhe pedir para parar e, com o pénis já erecto, introduziu-o, em todas aquelas ocasiões, na vagina de B, aí o friccionando, através de movimentos de vai e vem, vindo a ejacular no exterior.
8) Assim sucedeu, designadamente e pela primeira vez, em data não concretamente apurada do Verão de 2017, mas situada em momento posterior ao dia 7 de agosto de 2017, quando a B se encontrava na sua residência com o seu irmão H e com o arguido, estando a sua mãe a trabalhar.
9) Em determinada altura, o arguido pediu a H que fosse comprar gelados, para ficar a sós com B, o que aquele fez.
10) De seguida, o arguido abeirou-se de B, que estava sentava num cadeirão, e começou a baixar os calções que aquela tinha vestido.
11) Nesse momento, não obstante a B empurrar o arguido, para se libertar dele e de lhe pedir para parar, este conseguiu, usando a sua força física, introduzir o pénis erecto na vagina de B, vindo a ejacular no exterior.
13) No mês de novembro de 2018 a B, a sua mãe e o seu irmão mudaram-se para a residência sita na Rua E, no Barreiro, altura em que o arguido começou a viver com C, naquela habitação, em condições análogas às dos cônjuges.
14) A partir desse momento até ao dia 06/03/2020 o arguido intensificou as condutas vindas de descrever, tendo abordado a B com a regularidade de pelo menos uma vez por semana para o efeito, perfazendo, pelo menos, 56 (cinquenta e seis) ocasiões, nas quais e em cada uma delas, o arguido abordou a B, sempre na habitação que partilhavam enquanto padrasto e enteada, conseguiu sempre tirar-lhe a roupa, indiferente à repulsa que a B demonstrava ao pedir-lhe para parar e conseguiu sempre, em todas e cada uma daquelas ocasiões, introduzir o seu pénis, erecto, na vagina de B, aí o friccionando até ejacular, sabendo que o fazia contra a vontade de B, mesmo quando esta já não se debatia fisicamente mas ainda assim anuía ao seu comportamento receando que o mesmo fosse contar à sua mãe acerca dos actos sexuais anteriormente praticados entre ambos.
15) Tais abordagens ocorriam no quarto da B ou na sala.
16) Inicialmente, B empurrava o arguido, para se libertar dele, sendo que o arguido a dominava devido à sua superioridade física.
17) Com o tempo e a partir de data não concretamente apurada, B foi percebendo que, não obstante tentar impedir o arguido de concretizar os seus intentos, usando a sua força física, empurrando-o e pontapeando-o, nunca conseguiria demovê-lo e impedi-lo de os concretizar pelo que já não se debatia fisicamente.
18) Com efeito, em data não concretamente apurada, B pediu ao arguido para parar com aqueles comportamentos, tendo o mesmo negado, afirmando que tinha um vídeo com gravações de actos sexuais entre eles que exibiria à sua mãe, caso ela lhe contasse o que se passava entre ambos.
19) Nesse contexto, na residência sita na Rua E, no Barreiro, em outras duas ocasiões, o arguido baixou os boxers e, com o pénis já erecto, ordenou a B, que ali colocasse a sua boca, o que B fez por receio do arguido e para evitar que o mesmo colocasse o pénis na sua vagina.
20) Em duas ocasiões, o arguido fez menção de introduzir o pénis no ânus de B, o que só não sucedeu, por esta ter chorado, tendo de seguida o arguido colocado o pénis na sua vagina.
21) No dia 6 de março de 2020, cerca das 22 horas, altura em que a mãe e o irmão da B se foram deitar, ficando o arguido e a B na sala, sentados no sofá, sendo que esta estava a ver “animes” (desenhos animados japoneses) no seu telemóvel.
22) Por seu lado, o arguido estava a ver televisão, mas a fazer tempo até se certificar que a mãe da B estava no quarto, a dormir.
23) Passados uns minutos, o arguido colocou as suas mãos no cinto das calças da B, para o desapertar, sendo que, de imediato, a B impediu-o, colocando as suas mãos em cima das dele, imobilizando-as.
24) Não obstante, o arguido desapertou o cinto, baixou as calças, bem como as cuecas de B, ciente que o fazia contra a vontade desta, que se posicionou de costas para o arguido, para não ter de olhar para a cara dele, tendo o arguido introduzido o seu pénis, já erecto, na vagina da B, aí o friccionando, com movimentos de vai e vem, sabendo que o fazia contra a vontade de B, não obstante esta já não se debater fisicamente.“
Ora a descrita factualidade permite a cabal compreensão e identificação por parte do arguido das condutas em causa no âmbito destes autos.
Na verdade “ o processo de identificação do facto pela defesa existe e verifica-se quando ao arguido é imputado um tratamento delitual repetido no tempo, onde a reiteração desses maus tratos vem a constituir o fenómeno de singularidade”, e mesmo “ se atomisticamente não é possível a reconstituição das datas em que ocorreu a sucessão de cada um dos eventos delituais, mas tão só o período de tempo em que sucedeu o mau tratamento, esta conduta reiterada torna-se identificável pela defesa, pelo que, basta para a identificação do facto e sua singularização a descrição ôntica desse tratamento (a qual inclui a imputação da sua frequência e repartição no tempo dos actos que se repetiram - réplicas) como tendo ocorrido em certo período de tempo. “(Acórdão da Relação do Porto de 16.3.2022, rel. Nuno Salpico, disponível em www.dgsi.pt )
Fazendo apelo ao aresto acima citado , “ na discussão jurídica que decorre nos tribunais sobre a actividade delitual nos delitos tráfico de estupefacientes , em situações de trato sucessivo ,ou na pluralidade de abusos sexuais verificados num determinado período de tempo , comungam dos mesmos princípios agora analisados, onde a singularidade dos factos apurados , reside na reiteração e pluralidade apuradas, concretamente quando um agente v.g. por cinco vezes «abusou sexualmente de um menor » ( infligindo sobre o mesmo determinado comportamento) entre os anos de 2016 e 2018, bastando para a sua identificação , que os referidos abusos hajam sido suficientemente descritos na sua ontologia e com a sua localização no referido período temporal “.“( Acórdão da Relação do Porto de 16.3.2022 , rel. Nuno Salpico ,disponível em www.dgsi.pt).
Deste modo não enferma o acórdão recorrido da invocada nulidade de insuficiência da matéria de facto para a decisão nem se verifica a consequente violação do direito de defesa do arguido constitucionalmente tutelado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Aliás demonstrativa dessa realidade é a circunstância do Recorrente, que optou por apresentar contestação, e prestou declarações, ter rebatido pormenorizadamente os factos que lhe foram imputados, exercendo na sua plenitude o direito de defesa quanto aos mesmos, que identificou de forma inequívoca.
Soçobra assim a invocação da preterição do seu direito de defesa, improcedendo nesta parte o recurso.

Da aplicação do princípio in dúbio pro reo     
O Recorrente veio requerer a sua absolvição dos crimes pelo quais foi condenado pela aplicação do princípio in dubio pro reo.
Trata-se um princípio estruturante do processo penal português, corolário do princípio da presunção da inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa,
O princípio in dúbio pro reo “ dá resposta às situações de dúvida quanto à verificação de determinado facto, impondo que o non liquet em matéria de prova seja valorado a favor do arguido “ , e “ em sede de recurso, o uso feito do princípio in dubio pro reo afere-se pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que quando daí resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, optou pelo sentido desfavorável ao arguido, se impõe concluir que ocorreu violação daquele princípio. “(Acórdão da Relação de Coimbra de 13.6.2018, rel. Helena Bolieiro, disponível em www.dgsi.pt).
Deste modo “o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto , não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito“. “(Acórdão do S.T.J. de 12.3.2009, rel. Soreto de Barros, disponível em www.dgsi.pt).
Todavia do acórdão recorrido não resulta que o tribunal a quo se viu confrontado com uma situação de dúvida relativamente aos factos julgados e que apesar disso os tenha dado como provados.
Pelo contrário, da extensa, circunstanciada e rigorosa motivação da decisão de facto do tribunal recorrido é possível detectar o respectivo processo decisório e a consequente formação de uma convicção objectiva, consistente e firme no sentido de que os factos julgados provados ocorreram como aí vem descrito.
Não evidencia assim a decisão recorrida qualquer estado dubitativo por parte do julgador na valoração da prova que impusesse que o mesmo fizesse apelo ao princípio in dúbio pro reo relativamente aos factos dados como provados, e como tal improcede nesta parte o recurso.

O erro na qualificação jurídica dos factos
Sustenta o Recorrente que mesmo considerando a factualidade julgada provada pelo Tribunal a quo este nunca o poderia ter condenado como autor dos crimes de violação p.p. pelo o artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal porquanto não ficou demonstrado que o arguido tenha usado de violência, ameaça grave ou tenha tornado inconsciente a assistente.
Dispõe o artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, que, quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
Pretende-se com este tipo legal tipo penal proteger o bem jurídico da liberdade e autodeterminação sexual da pessoa.
Vejamos os factos que o tribunal a quo julgou provados relativamente ao Recorrente no acórdão recorrido:
“7) No período compreendido entre o dia 7/8/2017 e o dia 06/08/2018, quando B vivia na residência sita na Rua F, em, pelo menos, 10 (dez) ocasiões, o arguido aguardou ficar a sós com B e tirou-lhe roupa que ela usava, não obstante aquela sempre o empurrar para se libertar dele e lhe pedir para parar e, com o pénis já erecto, introduziu-o, em todas aquelas ocasiões, na vagina de B, aí o friccionando, através de movimentos de vai e vem, vindo a ejacular no exterior.
8) Assim sucedeu, designadamente e pela primeira vez, em data não concretamente apurada do Verão de 2017, mas situada em momento posterior ao dia 7 de agosto de 2017, quando a B se encontrava na sua residência com o seu irmão H e com o arguido, estando a sua mãe a trabalhar.
9) Em determinada altura, o arguido pediu a H que fosse comprar gelados, para ficar a sós com B, o que aquele fez.
10) De seguida, o arguido abeirou-se de B, que estava sentava num cadeirão, e começou a baixar os calções que aquela tinha vestido.
11) Nesse momento, não obstante a B empurrar o arguido, para se libertar dele e de lhe pedir para parar, este conseguiu, usando a sua força física, introduzir o pénis erecto na vagina de B, vindo a ejacular no exterior.
13) No mês de novembro de 2018 a B, a sua mãe e o seu irmão mudaram-se para a residência sita na Rua E, no Barreiro, altura em que o arguido começou a viver com C, naquela habitação, em condições análogas às dos cônjuges.
14) A partir desse momento até ao dia 06/03/2020 o arguido intensificou as condutas vindas de descrever, tendo abordado a B com a regularidade de pelo menos uma vez por semana para o efeito, perfazendo, pelo menos, 56 (cinquenta e seis) ocasiões, nas quais e em cada uma delas, o arguido abordou a B, sempre na habitação que partilhavam enquanto padrasto e enteada, conseguiu sempre tirar-lhe a roupa, indiferente à repulsa que a B demonstrava ao pedir-lhe para parar e conseguiu sempre, em todas e cada uma daquelas ocasiões, introduzir o seu pénis, erecto, na vagina de B, aí o friccionando até ejacular, sabendo que o fazia contra a vontade de B, mesmo quando esta já não se debatia fisicamente mas ainda assim anuía ao seu comportamento receando que o mesmo fosse contar à sua mãe acerca dos actos sexuais anteriormente praticados entre ambos.
15) Tais abordagens ocorriam no quarto da B ou na sala.
16) Inicialmente, B empurrava o arguido, para se libertar dele, sendo que o arguido a dominava devido à sua superioridade física.
17) Com o tempo e a partir de data não concretamente apurada, B foi percebendo que, não obstante tentar impedir o arguido de concretizar os seus intentos, usando a sua força física, empurrando-o e pontapeando-o, nunca conseguiria demovê-lo e impedi-lo de os concretizar pelo que já não se debatia fisicamente.
18) Com efeito, em data não concretamente apurada, B pediu ao arguido para parar com aqueles comportamentos, tendo o mesmo negado, afirmando que tinha um vídeo com gravações de actos sexuais entre eles que exibiria à sua mãe, caso ela lhe contasse o que se passava entre ambos.
19) Nesse contexto, na residência sita na Rua E, no Barreiro, em outras duas ocasiões, o arguido baixou os boxers e, com o pénis já erecto, ordenou a B, que ali colocasse a sua boca, o que B fez por receio do arguido e para evitar que o mesmo colocasse o pénis na sua vagina.
20) Em duas ocasiões, o arguido fez menção de introduzir o pénis no ânus de B, o que só não sucedeu, por esta ter chorado, tendo de seguida o arguido colocado o pénis na sua vagina.
21) No dia 6 de março de 2020, cerca das 22 horas, altura em que a mãe e o irmão da B se foram deitar, ficando o arguido e a B na sala, sentados no sofá, sendo que esta estava a ver “animes” (desenhos animados japoneses) no seu telemóvel.
22) Por seu lado, o arguido estava a ver televisão, mas a fazer tempo até se certificar que a mãe da B estava no quarto, a dormir.
23) Passados uns minutos, o arguido colocou as suas mãos no cinto das calças da B, para o desapertar, sendo que, de imediato, a B impediu-o, colocando as suas mãos em cima das dele, imobilizando-as.
24) Não obstante, o arguido desapertou o cinto, baixou as calças, bem como as cuecas de B, ciente que o fazia contra a vontade desta, que se posicionou de costas para o arguido, para não ter de olhar para a cara dele, tendo o arguido introduzido o seu pénis, já erecto, na vagina da B, aí o friccionando, com movimentos de vai e vem, sabendo que o fazia contra a vontade de B, não obstante esta já não se debater fisicamente.
28) B nunca relatou os factos vindos de descrever a ninguém, nem à sua mãe, por vergonha e por pensar que esta zangar-se-ia consigo.
29) Ao obrigar B, através da força física, a sofrer penetração vaginal e a manipular o seu pénis erecto com a boca, sempre contra a vontade da mesma, aproveitando-se da sua superioridade física, da relação e ascendente familiar que tinha sobre B, filha da sua companheira e da incapacidade de B para evitar que aquele concretizasse os seus intentos, o arguido quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, mesmo ciente que B era menor de idade e que não consentia na sua actuação, ofendendo, assim, a liberdade sexual da mesma.
30) Ao obrigar B a sofrer penetração vaginal, sempre contra a vontade da mesma, aproveitando-se da sua superioridade física, da relação e ascendente familiar que tinha sobre B, filha da sua companheira e da incapacidade de B para evitar que aquele concretizasse os seus intentos, o arguido quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, mesmo ciente que B era menor de idade e que não consentia na sua actuação, ofendendo, assim, a liberdade sexual da mesma. “
Resulta assim evidente da factualidade apurada que o Recorrente utilizou a força física para subjugar a assistente e constrangê-la a sofrer os actos de cópula e coito oral que praticou.
Decorre igualmente da referida  factualidade que  o arguido exerceu violência psíquica para esmagar a resistência da assistente e forçá-la a sofrer os actos de  cópula e coito oral descritos , que se reconduz à  a ameaça de exibir à mãe desta um vídeo com gravações de actos sexuais entre eles, a qual atenta a idade da vítima e o contexto em que desenrolaram estes factos tem de qualificar-se como ameaça grave .
Concorda-se deste modo com o tribunal a quo quando o mesmo considerou:
“O tipo pressupõe ainda o constrangimento da vítima por um dos meios aí previstos (a violência, a ameaça grave, ou a colocação num estado de inconsciência ou impossibilidade de resistir), impondo-se a existência de um nexo causal entre a prática dos actos sexuais referidos e o meio utilizado para alcançar esse fim.
No tocante ao conceito de violência, defende Jorge de Figueiredo Dias1 que: “Como tal deverá ser considerado (…) apenas o uso da força física (…) destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. (…) Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso (..,.) a vencer a resistência efectiva ou esperada da vítima”.
1 In “Comentário Conimbricense do Código Penal” Tomo I, pág. 453
Já quanto ao conceito de ameaça, refere o mesmo autor que “deve por tal entender-se a manifestação de um propósito de causar um mal ou um perigo se a pessoa ameaçada não consentir no acto sexual”, entrando neste conceito a violência psíquica, impondo-se que essa ameaça seja grave, no seu conteúdo, medida e intensidade, podendo o mal da ameaça ser dirigido contra o agente ou contra terceiro, desde que represente para o agente essa ameaça grave.
(…)
Verifica-se, pois, que resultou provado que o arguido praticou sobre a ofendida actos de cópula vaginal e oral e que o fez num contexto de violência física (forçando-a a suportar esses actos, independentemente da mesma o empurrar e lhe pedir para parar) e de violência psicológica (ameaçando-a de que revelaria um vídeo dos actos sexuais à sua mãe). “
Não merece por conseguinte censura a decisão recorrida, improcedendo nesta parte o recurso.
A alteração da medida da pena
Discorda o Recorrente da pena que lhe foi aplicada, que considera manifestamente desproporcionada em relação à culpa, às circunstâncias do caso e ao facto de não ter antecedentes criminais.
Dispõe o artigo 40º do C.P., sob a epígrafe “finalidades das penas “ que :
1- A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2- Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3- A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.
Por seu lado o artigo 71º do Código Penal estabelece os critérios de determinação da medida da pena, estatuindo que esta é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Deste modo o primeiro factor a considerar é a culpa do agente, que estabelece um limite que não pode ser ultrapassado.
 Têm igualmente de ser consideradas as exigências de prevenção geral reclamadas pelo circunstancialismo do caso concreto, tendo em conta os bens jurídicos que a norma infringida visa tutelar e as expectativas da comunidade na manutenção da ordem pública e de uma actuação conforme às normas jurídicas em vigor.
Por último impõe-se a consideração das exigências de prevenção especial, que se reconduzem à recuperação do arguido para uma vida em sociedade.
Na determinação da medida das penas parcelares e da pena única o tribunal considerou:
“No que concerne às necessidades de prevenção geral deste tipo de ilícitos, o Supremo Tribunal de Justiça tece as seguintes considerações, no Acórdão de 05/11/20203:“Os crimes de abuso sexual de crianças e de pornografia de menores, do tipo dos crimes comprovadamente praticados pelo arguido recorrente, constituem um dos factores que provoca maior perturbação e comoção social, designadamente em face dos riscos (e danos) para bens e valores fundamentais que causam e da insegurança que geram e ampliam na comunidade”.
3 Cfr. proc. 114/18.2TELSB.S1 in www.dgsi.pt
Devem, com efeito, ser consideradas muito fortes as exigências da prevenção geral deste tipo de criminalidade, extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador.
Considerando agora os critérios parametrizadores enunciados no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, e reportando-nos aos factores concretos concernentes à execução dos factos evidenciam-se as seguintes circunstâncias com relevo para a correspondente ponderação:
- O grau de ilicitude dos factos praticados é intenso, atento o tipo de ilícitos em apreciação, sendo grave o modo de execução dos mesmos, com aproveitamento da relação amorosa com a mãe da ofendida e da proximidade propiciada por essa relação, sendo a sua conduta essencialmente homogénea ao longo do tempo, mas tendo sido intensificada no período de coabitação com a ofendida;
- O grau de culpa do arguido no cometimento dos factos é elevado, tendo agido com dolo directo, actuando com total desprezo pela idade da menor, a partir dos seus 15 anos de idade e pelas consequências nefastas que poderiam advir para a sua formação e desenvolvimento sexual, sendo certo que o arguido, ainda assim, justificou o seu comportamento com a insatisfação sexual com a companheira e a dificuldade de controlo de impulsos sexuais, demonstrando um profundo desprezo e indiferença pelo desenvolvimento psicológico e sexual da ofendida;
- A conduta do arguido, anterior aos factos, é de molde a considerar que o mesmo tem adoptado um comportamento de conformidade com a ordem jurídica, uma vez que não regista quaisquer antecedentes criminais;
- As condições pessoais do arguido sugerem que o mesmo se encontra socializado, tendo mantido um percurso normativo, pese embora a baixa escolaridade e ausência de formação específica. “

Deste modo aplicou ao Recorrente  a pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos 10 (dez) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal e dos 58 (cinquenta e oito) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b),  do Código Penal e procedendo ao respectivo cúmulo jurídico a pena única de 13 (treze) anos de prisão.

Não merece censura a equilibrada e bem fundada ponderação efectuada pelo tribunal, proporcional à culpa do Recorrente e consentânea com as exigências de prevenção geral e de prevenção especial reclamadas pelo circunstancialismo do caso concreto.
Por último, contrariamente ao invocado pelo Recorrente o tribunal a quo considerou correctamente a agravação do limite mínimo de um terço, correspondendo a 4 anos, e não de metade.
Improcede deste modo nesta parte o recurso.
Se a quantia fixada a título de arbitramento de indemnização por danos não patrimoniais é excessiva
Por último insurge-se o Recorrente contra o montante arbitrado pelo tribunal a quo a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela Assistente, que considera excessivo, alegando que não foram apurados factos que sustentem esse valor.
Dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do C. Civil, aplicável ex vi do artigo 129º do C.P.P., que aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer outra disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
De acordo com o disposto pelo artigo 496º, nº 1, do C. Civil, aplicável ex vi do artigo 129º do C.P.P., na fixação da indemnização deve entender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Constituem pressupostos da obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade por factos ilícitos a ocorrência de facto entendido como um evento controlável pela vontade humana, a ilicitude desse facto, o nexo de imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa, a produção de dano e a verificação de nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Ora ao contrário do que sustenta o Recorrente resultaram apurados factos que preenchem a previsão das normas legais acima citadas, e que, por conseguinte, fundamentam o valor que foi arbitrado a título de reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela assistente.
Efectivamente foi possível individualizar 10 (dez) situações concretas de violação relativas à prática de cópula vaginal  e 56 (cinquenta e seis) situações de violação, relativas à prática de cópula vaginal, bem como de 2 (duas) situações de violação, relativas à prática de coito oral , imputáveis ao Recorrente a título de dolo , e que foram causa directa e necessária do sofrimento psicológico da assistente evidenciado no relato fáctico constante do acórdão recorrido .
Acrescenta-se que conforme decidido no Acórdão da Relação de Lisboa de 12.6.2019, “as consequências nefastas de uma violação para o desenvolvimento da personalidade de uma jovem são factos notórios, pelo que nos termos do artigo 412º nº 1 do CPC não carecem da produção de qualquer elemento de prova “. (rel. Teresa Féria, disponível em www.dgsi.pt )

Decorre das disposições conjugadas dos artigos 496º, nº 3 e 494º do C. Civil que na fixação da indemnização por danos morais o julgador deve recorrer a juízos de equidade, ponderando ainda a culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Com efeito “o montante atribuído a título de compensação dos danos não patrimoniais destina-se a permitir ao lesado encontrar alguma compensação pelo mal sofrido, pela dor e o sofrimento, proporcionando-lhe uma satisfação que os atenue”, o que “implica que a medida dessa compensação deva ser proporcional à gravidade dos danos”. (Acórdão do S.T.J. de 13.9.2022, rel. Maria João Tomé, disponível em www.dgsi.pt )
Deste modo a” liquidação dos danos não patrimoniais com base na equidade não é, conforme referido supra, arbitrária: o juízo equitativo, ainda que permita ao julgador alguma margem de discricionariedade, deve fundar-se em critérios de adequação, de proporção e de ponderação prudente e racional de todas as circunstâncias do caso concreto.” (Acórdão do S.T.J. de 13.9.2022, rel. Maria João Tomé, disponível em www.dgsi.pt )
Considerando a natureza e frequência dos actos praticados pelo Recorrente , o período de tempo em causa e o contexto em que se desenrolaram , a idade da assistente , o  sofrimento desta e as inevitáveis e gravosas repercussões no desenvolvimento da sua personalidade nenhum reparo há a fazer à ponderação efectuada pelo tribunal recorrido e à consequente decisão cuja proporcionalidade , racionalidade e adequação é por demais evidente.
Improcede assim nesta parte o recurso.
       
VI – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da 9 ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco UCs.

L., d.s. 09-03-2023
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Maria Manuela Barroco Esteves Machado
Paula Cristina C. Bizarro