DECISÃO ARBITRAL
SUBEMPREITADA
MULTA APLICADA PELO EMPREITEIRO AO SUBEMPREITEIRO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário

I - Num contrato de obras particulares, subordinado ao regime do RJEOP, por vontade das partes, não é admissível, quanto mais obrigatório, que perante a aplicação de uma multa pelo dono da obra, nos termos do art.º 201º do RJEOP, o empreiteiro que não concordasse com a aplicação da multa, tivesse que propor uma ação administrativa de anulação desse ato, sob pena de não poder numa ação judicial em que estivesse em discussão a execução do contrato invocar a inaplicabilidade dessa multa.
II - A consagração do prazo de caducidade de 132 dias para o empreiteiro propor uma ação, discutindo o direito do dono da obra praticar determinados atos na execução do contrato de empreitada, onde se inclui a aplicação de uma multa, tinha em atenção a competência para o dono da obra praticar atos administrativos definitivos, pelo que o mesmo não é aplicável a um contrato de obras particulares subordinado ao RJEOP por vontade das partes, uma vez que estas não têm essa competência administrativa.
III- Pelo que não estava o tribunal arbitral impedido de verificar se era ou não devida a multa aplicada pela Autora à Ré, por atrasos na execução da obra numa ação em que se discutia a execução do contrato de subempreitada e a Autora reclamava da Ré o pagamento do valor da multa.

Texto Integral



Relatora: Sílvia Pires
1.º Adjunto: Henrique Antunes
2.º Adjunto: Mário Rodrigues da Silva




Autora: A..., S.A.

Ré: B..., Limitada

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Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora intentou contra a Ré a presente ação de anulação da decisão arbitral, pedindo que, julgando-se a mesma procedente seja a decisão proferida pelo tribunal arbitral parcialmente anulada, na parte em que determina que a multa contratual aplicada pela Demandada (aqui A.) à Demandante (aqui R.), nos termos do teor da carta de “rescisão” do contrato, não é devida.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
- Celebrou com a Ré, em 2.7.2012, um contrato designado como de “subempreitada” para a execução de trabalhos de paisagismo na obra de infraestruturas ..., no âmbito da qual a aqui Autora era empreiteiro geral.
- As partes acordaram que as questões emergentes desse contrato seriam submetidas a um tribunal arbitral nos termos que definiram.
- Devido a litígios que surgiram entre as partes foi, nos termos do acordado, constituído o tribunal arbitral.
- A Ré intentou, perante o mesmo, ação contra a agora Autora, pedindo a condenação da mesma a pagar-lhe a quantia de € 168.853,98 acrescida de juros de mora vencidos até 17.5.2021 e nos vincendos, uns e outros à taxa legal de 7% até integral pagamento.
- A quantia objeto do pedido correspondia ao montante de faturas em dívida.
- A Autora na contestação que apresentou na ação arbitral deduziu pedido reconvencional, concluindo pela seguinte forma:
 Deverá:
i) A exceção de caducidade ser julgada totalmente procedente por provada e a demandada absolvida do pedido,
Caso assim não se entenda:
ii) A ação ser julgada improcedente por não provada e a demandada absolvida da totalidade do pedido,
Em qualquer caso,
iii) A reconvenção ser admitida e julgada totalmente procedente por provada e:
a) a demandante condenada a pagar à demandada a quantia de € 274.947,78, correspondente a:
- Sobrecustos com outros fornecedores: € 99.929,02;
- Custos indiretos suportados pela Ré: € 151.757,68;
- Saldo a favor da demandada na sequência da compensação de créditos: € 14.466,16;
- Juros de mora vencidos sobre a quantia de € 14.466,16 supra referida, no total de € 8.794,92;
b) acrescidas de juros de mora vincendos à taxa aplicável para as obrigações comerciais, até efetivo e integral pagamento, atualmente de 8%;
Subsidiariamente ao pedido ii),
iv) Ainda ser compensados, nos alegados créditos da demandante, os créditos da demandada, declarando-se os primeiros extintos e condenando-se a demandante a pagar à demandada o valor da diferença, a par dos respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, desde a data dos efeitos da compensação.
- No âmbito do contrato celebrado a Autora aplicou à Ré uma multa contratual no montante de € 67.565,66, por atraso na execução dos trabalhos, ao abrigo da cláusula 12.º, das condições específicas do contrato de subempreitada.
- Esse valor foi objeto de compensação com as quantias em dívida à Ré.
- A multa aplicada não foi impugnada, quer no momento da sua aplicação, quer posteriormente.
- O tribunal arbitral proferiu sentença que julgou a causa nos seguintes termos:
Pelo exposto, julgam-se improcedentes as excepções de caducidade e de abuso do direito invocadas.
Julga-se a acção parcialmente procedente por provada, declarando-se que a Demandante é titular de um crédito no valor de 99.996,30€, correspondente aos fornecimentos e trabalhos realizados que a Demandada não pagou.
Por sua vez, julga-se parcialmente procedente, por provada, a reconvenção, declarando-se a Demandada/Reconvinte titular de um crédito no valor de 102.461,74€, correspondente ao sobrecusto e custos indirectos que teve de suportar para a execução dos trabalhos que a Demandante não executou no âmbito do contrato de subempreitada.
Atenta a compensação, oportunamente feita operar pela Demandada (102.461,74€ - 99.996,30€), declaram-se reciprocamente extintos os créditos da Demandante e da Demandada, na medida da compensação (102.461,74€ - 99.996,30€), resultando um crédito remanescente de 2.465,44€ que a Demandante terá de pagar à Demandada.
Absolvem-se a Demandada e a Demandante/Reconvinda de tudo o mais peticionado.”
- Sucede que, da quantia objeto de condenação em pagamento, por parte da aqui Ré à aqui Autora (demandada/reconvinte no processo arbitral), não foi incluída a quantia correspondente à multa contratual supra referida.
- O tribunal arbitral justificou tal facto nos seguintes termos:
“Da análise dos emails enviados pela Demandada à Demandante em 16.01.2013 e em 21.01.2013, aquela interpela esta para completar a execução dos trabalhos impreterivelmente até 25.01.2013.
Esta interpelação da Demandada para a Demandante cumprir contém inequivocamente uma intimação para o cumprimento da obrigação (de completar os trabalhos); a fixação de um prazo peremptório para o efeito e a cominação de se considerar definitivamente incumprido o contrato se tal não ocorrer, o que resulta, além do mais, da expressão “impreterivelmente” e do exame conjugado com o parágrafo seguinte em que é dito “salientamos que data atrás referida não se trata de uma prorrogação do prazo”.
Ora, o incumprimento definitivo do contrato inscreve-se na previsão do art. 801.º do CC que permite ao credor a sua resolução e depois de verificado o não cumprimento definitivo do contrato, sobra confirmar a extinção da relação negocial e a resolução contratual é o caminho traçado pela lei para tanto.
E foi o que se seguiu na factualidade relevante dos presentes autos, com a carta de “rescisão” enviada pela Demandada à Demandante, datada de 30 de Janeiro de 2013.
Esta resolução em razão do incumprimento definitivo do contrato atribui ao credor o direito de ser ressarcido do dano contratual negativo, também denominado dano de confiança (art. 801.º, n.º 2 do CC).
A resolução como forma de cessação do contrato operada por um dos contraentes e baseada em facto posterior à celebração, destrói retroactivamente o vínculo obrigacional estabelecido, ex vi do n.º 1 do art. 434.º do CC.
Quanto aos efeitos da resolução contratual, e sem embargo de recentes posições doutrinárias e jurisprudenciais que defendem a possibilidade teórica de cumulação da resolução do contrato com a indemnização dos danos por violação do interesse contratual positivo, a posição dominante, perfilhada pelos doutrinadores de referência (v.g. Antunes Varela, Pereira Coelho, Carlos Mota Pinto, Almeida Costa, Pinto Monteiro e Calvão da Silva), sustenta que a resolução do contrato, desde logo fundada em incumprimento definitivo, rectior, os efeitos que ela produz são incompatíveis com o direito de indemnização do interesse contratual positivo, dando lugar sim a indemnização com fundamento na violação do interesse contratual negativo ou dano de confiança.
A precípua função da resolução contratual é repristinatória do status quo ante, na medida em que os seus efeitos equivalem aos da invalidade negocial que em regra também actua retroactivamente, nos melhores termos dos arts. 433.º e n.º 1 do 434.º, com referência aos arts. 289.º e 290.º, todos do CC.
Aqui se acolhe a visão segundo a qual encerra contradição que o contraente não faltoso possa optar pela resolução contratual e, a um tempo, pretender ser indemnizado de um prejuízo que o coloque na situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido, o qual traduz o interesse contratual positivo.
Entende este tribunal que em caso de resolução, como se verificou nos autos, em que a Demandada optou por resolver o contrato de subempreitada, o caminho que se perspectiva para acautelar a sua posição é o da indemnização dos prejuízos sofridos, neles se incluindo os danos emergentes e os lucros cessantes resultantes da violação do interesse contratual negativo, ou seja, dos prejuízos que não teria suportado se não tivesse celebrado o contrato incumprido.
É este o sentido da ressalva do n.º 2 do art. 801.º do CC que determina que “tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato” (sublinhado nosso).
Em consequência, a multa contratual aplicada pela Demandada à Demandante, nos termos do teor da carta de “rescisão” do contrato, não é devida.”
- Do objeto do litígio arbitral não constava a anulação da multa contratual, ou sequer qualquer pedido de reconhecimento de que a mesma não fosse devida à Autora por parte da Ré.
- Na data em que foi proferida a decisão arbitral, o direito de a Ré impugnar judicialmente a multa aplicada pela Autora há muito tinha caducado.
- Assim, não podia também o tribunal arbitral pronunciar-se sobre uma multa contratual que não foi impugnada pela Ré.
- A sentença ao conhecer daquela multa conheceu de uma questão que não foi submetida à sua apreciação, o que determina a sua nulidade.

A Ré não contestou.

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O direito aplicável
A Autora propôs a presente ação de anulação parcial da sentença proferida por um tribunal arbitral num litígio que a opunha à Ré, relativo à execução de um contrato de subempreitada entre ambas outorgado, no qual se acordou que aquele contrato ficava sujeito ao regime Jurídico de Empreitadas de Obras Públicas aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de março (RJEOP).
Alega a Autora que nesse processo, sujeito a um tribunal arbitral, em que ocupava a posição de Ré, que a sentença arbitral ao não ter reconhecido o direito da Autora a que a Ré lhe pagasse o valor da multa aplicada pela primeira à segunda, por atrasos na execução do contrato de subempreitada, conheceu de questão que não podia conhecer, incorrendo no vício de excesso de pronúncia.
Fundamenta esta posição, em primeiro lugar, na alegação de que o ato de aplicação de uma multa pelo dono da obra é um ato formal, de acordo com o disposto no art.º 201º do RJEOP, que deve ser impugnado judicialmente pelo empreiteiro no prazo de 132 dias úteis, sob pena de caducidade do direito de impugnação, pelo que, não tendo a Ré impugnado judicialmente a multa que lhe foi aplicada pela Autora, não podia o Tribunal conhecer do direito da Autora à aplicação dessa multa.
Subjaz a esta argumentação da Ré a ideia que a aplicação de uma multa pelo dono da obra - a Autora apesar de ser empreiteira, no contrato de subempreitada encontra-se na posição de dono da obra -, nos termos do art.º 201º do RJEOP, tem as caraterísticas de um ato administrativo, sendo definitivo e executório, pelo que a reação ao mesmo terá que passar pela sua impugnação, com vista à sua anulação, sob pena de, não sendo esse mecanismo reativo acionado no tempo devido, o direito do dono da obra a que lhe seja pago o valor da multa fica estabilizado, não podendo vir a ser discutido em futura ação em que esteja em litígio a execução do contrato de subempreitada.
Ora, não só se entendia, no domínio do RJEOP, que os atos do dono da obra não estavam sujeitos ao regime de impugnação dos atos administrativos [1], como sendo esse regime, neste caso,  aplicável a um contrato de empreitada de obra particular, por escolha voluntária das partes nesse sentido, o particular - dono da obra - nunca poderia ficar investido no poder de praticar atos administrativos ou com as caraterísticas definitivas e executórias desse tipo de atos, designadamente na aplicação de multas por atrasos no cumprimento da prestação do empreiteiro.
É impensável que num contrato de obras particulares, subordinado ao regime do RJEOP, por vontade das partes, fosse sequer admissível, quanto mais obrigatório, que perante a aplicação de uma multa pelo dono da obra, nos termos do art.º 201º do RJEOP, o empreiteiro que não concordasse com a aplicação da multa, tivesse que propor uma ação administrativa de anulação desse ato, sob pena de não poder numa ação judicial em que estivesse em discussão a execução do contrato invocar a inaplicabilidade dessa multa.
 É certo que o RJEOP, após referir no art.º 253º que as questões que se suscitem sobre interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada de obras públicas, que não sejam dirimidas por meios graciosos, poderão ser submetidas aos tribunais, dispunha no art.º 255.º:
As ações deverão ser propostas, quando outro prazo não esteja fixado na lei, no prazo de 132 dias contados desde a data da notificação ao empreiteiro da decisão ou deliberação do órgão competente para praticar atos definitivos, em virtude da qual seja negado algum direito ou pretensão do empreiteiro ou o dono da obra se arrogue direito que a outra parte não considere fundado.
A consagração deste prazo de caducidade de 132 dias para o empreiteiro propor uma ação, discutindo o direito do dono da obra praticar determinados atos na execução do contrato de empreitada, onde se inclui a aplicação de uma multa, nos termos do art.º 201.º do RJEOP, como se infere da própria redação do art.º 255º deste diploma, tinha em atenção a competência para o dono da obra praticar atos administrativos definitivos, pelo que o mesmo não é aplicável a um contrato de obras particulares subordinado ao RJEOP por vontade das partes, uma vez que estas não têm essa competência administrativa.
Por esta razão não estava o tribunal arbitral impedido de verificar se era ou não devida a multa aplicada pela Autora à Ré, por atrasos na execução da obra numa ação em que se discutia a execução do contrato de subempreitada e a Autora reclamava da Ré o pagamento do valor da multa.
Alega ainda a Autora que, não tendo essa questão sido suscitada pelas partes no decurso do processo arbitral, não podia o tribunal ter dela conhecido.
A sentença do Tribunal Arbitral considerou que em caso de resolução, como se verificou nos autos, em que a Demandada optou por resolver o contrato de subempreitada, o caminho que se perspetiva para acautelar a sua posição é o da indemnização dos prejuízos sofridos, neles se incluindo os danos emergentes e os lucros cessantes resultantes da violação do interesse contratual negativo, ou seja, dos prejuízos que não teria suportado se não tivesse celebrado o contrato incumprido pelo que, em consequência, a multa contratual aplicada pela Demandada à Demandante, nos termos do teor da carta de “rescisão” do contrato, não é devida.
Ao efetuar este juízo o Tribunal Arbitral limitou-se a verificar, como era seu dever, se era devida pelo Réu o valor da multa aplicada pela Autora, cujo pagamento foi peticionado por esta em reconvenção. Estamos, pois, perante o conhecimento de uma questão colocada pela própria Autora - o dever da Ré pagar uma multa por atrasos na execução da obra -, estando o Tribunal livre neste conhecimento de indagar e socorrer-se das regras jurídicas aplicáveis ao caso - art.º 5.º, n.º 3, do C. P. Civil -, sendo certo que a Ré nas alegações apresentadas até havia invocado o raciocínio efetuado pela sentença recorrida.
Do exposto, resulta que inexiste qualquer excesso de pronúncia na sentença do Tribunal Arbitral, pelo que deve improceder o pedido de anulação parcial formulado pela Autora, dele se absolvendo a Ré.

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Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a ação de anulação interposta pela Autora, absolvendo-se a Ré do pedido formulado.

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Custas pela Autora.

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                                                                     28.2.2023






[1] Neste sentido, Mário Aroso de Almeida, Atos de aplicação de Sanções Contratuais: Sua Natureza Jurídica e Regime Processual, Católica Law Review, vol. I, n.º 1, 2017, pág. 96.