CONCLUSÕES DO RECURSO
PRESENÇA DO ARGUIDO EM AUDIÊNCIA
JULGAMENTO NA FALTA DO ARGUIDO
DIREITOS DO ARGUIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PROCESSO EQUITATIVO
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário

I – Decorre da noção de processo equitativo que devem ser dadas ao acusado as devidas oportunidades para o mesmo se poder defender, não o colocando, de forma directa ou indirecta, numa posição de desvantagem face aos seus oponentes.
II – Mesmo que a audiência de julgamento se inicie sem a sua presença, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, para o que tem de ter conhecimento da continuação do julgamento e ter a possibilidade de poder estar presente.
III – Se, devido a detenção ocorrida depois do julgamento se ter iniciado, o arguido não foi conduzido ao tribunal pelos serviços prisionais por motivo de greve destes serviços, ficou impossibilitado de comparecer, frustrando-se o direito que lhe assistia de estar presente e de prestar declarações.
IV – Esta situação configura a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal e não contende com a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ nº 9/2012.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

A – Relatório

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, a 24.11.2022, decidindo-se:

a) Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade …

b) Condenar a arguida BB pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade …

c) Suspender a execução da pena de prisão aplicada à arguida BB …”.

3. Inconformada com a douta sentença, veio a arguida interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“…

3ª - QUESTÃO PRÉVIA –

O Código de Processo Penal impõe, sob pena de nulidade insanável (cfr. art. 119.º, al. c) do CPP), a participação presencial do arguido na audiência de discussão e julgamento (cfr. art. 332.º/1 do CPP).

4ª A arguida foi sujeita a prisão preventiva desde o dia .../.../2022, estando no EP ... desde tal data.

5ª No dia 10-11-2022, pelas 14:30h, iniciou-se a segunda audiência de julgamento dos presentes autos ora recorridos no Tribunal a Quo.

6ª A arguida não esteve presente, não por falta ou vontade do mesmo, mas porque o Tribunal a Quo não coordenou com o EP a deslocação do mesmo cifra doc.1 – ata diligência.

7ª Assim, realizou-se a referida diligência ainda que na ausência da arguida, contra a vontade ou sequer conhecimento desta.

8ª Teor da Acta supra referida:

“Arguida: BB, a qual se encontra detida no EP de ... à ordem do Inquérito nº37/22...., pelo que apesar de notificada, não foi feita comparecer pelo EP, em virtude dos motivos de greve já explanados nos autos(cfr. refª 7626199).”

9ª Tendo sido inclusive nessa mesma audiência que foi ouvido o único depoimento “alegadamente incriminador” dos presentes autos, o do co-arguido – que serviu para “justificar” a condenação da arguida pelo Tribunal a Quo.

10ª Não foi sequer permitido à arguida ouvir e assistir ao que aquele e demais testemunhas referiram nesse mesmo dia, não lhe sendo possível sequer exercer o direito ao contraditório Constitucionalmente previsto na CRP (artigo 32°, nº 6 da C.R.P.), com violação clara do mesmo.

11ª Estamos assim claramente perante uma nulidade insanável, nos termos dos art. 119.º, al. c) do CPP) e art. 332.º/1 todos do CPP, que se argui e requer, com todas as legais consequências, a qual deverá ser declarada/julgada por este Douto Tribunal, devendo serem dadas sem efeito todas as diligências desde o dia .../.../2022, (isto é, a segunda sessão de julgamento, com todos os depoimentos aí operados), ordenando-se a repetição do julgamento à primeira Instância (Tribunal a Quo), com essas mesmas testemunhas, a saber: CC e DD, a fim de serem cumpridos os legais e constitucionais direitos da arguida.

4. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela sua improcedência e manutenção da sentença recorrida …

“…

3. Nos termos do AUJ n.º 9/2019, do STJ: “Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do n.º 1 do artigo 333.º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.”

4. A arguida/recorrente faltou, de forma injustificada, à 1.ª sessão da audiência de julgamento realizada no dia 20 de Outubro de 2022, tendo o Tribunal “a quo” fundamentado, então, que, considerando a natureza do crime imputado e os elementos de prova existentes nos autos, a respectiva presença desde o início da audiência de julgamento não se revelava absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, razão pela qual decorreu a mesma na sua ausência, tendo a arguida ficado expressamente representada, para todos os efeitos legais, pelo seu Ilustre Mandatário.

5. O Ilustre Mandatário da arguida nada requereu nessa audiência realizada em 20 de Outubro de 2022, nada requereu entre essa data e o dia 10 de Novembro de 2022 e nada requereu na 2.ª sessão realizada nesta outra data [para a qual a arguida foi regularmente notificada] – a única coisa que requereu, em 10 de Novembro de 2022, e lhe foi deferida, foi a dispensa física da arguida na data agendada para leitura de sentença …

6. Não tendo a arguida/recorrente requerido expressamente a sua audição em qualquer momento processual compreendido entre a 1.ª sessão da audiência de julgamento e o momento da leitura da sentença, e porque se aplica aqui, integralmente, a jurisprudência vertida no douto AUJ 9/2012, do Venerando STJ, nenhuma nulidade se afigura ter sido cometida.

…”.

5. O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser declarada a invocada nulidade insanável em razão da ausência da arguida na segunda sessão do julgamento, devolvendo-se o processo à primeira instância para repetição dessa sessão, com requisição da reclusa ao estabelecimento prisional …

*

B - Fundamentação

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pela arguida, as questões a decidir são as seguintes:

- se foi cometida uma nulidade insanável, face ao disposto nos artigos 119º, alínea c), e 332º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, por ter sido realizada a segunda sessão da audiência de julgamento sem a presença da arguida, por esta se encontrar detida no EP ... e o tribunal a quo não ter diligenciado pela sua presença;

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a factualidade e motivação da sentença recorrida.

1. Fundamentação de facto

A) Factos provados

B) Factos não provados

Não se provaram os restantes factos constantes da acusação, nomeadamente:

C) Motivação

…”.

4. Cumpre agora apreciar e decidir.

Questão prévia

Afirma o Ministério Público na resposta ao recurso que a recorrente, aparentando recorrer a uma técnica de «corte e cola» simplista, limita-se a reproduzir nas conclusões o vertido no corpo da motivação, não revelando qualquer poder de síntese, num emaranhado geral de leitura morosa e nada cartesiana …

Vejamos então.

Nos termos do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

De facto, a norma é clara ao referir que nas conclusões o recorrente deve resumir as razões do pedido. Significa isto que nas conclusões não devem ser reproduzidos todos os argumentos vertidos no corpo da motivação, mas deve ser feito um resumo, um apanhado conciso. Compreende-se que assim seja. Caso contrário, revelar-se-iam inúteis as conclusões.

Por conclusões entende-se um apanhado conciso de quanto se desenvolveu no corpo da motivação, não podendo obviamente repetir exaustiva ou aproximadamente, o que naquele se explanou – cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos Penais, 8ª ed., 113.

“As conclusões — porque então não seriam conclusões — não podem ser uma reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim, constituírem a síntese essencial dos fundamentos do recurso. Claramente: de modo enxuto e nítido, as conclusões devem dizer em argumentos secos, as razões definitivas da discordância expostas na motivação, no seu arrazoado” – cfr. Sérgio Poças, in Processo Penal Quando o recurso incide sobre a decisão da Matéria de Facto, Julgar, nº 10, 2010.

“As alegações propriamente ditas (motivação stricto sensu) destinam-se à apresentação dos argumentos pelos quais se sustenta a alteração da decisão.

As conclusões são a enumeração clara e enxuta dos fundamentos pelos quais a parte entende que se justifica a alteração da decisão, a que, quanto muito, acresce um resumo muito sintético das preposições que configuram a exposição dos argumentos relativos a cada um desses fundamentos.

Mais do que isso significa repetição de argumentos o que configura uma actuação processual inútil e prejudicial ao fim visado, e como tal proibida” – cfr. Ac. da RG de 9.6.2016, in www.dgsi.pt”.

É de frisar que o âmbito do recurso é dado pelas conclusões. São as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar. Daí a importância de ser dado cumprimento à parte final do nº 1, do artigo 412º, do Código de Processo Penal, para que, de forma clara, objectiva e concisa, sejam expostas as questões que o tribunal vai decidir.

Ora, da análise da motivação de recurso, onde se inclui a motivação stricto sensu e conclusões, constata-se que, de facto, estas são a reprodução praticamente integral daquela. A recorrente nas conclusões não fez nenhum apanhado conciso da motivação propriamente dita, reproduzindo nas conclusões o que já tinha dito anteriormente.

De qualquer forma, … apreende-se facilmente o que em concreto se pretende ver reexaminado no recurso. Assim, entende-se desnecessário o convite à recorrente para suprir tal deficiência.

*

A primeira questão a apreciar é a de saber se foi cometida uma nulidade insanável, face ao disposto nos artigos 119º, alínea c), e 332º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, por ter sido realizada a segunda sessão da audiência de julgamento sem a presença da arguida, por esta se encontrar detida no EP ... e o tribunal a quo não ter diligenciado pela sua presença.

Compulsados os autos, dos mesmos resulta que:

- A primeira sessão da audiência de julgamento teve lugar a 20.10.2022. A arguida encontrava-se em liberdade, foi devidamente notificada, mas não compareceu. Assim como também não compareceu o arguido AA.

- Nessa sessão, o tribunal a quo, considerando que a presença dos arguidos desde o início da audiência não era absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, determinou que se desse início à audiência nos termos dos artigos 331º, nºs 1 e 2, do CPP. O que foi feito.

- A audiência de julgamento não terminou nessa primeira sessão e foi designado o dia 10 de Novembro para a segunda sessão.

- Entretanto, a arguida foi presa preventivamente à ordem do Inquérito nº 37/22.... no dia 25 de Outubro. Também o arguido AA foi preso preventivamente à ordem dos presentes autos no mesmo dia.

- A 27.10.2022 foi proferido despacho do seguinte teor:

“Requisite ao Estabelecimento(s) Prisional onde os arguidos se encontram a sua notificação para comparência na data designada para continuação da audiência de julgamento”.

- O que foi devidamente cumprido. Solicitou-se a notificação para comparência no Tribunal, no dia 10.11.2022, pelas 14h00, a fim de serem ouvidos em audiência de julgamento. Mais se solicitou a condução dos arguidos ao tribunal no dia e hora designados.

- A 3.11.2022, a DGRSP informa o tribunal de que, atendendo à greve convocada pelo Sindicato do Corpo da Guarda Prisional, de 7 a 13.11.2022 a reclusa BB não será presente no julgamento, uma vez que essa diligência não se enquadra nos serviços mínimos estabelecidos.

- Na sequência desta informação o tribunal a quo despachou afirmando ter tomado conhecimento e que os autos aguardassem a data designada para a realização da audiência de julgamento.

- No dia 10.11.2022 teve lugar a segunda sessão da audiência de julgamento. Encontrava-se presente o arguido AA, mas já não a arguida BB.

- A arguida BB consta da respeciva acta como ausente, com a informação de que se encontra detida no EP de ... à ordem do Inquérito nº37/22...., pelo que apesar de notificada, não foi feita comparecer pelo EP, em virtude dos motivos de greve já explanados nos autos(cfr. refª 7626199).

- Nada foi dito pelo tribunal quanto a esta ausência da arguida, nada foi requerido pelo seu defensor e, no final, foi designado o dia 24.11.2022, pelas 14h00, para a leitura da sentença.

- O tribunal solicitou a notificação da arguida para estar presente na leitura da sentença por teleconferência ou Webex. O que foi feito.

- No dia 24.11.2022, no Estabelecimento Prisional ..., a arguida BB assistiu à leitura da sentença via Webex, ficando dessa forma notificada da mesma.

- Nesse dia nada foi requerido pela arguida e/ou defensor e a audiência de julgamento foi encerrada.

Perante tal factualidade, vejamos se assiste razão à arguida.

Como dispõe o artigo 32º, nºs 1 e 5, da CRP, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (nº 1) e tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório (nº 5).

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, Coimbra Editora, pág. 206, “no que respeita ao princípio do contraditório, relativamente aos destinatários ele significa:

a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão;

b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo;

c) em particular, direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo.

Quanto à sua extensão processual, o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição, e em especial a audiência de discussão e julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar, devendo estes ser selecionados sobretudo de acordo com o princípio da máxima garantia de defesa do arguido”.

Por sua vez, no Ac. do TC nº 463/2004/T., publicado no DR, série II, de 12.8.2004, afirma-se que o princípio do contraditório, encarado do ponto de vista do arguido, pretende, antes de mais, realizar o seu direito de defesa. … O sentido essencial do princípio do contraditório 'está, de uma forma mais geral, em que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve aí ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade, ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar´.

A descoberta da verdade material em processo penal há-de, portanto, necessariamente compaginar-se com aquelas garantias de defesa do arguido. E assim se reconhecerá, como corolário do princípio do acusatório, o da vinculação temática do tribunal e da correlação entre a acusação (e a pronúncia) e a sentença”.

Estipula o nº 6 do artigo 32º da CRP que “a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento”.

Na lei ordinária, encontramos, desde logo, o disposto no artigo 61º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, dispondo que “o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito”.

Bem como o disposto no artigo 332º, nº 1, do mesmo diploma legal, nos termos do qual “é obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 333º e nos nºs 1 e 2 do artigo 334.º”

Consequentemente, com a epígrafe Nulidades insanáveis, dispõe o artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal que “constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, … a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”.

No entanto, para além dos direitos do arguido, há igualmente deveres do Estado que cumpre acautelar, nomeadamente a realização da justiça através dos Tribunais, sendo também esta uma matriz constitucional consagrada no artigo 202º da CRP.

Realização da justiça que deve ter lugar em prazo razoável e mediante processo equitativo.

De facto, como estipula o artigo 20º, nº 4, da nossa Lei Fundamental, todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

“A noção de processo equitativo tem igualmente consagração na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (C.E.D.H), através do seu artigo 6º, segundo o qual “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente,…”, referindo-se no seu n.º 3 que “o acusado, tem no mínimo, os seguintes direitos: dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;” [b)], a “interrogar ou fazer interrogar as testemunhas da acusação …” [d)], o que faz incutir que o mesmo tem o direito de estar presente no decurso da audiência de julgamento.

Isto significa que, mormente no âmbito do processo penal, o acusado deve dispor de um processo equitativo, o que só é possível se lhe forem conferidas as devidas oportunidades para o mesmo se poder defender, não o colocando, de forma directa ou indirecta, numa posição de desvantagem face aos seus oponentes.

Este direito a um processo equitativo, implica um tratamento leal (fair treatment) de todos os sujeitos processuais, mormente do acusado, por parte do tribunal, conferindo-se a este a possibilidade de proceder a um efectivo controlo dos procedimentos que lhe dizem respeito, de modo a assegurar todas as garantias de defesa” – cfr. Ac. da RP de 21.10.2009, in www.dgsi.pt.

A necessária concordância dos mencionados valores constitucionais conduz às referidas excepções dos artigos 333º e 334º do Código de Processo Penal.

Dispõe o artigo 333º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal que:

1 - …

2 - …

3 - …

Como se refere no Ac. da RC de 9.2.2011, in www.dgsi.pt “o princípio do contraditório só se concretiza em sede de audiência de discussão e julgamento se o arguido souber da existência da mesma e se puder estar nela presente. Qualquer obstrução externa à concretização destes direitos constitui violação daquele princípio e por isso, o Estado está obrigado a assegurar que os mesmos se materializem. … Mas mesmo quando se verificam estas excepções, o Estado cria condições para que o arguido mantenha o direito/dever de estar presente para exercer um efectivo direito de defesa. É o que resulta dos nº 3 dos artº 333º e 334º. Ora, perante a importância que se reveste a presença do arguido em audiência, é obrigação do Estado conceder-lhe todos os meios para que tal aconteça”.

Como afirma Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar e outros, 2014, pág. 1073, “o arguido ausente, quer a ausência seja ou não justificada, mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, sendo que ao apresentar-se nesta deve ser resumidamente informado do que nela se passou”.

Em suma, mesmo que a audiência de julgamento se inicie sem a presença do arguido, como aconteceu no caso concreto, o certo é que continua assegurado o seu direito de defesa. O arguido, para além de se encontrar representado por defensor ou advogado constituído, mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência. Caso a audiência termine na primeira data, pode o defensor ou advogado constituído requerer que seja ouvido na segunda data designada.

No entanto, para exercer este direito tem, naturalmente, que ter a possibilidade de estar presente, de puder estar presente.

O que não aconteceu no caso concreto. Aquando da segunda sessão da audiência de julgamento, a arguida encontrava-se presa preventivamente e não foi conduzida ao tribunal pelos serviços prisionais por motivo de greve destes serviços. Ficou impossibilitada de comparecer, frustrando-se, assim, o direito que lhe assistia de estar presente e de prestar declarações.

A situação configura, sem dúvida, a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal.

Neste sentido veja-se igualmente o Ac. da RP de 21.10.2009, in www.dgsi.pt, segundo o qual “no caso de o arguido se encontrar preso, depois de ter sido notificado da data da audiência de julgamento, sendo por essa razão que não comparece a esta, deve o Tribunal indagar dessa situação.

Não o fazendo, é indevidamente preterida a presença do arguido na audiência de julgamento, o que gera uma nulidade insanável, face ao disposto no artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal”.

O que não contende, de forma alguma, com a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ nº 9/2012, publicado no DR, 1ª série, de 10.12.2012, nos termos da qual: Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do n.º 1 do artigo 333.º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo”.

Relativamente aos efeitos da declaração de nulidade, estipula o artigo 122º, nº1, do Código de Processo Penal que “as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar”.

A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição – nº 2 do artigo 122º do mesmo diploma legal.

Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela – nº 3 da mesma norma legal.

Concluindo, pelo que fica dito, estamos perante a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal, em virtude da arguida não ter comparecido à segunda sessão da audiência de julgamento, por se encontrar impossibilitada de o fazer.

Nulidade que afecta essa segunda sessão da audiência de julgamento, tornando-a inválida, bem como todos os actos subsequentes, incluindo a sentença proferida nos autos.

Por se tratar de nulidade insanável, que pode e deve ser declarada em qualquer fase do procedimento, é irrelevante que nada tenha sido requerido pela arguida e/ou respectivo defensor, até à interposição de recurso.

*

Pelo exposto, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, devendo ser concedido parcial provimento ao recurso.

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C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida BB e, em consequência, decidem:

- declarar a nulidade da segunda sessão da audiência de julgamento, ocorrida a 10.11.2022, bem como de todos os actos subsequentes, incluindo a sentença proferida nos autos;

- Determinar a realização de nova sessão de julgamento e demais trâmites processuais.

*

Sem custas – artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal (face ao provimento parcial do recurso).

                                                               *

    Notifique.

                                                               *

                                                       

                             Coimbra, 8 de Março de 2023.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

                Rosa Pinto – Relatora

                Alice Santos – 1ª Adjunta

                Luís Ramos – 2º Adjunto