INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
ARMA DE FOGO
REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Sumário

I – O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada, designadamente porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria, com a segurança necessária, à solução legal e à prolação de uma decisão justa.
II – Quando, do texto da sentença recorrida, resulta que a decisão sobre os factos imputados ao arguido na acusação se ancorou na inexistência dos elementos necessários para a classificação da arma por ele detida e que o tribunal reconhece que se viesse a apurar o tipo de cano podia inclui-la na classe C ou D, resulta verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
III – Sendo tais elementos importantes para decidir qual a norma concreta aplicável e, por isso, relevantes para a decisão da causa, e estando tal arma apreendida nos autos, o tribunal a quo podia e devia ter averiguado o tipo de cano da referida arma, através de exame directo ou pericial, ao abrigo do disposto no art. 340º do CPP.

Texto Integral


Acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. … mediante acusação contra o mesmo deduzida pelo MºPº, foi sujeito a julgamento, com intervenção do Tribunal Colectivo, AA, ao qual naquela se lhe imputa a prática, em autoria material, concurso real e sob a forma consumada, de:

- um crime de violência doméstica …

- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86.º n.º 1, al. d) do RJAM, com referência a al. an) do art.º 2.º, al. g, do RJAM, e artigos 2.º, n.º 3 al. p) do mesmo diploma e pela sanção acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas e a medida de segurança, previstas, respectivamente, nos art.s 90.º, n.ºs 1 a 5 e 93.º, n.ºs 1 a 4, todos da lei referida, RJAM, Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro;

- dois crimes de ameaça agravada …

*

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferido acórdão, em 12.10.2022, de cujo dispositivo consta:

“O Tribunal julga totalmente improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA e, em consequência:

1- Absolve o arguido …

3. Inconformado com o decidido no referido acórdão, dele interpôs recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, extraindo da motivação do recurso apresentado as seguintes conclusões …

“1. O acórdão recorrido padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, porquanto perante acusação da prática, pelo arguido, de um crime de detenção de arma proibida, a qual se tratava de uma espingarda, caibre 12, apreendida nos autos, mas não sujeita a exame pericial, não indica qual o tipo de cano, se liso ou estriado.

2. Entendendo o Tribunal a quo que não estava na posse de todos os elementos que considerava imprescindíveis à boa decisão da causa, ou tendo dúvidas sobre a classificação da arma, sendo ainda possível apurar os elementos relevantes em falta, deveria então ter ordenado - dado que estava ao seu alcance - a realização de exame directo ou perícia à espingarda apreendida, nos termos do estatuído nos artigos 323.º, al. a); 340.º, 165.º/1 e 2 e 154.º todos do CPP.

3. Assim, o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar aquela matéria de facto que teve como relevante …

4. Não o tendo feito, deverá ser determinado o reenvio do processo, a fim de se proceder à reabertura da audiência com vista a ser determinada a realização de exame pericial à arma apreendida nos autos e, desta forma, apurar-se o tipo de cano da espingarda; e, uma vez junto aos autos o respectivo relatório, ser dada oportunidade à defesa e à acusação de sobre ele se pronunciarem, decidindo, então, e depois, o Tribunal a quo com prolação de novo acórdão, circunscrito à questão ora em causa.

5. Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta … emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente.

II- Fundamentação

A) Delimitação do objecto do recurso

…  a questão a decidir no presente recurso é a de saber se o acórdão recorrido padece do vício decisório da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

*

B) Da decisão recorrida

Para a apreciação do presente recurso, importa ter presente o que consta do acórdão recorrido que, na parte relevante, se transcreve:

II- FUNDAMENTAÇÃO:

Da prova produzida e da discussão da causa resultou o seguinte:

8- No dia 10.02.2021 o arguido possuía consigo, na casa onde reside, uma espingarda, arma de caça, calibre 12, n.º de série ...78.

11- Ao deter a arma supra referida, agiu o arguido de forma livre e voluntária, bem sabendo que não possuía qualquer licença, autorização de detenção ou de aquisição da arma que lhe foi apreendidas, supra referida, cujas características conhecia, sabendo ainda que a detenção daquela arma era proibida e que não estava autorizado a detê-la.

12- Não obstante, não se absteve da sua conduta, querendo deter a referida arma.

D) Fundamentação de direito:

1.- Enquadramento Jurídico-penal:

b) Do crime de arma proibida:

Do disposto no art. 86.º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, resulta que:

Detenção de arma proibida e crime cometido com arma

1 - …

a) …

b) …   

c) …

d) …

e) …

2 - …

3 - …

4 - …

Por outro lado, do art. 3.º da mesma lei constam as minuciosas definições de armas.

A acusação classifica a arma em causa, como de classe D. Do auto de apreensão (fls. 22/97) consta que a arma tem um cano de 71 cm, calibre 12. Sucede que, caso o cano seja liso, a arma é de tipo D (art. 3.º, n.º 6, al. b), mas se o cano for estriado, estamos perante uma arma de tipo C (art. 3.º, n.º 5, al. a). Porém, nenhuma perícia foi feita à arma em causa, pelo que se desconhece qual o tipo de cano e, consequentemente qual o tipo da arma em questão - o que não é despiciendo, muito embora a pena prevista seja a mesma, pois a sentença contém obrigatoriamente e sob pena de nulidade as disposições legais aplicáveis - cf. art. 374.º, n.º 3, al. a) e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do Código de Processo Penal. Ora, desconhecendo-se qual o tipo de arma, desconhece-se qual a norma concreta aplicável.

Logo, há que concluir que não se provou que o arguido tenha praticado este crime.

(…)

3- Dos objectos

Como resulta do disposto no art. 109.º do Código Penal:

Perda de instrumentos

No caso dos autos, a arma apreendida não se encontra manifestada, nem o arguido é detentor de licença necessária ao seu porte. Consequentemente, não obstante não haja lugar a condenação do arguido, declaramos a arma apreendida perdida a favor do Estado, a ser entregue à PSP para lhe dar destino- cf. art. 109.º, n.º 1 e 2, do Código Penal e art.78.º, n.º 1, do RJAM.”

*

C) Da apreciação do recurso

- Do vício decisório da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

 O recorrente Ministério Público assaca ao acórdão recorrido o vício decisório da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, por entender que o Tribunal a quo ao considerar, como deixou exarado no acórdão recorrido, que não estava na posse de todos os elementos que considerava imprescindíveis à boa decisão da causa, por ter dúvidas sobre a classificação da arma, sendo ainda possível apurar os elementos relevantes em falta para o efeito, deveria ter ordenado - dado que estava ao seu alcance - a realização de exame directo ou perícia à espingarda apreendida …

Pretendendo com o presente recurso que se decida o reenvio do processo, a fim de se proceder à reabertura da audiência com vista a ser determinada a realização de exame pericial à arma apreendida nos autos …

Com deflui da densificação recursiva apresentada pelo recorrente MºPº, a discordância deste em relação ao acórdão recorrido cinge-se, apenas … à absolvição do arguido da prática do crime de detenção de arma proibida …

Em matéria de vícios decisórios, estatui o art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, que “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou

c) O erro notório na apreciação da prova.”.

Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida.

Densificando a previsão e o conteúdo normativo relativo ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, diremos que este existe quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito, ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada, designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria, com a segurança necessária, à solução legal e à prolação de uma decisão justa.  (Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69, e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49).

Tal vício verifica-se, pois, quando da factualidade vertida na decisão se detecta a falta de dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal  a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.      

Na acusação deduzida nos autos contra o arguido vinha a este imputada, entre outra, a seguinte factualidade:

-  “No dia 10.02.2021 o arguido possuía consigo, na casa onde reside, uma espingarda, arma de caça de classe D, calibre 12, n.º de série ...78.

(…)

- Ao deter a arma e munições supra referida, agiu o arguido de forma livre e voluntária, bem sabendo que não possuía qualquer licença, autorização de detenção ou de aquisição da arma e munições que lhe foram apreendidas, supra referidas, cujas características conhecia, sabendo ainda que a detenção daquelas armas e munições era proibida e que não estava autorizado a detê-las.

- Não obstante, não se absteve da sua conduta, querendo praticar os factos que lhe são imputados que bem sabia serem proibidos e punidos por lei penal.

não fosse a sua inimputabilidade, teria incorrido na prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86.º n.º 1, al. d) do RJAM, com referência a al. an) do art.º 2.º, al. g, do RJAM, e artigos 2.º, n.º 3 al. p) do mesmo diploma e pela sanção acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas e a medida de segurança, previstas, respectivamente, nos art.s 90.º, n.ºs 1 a 5 e 93.º, n.ºs 1 a 4, todos da lei referida, RJAM, Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro”.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo decidiu, quanto à referida factualidade, ter-se provado que:

8- No dia 10.02.2021 o arguido possuía consigo, na casa onde reside, uma espingarda, arma de caça, calibre 12, n.º de série ...78.

.”

Já na ponderação do enquadramento jurídico-penal de tal factualidade, o Tribunal a quo procedeu no acórdão recorrido à transcrição do disposto no art. 86.º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro … rematando da seguinte forma: “A acusação classifica a arma em causa, como de classe D. Do auto de apreensão (fls. 22/97) consta que a arma tem um cano de 71 cm, calibre 12. Sucede que, caso o cano seja liso, a arma é de tipo D (art. 3.º, n.º 6, al. b), mas se o cano for estriado, estamos perante uma arma de tipo C (art. 3.º, n.º 5, al. a). Porém, nenhuma perícia foi feita à arma em causa, pelo que se desconhece qual o tipo de cano e, consequentemente qual o tipo da arma em questão - o que não é despiciendo, muito embora a pena prevista seja a mesma, pois a sentença contém obrigatoriamente e sob pena de nulidade as disposições legais aplicáveis- cf. art. 374.º, n.º 3, al. a) e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do Código de Processo Penal. Ora, desconhecendo-se qual o tipo de arma, desconhece-se qual a norma concreta aplicável.

Logo, há que concluir que não se provou que o arguido tenha praticado este crime.”

No entendimento do Tribunal a quo, a circunstância de se desconhecer qual o tipo de cano da referida arma apreendida nos autos … em relação à qual referiu constar do auto de apreensão de fls. 22/97 que tem um cano de 71 cm, calibre 12 e que não foi sujeita a qualquer perícia, não lhe permitiu concluir que a referida arma é de classe D, como propende a acusação.

Mais aduzindo que caso o cano da mesma seja liso, tal arma é de tipo D (art. 3.º, n.º 6, al. b), mas se o cano da mesma for estriado, estaremos perante uma arma de tipo C (art. 3.º, n.º 5, al. a), normativos estes da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, e, ainda, que a pena prevista para a detenção ilegal da arma de classe D e da arma da classe C é a mesma.

Ora, a partir do próprio texto da decisão, por si só, resulta manifesto que a decisão a respeito da referida factualidade imputada ao arguido na acusação contra o mesmo deduzida nos autos se ancorou na inexistência dos elementos necessários para a classificação da arma por ele detida, concretamente os referentes ao tipo de cano da mesma, elementos esses que tendo ficado por averiguar ditaram a decisão de que não se provou que o arguido tenha praticado este crime de detenção de arma proibida que lhe vinha imputado na acusação.

Mas, como o próprio tribunal recorrido reconhece … se viesse a apurar-se qual o tipo de cano da arma em causa nos autos e neles apreendida, poderia resultar a inclusão da mesma na classe C (art. 3.º, n.º 5, al. a) da Lei n.º 5/2006, de 23.02) ou na classe D (art. 3.º, n.º 6, al. b) da Lei n.º 5/2006, de 23.02).

Ora, sendo tais elementos, como o próprio Tribunal a quo considerou, importantes para decidir “qual a norma concreta aplicável“, e, por isso, com relevância para a decisão da causa, não podia o tribunal recorrido ter decidido que “não se provou que o arguido tenha praticado este crime“ sem antes, porque podia e devia, ter averiguado qual o tipo de cano da referida arma, já que esta se encontra apreendida nos autos, seja através do respectivo exame directo ou pericial, ao abrigo do disposto no art. 340º do CPP.

Verifica-se, pois, como defende o MºPº recorrente o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a alínea a) do n.º 2 do art.410.º do Código de Processo Penal que aquele assaca ao acórdão recorrido.

O art. 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estatui que “Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.”.

O reenvio do processo para novo julgamento depende, pois, dos vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. poderem ou não ser supridos pelo tribunal de recurso.

Não podendo este Tribunal de recurso suprir o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada detectado no acórdão recorrido, impõe-se reenviar o processo para novo julgamento, relativamente à questão da classificação da arma em causa nos autos e que nestes se encontra apreendida.

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III- Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

1. Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, declarando a existência do vício a que alude a alínea a), nº 2, do art.410º do C.P.P., determina-se, nos termos dos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, do mesmo Código, o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à questão da classificação da arma em causa nos autos e que nestes se encontra apreendida.

 2.  Recurso sem tributação.

                                                                       ***

Coimbra, 8 de março de 2023

( Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

( Maria José Guerra  – relatora)

(Helena Bolieiro – 1ª adjunta)

( Rosa Pinto  - 2ª adjunta )