CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
DETECÇÃO DE SUBSTANCIAS PSICOTRÓPICAS NO SANGUE
EXAME DE RASTREIO
EXAME DE CONFIRMAÇÃO
CONDUÇÃO EM SEGURANÇA
PROVA PERICIAL
Sumário

I – O elemento objectivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário exige que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica, e que, em razão dessa influência, não esteja em condições de conduzir com segurança.
II – A deteção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio, destinado a apurar a existência dessas substâncias, e, caso de resultado positivo, um exame de confirmação, destinado a identificar e quantificar as substâncias psicotrópicas existentes, à semelhança do que sucede com a detecção de álcool no sangue.
III – É válido o rastreio da presença de substancias psicotrópicas feito apenas por análise sanguínea.
IV – A lei actual não define valores mínimos de concentração de substâncias psicotrópicas nos exames de sangue, devido à evidência clínica de que valores de concentração de THC no sangue a partir de 1,6 ng/ml causam efeitos perturbadores na condução.
V – A decisão se determinado consumo de substancia psicotrópia impede, ou não, o exercício da condução em segurança incumbe ao juiz, por exigir uma valoração de todas as provas produzidas, em razão das circunstâncias do caso, e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.

Após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que decidiu:

I – Condenar o arguido AA, como autor material do crime de condução de condução perigosa, na forma dolosa, p.p. no artigo 291.º, n.º 1, al. a) do CP, por factos práticos no dia 16 de Junho de 2021, em pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €6,00, a que corresponde ao valor global €1.200,00 (mil e duzentos euros);

II – Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de condução pelo período de 6 (seis) meses;

***

Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido, AA, sendo que na respectiva motivação conclui:

c) Face à prova produzida, ou frise-se à falta da mesma, em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente tendo em conta os depoimentos das testemunhas aduzidas pelo douto Ministério Público, e prova documental verifica-se a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410, n.º 2 a) do CPP).

d) Os factos constantes na douta sentença nos parágrafos 3, 6, 7 e 8 deverão ser considerados não provados, atenta a inexistência de prova testemunhal, pericial e médico-legal, para e nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3 a) do CP.P. por configurar um verdadeiro erro de julgamento.

e) Atenta a falta de prova, estamos perante um erro notório da prova por insuficiência da prova para matéria de facto dada como provada nos parágrafos 3, 6, 7 e 8 da douta sentença, para e nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2 C) do CPP.

f) Da sentença recorrida, falta apurar a concreta dimensão do valor e influência da substância estupefaciente apresentada pelo arguido, nos termos sobreditos (dimensão esta que implicará sempre um juízo pericial a partir do resultado do relatório que ora consta a fls. 10) e que é totalmente omisso quanto a esse facto.

g) falta na sentença do tribunal a quo no elenco dos factos provados a concretização do elemento subjectivo (dolo), visto que não existe qualquer referência factual ao elemento cognitivo e volitivo do Arguido sobre o dolo de ação e o dolo de perigo.

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Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso.

Nesta instância o Ministério Público emitiu douto parecer no qual se manifesta, pela improcedência do recurso.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:

1. No dia 12 de Junho de 2021, pelas 19H45, o arguido que antes ingerira canabinóides, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-MZ, pela Rua ..., ..., no sentido ... – ...;

2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, mas em sentido inverso, circulava pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, o veículo ligeiro de passageiros, matrícula SH-..-.., que era conduzido por BB e que levava como passageira CC;

3. O arguido circulava sob a influência dos produtos estupefacientes e a uma velocidade que não lhe permitia controlar de forma rápida o seu veículo, ao aproximar-se de uma curva à sua esquerda, atento o seu sentido de marcha, próxima do entroncamento com a Rua ..., perdeu o controle do veículo, invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem e foi embater na parte esquerda da frente do veículo conduzido por BB, que nada pode fazer para evitar o embate, atenta a forma repentina, como o arguido invadiu a faixa por onde aquele seguia;

4. O condutor e a passageira do veículo ligeiro de passageiros, matrícula SH-..-.., em consequência do embate sofreram ferimentos ligeiros e o veículo em que seguiam, sofreu danos, no valor aproximado de €7.000;

5. O arguido sofreu ferimentos graves e foi conduzido ao Centro Hospitalar ..., onde veio a ser efectuada recolha de sangue para realização de exame químico toxicológico;

6. Na sequência do exame realizado foram apurados os seguintes resultados:

- 11-nor-9-carboxi-delta9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH) – 14ng/ml registado, correspondente a 11ng/ml, após deduzida margem de erro máxima admissível.

- delta 9-tetrahidrocanabinol (THC) – 1,7ng/ml registado, correspondente a 1,1ng/ml, após deduzida margem de erro máxima admissível.

- etanol no sangue por GC/FID – 0,29g/l, correspondente a 0,25g/l, após dedução da margem de erro máxima admissível.

7. Ao agir da forma descrita, fê-lo o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que o consumo daquele tipo de produtos, alterava os reflexos necessária à realização da condução em segurança e também que a acrescer a esse facto, imprimia ao veículo por si conduzido, uma velocidade que não lhe permitia controlá-lo de forma rápida e a respeitar as regras de circulação rodoviária e que poderia assim vir a provocar perigo para a vida ou integridade física dos outros utentes da via, actuou no entanto, conformando-se com essa possibilidade;

8. Sabia, além do mais, que tal conduta é proibida e punida por lei.

*

– Matéria de Facto Não Provada:

a) Que o arguido circulasse a 60km/h no momento em que o carro entrou em despiste.

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– Motivação da Matéria de Facto

Foram relevados os seguintes meios de prova …

- A documentação junta aos autos, nomeadamente o auto de notícia de fls. 2-3, participação de acidente, de fls. 4-6, com aditamento de fls. 7-8v, exame toxicológico – relatório final de fls. 10-10v, relatório complementar de urgência de fls. 37-40.

No mais, teve-se em consideração o teor do depoimento das testemunhas, condutor (BB) e acompanhante (CC), do carro acidentado, as quais descreveram de forma essencialmente uniforme a grande rapidez com que tudo ocorreu.ambas referem ter visto o carro do arguido, depois de descrever a curva apertada situada no local (ver croquis de fls. 6), ter invadido de forma desgovernada a faixa de rodagem onde circulava o veículo automóvel onde circulava, cujo condutor apenas teve tempo de – para tentar evitar o embate – guinar o veículo para a berma da estrada – com a consequente destruição do pneu direito contra a berma da estrada. Ambas relatam uma sucessão de eventos muito rápida e descrevem o comportamento do veículo automóvel conduzido pelo arguido como “vinha em duas rodas” (sic), relatando a descrição da curva pelo veículo de forma descontrolada, indiciando velocidade excessiva em face do comportamento descrito pelo veículo, em situação de quase capotamento, “em duas rodas”.

O exame toxicológico prova a condução sob influência de substâncias proibidas, designadamente canabinóides (THC e THC COOH, misturado com etanol e ainda quantidade quase imperceptível de morfina).

No que respeita à prova da influência das substâncias consumidas para o despiste do veículo conduzido pelo arguido, salienta-se o efeito potenciador da mistura de consumo de canabinóides com álcool, sendo indiscutível, por reconhecida a alteração de percepção que as referidas substâncias provocam, não só no entendimento – capacidade para perceber a realidade e tomar decisões de acordo com essa percepção; na aptidão para compreender a realidade na sua globalidade: medir as distâncias, focar a atenção, diminuição da capacidade de coordenação e reflexos.

O arguido não prestou declarações, inexistindo qualquer elemento probatório para além dos supra mencionados que permita colocar em questão a conduta do arguido. Da descrição do comportamento do veículo automóvel do arguido resulta que, mesmo que o arguido circulasse a 90km/h, velocidade permitida na zona, impõe-se concluir que o arguido não só conduzia a velocidade a que o arguido, à data e por causa das substâncias que tinha consumido, não se encontrava em condições de circular, por não dominar o exercício da condução com a segurança e rapidez de reflexos exigida, como também essa percepção diminuída poderá ter condicionado a decisão sobre a velocidade a adoptar numa via estreita, com uma curva muito apertada para a esquerda, numa tarde em que foi reconhecido pelo pai do arguido (DD) ter chovido, encontrando-se o piso molhado, razão pela qual foram julgados provados os factos descritos em 3., 7. e 8..

… o velocímetro de um veículo automóvel não é um relógio cuja pancada no visor fixa a hora da pancada. O velocímetro, por móvel, ao receber uma pancada, tanto pode fixar o mostrador no zero, como no estremo oposto, demonstrando apenas que se encontra estragado, razão pela qual foram os factos julgados não provados em a).

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Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

Questões a decidir:

- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

-Erro notório na apreciação da prova;

- Impugnação dos factos dados como provados nos pontos 3, 6, 7 ao abrigo do disposto no artº 412º nº 3 do CPP;

Sustenta o recorrente que no caso vertente conclui-se que não estão verificados os elementos típicos do crime de que o Arguido vem acusado. De facto, atentos os elementos carreados ao processo impunham uma decisão diversa daquela que foi proferida. Face à prova produzida, ou frise-se à falta da mesma, em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente tendo em conta os depoimentos das testemunhas aduzidas pelo douto Ministério Público, e prova documental verifica-se a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410, n.º 2 a) do CPP). Os factos constantes na douta sentença nos parágrafos 3, 6, 7 e 8 deverão ser considerados não provados, atenta a inexistência de prova testemunhal, pericial e médico-legal, para e nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3 a) do CP.P. por configurar um verdadeiro erro de julgamento. Atenta a falta de prova, estamos perante um erro notório da prova por insuficiência da prova para matéria de facto dada como provada nos parágrafos 3, 6, 7 e 8 da douta sentença, para e nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2 C) do CPP. Da sentença recorrida, falta apurar a concreta dimensão do valor e influência da substância estupefaciente apresentada pelo arguido, nos termos sobreditos (dimensão esta que implicará sempre um juízo pericial a partir do resultado do relatório que ora consta a fls. 10) e que é totalmente omisso quanto a esse facto.

            Como o recorrente sabe o Tribunal da Relação pode conhecer da questão de facto por duas vias:

- a da impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada – cfr. artigo 431º do CPP;

- ou e, se for o caso, a dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP.

Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.

No caso vertente, entende o recorrente, que outra deveria ter sido a decisão sobre a matéria de facto razão pela qual impugna os pontos 3, 6, 7 e 8 dos factos dados como provados.

Dispõe o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal que, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

No caso sub judice a questão não se prende com a alínea c) mas sim com a alíneas b).

A especificação dos concretos pontos de facto traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida.

Nos termos do nº 4 da mesma norma legal “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação”.

Não basta, pois, a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos.(Cf AcTRC 10/19.4PEFIG.c1 de 30/3/22)

O STJ, no Ac. nº 3/2012, publicado no DR, 1ª série, de 18.4.212, fixou jurisprudência no sentido de que: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa – nº 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Por sua vez, dispõe o artigo 431º do mesmo diploma legal que, “sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova.

Respeitados os pressupostos referidos, o Tribunal da Relação deve então averiguar se, relativamente aos factos indicados pelo recorrente, o Tribunal de 1ª instância julgou bem.

“A respeito da impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, há que considerar o seguinte:

Como se refere nos doutos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006, Procs. nºs 2951/05 e 461/06 e AcTRC 10/19.4PEFIG.c1 de 30/3/22), respetivamente, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».

No mesmo sentido o Ac. da RG de 6.12.2010, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que, no caso de impugnação da matéria de facto, a que se refere o nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, “a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente”.

Pode-se ler ainda no referido acórdão citado no AcTRC 10/19.4PEFIG.c1 de 30/3/22 que “o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (Cfr. Acórdãos do S.T.J. de 14 de Março de 2007, de 23 de Maio de 2007 e de 3 de Julho de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.). Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, como estipulado no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal”.

Revertendo ao caso concreto, vejamos se foram respeitados pela recorrente os requisitos supra mencionados do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal.

O recorrente indicou os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgada. Porém, não indicou qualquer prova concreta que impusesse decisão diversa da recorrida, com respeito pelo disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.

O recorrente limita-se a atacar a forma como o tribunal a quo valorou a prova produzida.

A recorrente ao impugnar a matéria de facto esquece os elementos de prova nos quais o tribunal se baseou. É no conjunto de todos esses elementos que se fundamenta a convicção e não, apenas, num ou noutro dos mesmos elementos” (Rec nº 2541/2003).

Ora, o pretendido pelo recorrente é que o tribunal ad quem faça um novo julgamento relativamente às questões por ele levantadas e de acordo com as suas convicções deferindo deste modo as suas pretensões.

Acresce que os elementos em falta inexistem quer nas conclusões quer na motivação propriamente dita.

Poder-se-ia dizer que esta Relação deveria mandar corrigir a peça recursória …

Neste sentido temos o disposto no artigo 417º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.

Dispõe o nº 3 que “se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada. Se a motivação do recurso não contiver as conclusões e não tiver sido formulado o convite a que se refere o nº 2 do artigo 414º, o relator convida o recorrente a apresentá-las em 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado”.

Por sua vez, o nº 4 estipula que “o aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação”.

É verdade que o art. 417º nº 3 do CPP estipula que se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do art 412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.

No entanto, o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (art 417º nº 4 do CPP).

Ou seja, só é possível o convite para a correcção quando essa correcção se processa dentro dos termos da própria motivação e não constitua uma substituição, mesmo que parcial da motivação.

Como vem referido no Ac desta Relação de 2 de Abril de 2008 no processo 604/05.5PBVIS.C1 “quando o recorrente expõe consistentemente as razões concretas da sua discordância, mas depois, por lapso, não as assinala devidamente nas conclusões existem razões que se fundamentam na proibição de excesso, no princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado no art 18º nº 2 da CRP que justificam a convite e a consequente possibilidade de correcção.

Porém, quando o recorrente no corpo da motivação do recurso não enunciou as especificações, o convite à correcção não se justifica porque para se obter a harmonização entre as conclusões, o corpo da motivação e a obrigação legal de especificação seria necessária uma reformulação substancial das motivações e das conclusões, o que significaria a concessão da possibilidade de um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade de prazo de apresentação do recurso.

No caso vertente, nem na motivação, nem nas conclusões existe qualquer menção às provas que impõem decisão diversa pelo que não se justifica o convite ao aperfeiçoamento.

Aliás e como já se referiu do recurso interposto, nomeadamente, das conclusões verifica-se que o recorrente apenas pretende atacar a forma como o tribunal a quo valorou a prova produzida.

Assim, tem-se como assente a matéria de facto.

Como acima se referiu o Tribunal da Relação pode conhecer da questão de facto por uma 2ª via a dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP.

O recorrente vem suscitar a falta de factos que considera essenciais à sua condenação e, portanto, a sentença sofre de insuficiência para a decisão de facto e erro notório na apreciação da prova.

Tais vícios têm que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito”.

Segundo o Germano Marques da Silvar (Curso de Processo Penal, III, p. 340) para se verificar o fundamento previsto na alínea a)  do artº 410º, nº 2”é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito”...” é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”.

Como bem se refere no Ac. do S.T.J. de 13/2/91, “O fundamento a que se refere a al. a) do nº 2 do artº 410º do CPP é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, coisa bem diferente.”

Também como bem se refere no Ac. do S.T.J. de 21/6/07, Procº 07P2268, Rel. Simas Santos:

“Na verdade, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do princípio da livre apreciação da prova (artº 127º) que é insindicável em reexame da matéria de direito”.

«Também neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 2ª edição, pág. 410: “Mas não se pode invocar a insuficiência da matéria de facto para uma decisão de facto diferente da que foi proferida, uma vez que aquela insuficiência tem que ser apreciada em função da solução adoptada para o caso na decisão recorrida. Isto é, a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida. Esta é uma questão que respeita ao recurso da matéria de facto”.

Apenas existe erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente.

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido. Com efeito, a jurisprudência tem considerado tais vícios apenas como os erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio.

 O recorrente não se conforma com a condenação por considerar que a factualidade dada como provada não preenche o tipo legal de crime pelo qual veio a ser condenado.

Dispõe o artº 291º do Código Penal que:

“1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:

a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou

b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.

Do mencionado preceito legal decorre que o elemento objetivo do tipo de crime em apreço contempla duas realidades:

- A do condutor encontrar-se sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica;

- A de em razão dessa mesma influência não estar em condições de o fazer com segurança.

Portanto, para que se esteja na presença de uma conduta ilícita tipificada como crime, não basta que o agente conduza sob a influência de produtos estupefacientes, é necessário, ainda, que se possa fazer a afirmação de que, por estar assim influenciado, não está capaz de o fazer em segurança por se encontrar perturbado na sua aptidão física, mental ou psicológica.

Como é referido no Ac do TRL 1005/19.3GLSNT.L1-5 de 6/12/2022 e que vamos seguir “sob o Capítulo “Avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas”, a Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas, veio precisamente estabelecer os procedimentos necessários ao seu apuramento, decorrendo do seu artigo 10.º que “a detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação”, resultando do artigo 16.º da Portaria nº 902- B/2007, de 13 de agosto, inserido no Capítulo II, intitulado “avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas”, Secção I, intitulada de “exame de rastreio”, e quadro nº 2, do anexo V, respeitante a valores de concentração para exame de rastreio na urina, que os exames previstos no número anterior devem ser executados, de acordo com os procedimentos do fabricante ou de validação interna, numa amostra de urina com o volume mínimo de 30 ml, sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo v, ou seja, igual ou superior a 50 ng/ml no que se reporta aos canabinóides.

Ou seja, o artigo 10.º da Lei nº 18/2007, de 17/5, prevê que a deteção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação.

Note-se, porém, que os valores de referência do quadro 2 do Anexo V respeitam apenas ao rastreio na urina. Nele consta como valor de concentração de canabinoides a partir do qual se considera haver influência da referida substância no agente que a consumiu, 50ng/ml (50 nanogramas por mililitro). Portanto, se o exame em urina indicar um valor de canabinoides superior a 50ng/ml - e só neste caso - o agente deve ser submetido a exame de confirmação, a realizar em amostra de sangue (artigo 19º).

Ora, in casu, o valor obtido resultou da análise sanguínea e não foi precedido de análise de rastreio em urina, pelo que não nos podemos socorrer dos valores de referência que constam do quadro 2 do Anexo V à Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto, como o defende o recorrente. E, o facto de não ter sido precedido de exame de rastreio em urina, nem por isso o valor alcançado no exame de sangue, deixa de ser válido e analisável, pois, conforme se referiu, o exame de rastreio destina-se a obter a informação da existência de substâncias psicotrópicas, enquanto que o exame de confirmação destina-se a obter a identificação e quantificação das substâncias psicotrópicas existentes [à semelhança do que ocorre com a deteção de álcool no sangue: o exame realizado em analisador “qualitativo” precede, normalmente, o exame realizado em analisador “quantitativo”].[T RG de 14/10/2019, no Processo n.º 3/18.9PTBRG.G1]

Acresce que, atualmente, a lei não define valores mínimos de concentração de substâncias estupefacientes nos exames de sangue, contrariamente ao que acontece nos exames de rastreio na urina, pese embora já o tenha fixado no passado. Efetivamente a Portaria 1006/98 de 30.11 (que veio a ser revogada pela Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto) fixava como valores limite, abaixo dos quais se considerava que o examinado não estava influenciado por substâncias estupefacientes os que constavam do quadro 2 do anexo V. No que respeita às concentrações mínimas definidoras de positividade a substâncias de marijuana eram fixados valores de 50ng/ml em urina e 80 ng/ml em sangue. E se é certo que os 50 ng/ml em rastreio de urina se mantiverem no atual quadro 2 do anexo V, já o valor em sangue, como referência, desapareceu.

Afigura-se que a tal desaparecimento não será alheia a evolução científica, uma vez que há atualmente evidência clínica de que valores de concentração de THC no sangue a partir de 1,6 ng/ml causam efeitos perturbadores no ato de conduzir.

De facto, é hoje incontroverso que o THC é um vasodilatador periférico que provoca efeitos na visão e que perturba a perceção do tempo, da velocidade e da distância. Sendo a condução uma tarefa complexa que obriga a vários níveis de atenção no domínio cognitivo e psicomotor, ela é afetada significativamente após o consumo de cannabis. Por outro lado, de acordo com o mesmo estudo, os efeitos mais fortes fazem-se sentir quando a concentração no sangue depois de atingir um pico máximo (que ocorre cerca de 1 hora após o consumo fumado), começa a diminuir. Há nessa altura um aumento de risco. Considera-se que 2ng/ml de THC corresponde a um aumento de risco significativo e 5ng/ml um aumento de risco muito elevado.

Como sustenta Helena Maria Teixeira [“Determinação de canabinóides em amostras biológicas por cromatografia líquida de alta resolução com espectrometria de massa: aplicação em toxicologia forense”] “A marijuana, o haxixe e outros produtos psicoactivos obtidos da Cannabis sativa, são as drogas ilícitas mais produzidas e traficadas em todo o mundo. Por outro lado, paralelamente a um aumento do seu consumo na comunidade em geral, tem-se assistido a um acréscimo de casos de condução sob a sua influência. Tem sido demonstrado que a intoxicação provocada por este tipo de compostos está principalmente relacionada com a concentração do seu principio activo o Δ9-Tetrahidrocanabinol (Δ9-THC)”. No caso, a análise quantitativa ao sangue representou a dupla função de rastreio e confirmação.

A citada Portaria, contrariamente ao que sustenta o recorrente, não exige valores mínimos no exame de confirmação para o “estado de influência”.

Os valores em causa indicados pelo recorrente, de 50ng/ml, como integradores da condução sob a influência de produtos estupefacientes, pela definição legal são “valores de concentração para exame de rastreio na urina”, portanto, não se reportam ao exame de confirmação no sangue, que foi o que se apurou no caso, não podendo, por isso, sustentar-se ser esse um limite mínimo de punibilidade[  Acórdão do TRP, datado de 23-10-2019, Processo n.º 80/17.0GACPV.P1].

Assim sendo, tendo, in casu, o exame ao sangue sido positivo, revelando a existência de substância proibida, no caso com:

- 11-nor-9-carboxi-delta9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH) – 14ng/ml registado, correspondente a 11ng/ml, após deduzida margem de erro máxima admissível.

- delta 9-tetrahidrocanabinol (THC) – 1,7ng/ml registado, correspondente a 1,1ng/ml, após deduzida margem de erro máxima admissível.

- etanol no sangue por GC/FID – 0,29g/l, correspondente a 0,25g/l, após dedução da margem de erro máxima admissível,

mostra-se verificado o conceito de que o arguido conduzia sob a influência de produtos estupefacientes.

É verdade que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, associa de forma inelutável a influência pelo consumo de estupefacientes à perturbação da aptidão para conduzir, pois a integração da conduta no tipo legal pressupõe que o agente não esteja “em condições de o fazer com segurança”.

Se assim é, terá sempre que se demonstrar, em concreto, que a substância teve efeitos perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.

Por conseguinte, impõe-se que se demonstre que o agente se encontrava a conduzir o veículo, na via pública ou equiparada, influenciado pelo consumo de produtos estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo perturbador da aptidão física, mental ou psicológica, e se constate que o agente não estava em condições de exercer a condução com segurança.

A valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.

A insegurança na condução dependerá, assim, do circunstancialismo do caso concreto, não se podendo olvidar o comum conhecimento dos efeitos do produto estupefaciente ou substância psicotrópica sobre o organismo humano e a noção, consabida, da diminuição que o seu consumo significativamente provoca em determinadas funções e aptidões humanas, nomeadamente, as necessárias para o exercício da atividade da condução.

Estamos, como se disse, perante um crime de perigo, contra a segurança das comunicações rodoviárias, que visa punir condutas que violem determinados bens jurídicos que necessitam de ser tutelados, face à dinâmica evolutiva da sociedade atual, nomeadamente, no que concerne aos avanços tecnológicos, suscetíveis de fazerem perigar o bem-estar e segurança da comunidade em geral.

Sendo as características de tais substâncias sobejamente conhecidas pela comunidade em geral, o agente que exerce a condução sob o efeito do consumo de estupefaciente ou substância psicotrópica, sabe que tal consumo lhe diminuirá tais aptidões, e que, por via disso, poderá potenciar a criação de resultados anómalos e danosos, nomeadamente a ocorrência de acidentes de viação, colocando em causa a segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, outros bens jurídicos penalmente tutelados, como a vida, a integridade física e o património de terceiros.

Ora, se assim é, não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução. Essa exigência, de demonstração cirúrgica, de que o condutor tinha esta ou aquela função diminuída, em função do consumo daquele tipo de produto ou substância, só assim se podendo concluir que não podia conduzir com segurança, seria, na prática, quase irrealizável. Não se fala aqui de estabelecer um qualquer nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de drogas no sangue e o acidente ocorrido, mas apenas de se consignar uma verdade que parece ser pouco discutível: a de que quem conduz influenciado sob o efeito de tais substâncias está a colocar em perigo, não só a sua vida e integridade física, mas também, a vida e a integridade física de todos aqueles com quem se cruza na estrada.

Dito de outra forma, a demonstração de que a substância estupefaciente detetada no sangue do agente o impedia de conduzir com segurança, pode e deve, ser lograda, com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a atividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.

Assim, assentamos que a prova da perturbação da condução por estar o agente sob a influência de estupefacientes, pode ser alcançada por outros meios que não a prova pericial, como seja pela prova testemunhal, ou seja, “deve ser extraída da valoração da prova nas circunstâncias do caso concreto”.

Neste mesmo sentido o Ac desta Relação nº 4/21.0PTCBR.C1 de 17/03/2022 refere que “Estamos, como se disse, perante um crime de perigo comum, contra a segurança das comunicações rodoviárias, que visa punir condutas que violem determinados bens jurídicos que necessitam de ser tutelados …

Sendo as características de tais substâncias sobejamente conhecidas pela comunidade em geral, o agente que exerce a condução sob o efeito do consumo de estupefaciente ou substância psicotrópica, sabe que tal consumo lhe diminuirá tais aptidões, e que, por via disso, poderá potenciar a criação de resultados anómalos e danosos …

Ora, se assim é, não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução.

Essa exigência, de demonstração cirúrgica … faria recair a demonstração do crime naquilo a que comummente se denomina por prova diabólica.

Não se fala aqui de estabelecer um qualquer nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de drogas no sangue e o acidente ocorrido, mas apenas de se consignar uma verdade que parece ser pouco discutível: a de que quem conduz influenciado sob o efeito de tais substâncias está a colocar em perigo, não só a sua vida e integridade física, mas também, a vida e a integridade física de todos aqueles com quem se cruza na estrada.

Se assim não fosse seria incompreensível a inserção sistemática efetuada pelo legislador no que respeita ao crime em referência.

Ora, se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar de perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve, ser logrado, com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a atividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.

Assim, assentamos que a prova da perturbação da condução por estar o agente sob a influência de estupefacientes, pode ser alcançada por outros meios que não a prova pericial, como seja pela prova testemunhal».

Portanto, a valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.

No caso vertente ficou provado que o arguido circulava sob a influência dos produtos estupefacientes e a uma velocidade que não lhe permitia controlar de forma rápida o seu veículo e ao aproximar-se de uma curva à sua esquerda, atento o seu sentido de marcha, próxima do entroncamento com a Rua ..., perdeu o controle do veículo, invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem e foi embater na parte esquerda da frente do veículo conduzido por BB, que nada pode fazer para evitar o embate, atenta a forma repentina, como o arguido invadiu a faixa por onde aquele seguia; O condutor e a passageira do veículo ligeiro de passageiros, matrícula SH-..-.., em consequência do embate sofreram ferimentos ligeiros e o veículo em que seguiam, sofreu danos, no valor aproximado de €7.000; O arguido sofreu ferimentos graves e foi conduzido ao Centro Hospitalar ..., onde veio a ser efectuada recolha de sangue para realização de exame químico toxicológico;

A testemunha BB (condutor) e CC (acompanhante) do carro acidentado descreveram como tudo ocorreu e referem ter visto o carro do arguido, depois de descrever a curva apertada situada no local … ter invadido de forma desgovernada a faixa de rodagem onde circulava o veículo automóvel onde circulava, cujo condutor apenas teve tempo de – para tentar evitar o embate – guinar o veículo para a berma da estrada …. Ambos relatam uma sucessão de eventos muito rápida e descrevem o comportamento do veículo automóvel conduzido pelo arguido como “vinha em duas rodas” (sic), relatando a descrição da curva pelo veículo de forma descontrolada, indiciando velocidade excessiva em face do comportamento descrito pelo veículo, em situação de quase capotamento, “em duas rodas”.

O exame toxicológico prova a condução sob influência de substâncias proibidas, designadamente canabinóides (THC e THC COOH, misturado com etanol e ainda quantidade quase imperceptível de morfina).

No que respeita à prova da influência das substâncias consumidas para o despiste do veículo conduzido pelo arguido, salienta-se o efeito potenciador da mistura de consumo de canabinóides com álcool, sendo indiscutível, por reconhecida a alteração de percepção que as referidas substâncias provocam, não só no entendimento – capacidade para perceber a realidade e tomar decisões de acordo com essa percepção; na aptidão para compreender a realidade na sua globalidade: medir as distâncias, focar a atenção, diminuição da capacidade de coordenação e reflexos.

Ao contrário do sustentado pelo recorrente é óbvio que a decisão recorrida não omitiu o elemento subjectivo do crime. O Tribunal deu como provado que ao agir da forma descrita, fê-lo o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que o consumo daquele tipo de produtos, alterava os reflexos necessária à realização da condução em segurança e também que a acrescer a esse facto, imprimia ao veículo por si conduzido, uma velocidade que não lhe permitia controlá-lo de forma rápida e a respeitar as regras de circulação rodoviária e que poderia assim vir a provocar perigo para a vida ou integridade física dos outros utentes da via, actuou no entanto, conformando-se com essa possibilidade; Sabia, além do mais, que tal conduta é proibida e punida por lei.

O elemento subjectivo não é susceptível de apreensão directa por pertencer ao foro intimo de cada um, pelo que só pode ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e as regras da experiência que permitam inferi-lo a partir de factos materiais comuns entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infracção.

Portanto, a partir de determinados factos e à luz das regras da experiência podemos concluir pela intencionalidade pela forma como agiu o arguido. Portanto, a intenção com que o recorrente agiu retira-se, extrai-se, da matéria de facto. É através da realidade factual que lhe está subjacente que o Tribunal e recorrendo às regras da experiência tem de concluir pela intencionalidade ou não do agente. E dos factos apurados bem andou o tribunal ao concluir pela intencionalidade do arguido.

A sentença foi clara e nela inexistem quaisquer dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP, mormente, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova.

E como acima se referiu não basta a presença da substância psicotrópica no corpo do agente do crime rodoviário, sendo necessário que a mesma tenha influenciado e tornado o agente incapaz de conduzir em segurança e com segurança, e isto independentemente do resultado danoso que possa ter ocorrido [acTRC cit].

Face ao exposto e tendo em conta a factualidade apurada e os pressupostos do crime em referência, entendemos que os mesmos se encontram preenchidos, não existindo qualquer censura a fazer no que respeito ao enquadramento jurídico efectuado pela sentença recorrida.

*

Termos em que se nega provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 ucs.

Coimbra,

Alice Santos

Luís Ramos

Luís Teixeira