ACÇÃO PENAL
MINISTÉRIO PÚBLICO
LEGITIMIDADE DO ASSISTENTE PARA ACUSAR
INQUÉRITO
FALTA DE PROMOÇÃO DO PROCESSO
NULIDADE DO INQUÉRITO
Sumário


I – O assistente apenas tem legitimidade para deduzir acusação particular contra a sua irmã pela prática dos crimes e abuso de confiança, na sua forma simples, como se retira do n.º 1 do artigo 207.º do Código Penal, conjugado com o n.º 1 do artigo 50.º do Código de Processo Penal.
II – Estando em causa a prática de crimes de abuso de confiança na forma agravada, do artigo 205.º, n. 1 e n.º 4, alínea a), do Código Penal, e exercido o direito a queixa, cabe apenas ao Ministério Público o exercício a acção penal, nos termos dos artigos 48.º e 49.º, do Código de Processo Penal.
III – A omissão deste dever gera a nulidade insanável de falta de promoção do processo, prevista no artigo 119.º, alínea b), do Código do Processo Penal, conjugada com os artigos 48.º e 49.º do Código de Processo Penal, 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 1.º do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público.
IV – Esta nulidade gera a invalidade de todos os actos praticados após o despacho do Ministério Público que determinou a notificação ao assistente para deduzir acusação particular.
V – Declarada a nulidade do inquérito por falta de promoção do Ministério Público, a consequência lógica é a remessa dos autos ao Ministério Público, para que este realize as diligências que entenda serem de levar a cabo, dentro das funções do mesmo.

Texto Integral


Relatora: Alcina Ribeiro
1.º Adjunta: Cristina Pego Branco
2.º Adjunta: Maria Alexandra Guiné

Acordam, em Conferência na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. Por despacho proferido em 6 de setembro de 2022, o Senhor Juiz de Instrução decidiu declarar a nulidade a acusação particular deduzida pelo assistente AA na parte em que imputa à arguida BB a prática de dois crimes de abuso de confiança, na sua forma agravada, previsto e punido pelo o artigo 205.º n.ºs 1 e 4 al. a) do Código Penal.

2. Inconformado recorre o Assistente, formulando as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos estão em causa diversos crimes imputados pelo assistente, ora recorrente, à arguida …

3. Em 14 de abril de 2022 foi, pelo Digno Magistrado do Ministério Publico proferido despacho no sentido de arquivar os autos relativamente aos crimes de injúrias, de ameaça agravada; de falsificação de documentos; e de furto/abuso de confiança, estes últimos apenas na parte imputada aos arguidos CC e B..., Unipessoal, Lda.

f) E foi o assistente notificado para deduzir acusação particular …

g) … requereu abertura de instrução relativamente ao arquivamento quanto ao crime de falsificação de documentos e deduziu acusação particular relativamente aos crimes de furto e abuso de confiança.

h) Acusação não acompanhada pelo Digno Magistrado do Ministério Público …

i) Apresentado o requerimento de abertura de Instrução junto do Digno Magistrado do Juízo de Instrução, foi pelo mesmo decidido, como “questão prévia” declarar nula a acusação particular na parte em que imputa à arguida dois crimes de abuso de confiança.

j) Relativamente aos crimes de furto e abuso de confiança imputados à arguida BB, o Ministério Publico não proferiu despacho de arquivamento, notificou o assistente para deduzir acusação particular;

k) Terminado o inquérito, ao MP caberia tomar a decisão de arquivar ou deduzir acusação.

m) Pelo que houve assim absoluta omissão do Ministério Público relativamente a dois crimes de natureza semipública.

n) A falta de promoção do processo penal pelo Ministério Público constitui uma nulidade insanável, conforme previsto na alínea b) do artigo 119º do CPP.

o) Nulidade que deveria ter sido declarada pelo Meritíssimo Juiz de Instrução;

p) Nulidade que expressamente se invoca e que afeta todo o encerramento do inquérito, bem como todos os atos subsequentes, conforme decorre do disposto no artigo 122º do CPP.

q) A decisão recorrida violou assim o disposto nos artigos 119º alínea b), 276º n.º 1 e 277º, 283º, 285º, 311º do Código de Processo Penal.

II. DESPACHO RECORRIDO

A.

… o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento nos termos do disposto no art. 277.º n.º 2 do Código de Processo Penal, relativamente aos hipotéticos crimes de falsificação de documentos e de furto/abuso de confiança perpetrados pela arguida BB (fls. 316-321).

Mais exarou o seguinte despacho:

No pressuposto de que o assistente entenda, ao contrário do que o Ministério Público sustenta, que a arguida BB cometeu o crime de furto, previsto e punido, pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal e/ou o crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, nº 1 do Código Penal, deverá, nos termos previstos no artigo 285º, nº 1 do Código de Processo Penal, deduzir acusação particular.”

Na sequência desta notificação, veio o assistente AA deduzir acusação particular contra a arguida BB, imputando-lhe a prática de:

– um crime de furto, p. e p. pelo art. 203.º n.º 1 do Código Penal; e

– dois crimes de abuso de confiança, na sua forma agravada, p. e p. pelo art. 205.º n.ºs 1 e 4 al. a) do Código Penal.

Ora, como se retira do disposto no n.º 1 do art. 207.º do Código Penal, conjugado com o n.º 1 do art. 50.º do Código de Processo Penal, o assistente apenas tem legitimidade para deduzir acusação particular pelos crimes de furto e abuso de confiança, na sua forma simples, o que significa que não tem legitimidade para deduzir acusação particular pela prática de um crime de abuso de confiança, na sua forma agravada (como não teria no caso de um crime de furto qualificado) – aliás, o Ministério Público foi bem claro quando se reportou aos arts. 203.º n.º 1 e 205.º n.º 1 do Código Penal.

Assim, se discordava da opção do Ministério Público em arquivar o inquérito relativamente aos crimes de abuso de confiança agravado (por causa do valor dos bens), deveria sim ter requerido a abertura de instrução.

Pelo exposto, por falta de legitimidade processual, declaro nula a acusação particular deduzida pelo assistente AA na parte em que imputa à arguida BB a prática de dois crimes de abuso de confiança, na sua forma agravada, p. e p. pelo art. 205.º n.ºs 1 e 4 al. a) do Código Penal (falamos essencialmente dos pontos 1º a 33º, 43º e 50º a 54º da acusação particular).

Neste contexto, a instrução requerida pela arguida circunscrever-se-á ao crime de furto simples que lhe foi igualmente imputado pelo assistente …

III. QUESTÕES A DECIDIR

… são as seguintes as conclusões a decidir …

- Existe a nulidade insanável prevista na alínea b) do artigo 119.º, do Código de Processo Penal;

- O juiz de instrução pode alterar a qualificação jurídico-penal dada pelo assistente na acusação particular.

IV.  ACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES

1. O assistente participou criminalmente contra a arguida pela prática de um crime de abuso de confiança agravada prevista e punida pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, alínea a) e um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, ambos do Código Penal …

Mais participou criminalmente contra a arguida e outros, imputando-lhes a prática de crimes de furto/abuso de confiança.

2. Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:

B.  AA apresentou queixa contra a sua irmã BB, por factos, em abstrato, suscetíveis de configurar a prática dos crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, al. c) do Código Penal e de abuso de confiança, previsto e punido pelos artigos 205º, nos 1 e 4, al. a) do Código Penal.

Quanto ao crime de falsificação de documentos, está em causa a alegada falsificação da assinatura (melhor dizendo, a abreviatura) do pai de ambos, DD …

A arguida BB, interrogada (fls. 222-224) limitou-se a dizer que os bens da herança do seu falecido pai estão devidamente relacionados no processo de inventário …

Analisado o documento, alegadamente falsificado, verificamos que o mesmo foi apresentado, para o registo de respetiva propriedade, em nome do referido EE, em 22-01-2018, data posterior à morte do seu anterior proprietário registral, o referido DD, pai do assistente e da arguida.

Todavia, tal facto não é determinante para a prova de que não terá sido o falecido DD a apor a sua assinatura no campo do “sujeito passivo” …

É certo que seria possível obter outras assinaturas do falecido DD e fazer a sua comparação com a assinatura que o assistente diz ser falsa.

Contudo, assumimos aqui que tal comparação, em virtude de não estar em causa a comparação de carateres (letras do alfabeto latino), mas antes de uma mera abreviatura …

Por tudo o exposto, entendemos que não se reuniram, nem se mostra possível reunir, indícios suficientes de que a arguida BB tenha praticado o crime de falsificação de documentos que lhe é imputado … razão pela qual, ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 2 do Código de Processo Penal, determino o arquivamento do inquérito, na parte respeitante.

B.2. Crime de furto/abuso de confiança:

O Ministério Público entende que, face aos elementos probatórios carreados para os autos, não se reuniram indícios suficientes de que a arguida BB tenha cometido qualquer crime, nomeadamente o crime de furto …

- encontra-se aberta a herança jacente por óbito de DD, pai do assistente e da arguida …

- a relação de bens inicialmente apresentada pela arguida foi já objeto de alteração, por relação adicional e objeto de reclamação, não havendo prova cabal que demonstre que tal adicionamento de bens pretendesse encobrir uma apropriação de bens;

- … se porventura, não vierem a ser nela contemplados alguns dos bens que o assistente mencionou na sua queixa, os elementos probatórios recolhidos não permitirão concluir que a arguida deles de apropriou.

C.1. Conduta dos arguidos CC e “B..., Sociedade Unipessoal, Lda.”:

O arguido CC, interrogado (fls. 208-210), disse que, efetivamente, comprou à arguida BB as árvores em causa, no convencimento de que a mesma, enquanto cabeça de casal, o poderia fazer.

Por sua vez, a arguida BB, interrogada (fls. 231-233) disse que, efetivamente, vendeu as árvores em causa, pelo valor de €1.500,00, e que tal foi relacionado no processo de inventário …

Em face de tais depoimentos, mostra-se óbvio que o arguido CC (bem como a sociedade de que é titular) não cometeu qualquer crime, razão pela qual, ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 1 do Código de Processo penal, determino o arquivamento do inquérito, na parte respeitante.

**

C.2. Conduta da arguida BB:

… não se reuniram indícios de que a arguida BB tenha praticado qualquer crime de furto/abuso de confiança, relativamente à venda a CC das árvores do terreno rústico … pertencente à herança de DD

**

D. Notificação do assistente para, querendo, deduzir acusação particular:

No pressuposto de que o assistente entenda, ao contrário do que o Ministério Público sustenta, que a arguida BB cometeu o crime de furto, previsto e punido, pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal e/ou o crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, nº 1 do Código Penal, deverá, nos termos previstos no artigo 285º, nº 1 do Código de Processo Penal, deduzir acusação particular.

…».

**

3. Notificada deste despacho, veio o assistente deduzir acusação contra a arguida, nos termos seguintes:  

No dia .../.../2017, faleceu DD …

Assistente e arguida são filhos do falecido …

Além do assistente e da arguida, são ainda legítimos herdeiros do falecido, a sua esposa, FF e GG, seu filho …

Em virtude de a mãe do assistente e da arguida se encontrar, à data do óbito do seu marido, com graves problemas de saúde que não lhe permitiriam desempenhar as funções de cabeça-de-casal, foi o cabecelato assumido pela arguida …

Tendo sido a mesma que procedeu à participação do óbito e apresentação (parcial) da relação de bens …

Acontece que, logo em janeiro de 2018, a arguida começou a contactar o assistente no sentido de começarem a vender bens móveis e imóveis da herança de seu pai.

Tendo inclusive proposto ao assistente, usar uma declaração de venda “supostamente” assinada pelo pai e sem estar preenchida e utilizar a mesma para vender um dos veículos da herança, de marca ..., com a matrícula ..-JJ-.. …

Venda que a arguida acabou por concretizar, sem o consentimento do assistente …

12º

Na verdade, o assistente que se encontrava a trabalhar na ..., e reside quando em Portugal em ..., não se desloca muitas vezes a ..., sendo que, na terceira semana de setembro de 2019, deslocou-se a ..., e ficou estupefacto com a quantidade de bens da herança de seu pai, que “desapareceram” da que foi a sua casa de habitação …

14º

… a arguida … não relacionou, como era seu dever, todos os bens, tendo ocultado da relação de bens quer os móveis, quer os veículos, apenas tendo indicado um veículo de marca ... (TR7) com a matrícula BV-..-...

15º

Na verdade, não relacionou o recheio das referidas casas … nem os restantes veículos automóveis, a saber:

16º

Ora acontece que, da referida residência do pai do assistente “desapareceram” os seguintes bens:

25º

Ora, a arguida, em data que o assistente não pode precisar, mas que sabe, ocorreu em data próxima de 24 de setembro de 2019, entrou na casa que foi a residência do pai e retirou de lá os objetos referidos no artigo 16º, e vendeu-os a terceiros, sem que o assistente, também seu legítimo contitular, (na respetiva proporção), desse o respetivo consentimento,

26º

Abusou assim da confiança que os herdeiros de DD, nomeadamente do assistente, tinham na mesma relativamente ao seu desempenho enquanto cabeça-de-casal.

28º

Ao agir como descrito, a arguida sabia e tinha consciência que a sua conduta era proibida e punida por lei.

29º

Pois sabia que os bens em causa não lhe pertenciam, porquanto sendo tais bens integrantes de uma herança, pertencem na totalidade aos herdeiros, contudo nenhum herdeiro tem qualquer direito próprio sobre qualquer um dos bens que integram a herança.

33º

Com a conduta descrita, a arguida constituiu-se autora material de um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artigo 205º n.º 1 e n.º 4, alínea a) do Código Penal.

34º

Acresce que no dia 9 de outubro de 2019, o assistente deslocou-se novamente a ..., e ficou estupefacto quando ao passar junto de um terreno pertencente à herança, sito no nó de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...98 da freguesia ..., verificou que estavam a proceder ao corte das árvores existentes no mesmo.

35º

De imediato solicitou a deslocação de uma patrulha da GNR ao local para identificar a pessoa que estava a cortar e a levar as árvores Eucaliptos e pinheiros), conforme auto de notícia junto aos autos.

36º

Na presença da patrulha da GNR a pessoa que estava a proceder ao corte das árvores, (o primeiro participado na participação), desconhecendo-se se em nome individual ou enquanto sócio e gerente da segunda arguida, informou que teria comprado “a madeira toda do terreno à Sra. BB”.

37º

A arguida, sabia e tinha perfeita consciência que o terreno em causa e bem assim as arvores existentes no mesmo são propriedade dos herdeiros no seu conjunto e não apenas da mesma.

38º

O assistente não sabe se houve algum “negócio” entre a arguida e a pessoa que procedeu ao corte das árvores, o que sabe é que,

39º

A arguida negociou de alguma forma os pinheiros, fê-lo bem sabendo que os mesmos não lhe pertencem exclusivamente.

41º

Ora, ao “negociar” os pinheiros e eucaliptos, fez o negócio com terceiros, sem que o assistente, também seu legítimo contitular, (na respetiva proporção), desse o respetivo consentimento,

42º

Abusou assim da confiança que os herdeiros de DD, nomeadamente do assistente, tinham na mesma relativamente ao seu desempenho enquanto cabeça-de-casal.

44º

Ao agir como descrito, a arguida sabia e tinha consciência que a sua conduta era proibida e punida por lei.

47º

Sendo que terá feito seu o valor dos bens vendidos.

48º

A arguida agiu como se os bens lhe pertencessem, quando bem sabe que sobre os mesmos apenas tem o dever de os administrar.

49º

Com a conduta descrita, a arguida constituiu-se autora material de um crime de furto previsto e punido pelo artigo 203º do Código Penal.

50º

Com a conduta descrita, a arguida constituiu-se autora material de um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artigo 205º n.º 1 e n.º 4, alínea a) do Código Penal.

Termos em que requer o Julgamento pelo Tribunal Singular em Processo Comum de BB

, como autora material de um crime de furto previsto e punido pelo artigo 203º do Código Penal e dois crimes de abuso de confiança.»

4.  O assistente requereu a abertura da instrução relativamente ao arquivamento do inquérito respeitante ao crime de falsificação de documento.

5.  Notificada da acusação particular, veio a arguida requer abertura de instrução, na sequência do que foi proferido o despacho recorrido acima transcrito.

 

V. DO MÉRITO DO RECURSO

1. Nulidade insanável prevista na alínea b) do artigo 119.º, do Código de Processo Penal

Em causa está, saber se, no caso, se verifica a falta de promoção pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, do Código de Processo Penal, no artigo 119.º, do Código de Processo Penal.

Antes de mais, cabe notar que a referência à “falta de promoção, nos termos do artigo 48.º”, considera «não só, as situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere ao Ministério Público legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o Ministério Público acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.º do compêndio legislativo referido».  [Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 19 de fevereiro de 2014, proc. 154/11.0GBCVL.C1, Relatora: Maria Pilar de Oliveira, acessível em www.dgsi.pt, local onde poderá ser visualizada a jurisprudência de ora em diante indicada sem menção do contrário].

No mesmo sentido decidiu o acórdão desta mesma Relação, de 22 de abril de 2015, [proc. 43/13.4TASBG-B.C1, Relator: Luís Teixeira]:

«Da forma como interpretamos o poder/dever de promoção processual do MP, entendemos que o vício de falta de promoção deve ser o mesmo quer nos crimes públicos, quer nos crimes semi-públicos quer nos crimes particulares. Para todos eles existem regras específicas que têm que ser observadas. Se é de entender que nos crimes públicos e nos crimes semi-públicos a falta de acusação pelo MP corresponde a uma falta de promoção processual, logo, constitui a nulidade do artigo 119º, alínea b), do C.P. Penal, também a falta de promoção do MP com vista à dedução de acusação particular pelo assistente, tem de conduzir ao mesmo vício e resultado».

A legitimidade para o exercício da acção penal cabe, em princípio, ao Ministério Público e não a outras entidades (artigo 48º a 52º, do Código de Processo Penal), sendo a promoção do processo criminal delimitada pela natureza do ilícito.

O Ministério Público promove a acção penal oficiosamente, (nos crimes públicos), mediante queixa (nos crimes semipúblicos) e constituição de assistente e dedução que acusação particular (nos crimes particulares).

O inquérito é da competência do Ministério Público, a quem cabe exclusivamente a sua direcção, embora possa ser assistido pelos órgãos de polícia criminal (artigo 263º, do Código de Processo Penal).

Havendo noticia e queixa pela prática de um crime de natureza semi-pública, o Ministério Público tem o poder-dever de determinar e dirigir o conjunto de diligências que visam investigar a existência desse crime e determinar os seus agentes. (artigo 262º e 267.º a 270.º do Código de Processo Penal).

Se, durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele (artigo 283º, nº 1, do Código de Processo Penal).

Se, pelo contrário, no decurso do inquérito, existe prova bastante de não se ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento (artigo 277º, nº 1, do Código de Processo Penal) ou não tiverem sido recolhidos indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes (artigo 277º, nº 2, do Código de Processo Penal), o Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito.

Donde, encerrado o inquérito, cabe ao Ministério Público, em exclusivo, a legitimidade exclusiva para, relativamente a cada um dos crimes participados (também os de natureza semi-pública) tomar uma das posições previstas no artigo 276º, nº1 do Código de Processo Penal: de arquivamento (nas modalidades previstas no artigo 277º do Código de Processo Penal) ou de acusação.

No caso dos autos, o Ministério Público recebeu várias participações crime, relevando no caso, as que alegaram factos que, em abstracto, eram passiveis de enquadrarem, entre o mais, crimes de furto previsto e punido pelo artigo 203.º, do Código Penal e crimes de abuso de confiança previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, do Código Penal.

Em consequência da relação de parentesco existente entre o participante e a arguida e da natureza particular dos crimes de furto e abuso de confiança, respectivamente, previstos nos artigos 203.º, n.º 1, 205.º, n.º 1, e 207.º, alínea a), ambos do Código Penal, ordenou a notificação do participante para, querendo, se constituir assistente e deduzir acusação particular, uma vez que o Ministério não tem, de per si, legitimidade para o exercício de acção penal (fls. 136).

Prosseguiram os autos …

Porém, tal como alega o assistente, o Ministério Público não se pronunciou sobre o arquivamento ou acusação dos crimes de abuso de confiança, na forma agravada pelo valor, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, alínea a), do Código Penal.

Se para os crimes de falsificação de documentos, o Ministério decidiu arquivar o inquérito, nos termos do artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o mesmo não sucedeu quanto à falta de indícios da prática pela arguida dos crimes de abuso de confiança enunciada nos pontos B. 2 e C. 2.

Note-se, aliás, que, em momento algum do inquérito, foi tomada posição sobre o tipo de crime participado.

Nos despachos respeitantes aos crimes de abuso de confiança datados de 7 de setembro de 2020, de 14 de abril de 2022 e de 24 de maio de 2022, a referência é sempre feita aos crimes de abuso de confiança simples, previsto no artigo 205.º, n.º 1, de natureza particular.

Ora, estando em causa a prática de crimes de abuso de confiança na forma agravada prevista e punido pelo artigo 205.º, n. 1 e n.º 4, alínea a), do Código Penal e exercido o direito a queixa por parte do assistente, competia ao Ministério Público o exercício a acção penal, nos termos do artigo 48º e 49º, do Código de Processo Penal, em relação àqueles crimes, assistindo-lhe, em exclusivo, legitimidade para exercitar tal dever, o que não cumpriu.

Ao omitir tal dever, cometeu o Ministério Público a nulidade insanável de falta de promoção do processo prevista no artigo 119º, alínea b), do Código do Processo Penal conjugada com os artigos 48º, 49º do Código de Processo Penal, 219º, nº1, da Constituição da República Portuguesa e 1º, do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público.

Porque de nulidade insanável se trata, pode ser declarada oficiosamente em qualquer fase do processo, nos termos do corpo do artigo 119º, citado, com os efeitos previstos no artigo 122º, do Código de Processo Penal.

Termos em que, se declara a nulidade por falta de promoção do Ministério Público relativamente aos crimes de abuso de confiança agravada previstos e punidos pelo artigo 205.º, n.º e n.º 4, do Código Penal, devidamente participados pelo assistente.

Consequentemente, são inválidos todos os actos praticados após o despacho que determinou a notificação ao assistente para dedução de acusação particular, devendo os autos serem remetidos ao Ministério Público, que aprecie que decidirá nos termos que entender adequados.

Neste sentido, decidiu o Tribunal desta Relação, no Acórdão de 13 de junho de 2018 [Relatora: Fernanda Ventura]:

A lei não restringe a previsão à situação em que o inquérito tenha sido promovido ou impulsionado por outra entidade e aplica-se sempre que se verifique falta de promoção pelo titular da acção penal.

Apesar de o processo ter vindo da fase de inquérito, não se vislumbra fundamento que afaste a aplicabilidade pelo juiz do regime geral das invalidades processuais constante dos artigos 118.º a 123.º do Código do Processo Penal.

Nestes termos, verifica-se efectivamente uma nulidade que afecta todo o acto processual de encerramento de inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes (artigo 122.º n.º 1 do Código do Processo Penal) e deve o procedimento ser retomado pelo MP, nos termos em que o magistrado titular entender adequados.

A mesma posição foi tomada no Acórdão da Relação de Évora, de 29 de maio de /2012, [proc. 1.7TASTB-A. E1, Relator: Sénio Alves]:

Ao declarar-se a nulidade de falta de promoção do inquérito pelo Ministério Público, a consequência lógica é a remessa dos autos ao Ministério Público, para que este realize as diligências que entenda serem de levar a cabo, dentro das funções do mesmo (artigos 262º e 263º do Código de Processo Penal.)».

E, nem se diga que esta interpretação viola o principio do acusatório.

Como defendemos no Acórdão da Relação de Guimarães, de 12 de julho de 2016 que, então, subscrevemos como Adjunta, «a aplicação das normas referentes às nulidades processuais não significa a imposição pelo juiz de um concreto destino do inquérito, nem envolve qualquer intromissão na esfera dos poderes do Ministério Público, enquanto magistratura autónoma a quem compete a acção penal, assim se contendo no respeito pelo principio do acusatório, constitucionalmente garantida».

Esta decisão prejudica o conhecimento das demais suscitadas pelo Recorrente.

VI. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar provido recurso, declarando a nulidade por falta de promoção do Ministério Público relativamente aos crimes de abuso de confiança agravada participados pelo Assistente, que torna inválidos todos os actos praticados após o despacho que determinou a notificação ao assistente para dedução de acusação particular.

Em consequência devem os autos ser remetidos ao Ministério Público que decidirá nos termos que entender adequados.

Coimbra, 8 de março de 2023