PROCESSO SUMÁRIO
PRAZO PARA O INÍCIO DA AUDIÊNCIA
PRAZO DE REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA EM PROCESSO SUMÁRIO
PRAZOS NO PROCESSO SUMÁRIO
CONSUMO MÉDIO DIÁRIO DE ESTUPEFACIENTES
TRAFICANTE CONSUMIDOR
Sumário

I – É requisito essencial à tramitação dos autos sob a forma de processo sumário que o início da audiência e produção de prova ou o inicio de adiamento da audiência ocorram nos prazos referidos no artigo 387.º do Código de Processo Penal, norma que não trata dos casos de suspensão/interrupção depois de iniciada a audiência com produção prova.
II – O adiamento previsto no artigo 387.º, n.º 7, é adiamento do inicio da audiência, da competência exclusiva do juiz, válido de for proferido despacho judicial nesse sentido, em conformidade com o disposto no artigo 328.º, n.º 5, ex vi artigo 386.º.
III – Se não tiveram decorrido 20 dias entre a detenção e o inicio do julgamento não há violação dos prazos dos artigos 382.º, n.º 3, 4, 5, e 387.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
IV – Não consubstancia pressuposto essencial de admissibilidade legal da forma de processo sumário que a audiência se realize num limite de tempo máximo, pois tal exigência não figura no artigo 381.º do Código de Processo Penal.
V – Verificado a admissibilidade do processo sumário, nos termos do artigo 381.º, a inobservância dos prazos do 387.º configura mera irregularidade, a suscitar pelo interessado no próprio acto, sob pena de sanação. 
VI – A detenção não autorizada de estupefacientes, ainda que a titulo gratuito, sem ser para consumo próprio caí na esfera do tráfico e não do consumo, independentemente das quantidades das substancias em causa, sendo irrelevante que as quantidades destinadas serem distribuídas a amigos seja inferior ao consumo médio diário individual.
VII – O que privilegia o ilícito do artigo 26º do D.L. nº 15/93, de 22 de Janeiro, é que o agente aja com o único e exclusivo objectivo de lograr meios para a obtenção de drogas para o seu consumo próprio.

Texto Integral


Relatora: Alcina Ribeiro
1.º Adjunta: Cristina Pego Branco
2.º Adjunta: Maria Alexandra Guiné


I. RELATÓRIO

1. Por sentença datada de 24 de novembro de 2022, foi a arguida, AA, condenada «pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade …

2. Inconformada, recorre a arguida, concluindo:

1ª Ocorre a nulidade insanável prevista no artº 119º, f), do C. P. Penal,

 2ª Por inobservância das regras dos artsº 103º, a 2, d) e 387º, do C. P. Penal.

3ª Pois – e dando aqui por reproduzido o constante dos pontos 2 a 5 – o julgamento apenas teve lugar depois de expirado o prazo máximo de 40 dias após a detenção da arguida, 

4ª Tendo-o sido no 87º dia posterior a essa detenção.

5ª Tal prazo de 40 dias completou-se em 8 de Agosto de 2022.

6ª São pois nulas, todas as decisões e despachos posteriores a tal data.

7ª Declarada tal nulidade, deverá ser ordenado o reenvio do processo para a forma comum.

8ª … o estupefaciente pertencia não só à arguida, mas também aos 4 amigos que a acompanhavam, e que se destinava a ser consumida por todos;

9ª Sempre a quantidade de cada um era inferior ao consumo médio diário individual durante o período de 10 dias – pois que a droga apreendida correspondia a 1 dose de heroína e 11 de cocaína.

10ª Estando-se, pois, perante uma situação contra-ordenacional, e não perante um crime, como resulta do artº 2º, da Lei nº 30/2000, de 29.11.

3. A Digna Procuradora, em primeira instância, respondeu à Motivação de Recurso, concluindo pela manutenção da decisão recorrida.

4. O Digno Procuradora-Geral Adjunto, nesta Relação, no parecer que antecede, defende, também, a improcedência do recurso.

II.FACTOS PROVADOS

A primeira instância julgou a matéria de facto nos termos seguintes:

1. FACTUALIDADE PROVADA

A) No dia 27 de Junho de 2022, pelas 18:42, na Praça ..., na ..., foi encontrada pela GNR na posse da arguida AA cerca de 1,9 gramas de heroína e cerca de 2,7 gramas de cocaína, produtos estes que a arguida escondia na sua vagina e destinava ao seu consumo pessoal e à sua cedência a terceiros, nomeadamente a BB, a CC, a DD e a EE, em festa de aniversário da arguida, que seria a realizar no dia seguinte.

B) … as aludidas substância revelaram tratar-se, efectivamente, de heroína e cocaína … tendo sido constituídas após esse exame, as amostras cofre com os pesos líquidos de 1,675 e 2,528 gramas, respectivamente, com um grau de pureza de 8,2% e de 86,8%, respectivamente e equivalente a 1 e a 11 doses diárias, também respectivamente.

O) A arguida encontrava-se inscrita do IEFP da ..., onde foi admitida num curso de Auxiliar de ..., com horário das 8:00 às 17:00, e onde a formação teve início a 6 de Junho de 2022, com a duração de um ano e subsidiada com uma bolsa mensal de €170,00.

P) Após a primeira semana de formação, a arguida desistiu, contudo, da mesma, uma vez que preferiu trabalhar …

Q) No meio social, a arguida é caracterizada como alguém que nos últimos anos se tem vindo a envolver em problemáticas e comportamentos desviantes, relacionados com consumo e tráfico de estupefacientes.

R) Socialmente, a arguida tem vindo a integrar um grupo de pares conotados com práticas desviantes, sendo que alguns dos seus elementos cumprem penas de prisão e outros se encontram em cumprimento de penas de execução na comunidade.

S) A arguida encontra-se a beneficiar do regime de pena de prisão suspensa com regime de prova, por crime da mesma natureza daquele que está aqui em causa, em que a sua atitude tem sido a de desmotivação para o processo de mudança, não estando a aderir a um padrão de comportamentos socialmente adequados.

T) O facto de ter sido alvo do presente processo não provocou alterações no estilo de vida ou estrutura familiar da arguida.

U) A arguida foi já condenada no âmbito do processo n.º 22/19...., do Juízo Central Cível e Criminal ..., pela prática no dia 1 de Janeiro de 2020 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 6 meses, com regime de prova e plano de reinserção social. Tal condenação transitou em julgado a 14 de Março de 2022.

III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1.  Nulidade insanável por erro na forma de processo

Para a Recorrente, o tribunal recorrido cometeu a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea f) do Código de Processo Penal (diploma a que nos referiremos de ora em diante, sem menção do contrário), já que foi julgada sob a forma de processo sumário, quando devia ter sido julgada sob a forma de processo comum.

À luz da previsão do artigo 119. º, alínea f) constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, o emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.

Em causa está, o emprego de uma forma de processo especial – sumário, abreviado ou sumaríssimo – nos casos em que a lei não o preveja.

No que diz respeito ao processo sumário, interessam, essencialmente, as normas dos artigos 381.º e 387.º, no segmento relativo aos prazos para a realização da audiência de julgamento.

Na versão inicial - artigos 381.º, 386.º e 387.º (Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro) – a admissibilidade do processo sumário depende da verificação dos seguintes pressupostos:

 - Detenção em flagrante delito de arguido com 18 anos de idade, por crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a três anos;

- Detenção realizada por qualquer autoridade judiciária ou entidade policial;

-  Início da audiência no máximo de 48 horas ou

- Início da audiência nos cinco dias após a detenção quando: a) o arguido solicitar esse prazo para preparação da sua defesa; b) faltarem ao julgamento, testemunhas de que o Ministério Público, o assistente ou o arguido não prescindam; ou c) se o tribunal, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, considerar necessário que se proceda a quaisquer diligências de prova essenciais à descoberta da verdade e que possam previsivelmente realizar-se dentro daquele prazo.

O processo sumário tem lugar – epigrafe do artigo 381.º - se a audiência se iniciar no prazo máximo de 48 horas ou no prazo máximo de 5 dias e se as diligências de prova se realizarem em 5 dias.

De acordo com o disposto no artigo 390.º, se o tribunal considerar inadmissível ou inconveniente a tramitação do processo sob forma sumária, tendo em vista, nomeadamente:

a) A inadmissibilidade legal, no caso, do processo sumário;

b) A complexidade da causa; ou

c) A necessidade, para a descoberta da verdade, de diligências de prova que não poderão previsivelmente realizar-se no prazo máximo de cinco dias após a detenção; decide, por despacho irrecorrível, a tramitação do processo sob forma comum, com a consequente remessa dos autos, para esse efeito, ao Ministério Público.

Assim, se houver diligências indispensáveis a realizar que não possam ser efectuadas naquele prazo, não pode empregar-se o processo sumário.

O prazo para a realização das diligências consubstancia um requisito essencial do processo sumário.

Neste caso,

O Ministério Público determina a tramitação sob outra forma processual -  artigo 382.º, n.º 3 – ou o tribunal decide, por despacho irrecorrível, a tramitação do processo sob a forma comum, com a consequente remessa dos autos, para esse efeito ao Ministério Público - artigo 390.º, alínea c) - conforme se trate da fase pré judicial ou de julgamento. 

 A Lei n.º 59/98, de 25 de agosto - artigos 381.º e 386.º -  alarga o âmbito de aplicação, ao nível subjectivo - suprime o limite de idade mínima de 18 anos –    e ao nível objectivo: a) engloba os crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos, quando o Ministério Público entenda que não deva ser aplicada, em concreto, pena superior e b) dilata o prazo máximo do inicio da audiência e para 30 dias após a detenção, mantendo este prazo como máximo para a produção de prova. 

Mantém, no artigo 381.º, o prazo máximo do inicio da audiência e de produção de prova.

Se as diligências essenciais à descoberta da verdade não se puderem realizar no prazo de 30 dias, não há lugar ao processo sumário.

Neste caso, o Ministério Público determina a tramitação sob outra forma processual -  artigo 382.º, n.º 3 – ou o tribunal, por despacho irrecorrível, remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual - artigo 390.º, alínea b) - conforme se trate da fase pré judicial ou de julgamento. 

Nos casos de detenção fora do horário de funcionamento normal da secretaria judicial, a entidade policial que proceder à detenção, deve sujeitar o arguido a termo de identidade e residência, libertá-lo e notificá-lo para comparecer perante o Ministério Público no 1.º dia útil seguinte, à hora que lhe for designada [artigo 387.º,   n.º 2].

A este propósito, recorde-se que se discutia a natureza do prazo de 48 horas para inicio do julgamento.

Para uns, era requisito legal de admissibilidade do processo sumário. O julgamento em processo sumário realizado mais de 48 horas após a detenção e depois de libertado o arguido, sem decisão de adiamento da audiência, enfermava da nulidade prevista na alínea f) do artigo 119.º.  (Acórdão da Relação de Évora de 1 de abril de 2003, CJ XXVIII, tomo 2, página 250).

Para outros, não era requisito essencial do processo sumário desde que o arguido tivesse sido libertado (Acórdão do Tribunal desta Relação, de 14 de junho de 2000, CJ XXV, tomo 3, página 53).  

O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão nº 2/2004 (21 de abril de 2004, in DR I Série A de 12-05-2004), fixou a seguinte jurisprudência:

«Quando tenha havido libertação do arguido - detido em flagrante delito para ser presente a julgamento em processo sumário - por virtude de a detenção ter ocorrido fora do horário de funcionamento normal dos tribunais (artigo 387.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), o início da audiência deverá ocorrer no 1.º dia útil seguinte àquele em que foi detido, ainda que para além das quarenta e oito horas, mantendo-se, pois, a forma de processo sumário.». – (acessível, em www.dgsi.pt, local onde pode ser visualizada a jurisprudência que de venha a indicar, sem nota do contrário).

O prazo máximo para o inicio da audiência e produção de prova continua a integrar um dos requisitos essenciais para a tramitação do processo sob a forma sumária.

A Lei 48/2007, de 29 de agosto e a Lei 26/2010, de 3 de agosto, mudam substancial e formalmente o regime do processo sumário. Ampliam o seu âmbito de aplicação e agilizam procedimentos com vista à remoção de obstáculos à utilização deste tipo de processo.

Com a Lei 48/2007, passam a ser julgados em processo sumário  os casos de: a) detenção em flagrante delito por crimes puníveis com pena de prisão até 5 anos, mesmo em caso de concurso de crimes, e por crimes puníveis com pena superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de crimes, quando o MP, na acusação, entendesse que não deveria ser aplicada pena superior, e b) a detenção tivesse sido efectuada por qualquer pessoa, desde que o detido tivesse sido entregue às autoridades judiciárias ou policiais no prazo máximo de 2 horas.

A exigência da realização da audiência no prazo de 48 horas ou até 30 dias deixa de figurar nos artigos 381.º e 386.º e a menção ao dia útil seguinte é eliminada do artigo 387.º, n.º 2.

As regras dos prazos passam a ser reguladas no artigo 387.º.

A divergência sobre a natureza dos prazos para o inicio da audiência, agora prevista no n.º 1 do artigo 387.º, mantém-se:  se de requisito essencial da forma de processo sumária (cf., entre muitos, o Acórdão da Relação de Guimarães de 4 de maio de 2009, processo n.º 480/086GTVCT.C1), se de um prazo marcação de agendamento do inicio da audiência, com as alternativas fixadas no n.º 2. (v.g. Cruz Bucho, Revisão de 2010 do Código de Processo Penal Português e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22 de novembro de 2010, proc. n.º 114/09.GFPRT.G1), divergência que mantém a actualidade, nos termos que veremos mais adiante.

É introduzida no artigo 103.º, n.º 2, alínea c) a regra de que os prazos relativos ao processo sumário não se suspendem nas férias judiciais, colocando, termo à questão de saber se o prazo máximo para o inicio da audiência corre em férias (cf. entre outros, Acórdão da Relação de Évora de 30 de maio de 2006).

A redacção artigo 390.º é alterada. O tribunal só remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual quando: a) se verificar a inadmissibilidade, no caso, do processo sumário; b) não tenham podido, por razões devidamente justificadas, realizar-se, no prazo máximo previsto no artigo 387.º, as diligências de prova necessárias à descoberta da verdade e c) (…).

Com estas alterações, deixa de vigorar a jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2004, de 12 de maio de 2004.

A Lei 26/2010, de 30 de agosto, por seu turno, mantém o âmbito de aplicação do processo sumário e a definição do tribunal competente nas situações de reenvio para outra forma processual (fixado no n.º 2, do artigo 390.º, introduzido pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto). Altera o rito processual, particularmente, no que ao caso interessa, o alargamento do prazo do inicio da audiência.

O artigo 382.º, n.º 4, concede a faculdade ao Ministério Público de, se considerar necessárias diligências de prova essenciais à descoberta da verdade, notificar o arguido e as testemunhas para comparecerem numa data compreendida nos 15 dias posteriores à detenção para apresentação a julgamento em processo sumário, (…).

O legislador alarga, assim, a possibilidade do julgamento em processo sumário se iniciar no prazo máximo de 15 dias, se tal for necessário à aquisição de prova suplementar.

Com a introdução deste normativo, pretendeu-se adequar o prazo legal para o inicio do julgamento com o tempo necessário para que o Ministério Público obtenha todos os elementos de prova imprescindíveis para fundamentar a acusação (Relatório Complementar de Monotorização da Reforma Penal, páginas 17-17).

Já o artigo 387.º, prevê no n.º 1:

 O inicio da audiência de julgamento em processo sumário tem lugar no prazo máximo de 48 horas após a detenção, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

E, em vez de “o início da audiência pode ser adiado” (…), afirma-se o “inicio da audiência pode ter lugar”: a) até ao limite do 5.º dia (…); e b) Até ao limite de 15 dias após a detenção, nos casos previstos no n.º 4 do artigo 382.º e no n.º 2 do artigo 384.º; e c (…).

 O Artigo 390.º mantém a redacção da alínea b) do n.º 1: o tribunal só remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual quando não tenham podido, por razões devidamente justificadas, realizar-se, no prazo máximo previsto no artigo 387.º, as diligências de prova necessárias à descoberta da verdade.

E o artigo 103.º, n.º 1, alínea c) determina que os prazos processuais relativos a processos sumários e abreviados, até à sentença em primeira instância, não se suspendem nas férias judiciais.

Mantendo a intenção de promover cada vez mais a utilização do processo sumário, o legislador de 2013, com a aprovação da Lei 20/2013, de 21 de fevereiro amplia de modo significativo os ilícitos que podem ser julgados nesta forma processual.

Com exceção dos crimes que integram a criminalidade organizada, dos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal e dos crimes contra a segurança do Estado e os crimes referentes à violação do Direito Internacional Humanitário, o processo sumário abrange todos os crimes em que os seus agentes fossem detidos em flagrante delito, independentemente da pena abstratamente aplicável, dos bens jurídicos em causa e da gravidade e/ou complexidade da atuação criminosa.

A tramitação processual dos artigos 381.º a 391.º. foram alterados em conformidade.

No que respeita aos prazos, artigo o artigo 387.º:

- Eleva para 20 dias, o prazo para o inicio da audiência nos casos em que (…) o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 382.º, n.º 4 - julgar necessária a realização de diligências essenciais à descoberta da verdade;

- Admite o adiamento do inicio da audiência pelo prazo máximo de 20 dias, para obter a comparência de testemunhas devidamente notificadas ou para a junção de exames, relatórios periciais ou documentos, cujo depoimento ou junção o juiz considere imprescindíveis para a boa decisão da causa (artigo 387.º, n.º 7).

Com esta solução, quis pôr-se termo à discussão jurisprudencial suscitada pela omissão desta possibilidade na revisão do Código de Processo Penal de 2010, e que consistia em saber se o tribunal podia ou não adiar o inicio da audiência, por reputar essenciais à descoberta da verdade, a realização de diligências probatórias.

- Estabelece prazos máximos para a produção de prova:

Em caso de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a 5 anos, ou em caso de concurso de infrações cujo limite máximo não seja superior a 5 anos de prisão, toda a prova deve ser produzida no prazo máximo de 60 dias a contar da data da detenção, podendo, excecionalmente, por razões devidamente fundamentadas, designadamente por falta de algum exame ou relatório pericial, ser produzida no prazo máximo de 90 dias a contar da data da detenção (artigo 387.º, n.º 9).

Para o caso de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 5 anos, ou em caso de concurso de infrações cujo limite máximo seja superior a 5 anos de prisão, os prazos a que alude o número anterior elevam-se para 90 e 120 dias, respetivamente (artigo 387.º, n.º 10).

Se, nestes prazos, não for possível, por razões justificadas, realizar as diligências de prova, o tribunal remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual [artigo 390.º, n.º 1, alínea c)].

Por outro lado, repõe-se, no artigo 390.º, n.º 1, alínea a), a remessa dos autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual quando se verificar a inadmissibilidade legal do processo sumário.

Por último, a alteração legislativa  levada a cabo pela Lei 1/2016, de 21 de fevereiro - em consequência da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão  [Acórdão do Tribunal Constitucional, de 18 de fevereiro de 2014 (publicado in DR, I Série de 13-03-2014)] -:

- Repristina a redacção da Lei 48/2007, de 28 de agosto, com a ratificação n.º 105/2007, para o artigo 381.º - restringido o leque de crimes e as situações que podem ser julgados em processo sumário – e para a alínea b) do artigo 390.º.

- Revoga os n.ºs 9 e 10 do artigo 387.º, no que respeita à duração máxima da produção de prova.

- Mantém a continuidade dos prazos processuais relativos a processos sumários (não se suspendem nas férias) até à sentença em primeira instância [(artigo 103.º, n.º 1, alínea c)].

Na versão vigente, 

O artigo 381.º mantendo, a epígrafe o processo sumário “quando tem lugar”, determina as   situações em que se emprega o processo sumário.

Assim:

1. São julgados em processo sumário, os detidos em flagrante delito, nos termos dos artigos 255.º e 256.º, por crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infrações:

a) Quando à detenção tiver procedido qualquer autoridade judiciária ou entidade policial; ou

b) Quando a detenção tiver sido efetuada por outra pessoa e, num prazo que não exceda duas horas, o detido tenha sido entregue a uma autoridade judiciária ou entidade policial, tendo esta redigido auto sumário da entrega.

2. São ainda julgados em processo sumário, nos termos do número anterior, os detidos em flagrante delito por crime punível com pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infrações, quando o Ministério Público, na acusação, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.

No que respeita aos prazos, há que ter em consideração o seguinte:

- Quando o arguido é detido em flagrante delito (venha ou não a ser libertado), deve ser apresentado imediata ou no mais curto prazo possível, sem exceder as 48 horas ao Ministério Público competente para julgamento [artigo 382.º, n.º 1].

Se o arguido se mantiver detido, deve imperiosamente ser apresentado ao juiz no prazo limite de 48 horas [cf. artigos 382.º, n.º 1; 387.º, n.º 1; 254.º n.º 1, alínea a) e 28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa].

- Quando o arguido não se encontrar detido e se verificar a interposição de pelo menos um dia não útil no prazo de 48 horas, pode o julgamento iniciar-se até ao limite do 5.º dia posterior à detenção [cf. artigos 385.º, n.º 1 e artigo 387.º, n.º 2, alínea a)];

Quando o arguido não aceitar a proposta de arquivamento ou suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 384.º, n.º 3, a audiência de julgamento pode iniciar-se até ao limite do 15.º dia posterior à detenção [cf. artigos 382.º, n.º 5 e 387.º, n.º 2, alínea b)].

- Sempre que o arguido tiver requerido prazo para a preparação da defesa ou o   Ministério Público julgar necessária a realização de diligências essenciais à descoberta da verdade, a audiência de julgamento pode iniciar-se até ao limite de 20 dias após a detenção [cf. artigos 382.º, n.ºs 3, 4, 5 e 387.º, n.º 2, alínea c)]. 

 No que toca à audiência, pode ser adiada, quando:

- O juiz, oficiosamente ou a requerimento, considere indispensável para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, o depoimento das testemunhas faltosas que não foram notificadas nos termos do n.º 5 do artigo 382.º ou do artigo 383.º, para o que ordenará a sua imediata notificação; [cf. artigo 387.º, n.º 4]

- O Ministério Público complete o auto de noticia com factos (v.g. elemento subjectivo crime) e o arguido requeira prazo para o exercício do contraditório, a audiência pode ser adiada pelo prazo máximo de 10 dias, sem prejuízo de se proceder à tomada de declarações ao arguido e à inquirição do assistente, da parte civil, dos peritos e das testemunhas presentes; [cf. artigo 387.º, n.º 6]

-  O juiz considere imprescindíveis para a boa decisão da causa o depoimento de testemunhas devidamente notificadas ou a junção de exames, relatórios periciais ou documentos, a audiência pode ser adiada, pelo prazo máximo de 20 dias; [cf. artigo 387.º, n.º 7]

A faculdade de adiar o inicio audiência, nos termos prescritos, é da competência exclusiva do juiz, só sendo válida de for proferido despacho judicial nesse sentido (artigo 328.º, n.º 5, ex vi artigo 386.º).

 O adiamento da audiência pressupõe a existência de um despacho judicial, essencial nesta forma de processo sumário – (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, páginas 983-966).

Em qualquer caso, o adiamento da audiência não tem lugar se faltarem testemunhas de que o Ministério Público, o assistente ou o arguido não prescindam, sendo inquiridas as testemunhas presentes pela ordem indicada nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da possibilidade de alterar o rol apresentado; [cf. artigo 387.º, n.º 4]

A falta das testemunhas que devessem ter sido notificadas nos termos do n.º 5 do artigo 382.º ou do artigo 383.º, e não o foram, não pode dar lugar ao adiamento da audiência, salvo se o seu depoimento for considerado indispensável para a descoberta da verdade; [cf. artigo 387.º, n.º 4]

Só no caso de inadmissibilidade legal do processo sumário, de excepcional complexidade -  devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime –  e não ser possível, por razões devidamente justificadas, realizar-se, no prazo máximo previsto no artigo 387.º, as diligências de prova necessárias à descoberta da verdade; é que o tribunal remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual.   [cf. artigo 390.º].

Deste quadro legal flui que os limites máximos para realização da audiência continuam a não figurar no artigo 381.º, pelo que, com o devido respeito pela posição contrária, não consubstanciam um pressuposto essencial de admissibilidade legal da forma de processo sumário.

No caso dos autos, a arguida foi detida em flagrante delito pela autoridade policial, por crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos, verificando-se assim, os pressupostos essenciais de que depende o emprego do processo especial sob a forma sumária previstos no artigo 381.º

No que respeita aos prazos para o inicio da audiência, foram, também observados.

Na verdade, detida a arguida em 26 de junho e libertada em 27 de junho de 2022, foi apresentada ao Ministério Público competente para julgamento, no prazo de 48 horas a que se refere o artigo 382.º, n..1.

Como o Ministério Público julgou necessária a realização do exame pericial ao produto estupefaciente, diligência essencial à descoberta da verdade, ordenou a notificação da arguida para se apresentar em audiência no dia 13 de julho de 2022.

Por despacho judicial de 13 de julho de 2022, foi declarada aberta a audiência e inquirida a testemunha que estava presente.

Ou seja, não tendo decorrido 20 dias entre a detenção da arguida e o inicio do julgamento, foram cumpridos os prazos mencionados nos artigos 382.º, n.ºs 3, 4, 5 e 387.º, n.º 2, alínea c).

Termos em que, não subsistem dúvidas que, no caso, é legalmente admissível a forma de processo sumário.

E, nem se diga, como faz a recorrente, que a audiência devia ter sido iniciada e concluída no prazo 40 dias após a detenção (querendo certamente referir-se ao disposto nos artigos 382, n.º 4 e adiamento do artigo 387.º, n.º 7).

Já vimos que a audiência se iniciou nos 20 dias seguintes à detenção, com estrita observância do artigo 382.º, n.º 4 e 387.º, n.º 1 e 2, alínea c).

Quanto ao adiamento previsto no artigo 387.º, n.º 7, pelo prazo máximo de 20 dias -  quando o juiz considere imprescindíveis para a boa decisão da causa o depoimento de testemunhas devidamente notificadas ou a junção de exames, relatórios periciais ou documentos -  trata-se do adiamento do inicio da audiência, da competência exclusiva do juiz, só sendo válida de for proferido despacho judicial nesse sentido (artigo 328.º, n.º 5, ex vi artigo 386.º).

 O adiamento da audiência pressupõe a existência de um despacho judicial, essencial nesta forma de processo sumário – (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, páginas 983-966).

Tal resulta da análise da evolução legislativa acima traçada.

É notória a intenção do legislador em balizar os prazos máximos para o inicio da audiência e do adiamento do inicio da audiência, particularmente, nas situações em que haja necessidade de realizar diligências indispensáveis à descoberta da verdade (única que ao caso interessa), sem impor limites máximos para a produção de prova.

Com efeito, o legislador, ao admitir o julgamento em processo sumário, dos detidos em flagrante delito por crime punível com pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infrações, quando o Ministério Público, na acusação, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos [artigo 381.º, n.º 2] e, ao revogar a duração máxima da produção de prova prevista no n.º 9 e 10 do artigo 387.º,  deixa de impor limites de prazo máximo, dentro do qual, deve ser realizada a prova em audiência de julgamento.

Neste sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de setembro de 2018 (processo n.º 102/17.4PEOER.L2-5):

(…) O legislador pretendeu apenas fixar um limite máximo para o início do julgamento em processo sumário, entendendo-se este como o início da produção de prova, não se fixando limite para o seu termo (veja-se a revogação operada pela Lei n.º 1/2016, de 25 de fevereiro ao n.º 9 e 10 do mencionado artigo 387.º em que se estabelecia um prazo máximo para toda a produção de prova). (sublinhado nosso).

Os prazos enunciados no artigo 387.º, reportam-se apenas ao inicio da audiência (n.ºs 1 e 2) ou inicio de adiamento da audiência (n.ºs 6 e 7), não tratando dos casos de suspensão/interrupção depois de iniciada a audiência com produção prova.

Consequentemente, o reenvio do processo para o Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 390.º, n.º 1, alínea b), está pensado para quando não for possível iniciar-se a audiência ou iniciar-se o adiamento da audiência nos prazos enunciados no citado artigo 387.º.

Neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 13 de junho de 2001 (processo n.º 0140152), pronunciando-se, sobre a questão do adiamento da audiência prevista no então artigo 386.º, decidiu:

I. Em processo sumário, o adiamento da audiência e a sua suspensão, já depois de iniciada, para continuação noutra data, não são a mesma coisa.

II. O artigo 386.º do Código de Processo Penal, trata somente do adiamento de uma audiência de julgamento, em processo sumário, e não das suas interrupções.

III - A previsibilidade (de uma diligência necessária não poder ser feita no prazo de 30 dias a consequênciar que o processo seja remetido ao Ministério Público para prosseguir sob outra forma) referenciada na alínea b) do artigo 390.º do Código de Processo Penal, reporta-se ao início da audiência e não a uma fase posterior do processo sumário.

Ora, revisitados os autos, verifica-se que o inicio da audiência não foi adiado. O julgamento teve inicio com produção de prova -  foi inquirida a testemunha presente -   e, porque era imprescindível o Relatório Social da arguida, continuou no dia 2 de setembro (não realizada devido à greve de funcionários), no dia 15 e no dia 22 de setembro, tendo sido observados os prazos aludidos no citado artigo 387.º

 Mas mesmo que ainda que se entenda que, no caso, o julgamento foi adiado para além dos 20 dias exigidos pelo n.º 7, do artigo 387.º,   não estamos diante de uma nulidade insanável, mas sim de uma mera irregularidade.

Como já se assinalou acima, com a entrada em vigor da Lei 48/2007, a exigência do inicio da audiência no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, sem prejuízo do disposto no artigo 386.º, foi eliminado dos artigos 381.º,

Por outro lado, as regras sobre os prazos para o inicio da audiência passaram a constar no artigo 387.º.

Tal significa que os prazos para realização da audiência deixaram de assumir a natureza de requisito essencial de admissibilidade do emprego da forma sumária, mas regras de agendamento da audiência.

Esta posição é reforçada com a alteração legislativa de 2016, com a revogação dos prazos máximos da duração da produção de prova previstos nos n.ºs 9 e 10 do citado artigo 387.º.

Pelo que, uma vez verificado a admissibilidade do processo sumário, nos termos do artigo 381.º, a inobservância dos prazos do 387.º, configura uma mera irregularidade a suscitar pelo interessado no próprio acto, sob pena de sanação. 

Na situação em apreço, para além de nenhum dos sujeitos processuais ter suscitado qualquer irregularidade das datas designadas para a continuação do julgamento, estas foram sempre acordadas com a ilustre defensora da recorrente, pelo que a eventual inobservância das mesmas, se encontraria sanada.

Termos em que se conclui que o processo sumário foi devidamente utilizado, já que a arguida foi, como se disse, detida por uma entidade policial em flagrante delito, por crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não é superior a 5 anos (artigo 25.º, do Decreto lei n.º 15/93).

A audiência de julgamento iniciou-se nos 17 dias seguintes à detenção da arguida, não tendo havido lugar ao adiamento da audiência estabelecido no artigo 387.º, n.º 7.

Caso se entenda que a continuação da audiência configura um adiamento e, que por isso, foi inobservado o prazo de 20 dias mencionado no artigo 387.º, n.º 7, nenhum dos sujeitos processuais, em especial a Recorrente, suscitou tal irregularidade na audiência de julgamento, encontrando-se por isso, sanada.

 Tal significa que não assiste razão à recorrente.

 

2.  O consumo de estupefacientes

Sustenta a Recorrente que o produto estupefaciente pertencia também a 4 amigos que a acompanhavam e destinava-se a ser consumido por todos, pelo que a quantidade apreendida, não excederia o consumo médio diário individual, o que integra a contra-ordenação prevista no artigo 2.º da Lei 30/2000, de 29 de novembro e não o crime previsto e punido pelo artigo 25.º, do Decreto-Lei n.º 15/93.

Vejamos

Dispõe o artigo 2.º da lei n.º 30/2000, de 29 de novembro:

A aquisição e detenção de plantas, substancias ou preparação tem como fim exclusivo o consumo próprio.

A detenção não autorizada, ainda que a titulo gratuito, sem ser para consumo próprio, caí na esfera do tráfico e não do consumo, independentemente das quantidades das substancias em causa.

Neste sentido, cf., entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de dezembro de 2011 (Relator: Carlos Almeida).

A intenção do agente não pode ser outra que não seja a do seu próprio consumo pessoal.

Revisita a matéria de facto provada, a arguida, AA, detinha cerca de 1,9 gramas de heroína e cerca de 2,7 gramas de cocaína, produtos estes que … destinava ao seu consumo pessoal e à sua cedência a terceiros.

Mais sabia que possuía para seu consumo e para a cedência a terceiros, produtos estupefacientes, sem que para isso tivesse autorização.

Estando demonstrado, que os estupefacientes detidos pela arguida lhe pertenciam e que os destinava não apenas ao seu consumo, mas também a ser cedidos por terceiros, estamos diante de um tráfico e não consumo, sendo irrelevante que a quantidade que a arguida pretendia distribuir aos seus amigos fosse ou não inferior ao consumo médio diário individual, improcedendo, assim, este segmento do Recurso.

3. Tráfico para consumo

Prossegue a Recorrente, alegando, agora, que, sendo consumidora regular de heroína e cocaína, a sua conduta integra o crime de tráfico para consumo. 

Preceitua o artigo 26.º do Decreto lei n.º 15/93 de 22 de janeiro:

1. Quando, pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21.º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até três anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.

2. A tentativa é punível.

3.  Não é aplicável o disposto no n.º 1 quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias.

O tráfico para consumo é um tipo de crime privilegiado, nos termos do qual, os factos previstos no tipo fundamental – o artigo 21.º -  cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver - devem ter por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal.

Um dos elementos constitutivos do tipo legal de crime de tráfico para consumo (artigo 26.º.) o que justamente privilegia tal ilícito – este tem de agir com o único e exclusivo objectivo de lograr meios para a obtenção de drogas para o seu consumo próprio. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de junho de 1998).

Se dos factos não se puder concluir que o arguido, toxicodependente, pratica acto de detenção para venda de heroína e cocaína com a finalidade exclusiva de obter para seu uso pessoal substâncias estupefacientes, está afastada a possibilidade de qualificação da sua conduta como traficante como consumidor. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de março de 2002, CJ X, Tomo I, página 239). 

No nosso caso, já vimos que a arguida não destinava a cocaína e a heroína que tinha na sua posse e da qual era dona, exclusivamente ao seu uso pessoal, nem que a cedência a terceiros tinha como finalidade exclusiva conseguir produto para seu uso pessoal, o que afasta a integração da sua conduta no crime previsto e punido pelo artigo 26.º em análise, reclamada pela Recorrente.

4. Medida da pena

Sustenta a Recorrente que a pena de prisão em que foi condenada – dois anos de prisão - deve ser reduzida a 1 ano, no pressuposto de que a condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelos artigos 21º e 25º, alínea a), do decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, viria a ser convolada, nesta instância para o crime de tráfico para consumo previsto no artigo 26.º, do mesmo diploma.

Ora, como já se deixou dito, não está demonstrado que a arguida ceda a terceiros os produtos estupefacientes com a única finalidade de satisfazer o seu consumo pessoal.

Donde, neste particular, apenas releva a circunstância da arguida ser consumidora regular de heroína e cocaína, não podendo olvidar as elevadas exigências de prevenção especial.

A arguida, à data da prática dos factos – 26 de junho de 2022 – tinha sido condenada, cerca de 4 meses antes, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena 2 anos e seis meses de prisão, suspensa na execução, sujeita a regime de prova.    

A favor da arguida milita a postura correcta e franca que a mesma assumiu em audiência de julgamento, na qual confessou integralmente e sem reservas os factos pelos quais foi acusada e esclareceu o destino que dava ao produto estupefaciente que detinha até para cedência a terceiros.

Nesta medida, se atendermos, à moldura penal abstracta do crime cometido pela arguida – 1 a 5 anos – e ao disposto no artigo 71º do Código Penal, a medida de 2 anos de prisão mostra-se adequada e proporcional às finalidades da punição exigidas pelo artigo 40º, do mesmo diploma.

Não resultando, assim, violados, quaisquer princípios ou normativos jurídicos, improcede o recurso da arguida.

5. Suspensão da execução da pena

Por último, pretende a recorrente que a pena seja suspensa na sua execução, com regime de prova.

As penas de substituição à prisão têm como fundamento considerações de prevenção geral e especial, sendo afastadas «quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial da socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente, mais conveniente».

Não sendo este o caso, a pena de substituição só não será aplicada se a «execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias». Figueiredo Dias; (1993), Direito Penal Português – As consequências do Crime, pág. 333.

Assim, verificados que estejam os pressupostos formais da aplicação das penas de substituição, há que indagar, se, em concreto, satisfazem as finalidades da punição: a prevenção especial, sobretudo a prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a satisfação do «sentimento jurídico da comunidade».

A suspensão da execução da prisão prevista no artigo 50º do Código Penal não foge a esta regra, prevendo, no seu nº 1:

O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Trata-se, como refere Manuel Lopes Maia Gonçalves – Código Penal Português, 2004, página 202 – de «uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico», que pressupõe a esperança de que o condenado, mediante a mera censura do facto e a ameaça da pena, se afastará da criminalidade.

Para tanto, torna-se necessária a ponderação de todas as circunstâncias concretas que permitam antecipar um juízo sobre o comportamento futuro do arguido, de forma a salvaguardar as finalidades da punição, previstas no citado artigo 40º do Código Penal: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Assim, e como se salienta, o Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 6 de Fevereiro de 2008, «para aplicação desta pena de substituição é necessário, em primeiro lugar, que o julgador se convença, face à personalidade do condenado, suas condições de vida, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos, sendo necessário, em segundo lugar, que a pena de suspensão de execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade».

A suspensão da execução da pena de prisão tem de realizar de forma adequada e suficiente aquelas finalidades. Se as não realizar, a suspensão não deve ser decretada.

No caso dos autos, o Tribunal recorrido ponderou as exigências de prevenção especial, que afastaram a suspensão da execução da pena de prisão, consignando o seguinte:

(…) no nosso caso, conforme já supra o fomos dizendo, existe aqui em franco desabono da arguida o facto de a mesma ter cometido o crime aqui em causa em pleno e ainda muitíssimo recente período de suspensão da execução de pena de prisão que lhe havia sido aplicada no demais processo n.º 22/19...., pela prática de crime exactamente idêntico àquele pelo qual vai aqui novamente condenada, demonstrando assim a arguida a todas as luzes que não sentiu de todo a advertência que lhe decorreu dessa condenação anterior, nem soube nem quis aproveitar a oportunidade que lhe decorreu da suspensão que aí lhe foi concedida.

Por seu turno, do conjunto de factos que foram dados como provados acerca do percurso de vida da arguida, sobretudo mais recentemente, destaca-se que sempre apresentou um estilo de vida totalmente desestruturado, sempre acompanhou pessoas com comportamentos desviantes e conotados com o consumo e tráfico de estupefacientes, nunca exerceu uma actividade profissional minimamente sólida, desistiu recentemente de um curso de formação remunerado que se lhe encontrava a ser ministrado sem qualquer motivo minimamente válido ou convincente, no meio social é caracterizada como alguém que nos últimos anos se tem vindo a envolver em problemáticas e comportamentos desviantes, relacionados com consumo e tráfico de estupefacientes, e que a atitude da arguida no âmbito do regime de prova que lhe foi fixado na condenação anterior que sofreu é de desmotivação para o processo de mudança, não estando a aderir a um padrão de comportamentos socialmente adequados, mais sendo certo que nem mesmo o facto de ter sido alvo do presente processo provocou quaisquer alterações no estilo de vida ou estrutura familiar da arguida.

E isto tudo a tal ponto que a DGRSP, no respectivo relatório social que elaborou a respeito da aqui arguida e que consta dos autos, concluiu lapidarmente no sentido de que “tendo em conta as características pessoais e o desinteresse na adopção de uma conduta socialmente adequada, somos de parecer, que a arguida, no presente momento, não reúne condições para uma pena de natureza probatória.”.

Enfim, pelo exposto, pensamos que nem a comunidade de todo compreenderia, nem a nós nos é possível de todo efectuar qualquer espécie de juízo de prognose favorável em relação à aqui arguida, razão pela qual não iremos suspender a execução da pena de prisão aqui aplicada, impondo-se sua execução efectiva.

Mais se dirá apenas que não iremos conceder à arguida a possibilidade de a pena de prisão aqui aplicada ser cumprida em regime de permanência na habitação com recurso a meios de vigilância electrónica …

Neste quadro fático, a natureza do crime em causa e a personalidade da arguida, melhor destacados na decisão recorrida, apontam no sentido inelutável de que a prognose relativa a essa suspensão não lhe é favorável.

A arguida não interiorizou ainda o desvalor criminal e social da sua conduta e, assim, não se vislumbra que o seu processo de ressocialização possa obter melhor êxito mantendo-se ele em liberdade vigiada, mediante a sujeição ao referido instituto processual penal.

Por isso, o juízo a efectuar, sendo-lhe necessariamente desfavorável, mostra que não é ajustada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, improcedendo, também, aqui o recurso.

IV. DECISÃO

Por tudo o que ficou dito, acordam os Juízes, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar não provido o recurso.

Custas pela arguida, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCS.

Coimbra, 8 de março de 2023