ADVOGADO
SEGREDO PROFISSIONAL
MEIO PROIBIDO DE PROVA
PROVA PROIBIDA
DEVER DE RESERVA
DISPENSA DE SEGREDO PROFISSIONAL
Sumário

I – O Estatuto da Ordem dos Advogados estabelece que a relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca, princípio este que exige e impõe um dever de sigilo que encontra expressão no EOA e também em diversas normas de direito codificado, nomeadamente no Código de Processo Penal, com vista a acautelar as condições necessárias ao regular exercício daquelas funções.
II – O artigo 92.º, n.º 1, do EOA densifica as vertentes do dever de sigilo, estipulando que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
III – A comunicação electrónica entre cliente e advogado, através da qual aquele exerce o direito de aconselhamento em privado com o seu advogado e em que lhe presta as informações que considere úteis para a defesa dos seus interesses, beneficia de uma dupla tutela, pois está abrangida pelo dever de sigilo que recai sobre o advogado e respectivos colaboradores, previsto no artigo 92.º referido, e, além disso, beneficia da tutela do artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal
IV – As provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular são nulas, como resulta, em primeira linha, do artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa
V – A valoração, para efeitos de prova, de um email que traduz comunicação escrita entre arguida e o seu advogado, sem que a sua revelação a terceiros tenha sido autorizada pelos titulares do interesse juridicamente protegido, ou sem que tenha sido desenvolvido qualquer procedimento tendente ao levantamento do sigilo, é lesiva da privacidade da arguida enquanto autora daquela comunicação, respeita a questões com relevo jurídico, com implicações legais.
VI – A decisão que se funde, de modo essencial, na valoração de prova nula fica inquinada por nulidade que, nos termos do artigo 122.º do Código de Processo Penal, dá causa à invalidade do acto em que se verificar, bem como dos que dele dependerem e que a nulidade cometida possa afectar, salvando-se apenas os actos que possam ser aproveitados.
VII – A circunstância de aquela comunicação ter sido conhecida por inadvertido procedimento não tem a virtualidade de suprir as irregularidades resultantes da sua ilícita divulgação.
VIII – Compete ao tribunal conhecer oficiosamente as questões atinentes à prova proibida e obstar à sua produção.

Texto Integral


I – RELATÓRIO:

… foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

(…)

Face ao exposto, decido:

A) CONDENAR a arguida AA pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1do Código Penal, na pena 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos).

B) CONDENAR a demandada AA a pagar à demandante BB de € 500,00 …

Inconformada, recorre a arguida, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

2ª- A recorrente discorda da sentença proferida pelo Tribunal a quo, porquanto para formar a sua convicção e considerar provada a factualidade atrás descrita, valorou prova proibida, nos termos e efeitos, nomeadamente, dos artº. 92º, da Lei/2012, de 09-09 – Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), artºs. 126º e 135º do Cód. Processo Penal.

3ª- … o meio de prova “e-mails” junto aos autos a fls. 19 a 23 é proibida por lei, porquanto está sujeita a segredo profissional a comunicação eletrónica enviada por cliente (arguida) diretamente ao seu mandatário (advogado), e-mail esse relativo a dissídio surgido entre a arguida e a assistente e em fase de procura de solução amigável.

4ª- Ou seja, no caso em apreço o e-mail em causa (transcrito no ponto 6 da factualidade assente) por ter sido conhecido devido a um comportamento do mandatário da arguida, e cujo facto foi reencaminhado pela sua funcionária (o que ocorreu apenas por falha do escritório do mandatário da arguida) ter sido por si conhecidos no exercício da sua profissão de Advogado, a sua junção constitui meio proibido de prova, nos termos dos artºs. 92º, n.º 5, do E.O.A., 126º e 135º do Cód. Processo Penal.

5ª- … essa questão deveria ter sido decida oficiosamente pelo Tribunal recorrido, o que não se verificou.

6ª- A violação do dever de reserva acarreta consequências do ponto de vista estatutário, também coenvolve consequências processuais, que passam por considerar que os atos praticados em violação desse dever são cominados com a proibição de prova, sendo ilícita, não servindo, pois, para fazer prova em juízo (n.º 5 do artº. 92º, do E.O.A., e artº. 126º do Cód. Processo Penal).

7ª- Por outro lado, também a valoração proibida com a prova resultante do depoimento da testemunha Dr. CC (Advogado da arguida), que a Mmª. Juiz a quo teve em consideração, estão em causa conhecimentos ou informações suportadas no exercício da advocacia, está em causa falar sobre questão colocada pela mandante (a aqui arguida) ao Advogado no exercício da sua profissão, pelo que está implícito estar abrangido pelo segredo profissional, porquanto falou com a arguida e deu orientações às suas funcionárias não como cidadão, mas claramente como Advogado, mais propriamente como mandatário na altura constituído pela aqui arguida, falando sobre questão que a arguida que colocou (sendo irrelevante que fosse por e-mail, que estivesse fora do escritório, numa consulta médica, etc., pois foi questionado e respondeu como Advogado).

8ª- O segredo profissional traduz-se, em geral, na reserva que um profissional deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou em consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço prestado à profissão.

9ª- O fundamento ético-jurídico deste dever não está confinado à relação contratual estabelecida entre o Advogado e o seu cliente, sendo o bem jurídico que ilumina a tutela do segredo profissional a necessidade social da confiança no profissional, estando na base desta tutela um inegável interesse social e comunitário.

10ª- A dispensa do segredo profissional será alcançada por uma das duas vias: 1) Por requerimento do Advogado ao Presidente do Conselho Distrital respetivo, que autorizará - o procedimento previsto no n.º 4 do artº. 92º do E.O.A.; 2) por via do incidente processual de quebra do segredo profissional regulado no artº. 135º do Cód. Processo Penal. E no caso em apreço nenhuma dessas vias foi seguida.

11ª- É então, forçoso concluir que, de acordo com o n.º 5 do artº. 92º do E.O.A., quer o e-mail, quer o depoimento da testemunha Dr. CC não pode ser considerado.

12ª- Tendo a sentença recorrida, considerado o conteúdo do aludido e-mail e desse depoimento estamos perante “prova proibida”, sem ter sido expressamente tratada a questão dessa proibição, pelo que a questão se equipara à situação prevista na primeira parte da al. c) do artº. 379º do Cód. Processo Penal, ou seja, uma situação em que “o tribunal deixa de se pronunciar sobre uma questão que devia apreciar” e como tal gera a nulidade da sentença (cfr. Paulo Pinto Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Portuguesa, notas24 a 26 ao artº. 126º, nota 13 ao artº. 129º e nota 4 ao artº. 130º, págs. 344, 364 e 365).

14ª- Ademais, na sentença recorrida está dito que foi dada particular importância à prova pré-constituída junta aos autos - a impressão dos e-mails, junta a fls. 19 e 23, e apesar de não estar dito que o depoimento da testemunha em causa fosse também prova mais influente, também não está dito o contrário, pois até lhe é dado grande destaque.

16ª- Enferma de nulidade por omisso de pronuncia a sentença que considera uma prova proibida sem tratar a questão da proibição.

17ª- A douta sentença ora em crise não se encontra, salvo o devido respeito, devidamente fundamentada quanto à matéria de facto dada como provada, atento a que não fez referência às declarações integrais da assistente, depoimento das testemunhas e declarações da assistente, não satisfazendo a exigência resultante dos artºs. 127º e 374º, n.º 2 do Cód. Processo Penal.

18ª- A recorrente situa a nulidade na circunstância da sentença não revelar com suficiência como se chegou à prova dos factos. Limita-se a tecer considerações abstratas, não explica como se comprovaram os factos e, para tanto, apreciar a versão apresentada pela arguida, explanando as razões do seu crédito ou descrédito; analisar do mesmo modo os depoimentos das testemunhas e a prova restante.

19ª- O tribunal motivou a decisão de facto de forma insuficiente e incompleta, não explicitando a convicção de modo percetível e objetivado no que respeita à prova dos factos que considerou como tal, por tudo se conclui que a sentença enferma de nulidade por falta de fundamentação da matéria de facto/ exame crítico às provas (artº. 374º, n.º 2 e artº. 379º, nº 1, al. a) do Cód. de Processo Penal), devendo ser substituída por outra que proceda ao exame de todas as provas produzidas e/ou examinadas em audiência, nos moldes referidos.

O M.P. respondeu, pugnando pela manutenção do decidido, concluindo nos termos seguintes:

2. A circunstância da arguida apelidar a assistente de burlona num email (correspondência) enviado ao seu advogado, não configura um resultado/consequência do desempenho/actividade do advogado, até porque o seu mandato não compreende a situação em apreço, de forma a constituir segredo (profissional) pelo qual esteja impedido de revelar.

A assistente, na sua resposta, pugnou também pela manutenção do decidido …

9. É que, “o segredo profissional mostra-se inerente, não ao próprio advogado em si, mas à atividade desenvolvida por este profissional da Justiça”, pelo que “nem todos os factos transmitidos ou conhecidos pelo advogado estão a coberto do dever de confidencialidade previsto pelo artigo 87.º, n.º 1, do EOA, mas simplesmente aqueles que sejam relativos ao exercício desta atividade profissional”.

10. É que, estão abrangidos pelo segredo profissional os factos que resultem do desempenho desta atividade profissional do advogado ou os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções.

11. Pelo que fica excluído do âmbito de proteção desta norma tudo aquilo que é comunicado ao advogado, mas que não respeite a atos próprios da advocacia, ou seja, todos os acontecimentos da vida real que não se prendam com este desempenho profissional, mesmo que cheguem ao conhecimento do advogado no seu local de trabalho. (in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/- /5F9BA41CA452C41680257E310032B411)

15. Com efeito, nunca tal se revelou ser uma questão delicada e/ou controvertida ademais que a lei permite ao advogado que possa/deva, em caso de dúvida, consultar sempre a Ordem dos Advogados, sendo que tal é possível mesmo que a interessada, aqui arguida o desvinculasse, mas a verdade é que tal nunca sucedeu e o Ilustre Causídico nunca se escusou a prestar declarações sempre que interpelado para o efeito!

16. No âmbito do procedimento criminal, o segredo profissional, encontra-se regulado no artigo 135.º do CPP, que prevê, no seu n.º 1, a possibilidade de o advogado se escusar a depor sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional.

Nesta instância, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da verificação da valoração de prova proibida com relevo para a decisão condenatória que veio a ser proferida em 1ª instância, decorrente da utilização para efeitos de prova …

O âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo das questões de oficioso conhecimento pelo tribunal ad quem, havendo que conhecer, no caso vertente, do seguinte:

- Utilização de meio de prova proibido;

- Violação do dever de fundamentação;

II – FUNDAMENTAÇÃO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1. A Assistente é Advogada e Administradora da empresa A..., S.A., que se dedica à atividade de transporte rodoviário de mercadorias e aluguer de veículos automóveis

2. A arguida é empresária e gerente de várias empresas, nomeadamente da empresa B..., UNIPESSOAL, LDA

3. Em 8.10.2018, a B... celebrou com a A... S.A., o contrato de aluguer de veículo pesado de mercadorias sem condutor n.º ...47, referente à viatura marca ..., matrícula ..-IE-..,

4. Em 17.06.2019, pelas 12h 19m, a Assistente recebeu um e-mail remetido por DD, advogado da sociedade B..., UNIPESSOAL, LDA, no qual referia que a viatura de matrícula ..-IE-.. tinha sido alvo de apedrejamento, para se fazer a participação ao seguro,

5. Na sequencia dessa troca de e-mails, no dia 17.06.2019 pelas 17h16m, DD, remeteu à Assistente e a dois funcionários da A... S.A., EE e FF um e-mail.

6. Nesse e-mail vinha remetido, na sequencia, um e-mail escrito pela arguida no qual se lia, para além do mais: “(…) A D. BB está aqui no email a baixo a mencionar o valor da franquia do seguro que será o valor de 300eur, ao qual eu não irei pagar estou cansada de andar a trabalhar para esta Senhora e as vigarices que a mesma faz, logo não estou a entende-la, e sinceramente acho que é desta que me irá “saltar a tampa” com a “Senhora” Burlona, já que a mesma insiste em cada vez que manda a fatura gozar com a minha cara e dizer e reforçar que este mesmo trator se encontra em regime de aluguer, por muita paciência que eu tenho vindo a ter para com esta situação, a partir do dia de hoje a paciência com esta Senhora Burlona foi-se (…)”

Fundamentação:

A convicção do Tribunal em relação à factualidade sob apreciação resultou da análise e confronto das declarações da arguida, da assistente com os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, e, bem assim, com a prova pré-constituída junta aos autos, em particular a impressão dos e-mails, junta a fls. 19 a 23, tudo apreciado à luz das regras da normalidade social e da experiência comum e valorado de acordo com a livre convicção do julgador, à luz do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Nesse sentido, a assistente, confirmou e contextualizou os factos sob apreço, que surgiram na sequência de da relação negocial estabelecida, mormente no apedrejamento do camião. Ora, estas declarações mostraram-se nesta parte consonantes com o teor dos e-mails, juntos a fls. 19 a 23 dos autos e que foi devidamente valorada (temos como certo que se trata de prova legal, uma vez que não há qualquer interferência nas comunicações), tendo em vista determinar o seu concreto teor.

Por outro lado, a testemunha DD, primeiro destinatário da comunicação em causa, apesar da evidente tentativa de desculpabilização da arguida e de minoração da sua actuação confirmou a sua recepção, bem como o seu reencaminhamento, pela sua funcionária, para a Assistente, o que ocorreu apenas por falha do seu escritório, confirmando ainda o contexto relacional em causa.

Por sua vez, as testemunhas EE e FF confirmaram terem recebido o referido e-mail, bem como o constante de 8.

A testemunha GG, irmã da arguida, esclareceu que aquela em conversa posterior e já depois da Assistente ter manifestado a sua indignação pela recepção de tal e-mail, assumiu a autoria do mesmo, bem como o contexto existente.

*

A primeira questão a conhecer, posto que dela depende a apreciação de todas as demais, é a que se prende com a determinação da validade e eficácia da utilização, para efeitos de prova, do email a que alude o ponto 6 da matéria de facto, referido também na fundamentação do provado.

Numa primeira aproximação ao tema importa ter presente que os advogados são profissionais do foro que, para além do mais, têm por função aconselhar juridicamente os seus clientes e exercer o mandato forense, actuando em nome e por conta dos seus representados. Acautelando as condições necessárias ao regular exercício das suas funções, o Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro, adiante designado por EOA) estabelece, no nº 1 do respetivo art. 97º, que a relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca.

Esse princípio de confiança exige e impõe um dever de sigilo que encontra expressão no EOA e também em diversas normas de direito codificado, nomeadamente, no Código de Processo Penal. De resto, como vem sendo apontado pela jurisprudência dos tribunais superiores, o dever de sigilo que impende sobre os advogados decorre de razões de interesse e ordem pública porquanto subjazem ao exercício do respectivo múnus, além do interesse individual de cada um dos cidadãos que se socorre dos serviços de um advogado (garantia de confiança do cidadão na confidencialidade das informações que lhe transmite), interesses sociais e colectivos no exercício de uma advocacia livre, independente e responsável, enquanto vector fundamental da garantia de acesso ao direito e aos tribunais.

O art. 92º, nº 1, do EOA, densifica essas vertentes do dever de sigilo, estipulando que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, especificando depois, nas diversas alíneas, que esse dever de sigilo se estende:

 a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

 b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

 c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

 d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

 e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

 f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

Os números subsequentes delimitam de modo abrangente situações de onde decorre dever de sigilo, as condições em que este pode ser derrogado com recurso a mecanismos internos da Ordem dos Advogados e o âmbito da extensão do regime de sigilo aos colaboradores dos advogados, bem como a consequência da prática de actos com violação do segredo profissional, nos termos seguintes:

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

 4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

 5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

 6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

 7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

 8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.

Como resulta do seu próprio teor, o email referido no facto nº 6 constitui comunicação electrónica entre cliente e advogado, estando em causa o direito do cliente a aconselhar-se em privado com o seu advogado e a prestar-lhe todas as informações que considere úteis para a defesa dos seus interesses. Essa comunicação está abrangida pelo dever de sigilo que recai sobre o advogado e respectivos colaboradores, para além de beneficiar da tutela do art. 126º, nº 3, do Código de Processo Penal, em cujos termos, ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.  A nulidade prevista nesta norma decorre, aliás, em primeira linha, da própria Constituição da República Portuguesa, que no art. 32º, nº 8, dispõe expressamente que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

De acordo com o que resulta da sentença recorrida, aquele email chegou ao conhecimento da assistente por actuação da funcionária do escritório do advogado CC , que lho terá reencaminhado por lapso, posto que tal não deveria ter sucedido, não se destinando aquela comunicação a ser levada ao conhecimento da assistente.

Ora, a valoração, para efeitos de prova, de um email que traduz comunicação escrita entre a ora arguida e o seu advogado sem que a sua revelação a terceiros tenha sido autorizada pelos titulares do interesse juridicamente protegido ou sem que tenha sido desenvolvido qualquer procedimento tendente ao levantamento do sigilo, é lesivo da privacidade da arguida enquanto autora daquela comunicação, respeitante a questões com relevo jurídico, com implicações legais, e estabelecida no âmbito da relação cliente / advogado.

Por outro lado, o inadvertido procedimento que permitiu o conhecimento pela assistente daquela comunicação electrónica, de teor reservado, não tem a virtualidade de suprir qualquer das irregularidades resultantes da sua ilícita divulgação, sendo certo que nenhum procedimento processual foi desenvolvido para permitir a utilização daquela comunicação como meio de prova e não houve autorização para a sua divulgação por parte da ora arguida ou pelo seu advogado.

A comunicação electrónica em causa beneficia de uma dupla tutela. Desde logo, o modo de divulgação obriga à equiparação da obtenção do teor daquela comunicação a prova obtida mediante intromissão na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular, daí resultando nulidade, impossibilitando a sua utilização, conforme previsto no art. 126º, nº 3, do Código de Processo Penal. Concomitantemente, estando em causa factos referentes a assuntos profissionais transmitidos pelo cliente ao seu advogado, a situação cai na alçada da previsão do art. 92º, nº 1, al. a), do EOA, ficando a coberto do sigilo profissional que recai sobre o advogado e que vincula também os seus colaboradores (nº 7), não podendo fazer prova em juízo por força do previsto no nº 5 do mesmo artigo.

De resto, o problema poderá colocar-se também relativamente ao depoimento do advogado, na parte em que se reportar a comunicações transmitidas pela sua cliente.

Competia ao tribunal recorrido ter tomado oficioso conhecimento das questões atinentes à prova proibida, obstando à sua produção; mas não só não o fez como a decisão que veio a proferir se fundou de modo essencial na valoração dessa prova, ficando assim inquinada por nulidade que, nos termos do art. 122º do CPP, dá causa à invalidade do acto em que se verificar, bem como dos que dele dependerem e que a nulidade cometida possa afectar, salvando-se apenas os actos que possam ser aproveitados. Consequentemente, é inválida a sentença proferida pelo tribunal a quo, devendo esse mesmo tribunal proferir nova sentença em que desconsidere a prova proibida.

Consequentemente, resulta prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, anulando a sentença recorrida e determinando que o tribunal a quo profira nova sentença sem atender à prova proibida.

Sem tributação.

Coimbra, 8 de Março de 2023

(texto processado e revisto pelo relator e assinado electronicamente)

(Jorge Miranda Jacob - relator)

(Maria Pilar Oliveira – 1ª adjunta)

(José Eduardo Martins -  2º adjunto)