SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO FACULTATIVO
OBJETO DO CONTRATO DE SEGURO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
DEVER ACESSÓRIO
DEVER DE DILIGÊNCIA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
MORA
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTORIDADE POLICIAL
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL
CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CONDUÇÃO DE VEÍCULO SOB A INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES
Sumário


I- No seguro de coisas (como é o caso do seguro de danos próprios por choque, colisão e capotamento de veículo automóvel), o segurador só responde pela privação do uso da coisa segura se a cobertura de tal risco estiver convencionada no contrato de seguro.
II- Assim, não estando tal cobertura convencionada, o atraso do segurador na realização da prestação convencionada – entrega do valor do veículo, por ter ocorrido o evento (com perda total) que desencadeou o acionamento da cobertura do risco – apenas dá lugar, em princípio, ao pagamento de juros de mora.
III- Todavia, em caso de atraso injustificado na realização da prestação convencionada – caso a seguradora não tenha atuado de forma diligente, equitativa, transparente e com consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação, caso a seguradora haja violado os deveres acessórios de conduta e não haja tomado todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua prestação – tem a seguradora que indemnizar a não satisfação do interesse do credor, tendo, a tal título e com tal enfoque jurídico, que indemnizar o chamado dano de privação de uso.
IV- Terá sempre que ser perante os contornos da concreta situação que tal conclusão (a propósito da violação ou não dos deveres acessórios de conduta) pode/deve ser estabelecida.
V- Assim – ficando excluída a cobertura facultativa quando o condutor do veículo conduza sob o efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos, ou ainda quando este se recuse a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de deteção de estupefacientes, bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade – não atrasa injustificadamente a realização da prestação convencionada a seguradora que invoca, para declinar a sua responsabilidade, que o condutor abandonou o local do acidente antes da chegada da autoridade policial, o que se demonstrou (a autoridade policial foi chamada ao local do acidente e já não encontrou o condutor) e que preenche o “núcleo fundamental” da cláusula de exclusão, apenas não conferindo vencimento à posição da seguradora por não se ter provado que o condutor sabia, antes de abandonar o local, que a autoridade policial havia sido chamada.

Texto Integral



Processo nº 27871/19.4T8LSB.L1.S1

ACORDAM, NA 6ª SECÇÃO, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – Relatório

AA intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Seguradoras Unidas, S.A. (entretanto incorporada por fusão na Generali Seguros, S.A.), pedindo:

a) deve a R. ser condenada a pagar ao A. as quantias discriminadas nas alíneas a) e b) do anterior artigo 64º, da presente petição inicial, no montante total de Euros 69.999,13 [€ 36.699,13 pela perda total do veículo, mantendo o salvado; e € 33.300,00 pela privação de uso do veículo até à data da PI], a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos em resultado do acidente de viação acima descrito;

b) deve a mesma R. ser condenada a pagar ao A. a quantia discriminada na alínea c) do anterior artigo 64º, da presente petição inicial, no montante total de Euros 7.500,00, como indemnização de danos não patrimoniais;

c) à verba indicada na alínea a) do anterior artigo 64º, da presente petição inicial, acresce uma indemnização por mora, consistente nos juros a contar da data em que o pagamento devia ter sido efetuado (20/06/2019 – cfr. documento 5), nos termos do disposto nos artigos 804º; número 2 alínea a) do 805º e 806º, todos, do Código Civil – juros esses à taxa legal de 4% ao ano (número 1 do artigo 559º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril) e que somam até ao presente € 731,97, a que acrescem os juros vincendos, à mesma taxa, até integral pagamento;

d) à verba indicada na alínea b) do artigo 64º, da presente petição inicial, acresce uma indemnização por mora, consistente nos juros a contar da data da citação, nos termos do disposto nos artigos 804º; número 3 do 805º e 806º, todos, do Código Civil – juros esses à taxa legal de 4% ao ano (número 1 do artigo 559º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril), a que acrescem os juros vincendos, à mesma taxa, até integral pagamento;

e) à mesma verba indicada na alínea b) do anterior artigo 64º, acrescerá os respetivos montantes vincendos, tal como indicado no anterior artigo 41º, respetivamente, da presente petição inicial, até à data do efetivo pagamento do valor do veículo sinistrado;

f) ainda sobre o montante global das indemnizações que forem fixadas, deve a R. ser condenada a pagar ao A. uma sanção pecuniária compulsória, correspondente a juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a douta sentença de condenação transitar em julgado - os quais acrescerão aos juros de mora (tudo nos termos do disposto no artigo 829º-A, n.º 4 do Código Civil);

Alegou, em síntese, que:

Celebrou com a R. um contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios, tendo por objeto o veículo Mercedes S350 com a matrícula ...-OM-..., de sua propriedade;

Em 6/5/2019, o veículo sofreu um acidente do qual resultaram danos avultados no mesmo, que importaram a sua perda total;

A R. não assumiu a responsabilidade contratual, não pagando o valor do veículo nem procedendo à sua substituição, invocando a exclusão da responsabilidade;

O A. tinha o veículo à venda por € 60.000,00 e o valor diário do aluguer de um veículo com aquelas características ronda os € 150,00;

Toda a situação causou forte abalo interior ao A. que ficou desgastado, traumatizado e sofreu transtornos e incómodos.

A R. contestou.

Confirmou o contrato de seguro e o sinistro, mas invocou que da averiguação feita ao mesmo decorreu que o condutor e respetivos ocupantes abandonaram o local, por sua iniciativa, antes da chegada da autoridade policial, o que constitui causa de exclusão da sua responsabilidade.

Mais invocou que, a ser devida indemnização, há que lhe deduzir o valor do salvado no montante de € 19.900,00.

Alegou, por último, que o A. não utilizava o veículo em seu proveito, não tendo suportado qualquer custo com o aluguer de veículo de substituição.

Concluiu pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador – que considerou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“ (…) julgo a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, decido:

1. Condenar a R. a

a. pagar ao autor a quantia de 36.699,17 a título de indemnização pela perda total do veículo, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento (art. 805º, n.º 1 do Código Civil).

b. pagar ao A. a quantia de 62.000,00 €, a título de indemnização devida pela privação do uso do veículo acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente data e até integral pagamento;

2. Absolver a R. do mais contra si peticionado. (…)”

Inconformada com tal decisão, interpôs a R. recurso de apelação, o qual, por Acórdão da Relação de Lisboa de 24/11/2022, foi julgado parcialmente procedente, “(…) eliminando-se do dispositivo da sentença recorrida o seu ponto 1. b. e mantendo-se tudo o mais aí decidido (…)”.

Inconformado agora o A., interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que repristine o sentenciado na 1.ª Instância.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I- As considerações iniciais do douto Acórdão recorrido (cfr. página 21 do douto Acórdão recorrido) não reproduzem nem correspondem ao que efetivamente se passou entre as partes e colidem frontalmente com a factualidade provada nos presentes autos;

II- Desde logo, a citada carta da R. datada de 30/05/2019 (cfr. pontos 10 e 11, da factualidade assente) foi objetivamente inutilizada pela posição da seguradora vertida na carta datada de 17/06/2019 – cfr. ponto 12, da factualidade assente;

III- Após a participação do sinistro e devido enquadramento em sede de peritagem, a R. seguradora começa por cumprir o legal e contratualmente previsto – no entanto, de forma totalmente infundada e injustificada, dá o dito por não dito e arquitecta uma exclusão de responsabilidade que não podia ignorar não se verificar (como, aliás, bem se demonstrou por força da presente ação judicial – posição com a qual, muito curiosamente, a R. logo concordou);

IV- Não se olvidando o facto notório das seguradoras desenvolverem, de certa forma, um serviço público, sendo auxiliares da vida financeira do Estado e um instrumento de atuação deste na vida económica – exigindo-se-lhes, por conseguinte, um comportamento exemplar no respeito pela legalidade e pelos clientes (os quais, para além do mais, pagam elevados prémios anuais pelos seguros contratados);

V- E a questão do valor do salvado trata-se de outra fabulação da seguradora com intuitos meramente dilatórios pois apenas se suscitou já em sede de contestação, após a propositura da presente ação judicial;

VI- É, por conseguinte, inadmissível sustentar-se, no caso concreto, que “a R. optou por cumprir a sua obrigação contratual através da atribuição de uma indemnização em dinheiro” – como se sustenta inadvertidamente no douto Acórdão recorrido (cfr. final da página 22 e início da página 23 do douto Acórdão recorrido);

VII- Resultando ainda evidente que no caso “sub-judice” a R. seguradora não deu “cumprimento aos deveres acessórios a que estava adstrita” por força do contrato de seguro dos autos;

VIII- Sendo ainda de salientar que ficou demonstrado nos autos que “a seguradora não procedeu à substituição do veículo ou ao pagamento ao A. do respectivo valor” (cfr. ponto 18, dos factos provados);

IX- A jurisprudência é maioritária ao considerar o dano de privação de uso com um dano patrimonial autónomo, “susceptível de avaliação pecuniária, e que decorre do direito de propriedade que compreende o uso e a fruição da coisa (artigo 1.035º do Código Civil)”;

X- Foi a recorrida seguradora que violou frontal e objetivamente os seus deveres principais – decorrência natural, até, da condenação transitada em julgado constante do ponto 1.a, da douta sentença de 1ª instância;

XI- A decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância apresentou-se, assim, como a concretização material da justiça - nos termos do mencionado número 3 do artigo 566º do Código Civil - e se alguma objeção pudesse ser apontada seria, sempre, a da sua contenção;

XII- Deverá o montante devido pela privação de uso do veículo fixar-se nos exatos termos definidos pela sentença de 1ª Instância;

XIII- No caso concreto é apenas uma situação de dano de privação do uso de veículo que está em causa - e não qualquer outra;

XIV- O entendimento claramente dominante nesse Supremo Tribunal de Justiça é aquele que considera que a privação do uso de veículo automóvel decorrente de um sinistro constitui, em si mesmo, um dano autónomo, de imediata expressão patrimonial, sujeito a avaliação pecuniária, e que deverá ser ressarcido -bastando para tanto, somente, que o proprietário afetado demonstre a utilização que dele vinha fazendo à data do sinistro (independentemente do seu fim);

XV- A verdade é que, no caso concreto, em consequência do sinistro dos autos (cfr. pontos 4 a 7 da factualidade assente) o ora recorrente deixou poder dispor, gozar e fruir do veículo (nos termos consagrados pelo artigo 1.305.º do Código Civil);

XVI- A factualidade definitivamente assente nos autos não poderia ter sido ignorada (como foi) pelo douto Acórdão recorrido (muito particularmente os pontos 8, 15, 18, 19, 20 e 21, dos factos provados) - impondo-se, em consequência, uma conclusão diametralmente oposta relativamente à condenação da seguradora recorrida a pagar ao A. uma indemnização pela privação do uso do veículo dado como perda total e que, repita-se, deverá consolidar-se nos termos definidos pela douta sentença de 1ª instância;

XVII- O douto Acórdão recorrido violou, para além do mais, as seguintes normas jurídicas: artigos 128º e seguintes do Regime Jurídico do Contrato de Seguro; e artigos 483º, 496º, 562º, 566º, 762º, 798º e 1.305º do Código Civil;

A R. respondeu, sustentando, em síntese, que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Concluiu a sua contra alegação nos seguintes termos:

1) Analisadas as alegações de recurso do Recorrente constata-se que o mesmo escolheu dar atenção apenas a um ponto do sumário do Acórdão ignorando por completo toda a fundamentação que o Tribunal da Relação aduziu para justificar a sua decisão.

2) Com efeito, o Acórdão aqui em crise enunciou detalhadamente a análise do caso em concreto e as razões pelas quais concluiu que da atuação da Ré não resultou qualquer incumprimento contratual, conforme se passa analisar:

3) O Tribunal da Relação faz uma análise detalhadamente a atuação da Ré para concluir que não existiu qualquer incumprimento contratual.

4) Ora, importa dizer que nenhuma destas considerações que o Tribunal da Relação fez foi atacada no recurso do Recorrente exatamente porque não existe ataque possível.

5) Ora, o Recorrente apenas se insurge contra a citação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/2/2021, uma vez que neste caso existia uma suspeita de fraude e na óptica do Recorrente tal situação não tem enquadramento no caso em concreto.

6) Salvo o devido respeito, o que está em causa é se a Ré no caso em concreto cumpriu com as suas obrigações, o que no caso em concreto, resulta dos factos assentes que o fez.

7) O entendimento que a Ré chegou uma vez concluída a averiguação do processo e que justificou a recusa da responsabilidade apenas não se logrou demonstrar em tribunal, uma vez que a prova que cabia à Ré é chamada a prova impossível e diabólica. Não se pode ignorar que era pedido à Ré que demonstrasse em que circunstâncias é que o condutor do veículo seguro tinha abandonado o veículo num local ermo, sem luz e durante a noite.

8) No seguro automóvel obrigatório, há normas específicas que impõem à seguradora especial diligência e prontidão na regularização dos sinistros, que no caso em concreto a Ré logrou cumprir. O facto de a Ré não ter logrado provar que o condutor do veículo seguro abandonou o veículo com vista a evitar quaisquer despistes de álcool ou substâncias psicotrópicas, não pode ser considerado uma violação contratual.

9) A boa-fé e os princípios gerais de conduta de mercado conduzem as empresas de seguros a garantir uma gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, agindo com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos. Conforme fez a Ré no caso em apreço.

10)Conforme se pode ler no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.03.2016.

11)Face ao exposto, conclui-se pela inexistência de qualquer violação dos deveres acessórios de conduta.

12)Em seguida o Recorrente segue a mesma linha de orientação da Sentença de 1ª instância que conforme já se viu analisou a questão sobre a perspetiva de um terceiro lesado e não sobre a perspetiva contratual conforme se impunha.

13)Assim todas as considerações sobre o entendimento que a jurisprudência tem vindo a proferir sobre a valoração da privação de uso não tem aplicação direta ao caso em apreço uma vez que não se verifica o primeiro pressuposto de violação das regras contratuais pela Ré que pudesse justificar a atribuição de uma indemnização.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

II – A – Factos Provados

1. Entre o A. e a R. foi celebrado um contrato de seguro automóvel de danos próprios, tendo por objeto o veículo de marca Mercedes-Benz, modelo Classe S Diesel, versão S350 Blue TEC Longo, matrícula ...-OM-..., titulado pela apólice ...7, com início a 7/6/2018, renovável anualmente, regulado pelas condições gerais, especiais e particulares constantes dos doc. 1 e 2 da contestação que aqui se dão por reproduzidas.

2. O veículo segurado é propriedade do A.

3. O A. procedeu ao seguro do veículo para garantia de danos próprios, com as coberturas indicadas nas condições particulares da apólice.

4. No dia 6/5/2019, pelas 00h15m, o condutor BB circulava com o veículo na estrada ..., em ..., Concelho de ..., no sentido .../....

5. Em circunstâncias não apuradas, o veículo entrou em despiste tendo caído por uma ribanceira.

6. Desse acidente resultaram danos no veículo que importaram a sua perda total.

7. O sinistro foi participado à R. ainda no dia 6/5/2019, como tendo ocorrido às 00h15m.

8. No mesmo dia, o veículo deu entrada na oficina da sociedade comercial A..., Lda., sita na Rua ..., na ....

9. A vistoria efetuada ao veículo, em 16/5/2019, pelo perito da R., estimou o montante de € 75.326,10 como necessário para reparação do veículo.

10. Por meio de carta datada de 30/5/2019, a R. comunicou ao A. que a reparação do veículo sinistrado se tornara “excessivamente onerosa face ao valor seguro”.

11. Nessa carta referiu a R. que “o valor seguro à data do sinistro é de 50.032,13 e o veículo com danos foi avaliado em 13.333,00”, mais referindo que “colocamos condicionalmente à sua disposição a quantia de 36.699,13, mantendo V/Exa(s). a posse do veículo com danos do qual pode dispor livremente, pelo que aguardamos que nos remeta fotocópias do cartão do cidadão ou bilhete de identidade e cartão de contribuinte do proprietário, assim como dos documentos da viatura”.

12. Com data de 17/6/2019, o A. recebeu outra carta a informar que “após análise do processo, verificamos que não é da nossa responsabilidade a regularização do presente sinistro, em virtude do disposto na Apólice de Seguro automóvel, mais concretamente ao nível da cláusula 40ª, número 1, alínea a) exclusões às coberturas facultativas, das condições gerais”.

13. O A. respondeu à R. em 18/6/2019, esclarecendo que a invocada cláusula apenas prevê a exclusão da responsabilidade da seguradora quando o condutor do veículo, “voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra pessoa” – o que não foi manifestamente o caso pois “o condutor do veículo sinistrado não alertou a autoridade policial, nem teve qualquer conhecimento que essa autoridade tenha sido chamada, por não ter naquele momento forma de o fazer, e por não existir, à data, qualquer pessoa visível nas imediações do sinistro”.

14. Por meio de carta datada de 10/7/2019, a R. referiu que “entendemos que a decisão tomada e transmitida é a correta pelo que a reiteramos”.

15. Antes do acidente o veículo encontrava-se em plenas condições de funcionamento.

16. À data do acidente o veículo encontrava-se à venda, pelo valor de € 62.000,00, no Stand M ..., pertencente ao A.

17. De acordo com as condições particulares da apólice o veículo encontrava-se segurado pelo valor de € 59.033,24.

18. A R. não procedeu à substituição do veículo ou ao pagamento ao A. do respetivo valor.

19. O valor mínimo de aluguer diário de um veículo com as características do sinistrado ronda os € 150,00.

20. O A. sempre depositou total confiança na R. mantendo-se convicto quanto ao estrito cumprimento das obrigações decorrentes do seguro.

21. O A. sofreu transtornos e incómodos resultantes da postura da R.

22. No local do sinistro o traçado da via apresenta-se em curva e contracurva, com dois sentidos de trânsito e uma faixa de rodagem em cada sentido.

23. A visibilidade é reduzida, por via da existência de uma curva, sendo de cerca de 40 metros.

24. O asfalto é betuminoso e encontra-se em bom estado de conservação.

25. As autoridades deslocaram-se ao local por denúncia de uma testemunha que se apercebeu do despiste e queda do veículo.

26. O piquete de intervenção e a brigada de trânsito da ... estiveram no local e não conseguiram identificar o condutor nem ocupantes do veículo que não se encontravam no local.

27. O veículo foi retirado do local por uma grua pelas 16.30h do dia 6/5/2019.

28. As autoridades contactaram o A., que se deslocou ao local.

29. O veículo seguro constava na lista de viaturas para alugar da rent-a-car Sixstars.

30. CC conduzia o veículo segurado por o mesmo lhe ter sido emprestado por DD, filho do A., seguindo no veículo acompanhado por dois amigos.

31. Dispõe a cláusula 40ª, n.º 1 al. c) das condições gerais da apólice que “Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações…

c) sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob o efeito do álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos, ou ainda quando este se recuse a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de detenção de estupefacientes, bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”.

32. Em Fevereiro de 2020 o A. tinha registada em seu nome a propriedade dos seguintes veículos:

a. Matrícula ...-MR-..., desde 8/11/2018;

b. Matrícula ...-RV-..., desde 25/11/2019;

c. Matrícula ...-PE-..., desde 11/10/2018;

d. Matrícula ...-FN-..., desde 22/1/2020;

e. Matrícula ...-LL-..., desde 20/6/2017.

33. O A. tenha colocou o salvado à venda no seu stand, pelo valor de € 19.900,001.

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II – B – Factos não Provados

Não se provou que:

a) Quando se encontrava a fazer uma curva o condutor foi encandeado pelas luzes de máximos de outro automóvel que circulava em sentido contrário, desviou-se e entrou em despiste;

b) Em consequência desse despiste, o veículo foi projetado para a berma do lado direito da faixa de rodagem;

c) Que o veículo era utilizado diariamente nas múltiplas deslocações profissionais e pessoais do A.;

d) O A. acionou um pedido de assistência em viagem no dia 6/5/2019, pelas 1h40m, tendo comparecido no local um reboque da Portilavauto;

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III – Fundamentação de Direito

Circunscreve-se a presente revista (interposta pela R/seguradora) à questão da indemnização pelo chamado dano da privação do uso (a improcedência da indemnização por danos não patrimoniais ficou estabilizada com o sentenciado em 1.ª Instância; e a indemnização patrimonial, de € 36.699,17, concedida pela perda do veículo ficou estabilizada a partir da confirmação pelo Acórdão recorrido do que havia sido sentenciado na 1.ª Instância2), indemnização concedida na sentença da 1.ª Instância e negada no Acórdão recorrido.

A propósito de tal questão, que “monopoliza” o objeto da presente revista, expendeu-se no Acórdão recorrido, em breve síntese, o seguinte percurso jurídico:

“(…) a argumentação contida na sentença recorrida tem por pressuposto o direito do A. a ser indemnizado da perda do seu veículo, como se de um terceiro lesado se tratasse, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 483º do Código Civil.

Sucede que a obrigação indemnizatória da R. emerge do contrato de seguro celebrado com o A., nos termos do qual garantiu ao mesmo o ressarcimento dos danos sofridos no seu veículo, em consequência de acidente de viação, através da denominada cobertura de danos próprios.

Tratando-se de um seguro facultativo pelo qual a R. responde pelos danos próprios do veículo em questão, a R. só está igualmente obrigada a responder pelos danos decorrentes da privação do uso do veículo pelo A. caso tal cobertura tivesse sido contratada, o que não é o caso.

(…)

Não se ignora, é certo, que o cumprimento é a realização da prestação creditória, é a prestação de coisa ou de facto. Assim, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (art.º 762º, nº 1, do Código Civil), sendo certo que, tanto no cumprimento da obrigação, como também no exercício do direito correspondente, as partes devem proceder de boa fé (art.º 762º, nº 2, do Código Civil).

(…)

Com efeito tal responsabilidade [pela privação do uso do veículo dado como perda total] só existiria na medida em que a R. não tivesse dado cumprimento aos deveres acessórios a que estava adstrita, no âmbito do referido contrato de seguro, por só nessa medida se poder afirmar que tais danos eram consequência desse incumprimento contratual.

Só que a factualidade apurada leva a concluir que se mostram respeitados os deveres acessórios que recaiam sobre a R., tendentes ao cumprimento da sua obrigação de pagamento da prestação indemnizatória dos danos cobertos pelas garantias do contrato. (…)”

Percurso jurídico este com que, desde já se antecipa, se concorda.

Importa começar por referir, como se destaca no Acórdão recorrido, que a prestação indemnizatória peticionada nos autos não se funda nem tem por fonte a responsabilidade extra extracontratual – designadamente, a prática de um facto ilícito e culposo por parte do segurado da R. – e que não está exatamente em causa a “reconstituição da situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”(como se diz no art. 562.º do C. Civil).

O pagamento/indemnização é solicitado pelo próprio segurado/beneficiário e emerge duma cobertura facultativa associada ao contrato de seguro obrigatório celebrado entre as partes, ou seja, estamos no domínio da responsabilidade contratual e o pagamento/indemnização solicitado emerge de o A. ter seguro que incluía, facultativamente, a cobertura por danos próprios decorrentes de choque, colisão e capotamento, pelo valor/capital de € 59.033,24; cobertura/risco esse que se verificou, na medida em que o veículo “segurado”, no dia 06/05/2019, se despistou, sofrendo danos que correspondem à perda total do mesmo (e pelos quais está já fixada/estabilizada nos autos, como se referiu, a indemnização de € 36.699,17).

O que significa que o pagamento solicitado tem como pressuposto e limite o que no clausulado contratual (nas condições gerais e particulares da apólice) consta e aí está definido como risco coberto, sendo-lhe ainda aplicável o que em termos supletivos se encontra disposto na LCS.

Vem isto a propósito de no art 130.º da LCS (sobre o seguro de coisas) se estabelecer:

“1 - No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.

2 - No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.

3 - O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.”

E de, como resulta da economia de tal preceito (e muito explicitamente do seu n.º3), o segurador só responder pela privação do uso da coisa segura se a cobertura de tal risco estiver convencionada no contrato de seguro.

Pelo que, não estando a cobertura de tal risco convencionada no contrato de seguro sub-judice (incluindo-se entre as coberturas facultativas das Condições Gerais da Apólice suscetíveis de serem contratadas a cobertura respeitante à “privação do uso” – cfr. cláusula 39/1/j)), o atraso do segurador na realização da prestação convencionada – entrega do valor do veículo – por ter ocorrido o evento que desencadeou o acionamento da cobertura do risco “choque, colisão e capotamento”, previsto no contrato, apenas dará lugar, em princípio, ao pagamento de juros de mora (ou seja, não dá lugar a uma qualquer indemnização pela privação de uso do veículo), pagamento este que compreende toda a indemnização pela mora nas obrigações pecuniárias de origem contratual (cfr. art. 806.º/3 do C. Civil), como é o caso da obrigação da seguradora entregar/pagar ao beneficiário do seguro o valor do veículo.

Entendimento este que, pese embora a força da sua linearidade, vem sendo colocado em crise em decisões deste Supremo, segundo as quais, em caso de atraso injustificado na realização da prestação convencionada, tem a seguradora que suportar os danos decorrentes de tal atraso injustificado.

A fundamentação gizada não tem sido sempre rigorosamente igual, porém, tem-se sustentado, em termos essenciais, que, tendo as empresas de seguros o dever de «atuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados» (cfr. art. 153º/1 do Regime Jurídico da Atividade Seguradora e Resseguradora aprovado pela Lei 147/2015, de 9 de Setembro; e regras de diligência e prontidão na regularização dos sinistros constantes do art 31.º e ss da Lei do Seguro Obrigatório de responsabilidade civil automóvel), os deveres de averiguação, confirmação e resolução dum sinistro, em prazo razoável, configuram verdadeiros deveres (legais) acessórios de conduta, pelo que, quando tal não ocorre – ou seja, quando a indemnização devida não é paga em prazo razoável – são violados tais deveres (legais) acessórios de conduta, obrigando tal violação à indemnização pelos danos que assim hajam sido causados ao segurado/beneficiário (sem que haja uma violação do princípio indemnizatório constante do art. 128.º do RJCS, nem uma sobreposição de indemnizações – desta indemnização com os juros incidentes sobre a obrigação pecuniária principal – uma vez que do que se trata aqui é de indemnizar, com fundamento na violação dos deveres acessórios de conduta, a não satisfação do interesse do credor).

Assim:

No Ac. do STJ de 23/11/2017 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova, sustentou-se:

“A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências.”

“Muito particularmente no âmbito de um contrato de seguro, a boa fé supõe que o segurado conte com o cumprimento do contrato, pois é isso que se espera de uma contraparte séria, honesta e leal, não se afigurando admissível que uma seguradora se recuse inexplicavelmente a pagar ao segurado as quantias que lhe são devidas.”

“A ré incorre, assim, em responsabilidade pela não liquidação dos danos cobertos pelo contrato de seguro por violação de uma obrigação que dimana das aludidas regras do RJCS conjugadas com o disposto no artigo 762.º/2 do Código Civil que tutelam os interesses tanto de terceiros como do próprio segurado.”

“Não estamos, pois, perante a ressarcibilidade de um dano que resulta da mora, mas da violação de deveres legais que a seguradora não observou, não podendo falar-se aqui de sobreposição de indemnizações.”

No Ac. do STJ de 23/11/2017 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Távora Victor, considerou-se:

“No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel ainda que sem cobertura facultativa e mesmo na ausência de cláusula nesse sentido, pode a seguradora ser responsabilizada pelo “dano da privação do uso” se não proceder de harmonia com o princípio da boa-fé.”

“A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato

“Um comportamento culposamente omissivo da Companhia de Seguros ao recusar-se a promover injustificadamente a reparação de uma viatura acidentada, pode dar azo a um dano autónomo de privação do uso cujo ressarcimento não cabe nos estreitos limites dos juros previstos para a mora.”

“A nível indemnizatório não há qualquer duplicação entre a quantia pedida a título de privação do uso e os juros legais. Ambos visam realidades diversas, já que o quantitativo do capital intenta ressarcir o lesado das importâncias despendidas enquanto que os juros intentam penalizar a mora no respetivo pagamento, não sendo aqueles os valores necessariamente coincidentes.”

No Ac. STJ de 14/12/2016 (in ITIJ), relatado pela Conselheira Fernanda Isabel, observou-se:

“Em suma, a seguradora, para além da obrigação de pagamento da indemnização dos danos provocados pelo sinistro coberto pelo seguro, nas condições contratadas, se demora injustificadamente na resolução do caso, resultando dessa mora danos para o segurado, responde por esse inadimplemento. Esta solução não conflitua com as disposições consagradas no regime do contrato de seguro, porque não impõe à seguradora a cobertura de riscos além do que foi segurado, antes a responsabiliza pela reparação de um dano que decorre não do sinistro mas da inobservância da obrigação contratual de pagar pontual e atempadamente”.

“A apresentação de queixa-crime que venha a revelar-se, posteriormente, inconsequente no desenrolar do processo de inquérito não é suscetível de libertar a ré seguradora do cumprimento da sua obrigação contratual em tempo. Com efeito, o arquivamento com base na falta de prova sobre a atuação ilícita imputada pela ré ao autor retira fundamento ao incumprimento da sua prestação no prazo contratual ou legalmente fixado para o efeito.”

“Quando a possível razoabilidade ou até legitimidade da recusa vem a revelar-se insubsistente, porque não demonstrado o seu fundamento, o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.”

“Esta indemnização tem por fonte a violação culposa de deveres laterais e secundários do contrato de seguro, os quais, uma vez demonstrados, merecem tutela jurídica e vão além do estrito cumprimento da obrigação de pagamento da indemnização pelos danos resultantes do sinistro coberto pelo seguro nas condições contratadas.”

No Ac. do STJ de 27/11/2018 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Cabral Tavares, defendeu-se:

“O seguro de danos celebrado entre as partes (…) não cobria o valor de privação de uso.

Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato.

“A seguradora Ré, ao proferir decisão infundada de recusa da realização da prestação, nos termos transmitidos à Autora, sem que, através da prévia investigação, que a lei com autonomia lhe faculta (RGCS, art. 102º, nº 1, 2ª parte), tenha para tanto procurado adequadamente habilitar-se, procedeu com violação dos deveres de boa-fé e de atuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado.

“Violação e ilegítimo exercício, esses, consequentemente geradores do dever de indemnizar a Autora pelos danos causados.”

“A atuação procedimental da Ré, em vista da realização da prestação a que ficara vinculada, estava sujeita a exigentes critérios, em termos de diligência e de boa-fé. Exigia-se-lhe, designadamente, que, com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, procedesse à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências (…)”

Efetivamente, para um correto processamento da relação obrigacional em que a respetiva prestação se integra, além dos deveres primários e secundários de prestação, existem os deveres acessórios de conduta, que impõem a cada um dos contraentes o dever de tomar todas as providências necessárias (razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na prestação.

Deveres acessórios de conduta que “estão hoje genericamente consagrados na vastíssima área das obrigações, através do princípio geral proclamado no art. 762.º do C. Civil, segundo o qual, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé (…)”3; deveres estes cuja violação não dá lugar a uma ação de cumprimento (art. 817.º), mas tão só à obrigação de indemnizar os danos causados à outra parte.

E se uma seguradora não é diligente no cumprimento da prestação devida/convencionada, não está a tomar – impõe-se reconhecer, em linha com os acórdãos citados – todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua (da seguradora) prestação.

Quando alguém celebra, como tomador, um contrato de seguro que cobre, facultativamente, o risco de perda total do veículo (em caso de choque, colisão e capotamento), aspira – é esse o seu interesse enquanto credor, interesse que a seguradora não ignora – a que o capital correspondente ao valor do veículo lhe seja disponibilizado no prazo previsto no contrato, tendo em vista poder adquirir um veículo idêntico ao que sofreu perda total.

Mas – é o ponto – não é por haver atraso em tal disponibilização que de imediato se pode/deve considerar e concluir que, então, foram violados os deveres acessórios de conduta.

Haverá por certo situações, mesmo vindo a decidir-se que a seguradora – que considerou não ser responsável pelo sinistro (por, por exemplo, entender que o mesmo é simulado ou que foi provocado intencionalmente pelo segurado) ou que considerou ser devido um montante inferior ao pretendido pelo segurado – não tem razão, em que o atraso da seguradora no pagamento da prestação devida dê tão só lugar a juros moratórios.

Enfim, terá sempre que ser perante os contornos da concreta situação que a conclusão (a propósito da violação ou não dos deveres acessórios de conduta) pode/deve ser estabelecida, uma vez que:

- não pode ser toda e qualquer justificação da seguradora a conferir-lhe o direito a protrair a liquidação do sinistro; e, ao invés, também

- não pode “vedar-se” à seguradora a possibilidade de contestar/discutir a prestação que lhe é pedida.

E é exatamente aqui que, a nosso ver, está o “busílis” da questão, ou seja, tudo está em saber/estabelecer, em cada caso, se a justificação da seguradora, para a não realização da prestação devida no prazo fixado, é (ou não) violadora dos deveres de boa-fé (cfr. art. 762.º/2 do C. Civil) e de diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação (art. 153.º da lei 147/2015).

Nos acórdãos citados/transcritos estava invariavelmente em causa a situação da seguradora não se considerar responsável pelo sinistro por entender que o mesmo era simulado ou provocado intencionalmente pelo segurado, tendo-se entendido que o arquivamento da queixa-crime (apresentada pela seguradora contra o segurado), com base na falta de prova, retira fundamento ao incumprimento da prestação da seguradora no prazo contratual ou legalmente fixado; que, em tais hipóteses, “o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.”

O caso dos autos é algo diferente e não merece, a nosso ver, idêntica conclusão.

Argumentou-se, em tal sentido, no Acórdão recorrido que, “(…) tendo a R. recebido do A. a participação do sinistro, procedeu de imediato às diligências tendentes à confirmação da ocorrência do mesmo, suas causas, circunstâncias e consequências (…); e, menos de dois meses após o sinistro, a R. já estava a comunicar ao A. a sua posição final, declinando a responsabilidade no ressarcimento da perda total que foi apurada, por entender ser de aplicar à situação factual apurada uma das cláusulas de exclusão da cobertura em questão. E se é certo que em sede da presente ação tal posição não obteve vencimento, a argumentação apresentada pela R. (extrajudicialmente e já em sede da presente ação) permite concluir que a mesma atuou segundo critérios de razoabilidade e de boa fé, já que não omitiu a prática dos atos que lhe estavam reservados, tendentes à regularização do sinistro, nem deixou de comunicar atempadamente ao A. a justificação para a posição que adotou.”

Não se discorda, mas, com todo o respeito, é “pouco”, ou seja, a razão duma tal conclusão tem que ser um pouco mais “substantiva”.

Atuar de forma diligente, equitativa, transparente e com consideração e respeito no relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados não se pode bastar com uma resposta rápida aos pedidos indemnizatórios que lhe são dirigidos, uma vez que nesta atuação “diligente, equitativa, transparente e com consideração e respeito” se inclui o dever de averiguação do sinistro e, ainda, o dever de não responder ao pedido indemnizatório ao arrepio dos elementos que é suposto e exigível que a seguradora averigue e recolha.

Os deveres acessórios de conduta têm em vista a satisfação do interesse do credor, pelo que o comportamento duma seguradora que, ao arrepio dos elementos que é suposto e exigível recolher, decline rapidamente a sua responsabilidade não pode deixar de dar azo a um atraso, qualificável como injustificado, na realização da prestação convencionada.

Como supra se referiu, nem toda e qualquer justificação vale (e/ou corresponde a um procedimento de boa-fé), assim como nem toda a justificação que acaba por não convencer em tribunal (como sucede no caso dos autos) corresponde e preenche a violação dos deveres acessórios de conduta; e responder rapidamente não afasta, só por si, uma possível violação dos deveres acessórios de conduta.

Nesta linha de raciocínio, perante os contornos da concreta situação sub-judice, não reputamos como um motivo injustificado a explicação – verificar-se a exclusão constante da cláusula 40/1/c) das condições gerais da Apólice – que a R/seguradora deu para declinar a sua responsabilidade contratual.

Segundo tal cláusula (transcrita no ponto 13 dos factos), a cobertura facultativa em causa não funciona quando o condutor do veículo conduza sob o efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos, ou ainda quando este se recuse a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de deteção de estupefacientes, bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade.

E ficar excluída a cobertura quando o condutor conduz sob o efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos, é inteiramente compreensível, assim como, em linha com tais exclusões, é bastante compreensível que a exclusão também funcione quando o condutor se recusa a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de deteção de estupefacientes, uma vez que, claro está, sem a realização de tais testes, não pode vir a afirmar-se que conduzia ou não sob o efeito das referidas substâncias.

E é ainda compreensível, por ser instrumental das anteriores exclusões, que seja também excluída a cobertura quando o condutor abandone o local do acidente antes da chegada da autoridade policial.

Foi isto que aconteceu – o condutor abandonou o local do acidente antes da chegada da autoridade policial – e foi isto que a R./seguradora invocou para declinar a sua responsabilidade.

Efetivamente, em circunstâncias não apuradas – apenas se sabe que o veículo entrou em despiste – pelas 00h15m, o condutor do veículo “atirou” um Mercedes-Benz, Classe S, que se encontrava à venda por € 62.000,00, por uma ribanceira abaixo; o veículo havia-lhe sido emprestado pelo filho do proprietário (o aqui A.) e nele seguiam 3 pessoas (o condutor e dois amigos), tendo todos saído ilesos do acidente (que importou perda total do veículo).

Perante tal circunstancionalismo, não pode deixar de reputar-se de algo singular o comportamento do condutor do veículo: ausentou-se do local e deixou abandonado, de noite, o veículo que lhe havia sido emprestado, a ponto de quando a autoridade policial se deslocou ao local (por denúncia de uma testemunha que se apercebeu do despiste e queda do veículo) já não ter encontrado e identificado o condutor e os ocupantes do veículo (e de ter sido a autoridade policial a contactar o aqui A.).

Face a tal “singularidade”, o declinar de responsabilidade da R/seguradora não “queda sem explicação ou justificação”: a autoridade policial foi chamada ao local do acidente e já não encontrou o condutor, o que preenche o “núcleo fundamental” da cláusula de exclusão e só não conferiu vencimento à posição da R/seguradora por não estar provado que o condutor soubesse, antes de abandonar o local, que a autoridade policial havia sido chamada.

A R./seguradora foi diligente a averiguar o que, razoavelmente, podia averiguar, podendo até dizer-se que foi condutor do veículo sinistrado – que não podia ignorar que, quando há um acidente deste “padrão”, a autoridade policial comparece no local, regista a ocorrência e submete os intervenientes a testes de alcoolémia ou de detenção de estupefacientes – que teve uma atuação menos transparente (ao ausentar-se do local e assim obstar à realização de tais testes), permitindo que se diga e conclua, como se antecipou, que o declinar de responsabilidade por parte da R/seguradora não foi injustificado e violador dos seus deveres acessórios de conduta (pelo que o atraso no pagamento da indemnização devida não obriga, em virtude de não se poder dizer que ocorreu a violação de tais deveres, à indemnização pelo dano da privação do uso, com base e fundamento na não satisfação do interesse do credor).

É quanto basta para julgar a revista improcedente.

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IV - Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o Acórdão recorrido.

Custas, neste STJ, pelo A..

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Lisboa, 15/03/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ana Resende




Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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1. Facto eliminado do elenco dos factos não provados e incluído nos factos provados, pelo Acórdão da Relação.

2. ↩︎
3. Não houve recurso de tal segmento decisório do Acórdão da Relação e, caso tivesse havido, não seria o mesmo admissível nos termos da jurisprudência fixada no AUJ de 20/09/2022 (proferido no processo 545/13.2TBLSD.P1.S1).↩︎

4. Antunes Varela, Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 125.↩︎