TRESPASSE
ORDEM PÚBLICA
BONS COSTUMES
ILICITUDE
NULIDADE DO CONTRATO
SIMULAÇÃO DE CONTRATO
REQUISITOS
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
INSOLVÊNCIA DOLOSA
CRIME
CREDOR
Sumário


I- Não preenche os requisitos/elementos da simulação absoluta o trespasse dum estabelecimento comercial efetuado entre duas sociedades com o fim de desmantelar/esvaziar a trespassante e de defraudar e prejudicar os seus credores: a realização de tal negócio é até, em termos forçosamente efetivos e reais, um instrumento para a consecução do pretendido fim/resultado negocial, ao arrepio de toda e qualquer intencionalidade simulatória.

II- Estando provado que a trespassante, entretanto declarada insolvente, alienou o seu estabelecimento comercial “a fim de defraudar as expectativas dos seus credores de poderem ver parte dos seus créditos ressarcidos”, “com intento prejudicial aos interesses dos seus credores” e visando “desmantelar” a trespassante que assim ficou “sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social”, dando-se o caso de as contraentes em tal alienação/trespasse serem sociedades da titularidade, em idêntica percentagem, dos mesmos dois sócios e da trespassária haver sido constituída no próprio dia do negócio e não ter ficado provado o pagamento do respetivo preço, deve entender-se que ocorre ilicitude do fim com que as partes celebram tal negócio jurídico.

III- Um tal negócio, atenta a finalidade do mesmo, configura uma conduta próxima das que estão tipificadas como constituindo crimes de insolvência dolosa do art. 227.º do C. Penal, devendo considerar-se que o fim de tal negócio colide com os princípios que integram a Ordem Pública e que se deduzem de tal tipo criminal e dos preceitos legais (como os arts. 601.º, 605.º e 610.º do C. Civil) que defendem o credor contra os atos de esvaziamento e dissipação do património do devedor.

IV- Ademais, alienar património, para fugir aos credores, em proveito próprio (indireto, na medida em que, através da trespassária, o estabelecimento continuava na titularidade das mesmas pessoas), deixando a alienante/trespassante “sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social”, é um negócio que é eticamente reprovável, que não está de acordo com a decência económica e do inter-relacionamento entre pessoas e cujo fim, por isso, é contrário aos Bons Costumes.

V- Com um tal negócio/trespasse, apenas se visou retirar o estabelecimento da esfera jurídica da devedora e ora insolvente, para defraudar os seus credores, colocando-o “a salvo” (dos credores) na esfera jurídica de outra sociedade (detida exatamente pelas mesmas duas pessoas que eram titulares da vendedora/trespassante), pelo que é incompatível e inadmissível à luz dos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa manter a validade de um negócio jurídico celebrado em tais termos e com tal fim.

VI- Tendo-se provado que a ilicitude do fim é comum aos dois contraentes do negócio, é a globalidade negocial que fica em causa, tendo tal ilicitude do fim negocial como consequência a nulidade do próprio negócio, de acordo e nos termos do art. 281.º do C. Civil.

Texto Integral



Processo: 1936/15.0T8VFX-R.L1.S1

ACORDAM, NA 6ª SECÇÃO, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – Relatório

Massa Insolvente de Distrialmada – Supermercados, Ld.ª instaurou ação declarativa, com processo comum, contra Sodisobreda – Supermercados, Ld.ª pedindo seja declarada a nulidade do contrato de trespasse do estabelecimento comercial celebrado entre esta e a insolvente.

Alegou, em síntese, que, em 29/02/2012, a insolvente, para o retirar da esfera dos seus credores, vendeu simuladamente à R. (com quem partilhava os mesmos órgãos sociais) o seu estabelecimento comercial, venda para cujo pagamento a R. emitiu cheque que revogou por furto/roubo e que foi encontrado nos cofres da insolvente e apreendido pela polícia judiciária; e que a vontade declarada pela insolvente e pela R. não corresponde à vontade representada e querida por ambas, porque o que pretenderam com a realização do trespasse foi defraudar os credores da insolvente e não realizar negócio jurídico algum.

A R. contestou, impugnando as divergências negociais alegadas na PI e a correspondente simulação negocial; e referindo que todas as relações comerciais e financeiras entre a R. e a insolvente estavam refletidas na contabilidade de ambas e que o cheque da R. dado como extraviado/furtado não era a única forma de pagar o preço do trespasse acordado entre as partes.

Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador – que considerou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que declarou a ação procedente e, em consequência, “declarou a invalidade, por nulidade, do negócio vertido no escrito datado de 29 de fevereiro de 2012, intitulado “contrato de trespasse”, e condenou a R. na restituição à A. do prestado estabelecimento.

Inconformada com tal decisão, interpôs a R. recurso de apelação, o qual, por Acórdão da Relação de Lisboa de 08/11/2022, foi julgado procedente, “com a consequente revogação da sentença recorrida, que se substitui por outra, da improcedência da ação e consequente absolvição da R. do pedido contra ela deduzido”.

Inconformada agora a A., interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que repristine o sentenciado na 1.ª Instância.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

A. A Massa Insolvente de Distrialmada – Supermercados, Ldª instaurou ação declarativa contra Sodisobreda –Supermercados, Ldª pedindoadeclaraçãode nulidade docontrato de trespasse do estabelecimento comercial celebrado entre esta e a insolvente, com fundamento em simulação negocial.

B. Isto porque a Insolvente declarou querer vender quando na realidade nenhuma venda pretendia fazer, e por sua vez a Ré declarou comprar quando a sua vontade também não era essa,

C. Ambas fingindo um negócio de compra e venda para “blindar” o património da devedora, na eminência do processo de insolvência e da expectável venda judicial de bens em sede de liquidação do ativo.

D. Tendo ficado evidenciado que o que se pretendeu de facto foi desviar o património para sociedade propositadamente constituída pela “Família AA” para o efeito, e assim consumar-se o desmantelamento da anterior Sociedade Distrialmada - Insolvente.

E. Foi assim no exercício das suas funções, e após denúncia veiculada no processo de Insolvência, que o Senhor Administradortomouconhecimento do contrato de trespasse de um estabelecimento comercial “I...”, no valor de 455.634,82€, pagamento feito com base num cheque emitido pela sociedade SODISOBREDA, que veio a ser encontrado nos cofres da Insolvente DISTRIALMADA, e apreendido pela PJ.

F. Cheque, esse, que se veio a confirmar que a referida sociedade revogou por Furto/Roubo.

G. Ora, para o doutro Tribunalda Relação de Lisboa, face à matéria data como provada não existe na operação em causa qualquer fingimento no negócio, mas sim apenas a intenção de prejudicar os credores.

H. No entanto, face à prova produzida e dada como assente não se pode aceitar tal entendimento, pois de facto as declarações emitidas pelas partes foram totalmente falsas e enganadoras com o propósito claro está de prejudicar os credores e defraudar as suas expetativas de verem os seus créditos em parte ressarcidos, permanecendo os bens de fortuna na sua espera patrimonial, evidenciando assim que a real intenção nunca foi efetuar qualquer venda a respeito do referido estabelecimento comercial.

I. Nestes termos, os simuladores fingiram realizar um certo negócio jurídico, quando, na verdade, não queriam realizar negócio jurídico algum, pelo que não pode deixar de se considerar que o contrato de trespasse do estabelecimento comercial se encontra ferido de nulidade nos termos do Artigo 240.º n.º 2 do C.Civil.

J. O estabelecimento continuou na esfera das mesmas pessoas, mudou apenas a sociedade detentora, os sócios/gerentes continuam os mesmos.

K. Andou bem o douto Tribunal a quo quando decidiu que face a toda a matéria de facto provada Evidenciam-se:

- O indício necessitas, a ausência de motivo para o negócio;

- O indício affectio;

-O indíciointerpositio, ainterposição de uma terceirapessoa, aR. sociedade, constituída para o fim visado, a dissipação;

- O indício disparitesis, o esvaziamento da Devedora. Acresce a ausência do pagamento do preço (…).

L. Nestes termos e ao invés do que a Ré/Recorrida veio fazer crer em juízo, o que pretendeu com a realização deste trespasse foi efetivamente defraudar as expectativas dos credores da Massa Insolvente de poderem ver partes dos seus créditos ressarcidos, considerando-se tal negócio claramente prejudicial à Massa, na medida em que se pretende a todo o custo frustrar a satisfação dos credores da Insolvente.

M. Assim sendo, e tendo em consideração toda a matéria de facto provada, verificamos que a mesma consubstancia na íntegra todos os requisitos necessários à verificação da simulação negocial, estando-se perante uma simulação absoluta, na medida em que os simuladores fingiram realizar um certo negócio jurídico, quando, na verdade, não queriam realizar negócio jurídico algum, pelo que o contrato de trespasse do estabelecimento comercial se encontra efetivamente ferido de nulidade nos termos do Artigo 240.º n.º 2 do C.Civil.

N. Também o douto Tribunal da primeira instância concluiu que, da matéria de facto provada, resulta a existência de divergência entre as vontades e as declarações emitidas.

O. Pois de toda a prova produzida, quer testemunhal quer documental verificou-se que de facto não se pretendia transmitir o estabelecimento (a vontade declarada), mas sim esvaziar a Devedora de património, enganando e defraudando os seus credores.

P. Nestes termos, a transmissão padece do vício da simulação absoluta, que conduz à sua nulidade, tendo assim o Tribunal a Quo feito uma acertada interpretação e aplicação do direito aos factos concretos.

Q. Por sua vez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa vem-se defender que “A intenção de enganar não se confunde com a intenção de prejudicar,” e que por esse motivo considera que não se verificam os pressupostos da nulidade do contrato por simulação.

R. Vem o Tribunal da Relação alegar assim que falta o requisito subjetivo da simulação – a divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos declarantes,

S. Ora, com o devido respeito, que é muito, não se pode aceitar tal entendimento!

T. Nas operações desencadeadas pelas partes temos clara a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros, neste caso os credores.

U. Pai e filho celebraram em 29/02/2012 um negócio de trespasse de um estabelecimento, onde declaram o pagamento do preço, através de cheque que depois revogam por Furto/Roubo.

V. À data, BB (Pai) era gerente e sócio da Devedora Insolvente, e CC (filho) era sócio maioritário da Devedora Insolvente.

W. De ressalvar que em24-02-2012, havia sido declarada a insolvência pessoal de BB e cônjuge.

X. No próprio dia da celebração do negócio de trespasse CC (o filho) é nomeado gerente da Ré/Recorrida, tendo ambos renunciado à gerência e transmitido as quotas da insolvente a um terceiro (“testa de ferro”).

Y. Assim assinando o escrito intitulado “Trespasse”, os intervenientes visaram retirar património da esfera jurídica da Devedora, a fim de defraudar as expectativas dos credores de poderem ver parte dos seus créditos ressarcidos.

Z. Mas garantiam que o mesmo permanecia na sua esfera patrimonial através de sociedade criada no mesmo dia para o efeito.

AA. Ora, com todo o respeito, a intenção, não era de todo a concretização de um real e sério contrato de trespasse, com verdadeira vontade de transmitir e de adquirir, as partes apenas atuaram com o intento de enganar os credores tendo emitido as declarações negociais exclusivamente com esse intuito.

BB. Visaram “desmantelar” a Devedora, assim ocorrendo, ficando esta sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social, mas claramente que tal bem permaneceu na “esfera” patrimonial dos intervenientes.

CC. Também alega o douto Tribunal da Relação que da petição inicial não consta expressamente alegada a falta de vontade de alienação/venda da insolvente e falta de vontade de aquisição/compra da Recorrente.

DD. Quando a Autora, aqui recorrente no seu Art. 28º e 34.º da PI o alega expressamente.

EE. Ademais o próprio Tribunal a Relação recorre a exemplos de simulações absolutas claramente subsumíveis aos factos assentes - como exemplo de simulação absoluta a “chamada venda fantástica (…), da qual lança mão principalmente para lesar os credores do simulado alienante.

58. Nestes termos, face a todo o exposto, e aos factos carreados e provados, verifica-se que as partes concretizaram, o que o Tribunal da Relação persistiu em afastar (…) a vontade real das partes correspondeu à vontade de manter o estabelecimento em questão no património e disponibilidade da insolvente e de, através das declarações vertidas no contrato de trespasse, criar a aparência de realidade jurídica distinta - de que o mesmo já não integrava a sua esfera patrimonial -, com o propósito e objetivo de enganar os credores quanto ao acervo patrimonial da devedora passível de objeto de execução (singular ou universal) para satisfação dos seus créditos. Vontade (real) que faria da recorrente um comprador fictício - a venda fantástica que Manuel Andrade indica como exemplo de simulação absoluta e Mota Pinto como exemplo de simulação fraudulenta -, mantendo-se a insolvente no domínio do estabelecimento.

59. Ora, salvo o devido respeito estamos precisamente perante uma ‘ocultação jurídica’ do património da insolvente da ação dos seus credores através da criação da aparência de celebração de negócio translativo (…)

60. Ou seja, por detrás das declarações emitidas, verifica-se que a Insolvente e a SODISOBREDA não pretenderam realizar negócio algum, a vendedora não quis vender nem a compradora quis comprar, apenas se tendo realizado o aparente negócio jurídico para enganar terceiros, os aqui credores da insolvência.

61. Existiu assim uma divergência intencional entre a vontade e a declaração, divergência esta acordada entre as partes com o intuito de enganar, de iludir, de fazer com que aceitasse a aparência deste negócio como se fosse realidade.

62. Perante este negócio deveria o Tribunal da Relação face aos factos provados indagar por

dois elementos: qual a vontade real das partes quando celebraram o negocio? E a respetiva declaração é coincidente com essa vontade?

63. Existe aqui manifesta divergência entre aquilo que foi exteriorizado e a verdadeira intenção jurídico-negocial das partes, existindo aparência negocial que não corresponde à verdadeira intenção das partes, e nestes termos o trespasse tem de ser declarado nulo de efeitos jurídicos.

FF. Nestes termos, não se conformando com o Acórdão proferido por o considerar imensuravelmente injusto, deverá o presente recurso de Revista por violação de lei substantiva ser julgado procedente, determinando-se a correção do acórdão da 2.ª instância, aplicando definitivamente o regime jurídico aos factos materiais fixados nomeadamente o art. 240.º n.º 1 e 2 Código Civil, mantendo-se o decidido em 1ª instância. (…)”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Distribuídos os autos neste STJ, por se entender que “os factos dados provados pelas Instâncias – designadamente, os constantes dos pontos 48 a 51 – são suscetíveis de poder representar a incompatibilidade com a ordem pública e com os bons costumes do negócio de trespasse celebrado” e, em função disso, ser suscetíveis de poder produzir a nulidade de tal negócio de trespasse, foram as partes notificadas, nos termos do art. 3.º/3 do CPC, para, querendo, se pronunciarem sobre a questão enunciada.

Ambas as partes se pronunciaram (a R. num longo requerimento, em que apenas num breve trecho se pronuncia sobre a questão enunciada).

Obtidos os vistos, mantendo-se a regularidade da instância, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

II – A Factos provados

1. Por escrito datado de 29 de fevereiro de 2012, intitulado “Contrato de trespasse”, a Devedora, representada por BB, e R., representada pelo seu filho CC, declaram ajustar o trespasse de estabelecimento comercial de supermercado explorado sob a insígnia “I..., na Estrada ..., freguesia da ..., ..., pelo preço de € 300 000,00 – documento junto pela A..

2. Declaram que o negócio é celebrado intuitu personae, no interesse das sociedades e dos sócios maioritários.

3. Declaram o pagamento do preço “na data da assinatura do presente contrato, o qual serve de competente quitação, após boa cobrança do respetivo cheque.”.

4. A Devedora declara obrigar-se a promover e a realizar a mudança da sua sede social.

4a). Do escrito em questão mais consta:

i) No considerando D, que o prédio onde está instalada a unidade comercial de supermercado objeto do negócio é propriedade da sociedade ‘A..., SA’, e que Distrialmada é dele promitente arrendatária por contrato de arrendamento comercial de duração limitada, que nesta data será revogado e substituído por contrato de arrendamento a ser assinado com a aqui ré;

ii) Na cláusula primeira, ponto 5, que a Sodisobreda não assume a responsabilidade pelo pagamento de quaisquer dívidas da Distrialmada, independentemente da origem e forma do seu eventual passivo, com exceção para o contrato de locação financeira mobiliária por aquela celebrado com o Banco Santander Totta em 11.5.2009 porque tem por objeto equipamento sito no estabelecimento;

iii) Na cláusula segunda, sob a epígrafe ‘Preço’, que o montante de € 265.126,41 respeita ao valor corpóreo/tangível, e o montante de € 34.873,59, respeitante ao valor incorpóreo/intangível do mesmo (correspondente a licenças e alvarás).

iv) Sob a cláusula sexta, sob a epígrafe ‘Stocks’, que 1. o preço do trespasse não inclui o valor dos stocks existentes na unidade comercial de supermercado sita no estabelecimento, a determinar pelo inventário físico realizado nos termos da Cláusula que antecede.//2. O valor dos stocks, a apurar no mencionado inventário, será pago pela Sodisobreda à Distrialmada, após receção do documento contabilístico de refacturação do mesmo (pela Distrialmada), acrescido de IVA por tipo de mercadoria (…) a partir de 01 de março de 2012.//Todas as mercadorias já encomendadas pela Distrialmada e que não tenham sido entregues no estabelecimento a tempo de serem inventariadas em 20.02.2012 (…) serão assumidas pela segunda outorgante, que se obriga a proceder ao respetivo pagamento diretamente à sociedade I..., SA (…).

v) Na cláusula nona, a previsão da realização de acerto de contas entre os valores proporcionais já pagos pela Distrialmada relativamente a consumos correntes (electricidade, telefone, água, gás, alarmes, limpeza, seguros e manutenção de equipamentos realizados pela Sodisobreda no âmbito dos contratos existentes em nome da Distrialmada) e com referência à respetiva anuidade, que abranja período compreendido a partir de 29.02.2012, o mesmo sucedendo com a Sodisobreda com referência à anuidade a pagar que abranja qualquer período já decorrido até àquela data.

5. Ao tempo, a atividade da Devedora consistia na exploração do estabelecimento comercial trespassado, composto por hipermercado e bar/pastelaria.

6. A Devedora encontrava-se inserida no grupo “O...”, exercendo a atividade sob a insígnia I....

7. Em Portugal, a sociedade detentora da insígnia é a I..., S.A..

8. Ao tempo, BB era gerente e sócio da Devedora, quota de € 82 302,00.

9. Auferia o salário de € 485,00, na qualidade de “Diretor de Loja”.

10. Ao tempo, CC era sócio maioritário da Devedora, quota de € 171 238,00, e seu trabalhador desde 01-05-2008, com as funções de “escriturário especializado”, e vencimento de € 2 500,00.

11. Os demais salários pagos pela Devedora eram iguais ou inferiores a € 1 000,00.

12. Ao tempo, CC era sócio maioritário da R., e seu gerente.

13. Ao tempo, os sócios e gerentes da Devedora e R. eram BB, cônjuge DD, filho CC, e a sociedade I..., SA., detentora da insígnia I....

14. A Devedora foi constituída por contrato de sociedade de 30-10-1997, registado em 16-01- 1998.

15. Obriga-se com a assinatura de qualquer dos gerentes.

16. Tem por objeto social “realização de todas as operações inerentes à exploração comercial de supermercados, à distribuição de produtos alimentares e não alimentares, exploração de postos de abastecimento de combustíveis, bem como a gestão de centros comerciais.”.

17. O capital social correspondia a € 109 735,00, distribuído da seguinte forma: -Quota de € 82 302,00, da titularidade de BB; - Quota de € 16 460,00, da titularidade de DD; - Quota de € 30 000,00, da titularidade de I..., SA.

18. Em 17-11-2008, foi registado aumento de capital, no montante de € 190 264,00, ficando a Devedora com o capital social de € 300 000,00, distribuído da seguinte forma: - Quota de € 82 302,00, da titularidade de BB; -Quota de € 16 460, da titularidade de DD; - Quota de € 30 000,00, da titularidade de I..., SA.; - Quota de € 171 238,00, da titularidade de CC, nascido em 1975.

19. Em 2011-04-05, registou-se, por depósito, a amortização das quotas de BB e DD.

20. Em 30-11-2011, foi registada a penhora da quota de DD, a favor do Banco Popular Portugal, S.A.

21. Em 24-02-2012, foi publicada a sentença de declaração de insolvência de BB e cônjuge, proferida em 16-01-2012.

22. Em 02-03-2012, teve lugar o registo da constituição da R., AP. 8/20120302.

23. Foi constituída com o capital social de € 200 000,00, distribuído da seguinte

forma: - CC, € 180 000,00; - I..., SA, € 20 000,00.

24. Tem sede na Estrada ..., ..., ..., ....

25. A deliberação de nomeação de CC como gerente da R. data de 29 de fevereiro de 2012.

26. Em 16-03-2012 (registo de 20-03), BB renunciou à gerência.

27. Foi nomeado EE, com nacionalidade ....

28. Até 20-03-2012, a Devedora teve sede na Quinta ..., ..., ..., local de exploração do estabelecimento. Após, na Rua ... ....

29. Por Dep. 3014/2012-07-18, registou-se a transmissão de quota de CC para EE.

30. A Devedora apresentou-se a Processo Especial de Revitalização, processo que correu termos sob o nº 990/1....

31. Foi declarado encerrado sem apresentação de plano.

32. O Administrador Judicial Provisório apresentou parecer declarando que a Devedora se encontrava em situação de insolvência.

33. Foi declarada a insolvência da Devedora em 26.06.2015.

34. Foram declaradas revertidas dívidas fiscais da Devedora quanto a CC.

35. No dia 26 de abril do corrente ano de 2022, depositou à ordem dos autos de insolvência € 94 900,25, a fim de serem pagos os credores.

36. A transferência proveio de conta titulada pela R..

37. Foi emitido escrito intitulado “Balancete analítico”, reportado à R. e a 31-12-2012

38. Quanto à Devedora, após débito de € 994 584.54, o escrito conclui por saldo 0.

39. Foi emitido escrito intitulado “Extractos de contas gerais” referente à conta ...3 reportada ao relacionamento entre Devedora e R., entre janeiro de 2012 e 31-12-2012 - documento 2 junto em audiência.

40. Conclui por saldo 0.

41. Foi emitido escrito intitulado “Explicitação dos valores da conta-corrente ano 2012 Distrialmada fornecedor”, reportado à R. - documento junto em audiência.

42. Conclui por pagamento de € 994 584.54, e subsequente saldo 0.

43. Foi emitido escrito intitulado “Extractos de contas gerais”, reportado à R., ano de 2012 - documento 3 junto em audiência.

44. A Devedora emitiu “Balancete Analítico”, reportado ao mês de dezembro de 2012 – documento junto em audiência.

45. Quanto à R., conclui por crédito de € 994 584.54, e subsequente saldo 0.

46. Foi emitido escrito mencionando débitos e créditos à Devedora – documento junto com a oposição.

48. Assinando o escrito intitulado “Trespasse”, os intervenientes visaram retirar património da esfera jurídica da Devedora, a fim de defraudar as expectativas dos credores de poderem ver parte dos seus créditos ressarcidos.

49. Os declarantes tinham conhecimento do passivo vencido da Devedora.

50. Atuaram com intento prejudicial aos interesses dos credores.

51. Visaram “desmantelar” a Devedora, assim ocorrendo, ficando esta sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social.

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II – B – Factos não Provados

Não se provou:

a) O pagamento do preço do trespasse foi efetuado com base num cheque emitido pela R., cheque n.º ...2, emitido pelo ... em .../.../2012.

b) Cheque que a referida sociedade revogou declarando “Furto/Roubo”.

c) Cheque encontrado nos cofres da Insolvente, e apreendido pela Polícia Judiciária.

d) O pagamento do preço do trespasse foi efetuado através de compensação, vertida nos registos contabilísticos da Devedora e R..

e)1 No inquérito 1485/1..., do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, Unidade Regional ..., foi proferido despacho: “(…) II) Para garantir a perda a favor do Estado dos bens indicado em a) e c), determina-se a apreensão, nos termos do artigo 178.º, n.ºs 1, 2, 3, e 11, do Código de Processo Penal: (…) ii) do estabelecimento comercial “I...”, sito na Estrada ..., Quinta ..., ..., freguesia da ..., concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha 13751, e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 21473 da mesma freguesia. (…)”.

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III – Fundamentação de Direito

A A. (uma Massa Insolvente) pretende, com a presente ação, que seja declarada a nulidade do contrato de trespasse mencionado no ponto 1 dos factos provados (segundo o qual, em 29/02/2012, a agora Insolvente declarou trespassar à aqui R. um estabelecimento comercial de supermercado explorado sob a insígnia “I..., pelo preço de € 300.000,00.).

Alegou, para tal, factualidade que, segundo a A., “consubstancia na íntegra todos os requisitos da simulação absoluta”, pelo que, ainda segundo a A., “o contrato de trespasse do estabelecimento comercial se encontra ferido de nulidade nos termos do Artigo 240.º n.º 2 do C. Civil” (cfr. art. 34.º da PI).

Realizada a audiência, foi a factualidade alegada pela A. no essencial dada como provada, porém, as Instâncias divergiram na aplicação do direito a tal factualidade: entendeu a 1.ª Instância que a mesma preenche todos os elementos/requisitos da simulação absoluta, entendimento que foi contrariado pelo Ac. da Relação, em que se concluiu não estarem verificados todos os elementos/requisitos da simulação absoluta.

Factualidade provada que, fora de qualquer dúvida, descreve e retrata o referido (e aqui impugnado) “contrato de trespasse” como um ato de esvaziamento patrimonial da Distrialmada, entretanto declarada Insolvente, como resulta do seguinte alinhamento lógico e cronológico dos factos:

A agora Insolvente foi constituída em 30-10-1997, com um capital social de € 109 735,00 (distribuído da seguinte forma: -Quota de € 82 302,00, da titularidade de BB; - Quota de € 16 460,00, da titularidade de DD; - Quota de € 30 000,00, da titularidade de I..., SA), capital social que, em 17-11-2008, foi aumentado para € 300 000,00 (distribuído da seguinte forma: - Quota de € 82 302,00, da titularidade de BB; -Quota de € 16 460, da titularidade de DD; - Quota de € 30 000,00, da titularidade de I..., SA.; - Quota de € 171 238,00, da titularidade de CC), tendo, entretanto, em 2011-04-05, sido registada a amortização das quotas de BB e DD.

A ora R. (e trespassária) foi constituída em 29/02/2012 (no próprio dia do contrato de trespasse), com o capital social de € 200 000,00, distribuído da seguinte forma: - CC, quota € 180 000,00; I..., SA, quota de € 20 000,00.

Foram tais sociedades – a agora Insolvente e a R., ora trespassária – representadas em tal “Contrato de Trespasse” sub-judice pelos seus gerentes, mais exatamente, representou a agora Insolvente BB e representou a R. CC, filho do referido BB.

Entretanto, em 2014, a agora Insolvente apresentou-se a Processo Especial de Revitalização, que foi declarado encerrado sem apresentação de plano, vindo a mesma a ser declarada insolvente em 26/06/2015.

Decorre pois de tal factualidade que, na data da celebração do contrato de trespasse, a agora Insolvente e a ora R. tinham apenas dois sócios, mais exatamente, os mesmos dois sócios: CC e a I..., SA (dois sócios esses com quotas percentualmente iguais em ambas as sociedades, ou seja, mais rigorosamente, a família AA passou a ter na trespassária os mesmos 90% do capital que tinha na trespassante antes da amortização de quotas referida e a I..., SA manteve na trespassária os 10% que tinha na trespassante), sendo que CC (que representou a R. na outorga do contrato de trespasse) era, à data da celebração de tal “Contrato de Trespasse”, sócio maioritário em ambas as sociedades.

Sendo este o enquadramento factual (na data da celebração do “Contrato de Trespasse”), foi dado como provado nos pontos 48 a 51:

48. Assinando o escrito intitulado “Trespasse”, os intervenientes visaram retirar património da esfera jurídica da Devedora, a fim de defraudar as expectativas dos credores de poderem ver parte dos seus créditos ressarcidos.

49. Os declarantes tinham conhecimento do passivo vencido da Devedora.

50. Atuaram com intento prejudicial aos interesses dos credores.

51. Visaram “desmantelar” a Devedora, assim ocorrendo, ficando esta sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social.

E foi este “desmantelamento” da devedora – este ato de esvaziamento patrimonial da Distrialmada (que ficou sem ativos ao desenvolvimento do seu exercício social, na medida em que declarou transmitir o estabelecimento comercial em que desenvolvia o seu objeto social, o que veio a “dar” na sua insolvência) – a fim de defraudar os seus credores, que impressionou a 1.ª Instância, levando-a a exteriorizar o seguinte raciocínio jurídico: “(…) da matéria de facto provada, resulta a existência de divergência entre as vontades e as declarações. Não se pretendeu transmitir o estabelecimento, a vontade declarada, mas sim esvaziar a Devedora de património, enganando e defraudando os seus credores.”.

Compreende-se o raciocínio, mas não se pode acompanhá-lo.

Pode mesmo até dizer-se que o esvaziamento da devedora resulta exatamente, ao invés do que se raciocina, de não haver qualquer divergência entre as vontades e as declarações negociais, ou seja, as vontades negociais eram mesmo, conforme o declarado, de concretizar real e efetivamente a transmissão do estabelecimento, tendo em vista – com a assim concretizada transmissão do estabelecimento, em perfeita harmonia com as vontades e declarações convergentes das outorgantes – esvaziar a devedora e ora insolvente do seu património.

Expliquemo-nos um pouco mais:

A qualificação dum negócio como simulado está dependente, de acordo com o art. 240.º/1 do C. Civil, do preenchimento de 3 requisitos:

1 – De haver um acordo nesse sentido entre o declarante e o declaratário, ou seja, não basta uma das partes manifestar uma intenção que não corresponda à sua vontade real, exigindo-se uma sintonia entre todos os contraentes;

2 – De tal acordo servir de suporte a uma divergência entre a vontade manifestada e a vontade declarada;

3 – E de tal ser feito com o intuito de enganar terceiros.

Com a simulação, as partes pretendem, criando uma aparência jurídica, ludibriar todos os terceiros externos à mancomunação, levando-os a acreditar que aquela vontade manifestada é realmente querida.

Tudo começa com o acordo simulatório – que é um ato preparatório, jurídico, não vinculante – que não é apenas e só um simples conluio, mas um conluio que visa criar uma falsa aparência no comércio jurídico, enquanto reflexo da divergência entre a vontade manifestada e a vontade real, com o intuito de enganar terceiros, ou seja, há uma certa interpenetração e sobreposição nos 3 elementos/requisitos referidos, que devem ser sempre analisados em conjunto.

Simulação que pode ser absoluta e relativa.

Na absoluta, as partes, embora exteriorizando uma intenção de concluir um negócio, nada pretendem realmente concluir; criam a convicção no comércio jurídico de que uma determinada posição jurídica foi transmitida para um sujeito, mas o direito conserva-se na esfera do titular originário.

Na relativa, que também se caracteriza por uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real, as partes não se contentam em simular um negócio que não querem, mas aproveitam para, à socapa deste, concluir um outro, diferente, que querem celebrar de verdade, mas sem que isto se saiba; na relativa, as partes pretendem uma efetiva alteração do status real, mas com contornos distintos dos declarados para o exterior.

O que significa, com todo o respeito, que o alegado (e depois provado) pela A. não se enquadrava na “simulação absoluta”: a A. não diz que o trespasse foi um “trespasse fantástico” e que, em função disso, o estabelecimento comercial continuou a funcionar de facto na esfera da Distralmada, isto é, não diz que as partes não pretenderam e/ou realizaram uma efetiva alteração do status real do estabelecimento comercial.

Verdadeiramente, diz exatamente o oposto, na medida em que diz que visaram, com tal trespasse, “desmantelar” a Distralmada, sendo que não completa a sua alegação – tendo em vista o que seria uma completa alegação de “simulação absoluta” – a dizer que um dia, mais tarde, o estabelecimento (que, nesta perspetiva, continuara a funcionar de facto na esfera da Distralmada) voltaria à esfera jurídica da Distralmada (com o que completaria a alegação da falsa aparência jurídica de trespasse, na medida em que, realmente, não tinham produzido uma efetiva alteração do status real do mesmo).

E, é justo referi-lo, uma tal alegação (o que falta para a “simulação absoluta”) não é sequer, no caso, logicamente plausível: se se desmantela uma sociedade e se se passa o seu património/estabelecimento comercial para uma outra sociedade, acabada de constituir, o que irá logicamente acontecer é a extinção da sociedade desmantelada (com a sua provável insolvência e posterior liquidação, como está a acontecer com a Distralmada), prosseguindo para sempre o giro do estabelecimento comercial trespassado na esfera jurídica da outra e nova sociedade.

Atos de esvaziamento/desmantelamento patrimonial praticados entre pessoas singulares podem ser plausivelmente configurados (desde que devidamente alegados os factos) como realizados em “simulação absoluta”, porém, quando, num caso como o presente, os intervenientes são pessoas coletivas / sociedades, o que quer que se alegue, tendo em vista a “simulação absoluta”, esbarra na lógica das coisas: como é que se poderá dizer/concluir que não concluíram qualquer negócio e que o objeto mediato do negócio continuou e continuará na esfera do titular originário, se o ato de esvaziamento/desmantelamento patrimonial acaba por estar na origem e por provocar, ele mesmo, a extinção do titular originário (seguindo as coisas o seu curso normal, não sendo o ato de esvaziamento por qualquer modo impugnado, o objeto mediato do negócio nunca poderia regressar à esfera do titular originário por este ter perdido a aptidão para ser titular autónomo de relações jurídicas).

Enfim, sempre com todo o respeito, a partir da PI, de imediato se podia/de dizer que o alegado/provado não preenche os requisitos/elementos da simulação absoluta: dos factos alegados/provados não só não resulta que as declarações manifestadas não correspondam às vontades reais, como, bem pelo contrário, visando-se o “prejuízo dos interesses dos credores” (ponto 50 dos factos), são inteiramente compagináveis com tal objetivo (e com as vontades reais) as declarações manifestadas (o trespasse teve como fim defraudar os credores da insolvente, sendo a efetiva e real realização do negócio um instrumento para a consecução de tal fim/resultado, ao arrepio, já se vê, da invocada simulação negocial).

Não pode escamotear-se, não se verificando quaisquer divergências negociais, que as declarações negociais convergentes foram produzidas por pessoas jurídicas (sociedades por quotas) que, à época, eram pertencentes aos mesmos dois sócios (CC e I..., SA), o que pode induzir a “levantar o véu” da personalidade e a derrogar o chamado princípio da separação jurídica (entre as sociedades/pessoas jurídicas, autónomos sujeitos de direito, e os seus dois sócios, outros autónomos sujeitos de direito), porém, sem prejuízo de tal circunstância não deixar de conferir “impressão jurídica” aos factos, o certo é que não parece que releve para efeitos de considerar verificados os requisitos/elementos da “simulação absoluta”: uma sociedade, é sabido, existe por e para os sócios e o seu património não está ao serviço de interesses da pessoa jurídica “em si”, mas sim dos seus sócios, todavia, sendo as sociedades pessoas jurídicas autónomas, podem celebrar negócios entre si, não parecendo que se possa/deva dizer que foram os sócios CC e I..., SA a dar de trespasse e a tomar de trespasse.

A operação jurídica de desconsideração da personalidade coletiva das sociedades (como derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjetiva e /ou patrimonial das sociedades em face dos respetivos sócios) decorre, quando é efetuada, da interpretação teleológica de disposições legais e negociais e do apelo à cláusula geral do abuso de direito, “remédios jurídicos” a que, no caso, não se mostra necessário lançar mão.

Efetivamente, no despacho singular em que, nos termos do art. 3.º/3 do CPC, foi dado cumprimento ao princípio do contraditório, deixou-se escrito que “ (…) os factos dados como provados pelas Instâncias – designadamente, os constantes dos pontos 48 a 51 – são suscetíveis de poder representar a incompatibilidade com a ordem pública e com os bons costumes do negócio de trespasse celebrado e, em função disso, poderão ser suscetíveis (…) de poder produzir a nulidade de tal negócio de trespasse. (…) atos de esvaziamento e de dissipação do património do devedor (como resulta de tais pontos 48 a 51) colidem com vários preceitos legais imperativos que defendem o direito geral de garantia do credor sobre o património do devedor e, além disso, configuram uma conduta imoral. É certo que os referidos factos, todos alegados pela A, foram por esta integrados no vício de nulidade com fundamento em simulação absoluta e que é apenas esta nulidade específica que a A. invoca na PI – e o art. 581.º/4 do CPC dispõe que, em ações como a presente, a causa de pedir é “a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido” – porém, sendo a nulidade de conhecimento oficioso (cfr. art. 286.º do C. Civil), não está a apreciação/conhecimento do tribunal, quanto à possível incompatibilidade com a ordem pública e com os bons costumes do negócio de trespasse celebrado, limitada e impedida pelos limites da causa de pedir invocada pela A..”

E é sob este ponto de vista jurídico que, a nosso ver, os factos devem ser apreciados: celebrar o trespasse dum estabelecimento comercial, como está provado, para o retirar da esfera jurídica da trespassante, “a fim de defraudar as expectativas dos seus credores de poderem ver parte dos seus créditos ressarcidos”, “com intento prejudicial aos interesses dos seus credores” e visando “desmantelar” a trespassante que assim ficou “sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social”, configura, a nosso ver, um negócio jurídico com fim contrário à Ordem Pública e ofensivo dos Bons Costumes.

A autonomia privada não significa, é sabido, liberdade de estipulação de quaisquer conteúdos negociais: são vários os preceitos legais, no C. Civil, que limitam a liberdade de estipular o conteúdo dos negócios jurídicos, como, desde logo, os art. 405.º, 280.º, 294.º, 398.º e 401.º, que limitam a liberdade de estipulação e a submetem à Lei, à Moral e à Ordem Pública (ou seja, a limitação da autonomia privada e da liberdade contratual, quer na decisão de contratar, quer na estipulação do conteúdo do contrato, encontram fundamento na Ordem Pública e nos Bons Costumes).

Coisa diversa da licitude/ilicitude do conteúdo do negócio jurídico é a licitude/ilicitude do fim com que as partes celebraram o negócio jurídico, porém, o art. 281.º do C. Civil também comina com a nulidade o negócio que seja celebrado, por ambas as partes, com fim contrário à lei, à ordem jurídica ou aos bons costumes, hipótese esta em que o juízo de mérito/licitude já não incide sobre o conteúdo do negócio jurídico, mas antes sobre o fim com que os seus autores o celebraram.

Se se provar que a ilicitude do fim é comum a todos os autores do negócio, é a globalidade negocial que fica em causa e a consequência é a ilicitude do próprio negócio e a sua nulidade.

O que seja a contrariedade à Ordem Pública e/ou aos Bons Costumes é algo que não é imediatamente destacável, tendo antes que ser concretizado casuisticamente, a partir das circunstâncias do caso concreto: a Ordem Pública e os Bons Costumes não são normas, mas antes conceitos jurídicos indeterminados (e cláusulas gerais) constituídos por princípios que se deduzem do sistema de normas imperativas e das regras de inter-relacionamento entre as pessoas.

A Ordem Pública representa “um complexo valorativo que deve ser em qualquer caso preservado dentro da comunidade. É já resultante de princípios fundamentais, desde logo os da dignidade da pessoa humana, mas também outros que representam bases da vida social. (…) busca apurar se, na aplicação ao caso concreto, se chega a um resultado que é inadmissível perante os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa. (…) Pretende verificar se o negócio jurídico, mesmo quando aplica concretas regras jurídicas, não conduz todavia a um resultado que não é tolerável na nossa comunidade. (…) há uma reserva geral da ordem jurídica em globo, que impede que, através da utilização das suas regras, se chegue a resultados que, em concreto, sejam incompatíveis com os princípios fundamentais que a animam2.

Os Bons Costumes implicam “necessariamente uma referência ética. (…) O que há de específico (…) é estes funcionarem como uma espécie de válvula de segurança do sistema, permitindo a entrada neste de valorações morais que o sistema – por que não é por si moral – não comportaria. (…) Os bons costumes não são pois a conduta que é, nem a conduta que deve ser, mas sim a conduta que a sociedade aceita predominantemente como devendo ser.3

Assim, estando o fundamento da qualificação de certos comportamentos como crimes na sua contrariedade à Ordem Pública, pode/deve deduzir-se, a partir do sistema de normas imperativas que o C. Penal configura, que serão contrários à Ordem Pública e aos Bons Costumes (na medida em que não pode ser considerada de bons costumes a comissão de crimes) os negócios jurídicos que constituam o meio usado e um ato finalisticamente dirigido ao cometimento de um crime.

E serão do mesmo modo contrários à Ordem Pública e aos Bons Costumes os negócios jurídicos / comportamentos que preencham o “núcleo fundamental” de um tipo criminal (ou seja, os comportamentos a que falte um ou outro elemento do tipo para serem qualificadas como crimes) e/ou que não possam ser “perseguidos” como tal por, por exemplo, o crime ter prescrito.

Como refere Pedro Pais de Vasconcelos (in Revista do STJ, Jul. a Dez. 2022, pág. 24), “(…) se a analogia não pode ser usada para a sua qualificação como crimes (art. 1.º/3 do C. Penal), já pode e deve sê-lo para a sua qualificação como contrárias à Ordem Pública e aos Bons Costumes. O fundamento de Ordem Pública que impede o recurso à analogia para a qualificação de condutas como crimes, não se alarga à sua qualificação como contrárias à Ordem Pública e aos Bons Costumes, porque deixou de estar em questão a aplicação de penas, principalmente a privação da liberdade de pessoas. Mas, atenta a contrariedade da conduta à Ordem Pública e aos Bons Costumes não pode o ato, negócio jurídico ou contrato, ser mantido como válido na Ordem Jurídica. Os tipos de comportamento contrários à Ordem Pública e aos Bons Costumes não são tipos fechados, não há fundamento para que o sejam. (…)

E, nesta linha de raciocínio, refletindo sobre os atos de esvaziamento patrimonial em detrimento de credores, sustenta o mesmo autor (local citado, pág. 30 e 31):

“(…) É relativamente frequente no mercado o caso em que o devedor tente pôr o seu património a salvo dos seus credores, antecipando a sua execução ou mesmo a insolvência.

A lei disponibiliza ao credor alguns meios de proteger o seu crédito, como a impugnação pauliana, a resolução em benefício da massa, a qualificação da insolvência como culposa e a incriminação por insolvência dolosa (art. 227.º do C. Penal). (…)

Sucede com frequência que os credores não souberam em tempo dos atos pelos quais o devedor esvaziou o seu património e deixaram passar o prazo de 5 anos de caducidade da impugnação pauliana (art. 618.º do C. Civil), de dois anos para a resolução em benefício da massa (art. 120.º do CIRE), ou de 3 anos para a qualificação culposa (art. 186.º do CIRE) e não conseguiram provar a simulação dos atos de alienação, pelo devedor, dos bens que constituíam o suporte patrimonial dos seus créditos.

Os atos pelos quais o devedor investe terceiros na titularidade dos seus bens podem ser simulados, podem ser fiduciários (fidúcia cum amico) e podem até ser qualificados como mandatos sem representação. Em muitos destes casos, o devedor recorre à contratação ou à colaboração de testas-de-ferro que podem ser pessoas singulares ou coletivas, familiares ou amigos, ou profissionais, ou empresas onshore ou offshore, instituições financeiras e veículos especiais. (…)

Importa distinguir os casos de alienação simulada, que são nulos (artigo 240.º do C. Civil), dos casos de alienação verdadeira, em que ambas as partes alienante e adquirente têm e exprimem a sua vontade real e não simulada no ato.

Nos casos em que se prove a simulação, a consequente nulidade do ato faz regressar ao património do devedor aqueles bens simuladamente alienados, que juridicamente nunca dele saíram, permitindo assim a sua execução.

A incompatibilidade com a Ordem Pública e os Bons Costumes é chamada quando não exista (ou não se tenha provado) a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, da parte de alienante e adquirente.

Quando alienante e adquirente, chamados a juízo, sustentam ser real a sua vontade negocial de alienar e adquirir, esse ato [de esvaziamento do património] pode e deve ser qualificado como contrário à Ordem Pública porque colide com a intencionalidade legal e o fundamento de vários preceitos legais imperativos que impõem uma armadura de defesa do credor contra os atos de esvaziamento e dissipação do património do devedor, que defendem o direito real geral de garantia do credor sobre o património do devedor.

Aos Bons Costumes porque é imoral e não pode constituir bom costume, nem sequer pode ser considerado moralmente neutro, que o devedor defraude o credor pela ocultação ou pela alienação do seu património, em parte ou na totalidade, em benefício próprio e em prejuízo do credor.

É uma conduta tão próxima dos crimes de burla, de insolvência dolosa ou de frustração de créditos (arts. 217.º, 227.º e 227.º-A do C. Penal), que só muito dificilmente não comungará com eles da Ordem Pública de proteção de crédito e do mercado.

Também não poderá deixar de ser contrária aos Bons Costumes a conduta do devedor que oculta, dissipa ou aliena em proveito próprio, direto ou indireto, ou de terceiro, e em prejuízo do credor, totalidade ou parte do seu património.

É moralmente uma desonestidade, uma fraude (…) que os “Bons Costumes”, os padrões de comportamento das pessoas de bem, não podem aceitar.

Como sempre, porém, nestes casos, o juízo de contrariedade à Ordem Pública e aos Bons Costumes não prescinde duma sindicação concreta e casuística perante as circunstâncias da pessoa e do caso. (…)”

Reflexões estas, com que se concorda, que parecem apontadas ao caso sub judice.

Como resulta dos factos provados, repete-se mais uma vez, a Distralmada, ora insolvente, alienou o seu estabelecimento comercial à ora R. “a fim de defraudar as expectativas dos seus credores de poderem ver parte dos seus créditos ressarcidos”, “com intento prejudicial aos interesses dos seus credores” e visando “desmantelar” a Distralmada que assim ficou “sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social”; dando-se o caso, como já se expôs, de os contraentes (a Distralmada e a R.) em tal alienação/trespasse serem sociedades da titularidade dos mesmos dois sócios (CC e I..., SA), da trespassária haver sido constituída no próprio dia do negócio e de não ter sequer ficado provado o pagamento do preço do negócio4.

Pelo que, vindo a alienante/Distralmada a ser declarada insolvente (com créditos reclamados, segundo elementos constantes do processo, superiores a dois milhões e meio de euros) em 26/06/2015, a resolução em benefício da massa de tal negócio de trespasse só não ocorreu por a resolução não ter sido intentada pelo AI no prazo de dois anos a que se refere o art. 120.º/1 do CIRE (a ação de impugnação da Resolução – Juízo de Comércio de ..., Juiz ..., Processo n.º 1936/15.0T8VFX-M – foi julgada procedente e declarado extinto, por caducidade, o direito de resolução invocado pela Massa Insolvente).

Mas, estando-se perante um negócio que, atenta a finalidade do mesmo, configura uma conduta próxima das que estão tipificadas como constituindo crimes de insolvência dolosa do art. 227.º do C. Penal – com o negócio celebrado, a Distralmada diminui o seu património e os credores, em face do trespasse celebrado, deixaram de poder atingir o estabelecimento para garantir os seus créditos, o que é próximo da conduta de “fazer desparecer património” referida no art. 227.º/1/a) do C. Penal – pode/deve considerar-se que o fim de tal negócio colide com os princípios que integram a Ordem Pública e que se deduzem de tal tipo criminal e dos preceitos legais (como os arts. 601.º, 605.º e 610.º do C. Civil) que defendem o credor contra os atos de esvaziamento e dissipação do património do devedor, que defendem o direito real geral de garantia do credor sobre o património do devedor.

Ademais, alienar património, para fugir aos credores, em proveito próprio (indireto, na medida em que, através da sociedade R., o estabelecimento continuava na titularidade das mesmas pessoas jurídicas: 90% na família AA e 10% na I..., SA), deixando a alienante/trespassante “sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social”, é um negócio que é eticamente reprovável, que não está de acordo com a decência económica e do inter-relacionamento entre pessoas e cujo fim, por isso, é contrário aos Bons Costumes.

Enfim, o circunstancionalismo provado e que rodeou a celebração do trespasse comercial sub judice revela que com o mesmo se visou um fim contrário à Ordem Pública e aos Bons Costumes, porque, em síntese, com tal negócio/trespasse, apenas se visou retirar o estabelecimento da esfera jurídica da devedora e ora insolvente, para defraudar os seus credores, colocando-o “a salvo” (dos credores) na esfera jurídica de outra sociedade (detida exatamente pelas mesmas duas pessoas jurídicas que eram titulares da vendedora/trespassante); pelo que – manter a validade de um negócio jurídico celebrado em tais termos e com tal fim – é incompatível e inadmissível à luz dos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa.

E tendo-se provado que a ilicitude do fim é comum aos dois contraentes do negócio – como se extrai dos pontos 48 a 51, segundo os quais ambos “os intervenientes visaram retirar património da esfera jurídica da Devedora, (…) tinham conhecimento do passivo vencido da devedora, atuaram com intento prejudicial aos interesses dos credores e visaram “desmantelar” a devedora, assim ocorrendo, ficando esta sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social” – é a globalidade negocial que fica em causa, tendo tal ilicitude do fim negocial como consequência a nulidade do próprio negócio, de acordo e nos termos do art. 281.º do C. Civil.

É quanto basta para – embora com outro e diferente fundamento, ou seja, não com base na simulação absoluta invocada, mas sim com base em tratar-se de negócio com fim contrário à Ordem Pública e ofensivo dos Bons Costumes – julgar a revista procedente e para repristinar o sentenciado na 1.ª Instância.

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IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente a revista e revoga-se o Acórdão recorrido que se substitui por decisão a declarar a nulidade – por se tratar de negócio com fim contrário à Ordem Pública e ofensivo dos Bons Costumes – do negócio vertido no escrito datado de 29 de fevereiro de 2012, intitulado “contrato de trespasse”.

Custas em ambas as Instâncias e neste STJ pela R..

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Lisboa, 15/03/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ana Resende




Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC


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1. Facto provado 47 da sentença da 1.ª Instância e que passou a facto não provado no Acórdão da Relação.

2. ↩︎

3. Oliveira Ascensão, Teoria Geral, Vol. II, pág. 320/1.

4. ↩︎

5. Oliveira Ascensão, local citado, pág. 334/5.

6. ↩︎

7. Também não se provou, é certo, que não haja sido pago, todavia, constando do texto do contrato que o preço seria pago por cheque, foi a própria R. a “confessar” que assim não sucedeu e que o pagamento foi efetuado através de compensação, o que a R. não logrou provar.

8. ↩︎