ACÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO DE MÚTUO
CRÉDITO BANCÁRIO
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
DOCUMENTO PARTICULAR
PRINCÍPIO DA TIPICIDADE
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
QUESTÃO NOVA
Sumário


I- O título executivo, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, tanto pode ser simples (integrado por um único documento) como ser complexo (constituído por vários documentos que se completam entre si de molde a demonstrar a obrigação exequenda).
II- Vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da tipicidade no que concerne aos títulos executivos, a sua exequibilidade deve ser aferida pela lei vigente na altura da sua constituição/criação.
III- Goza de força executiva o documento particular dado à execução (assinado por todos os outorgantes) que consubstancia/formaliza um contrato de mútuo bancário - celebrado na vigência do CPC61 e quando se encontrava em vigor o artigo 46º, nº. 1 al. c), na redação então dada pelo DL nº. 38/2003 de 08/03 -, através do qual o exequente/banco (mutuante) se obrigou a entregar, tal como veio a suceder, de uma só vez determinada quantia aos executados/mutuários, tendo-se estes, por sua vez, obrigado a restituir-lhe, no prazo ali convencionado, outro tanto, acrescido de juros.
IV- A força executiva do título dado à execução não se confunde com a exigibilidade da obrigação exequenda.
V- Não tendo os executados invocado a inexigibilidade da obrigação exequenda como fundamento dos embargos que deduziram à execução, e apenas tendo suscitado essa questão nas alegações da fase recursiva da decisão proferida na 1ª. instância (que dela não apreciou), tal configura uma questão nova que impede o STJ de dela agora conhecer em recurso de revista.

Texto Integral




Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório



1. Por apenso à execução, para pagamento de quantia certa, que contra si instaurou (em 03/07/2015) o NOVO BANCO, S.A., vieram (em 08/01/2016) AA, BB e CC, todos com os demais sinais dos autos, deduzir-lhe oposição, mediante embargos.

Oposição essa que os opoentes/embargantes fundamentaram, em estrita síntese e com relevância, invocando:

a) A ilegitimidade do exequente;

b) Ausência de instauração/implementação prévia de PERSI e a integração nele dos executados/embargantes;

c) A incongruência entre requerimento executivo e título executivo;

d) A insuficiência dos documentos apresentados para valerem como títulos executivos.


2. O exequente/embargado contestou a oposição/embargos e os seus fundamentos, pugnando pela sua improcedência.

3. No despacho saneador, conheceu-se das questões acima elencadas em a), b) e c) do nº. 1 deste Relatório e aduzidas como fundamento dos embargos, julgando-se, por decisão de 24/10/2018, improcedentes os embargos quanto a esses fundamentos.

3.1 Ordenou-se depois (após a fixação do objeto do litígio e dos temas de prova) o prosseguimento dos autos para audiência de discussão e julgamento quanto aos demais fundamentos dos embargos aduzidos, por se considerar que o estado dos autos não permitia ainda deles conhecer.

4. Daquela decisão proferida no despacho saneador que julgou os embargos improcedentes quanto às sobreditas questões que fundamentavam os embargos foi pelos embargantes interposto recurso de apelação, que veio a ser admitido, com subida imediata e em separado dos autos principais (na sequência de reclamação apresentada, à luz do artº. 643º do CPC, e depois de inicialmente a sra. juíza titular dos autos não o ter admitido).

4.1 Recurso esse que, diga-se desde já, veio a ser julgado improcedente, pelo acórdão (transitado em julgado) do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), proferido em 10/03/2022, que confirmou aquela referida decisão recorrida.


5. Após a realização da audiência de discussão e julgamento, seguiu-se a prolação da sentença (03/04/2019), que no final assim decidiu:

« (…) julgo PARCIALMENTE PROCEDENTES os presentes embargos de executado e, em consequência, a quantia exequenda deverá ser reduzida no sentido de deixar de abranger os montantes respeitantes ao contrato de €75.000,00. »


5. Inconformados, mais uma vez, com tal sentença, dela apelaram os embargantes.


6. Na apreciação desse recurso o TRL, por acórdão de 12/05/2022, decidiu negar provimento à apelação, e confirmar a sentença recorrida.


7. Novamente irresignados com tal acórdão, os executados/embargantes dele interpuseram recurso de revista, tendo concluído as respetivas alegações nos seguintes termos (respeitando-se a ortografia):

« 1º Os Recorrentes discordam, salvo o devido respeito, e salvo melhor entendimento, do douto Acórdão recorrido, e, em primeiro lugar, pugnando que não está no objecto do recurso uma questão de que não cumprisse ao Tribunal a quo conhecer, ainda que, como o refere o mesmo, a questão do incumprimento da cláusula 36ª do contrato de financiamento não tenha sido expressamente suscitada em 1ª Instância, e por esta apreciada, mas invocada em sede de Recurso de Apelação, e então conhecida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

2º Com efeito, e como o mesmo também o refere, está em causa a questão da suficiência ou não do título executivo em causa como tal, questão essa que não só já havia sido colocada, mas, ainda, segundo se julga, é ainda de conhecimento oficioso.

3º E, não sendo então questão nova, mas um fundamento diferente a respeito da mesma questão, e só agora considerado pelo Tribunal a quo, ao contrário do que sucedeu pelo Tribunal de 1ª Instância, não se pode ter por verificada, s.m.e., uma situação de dupla conforme, impeditiva do presente recurso de Revista.

4º Dito isto, discordando com o devido respeito do Acórdão recorrido, os Recorrentes defendem que o mesmo não integra devidamente o princípio da suficiência do título, desconsiderando para tanto que o contrato de crédito em causa, nos seus próprios e expressos termos, não se reporta a um montante específico mas a um limite máximo, e que também não podia ser executado sem o prévio cumprimento da respectiva cláusula 36ª.

5º Desde logo se dirá que, na matéria em causa, a saber, a consideração da valia, como título executivo, dos enquanto tal concretamente apresentados, não pode resultar de qualquer prova testemunhal (cfr. art. 393º, n.º 1 do Código Civil, e Decreto-Lei n.º 32765, de 29 de Abril de 1943).

6º Haverá, nessa sequência, que atender, apenas, ao teor do próprio contrato em causa, sendo que do teor expresso das condições particulares do contrato número ...86 consta, a respeito do respectivo montante, apenas o seguinte: “Crédito: Montante Máximo Global de 275.000,00 EUR (duzentos e setenta e cinco mil euros” – e em mais nenhum passo ou lugar do mesmo é feita qualquer alusão a qualquer montante em concreto.

7º Das respectivas condições gerais consta, definindo o que se entende por “Montante Máximo” o seguinte: “O montante máximo de crédito disponível para ser utilizado pelo cliente ao abrigo do contrato”.

8º É claro e objectivo que nem um montante máximo corresponde a um montante fixo, nem o facto de estar disponível para utilização corresponde à sua efectiva e integral utilização – antes pelo contrário.

9º Assim, tal contrato de crédito não integra, nem mesmo à luz do anterior regime, qualquer título executivo, referindo-se o mesmo, nos seus próprios e expressos termos, não a qualquer crédito de montante determinado, mas pelo contrário, a um limite de crédito, definido pelo valor máximo de financiamento possível, aí expressamente denominado de “Montante Máximo Global”.

10º Ou seja, é, assim, nos seus próprios e expressos termos, uma disponibilidade financeira, aí titulada, não por um montante determinado, mas até a um limite máximo.

11º Acontece que tal falta de título não é suprida, in casu, nem por qualquer hipoteca, nem, também, pela junção subsequente, em sede de contestação de meros extractos.

12º Para além disso, sempre se impõe dizer que, no caso concreto, e além da prova, complementar, dos montantes efectivamente devidos, era também necessária a prova, também complementar, à luz do próprio contrato em causa, quanto ao cumprimento do disposto na respectiva cláusula 36, nos termos especificamente aí previstos, como condição da respectiva exequibilidade, e que no caso, não foram cumpridos.

13º Na verdade, não está comprovado qualquer registo de qualquer comunicação relativa ao contrato em causa.

14º Aliás, além da falta de qualquer registo, tais supostas comunicações, impugnadas, nem foram objecto de qualquer prova, e, até, referem-se a outros contratos.

15º Assim, tratando-se, como se trata, de comunicações recipiendas, impugnadas que foram, e não se mostrando demonstrada sequer a respectiva realização, quanto mais a respectiva recepção por qualquer um dos Executados, sendo as mesmas, no caso concreto, condição necessária da exequibilidade do dito contrato, não pode este constituir, também por isso, título executivo.

16º A recusa de aplicação, com esse sentido e alcance, do disposto no art. 46º do CPC, na versão anterior, ou a sua aplicação com sentido e alcance diverso, afronta o princípio da confiança ínsito ao princípio constitucionalmente garantido do Estado de direito.

17º Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Acórdão recorrido (…). »


8. Contra-alegou o exequente/embargado, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção integral do julgado.


9. Corridos os vistos legais, e recebido que foi o recurso, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir o mesmo.


***

II- Fundamentação



A) De facto.

Pelas instâncias foram dados como provados os seguintes factos (seguindo a descrição feita pelo acórdão da Relação, com a numeração corrigida, e com respeito da ortografia).

1. Por requerimento executivo de 03 de julho de 2015, em que se indicou como título executivo “Outro título com força executiva”, consta como factos o seguinte:

«1.º - O Novo Banco, S.A. sucedeu ao Banco Espírito Santo, S.A. (que figura como credor no(s) título(s) executivo(s) que serve(m) de base a esta execução), na titularidade da(s) obrigação (ões) exequenda(s) e respetivas garantias, por força de deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014 (cfr. art.º 145.º - G n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras e, ainda, certidão permanente código de acesso: ...74), sendo, assim, parte legítima (ativa), na presente execução (cfr. n.º 1 do art.º53 e n.º 1 do art.º 54.º do NCPC).

2.º - Em 21/12/2012 o Exequente celebrou com AA e BB, dois Contratos de Financiamento até ao montante máximo global de €275.000,00 (duzentos e setenta e cinco mil euros) e de 50.000,00(cinquenta mil euros), tendo este último, em21/02/2013, passado a ser de 75.000,00(setenta e cinco mil euros) (conf. Docs. n.ºs1 e 2).

3.º - O Exequente efetivamente entregou aos Mutuários aí identificados as quantias mutuadas.

4.º - As últimas prestações pagas pelos Executados foram as vencidas em 21/12/2013 e 16/09/2014, respetivamente para o primeiro e segundo contratos, não tendo efetuado o pagamento de qualquer uma das subsequentes, apesar de, por diversas vezes, interpelados para o fazer pelos serviços do Exequente o que tornou vencida a dívida na sua totalidade, nos termos do art. 781.º do Código Civil.

5.º - Para garantia dos capitais referidos, respetivos juros e despesas, constituíram os Executados AA e CC, a favor do Exequente, hipoteca(s) voluntária(s) e genérica(s) sobre o(s) imóvel(eis) nomeado(s) à penhora (cfr. docs. n.os 3 a 9).

6.º - A(s) hipoteca(s) garante(m) o bom pagamento dos empréstimos assumidos pelos Mutuários, perante o Banco Exequente, até ao montante máximo de 445.250,00, encontrando-se devidamente registada(s) pela Ap. ...83 de2012/12/27 (cfr. docs. n.ºs 3 a 9).

7.º -Nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 54.º do CPC: "A execução de dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro seguirá diretamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor."

8.º - O executado CC é, assim, parte legítima para a presente execução por forçado n.º 2, do art. 56.º do CPC.

9.º - O tribunal é territorialmente competente, por forçado disposto no n.º 1, do art. 94.º do CPC.».

1.1. No campo liquidação da obrigação indicou-se como valor total €370.232,82, dos quais € 339.184,38 correspondiam a valor líquido e € 31.048,44 a valor dependente de simples cálculo aritmético.

1.2. Fundamenta-se a liquidação nos seguintes termos:

Foi estabelecido no Contrato de Financiamento ...86 que o capital mutuado venceria juros à taxa correspondente à EURIBOR a 3 meses, arredondada à milésima, acrescida de um spread de 6.50000pontos percentuais e de sobretaxa de 3% no caso de mora, alteráveis em função da variação que viessem a sofrer no decurso do contrato.

A dívida em capital é, atualmente, de 264.231,36, a que acrescem juros vencidos desde a data de entrada em mora, 21/12/2013 e até 15/05/2015, à taxa 9,792% ao ano (6,792%, taxa de juros remuneratórios atualmente praticada de acordo com o critério fixado no título executivo + 3%, sobretaxa de mora), o que perfaz 291.362,87.

Foi estabelecido no Contrato de Financiamento n.º ...87 que o capital mutuado venceria juros à taxa correspondente à EURIBOR a 1 mês, arredondada à milésima, acrescida de um spread de7.50000 pontos percentuais e de sobretaxa de 3% no caso de mora, alteráveis em função da variação que viessem a sofrer no decurso do contrato.

A dívida em capital, é, atualmente, de 74.953,02, a que acrescem juros vencidos desde a data de entrada em mora, 16/09/2014 e até 15/05/2015, à taxa de 10,506% ao ano (7,506%, taxa de juros remuneratórios atualmente praticada de acordo com o critério fixado no título executivo + 3% sobretaxa de mora), o que perfaz 78.869,95.

A final, o Agente de Execução deverá contar os juros vencidos e vincendos, relativamente a ambos os mútuos, desde 16/05/2015, às indicadas taxas de 9,792% e de 10,506%, nos termos do n.º 2 do art. 716.º do Código de Processo Civil.».

2. O exequente juntou com o requerimento executivo os seguintes documentos, que  aqui se dão por integralmente reproduzidos:

a) Contrato de ...;

b) Contrato de Financiamenton.º ...87;

c) Alteração ao Contrato de Financiamento n.º ...87;

d) Certidões do Registo Predial do Funchal dos bens imóveis descritos sob o n.º:

— 304/...02-GG

— 304/...02-C

— 304/...02-CL

— 304/...02-CU

— 304/...02-CV

— 285/...26-E2

— 285/...26-F2 — cf. documentos 3 a 9, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

3. Dos documentos n.ºs 1 e 2, juntos com o requerimento executivo, que aqui se dão por integralmente reproduzidos consta que:

“Em 21.12.2012, foi celebrado entre o Exequente (na qualidade de mutuante) e os Executados BB (NA QUALIDADE DE MUTUÁRIO), AA (NA DUPLA QUALIDADE DE MUTUÁRIA E PRESTADORA DA GARANTIA DE HIPOTECA) E CC (NA QUALIDADE DE PRESTADORA DA GARANTIA DE HIPOTECA), dois Contratos de Financiamento:

i. Financiamento n.º ...86, até ao montante máximo global de €275.000,00(…);

ii. Financiamento n.º ...87, até ao montante máximo global de €50.000,00 (…), aumentado para €75.000 (…), por aditamento ao contrato assinado em21.02.2013”.

4. Consta como finalidade no primeiro financiamento «Fundo de Maneio à Atividade Empresarial» e no segundo «Apoio de Tesouraria».

5. Em cada uma das mencionadas certidões encontra-se registada a favor do Banco Espírito Santo, S.A., hipoteca até ao montante de €325.000,00, juro anual: 9%, acrescido de 2% ao ano em caso de mora – despesas €13.000(fls.76 a 84).

6. No que concerne ao financiamento de €275.000,00, consta do respetivo contrato que a utilização do capital emprestado não era utilizado em conta corrente e seria usado imediatamente e somente em uma única vez (cf. fls. 03 dos autos principais).

7. A 28 de Dezembro de 2012, o Banco Espírito Santo, S.A. entregou aos supra mutuários a quantia de €275.000,00.

8. No que concerne ao financiamento de €50.000,00, aumentado para €75.000,00, desse contrato consta que é concedido nas modalidades de abertura de crédito em conta corrente e de crédito para emissão de garantias bancárias “BES Express Bill” que se destinam «exclusivamente a garantir o pagamento do valor constante das Ordens de Pagamento, ordenadas pelo Cliente através do Serviço BES Express Bill» (cf. fls. 07 verso e 08 dos autos principais).

9. Os extratos bancários de fls. 28 verso e seguintes somente foram juntos com a contestação.

10. O saldo do financiamento a que se alude em 8) a 31 de Janeiro de 2014 era de €74.953,02.


***


B) De direito.

1. Do objeto do recurso e do seu conhecimento.

Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é, em regra, pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, e 679º do CPC).

Por fim, vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” a que se reporta o citado artº. 608º, e de que o tribunal deve conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes.

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso de revista dos embargantes, verifica-se que a única questão verdadeiramente que aqui se nos impõe aqui apreciar e decidir traduz-se em saber se o exequente dispõe ou não de título dotado de força executiva no que concerne à quantia exequenda referente ao capital de € 275.000,00 (e é tão só quanto a ela que a questão ainda se mostra controvertida e em discussão) que tem como base o documento que relativo ao “contrato de financiamento” nº. ...86, que juntou com o requerimento executivo.

O acórdão recorrido entendeu que sim (mantendo a decisão da 1ª. instância, embora com uma fundamentação não inteiramente coincidente), ao contrário do que defendem os recorrentes (suportando-se na argumentação que aduzem as conclusões das suas alegações que acima deixámos transcritas).

Apreciemos.

Como decorre do que se deixou exarado, a referida questão ainda controvertida em discussão apenas se traduz em saber se a quantia exequenda referente ao capital de € 275.000,00 que tem como base o documento que relativo ao “contrato de financiamento” nº. ...86, está ou não dotado de força executiva, ou seja, e por outras palavras, se o exequente dispõe ou não de título executivo que lhe permita executar/reclamar tal quantia em processo de execução?

Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da ação executiva (artº. 10º, nº. 5, do nCPC, e ao qual nos referiremos sempre que doravante indicarmos um normativo sem a menção da sua fonte).

O título executivo, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume uma função delimitadora (por ele se determinam o fim e os limites, objetivos e subjetivos), probatória e constitutiva, estando sujeito ao princípio da tipicidade.

Por regra, o título executivo é simples, ou seja, integrado por um único documento, mas pode sê-lo de forma complexa, sendo neste caso constituído por vários documentos que se completam entre si de molde a demonstrar a obrigação exequenda.

E sabido que a causa de pedir não se confunde com o título, todavia, não se confundindo com a causa de pedir e nem sendo conceitos necessariamente coincidentes, costuma-se, porém, ainda afirmar que, como pressuposto processual específico da ação executiva, o título é, grosso modo, uma condição necessária e suficiente da mesma.

Dito de forma mais sugestiva, “o título executivo é o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão do direito que está dentro” (Ac. do STJ de 19/2/2009, proc. nº 07B427, em www.dgsi.pt). E dentro só pode estar uma obrigação (exequibilidade intrínseca), enquanto condição material de efetivação coativa da prestação.

No que concerne aos títulos executivos, é hoje entendimento prevalecente que a sua exequibilidade deve ser aferida, em respeito particularmente do princípio constitucional da proteção da confiança, pela lei vigente na altura da sua constituição/criação.

Entendimento esse que foi reforçado como a prolação do Ac. do TC, nº. 408/2015, de 23/2015 (publicado no DR, I série, nº. 2015, de 14/10/2015,) ao declarar com força com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei nº. 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força o artigo 46º, nº. 1, alínea c), do Código de Processo Civil, de 1961, constante dos artigos 703º, do Código de Processo Civil, e 6º., nº. 3, da Lei nº. 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2º. da Constituição)”.

Sendo assim, tendo o respetivo documento dado à execução (como título executivo), que formaliza o contrato de “financiamento” (com o nº. ...86) que o exequente invoca como causa de pedir, sido constituído/criado em dezembro de 2012, será pela lei então vigente que se aferirá da sua força executiva, e não pela lei vigente à data em que foi instaurada a execução (neste caso o nCPC).

Ora, nessa altura encontrava-se (ainda) em vigor do CPC de 1961, que no seu artigo 46º (onde estavam tipificadas as espécies legais de títulos executivos) dispunha no nº. 1 al c), na redação então vigente dada pelo DL nº. 38/2003 de 08/03, poderem servir de base à execução Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.” (sublinhado nosso)

Tendo presente as considerações de cariz teórico-técnico que se acabaram de deixar expendidas, debrucemo-nos, agora, de forma mais incisiva, sobre o caso em apreço, por forma a dar resposta à questão acima colocada.

Da conjugação da materialidade factual apurada com o teor dos documentos juntos com o requerimento executivo e que suportaram o mesmo, deles se retira, naquilo que para aqui mais releva, que:

- No dia 21/12/2012, entre o exequente (então com outra designação) e os executados/embargantes, BB, AA e CC, foi celebrado um contrato, que as partes denominaram de financiamento (ao qual foi atribuído o nº. ...86), formalizado através de documento (particular) assinado por todos, - que se regia por condições particulares e gerais nele expressas -, e através do qual o primeiro se comprometeu a financiar os segundos, no montante máximo de € 275.000,00.

Das condições particulares consta, além do mais, ainda:

« 2. Finalidade (…):  Fundo de Maneio à Atividade Empresarial.

(…).

3. Data Efetiva: A data efetiva corresponderá á data da assinatura do contrato por todos os intervenientes.

(…).

5. Prazo: 180 Mes(es)

(…)

7. Utilização

7.1. Período de Utilização: Não aplicável.

7.2. Regime de utilização: Imediata e única.

7.3. Conta corrente: Não

(…)

8. Juros.

8.1. Taxa de juro: (…)

(…)

8.4. Pagamento de juros: Mensal

9. Reembolso do Crédito

9.1 Reembolso do Crédito:

prestações mensa(ais)constantes, iguais e sucessivas de capital e juros, vencendo-se a primeira 1 (meses) após a data efetiva (…) »

- Em 28/12/2012, o exequente entregou aos referidos mutuários a totalidade daquela quantia de € 275.000.00.

Da conjugação de tais elementos factuais e à luz das regras da hermenêutica interpretativa dos artºs. 236ºe 238º do C. Civil (com especial enfâse para o princípio da impressão do destinatário ali plasmado), é-se levado à conclusão de que o referido documento (particular), que serve de base à execução, formaliza um contrato de empréstimo ou mútuo bancário celebrado entre o exequente e os executados/embargantes, tal como consideraram as instâncias.

Contrato esse que José A. Engrácia Antunes (in Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, pág. 497/498) define como “o contrato pelo qual o banco (mutuante) entrega ou se obriga a entregar uma determinada quantia em dinheiro ao cliente (mutuário), ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (“tantundem”), acrescido dos respetivos juros.”

Mútuo bancário esse que é, como refere L. Miguel Pestana de Vasconcelos (in “Direito Bancário, 2ª. ed., 2019, pág. 185/186”), “um dos negócios centrais da atividade bancária, constituindo-se como um ato comercial autónomo (artº. 362º do CCom). Ele é um modelo da concessão de crédito, sendo celebrado em massa, de forma profissional, pelos bancos.”

Mútuo bancário esse que, como discorre o prof. Menezes Cordeiro (in “Direito Bancário, 6ª. Revista e Atualizada, pág. 688”) se distingue «de qualquer outro por ser celebrado por um banqueiro, como mutuante, agindo no exercício da sua profissão. (…) O mútuo bancário tem uma forma aligeirada: nos termos do artigo Único do Decreto-Lei nº. 32.765, de 29 de abril de 1943. “Os contratos de mútuo ou de usura, seja qual fora o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante não seja comerciante.” (…)» (sublinhado nosso)

No mesmo sentido aponta L. Miguel Pestana de Vasconcelos (in “Ob. cit., págs. 186 e 187”), ao escrever que “sendo o mutuante um banco (ou outra instituição de crédito) aplica-se o artigo único do Dec.-Lei nº. 32765, de 24/4/1943, que aligeira os requisitos de forma, bastando o escrito particular, mesmo quando a outra parte não seja comerciante, independentemente do seu valor.”

Justificando essa ligeireza de forma, e face à celebração desse tipo de contratos em massa pelos bancos ou outras instituições financeiras de concessão de crédito, esse mesmo autor escreve logo depois (pág. 187) que o “objetivo visado com a referida disposição de 1943 era o de simplificar a forma dos contratos desta natureza, sempre que fossem celebrados por bancos, face à forma mais pesada do regime civil. (…) Ou seja: o regime decorrente do artigo único do Dec.-Lei nº. 32765, de 24/4/1943, sendo uma norma criada em benefício dos bancos, aligeira a forma de mútuo bancário quando da aplicação da lei civil resultar a exigência de uma forma mais pesada.” (sublinhado nosso)

Resulta, assim, claro, e face estatuído no artigo único do Dec.-Lei nº. 32765, de 24/4/1943, que os contratos de mútuo bancário podem validamente ser formalizados através de escrito particular, mesmo que o contraente mutuário não tenha a qualidade de comerciante. (Neste sentido, vide ainda, além dos autores atrás citados em último lugar, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª. ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 603”, José A. Engrácia Antunes, in “Ob. cit., pág. 498”).

Mas mesmo que porventura fosse de considerar estar-se na presença de contrato de abertura de crédito, ter-se-ia de considerar que o mesmo era na modalidade simples e não de conta-corrente.

Costuma definir-se o contrato de abertura de crédito como sendo aquele pelo qual a Instituição de Crédito – creditante - se obriga a colocar à disposição do cliente – creditado - uma determinada quantia pecuniária - acreditamento ou linha de crédito — por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respetivos juros e comissões.

O que, na sua essência, distingue o contrato de abertura de crédito simples daquele feito em conta-corrente é que enquanto no primeiro o crédito é disponibilizado e mobilizável de uma só vez (como aconteceu no caso), já no segundo (que no caso, foi, aliás, afastado pelas partes (como ressalta do expressamente plasmado no dito contrato escrito e refletido na materialidade factual) esse crédito é concedido e mobilizável por “tranches”. (Vide, por todos, DD, in “Ob. cit., págs. 501/502”).

Posto isto, resulta da materialidade factual provada que através do aludido contrato (nº. ...86), formalizado através de documento particular, que o exequente, tal como ali se comprometera, disponibilizou/entregou/emprestou, de uma só vez e para ser utilizada imediatamente, aos executados/embargantes, a quantia de € 275.000,00, obrigando-se estes a restituir-lhe outro tanto, ou seja, essa quantia de capital, acrescida de juros, e nas condições ali contratualizadas/estipuladas.

Ora, perante o que se deixou exposto, é, para nós, inolvidável/inquestionável que o referido documento (particular) que consubstancia o sobredito contrato, reúne em si todos os requisitos exigidos pelo citado artigo 46º, nº. 1 al. c), do CPC de 1961, na redação então vigente dada pelo DL nº. 38/2003 de 08/03, para que seja dotado de força executiva.

Na verdade, tal documento encontra-se assinado pelos executados, e dele resultou a constituição de uma obrigação pecuniária para os mesmos, cujo montante se apresenta determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.

Diga-se, ainda que, ao invés do que defendem os recorrentes, a situação referente ao dito contrato (e ao contrário do que sucede com o outro contrato nº. ...87, que aqui não está em discussão) não se enquadra, pelas razões que ressaltam daquilo que atrás se deixou expresso quanto ao modo de utilização e mobilização da quantia mutuada, no âmbito da previsão do artº. 50º daquele CPC 61 (e que corresponde ao artº. 707º do nCPC), e daí não haver necessidade de haver complemento de prova documental.

Invocam ainda os recorrentes (na decorrência do que já haviam feito no recurso de apelação) em abono da sua tese da falta ou insuficiência de título executivo, no que se reporta ao sobredito contrato, o incumprimento, pois que não feita prova do contrário, pelo exequente do estipulado na cláusula 36ª. inserta nas Cláusulas Gerais do contrato.

Compulsando a referida cláusula, ressalta do seu teor, grosso modo, que em caso de ocorrência da situação ali prevista (vg. incumprimento das obrigações assumidas) que desencadeie o vencimento antecipado das prestações futuras devidas, tal impunha ao credor/ora exequente a obrigação de notificar os devedores/ora executados, por carta registada, comunicando-lhe essa situação, produzindo o vencimento antecipado dessas prestações efeitos no terceiro dia posterior ao envio da carta, dispondo, todavia, então o cliente/devedor do prazo de 5 dias úteis, após a receção da carta, para proceder ao pagamento das quantias em falta nela referidas, apenas podendo o banco proceder à execução dessas quantias prestacionais (vg. daquelas cujo vencimento foi antecipado) e/ou das respetivas garantias dadas decorrido aquele último prazo de 5 dias, sem que o devedor ou garante tenha posto termo à mora (incumprimento).

Notificação essa (bem como do respeito do subsequente prazo a que se alude na cláusula de que os devedores dispunham então para cumprir) que os embargantes/recorrentes aludem não resultar provado que tenha ocorrido, quando é certo que na quantia exequenda se integram também os montantes referentes a prestações futuras cujo vencimento foi antecipado.

Porém, tal situação/fundamento que os embargantes/recorrentes aduzem não tem a ver, salvo o devido respeito, com a força executiva do título dado à execução, ou seja, com a falta ou (in)suficiência do título executivo, mas antes com a exigibilidade da obrigação exequenda.

Ora, essa questão da inexigibilidade da obrigação exequenda, com o referido fundamento, configura uma questão nova (como bem se referiu no acórdão recorrido), que não foi suscitada/invocada, como vimos, perante a 1ª. instância (e que dela assim não conheceu), como fundamento da oposição (mediante embargos) deduzida à execução.

Desse modo, e como constitui entendimento consolidado a esse respeito neste Supremo Tribunal, tal impede que este tribunal conheça dessa (nova) questão.

Por fim, diremos, em resposta aos recorrentes, que não vislumbramos, salvo o devido respeito, onde é que a interpretação que se deixou exarada, nomeadamente no que concerne ao citado artº. 46º, nº. 1 alínea c), do CPC61, na versão/redação acima referida, possa violar/afrontar o princípio da proteção da confiança ínsito no artº. 2º da CRPort. .

Termos, pois, em que, perante o que se deixou exposto, se nega provimento à revista, confirmando-se (ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes) o acórdão recorrido.


***

III- Decisão



Assim, em face do que se deixou exposto, acorda-se em negar provimento à revista, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas do recurso pelos embargantes/recorrentes (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).


***


Sumário

I- O título executivo, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, tanto pode ser simples (integrado por um único documento) como ser complexo (constituído por vários documentos que se completam entre si de molde a demonstrar a obrigação exequenda).

II- Vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da tipicidade no que concerne aos títulos executivos, a sua exequibilidade deve ser aferida pela lei vigente na altura da sua constituição/criação.

III- Goza de força executiva o documento particular dado à execução (assinado por todos os outorgantes) que consubstancia/formaliza um contrato de mútuo bancário - celebrado na vigência do CPC61 e quando se encontrava em vigor o artigo 46º, nº. 1 al. c), na redação então dada pelo DL nº. 38/2003 de 08/03 -, através do qual o exequente/banco (mutuante) se obrigou a entregar, tal como veio a suceder, de uma só vez determinada quantia aos executados/mutuários, tendo-se estes, por sua vez, obrigado a restituir-lhe, no prazo ali convencionado, outro tanto, acrescido de juros.

IV- A força executiva do título dado à execução não se confunde com a exigibilidade da obrigação exequenda.

V- Não tendo os executados invocado a inexigibilidade da obrigação exequenda como fundamento dos embargos que deduziram à execução, e apenas tendo suscitado essa questão nas alegações da fase recursiva da decisão proferida na 1ª. instância (que dela não apreciou), tal configura uma questão nova que impede o STJ de dela agora conhecer em recurso de revista.


***


Lisboa, 2023/02/14


Relator: cons. Isaías Pádua

Adjuntos:

Cons. Aguiar Pereira

Cons. Maria Clara Sottomayor