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ACIDENTE DE VIAÇÃO
COMISSÁRIO
PRESUNÇÃO DE CULPA
PODERES DA RELAÇÃO
CULPA
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
PERDA TOTAL
EQUIDADE
Sumário
I – A dúvida sobre a ocorrência de um facto alegado pela autora, que a favoreça, resolve-se contra si. Porém, tal princípio a observar em casos de dúvida não se confunde com a existência de uma presunção legal de culpa decorrente da relação de comissão entre a sociedade autora e a condutora do veículo. II – Assim, primeiro, há que fixar os factos-base, e só depois, quando for o caso, extrair deles as devidas ilações, o que não ocorreu na situação ajuizada, porquanto a julgadora usou a presunção legal de culpa para dar como não provados os indicados factos respeitantes à dinâmica do acidente, sem sequer convocar e apreciar conjugadamente a prova produzida, fundamentando aquela sua convicção. III – Para além dos factos provados por acordo ou documentos, que pode aditar ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC, o Tribunal da Relação pode proceder ao aditamento de factos instrumentais e concretizadores o abrigo do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), e 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, a contrario quando do processo constem os elementos necessários para o efeito. IV – Estando provado que nenhuma das obrigações que impendiam sobre o condutor do veículo que efetuou a manobra de mudança de direção à esquerda, atravessando, por via dessa manobra, a via destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário, foi cumprida pelo condutor do veículo segurado na Ré Victória, e, ao invés, não se tendo provado factos dos quais se inferisse que a condutora do veículo pertencente à Autora circulava com velocidade excessiva e distraída, nem qualquer outra circunstância, designadamente do estado da via ou do tempo, que pudesse influir no evento danoso, dúvidas não podem existir de que a responsabilidade pela ocorrência do embate se deveu única e exclusivamente à conduta do condutor do veículo segurado naquela Ré, afastando a culpa presumida da condutora do veículo pertencente à autora, sua funcionária. V – O dano decorrente da privação do uso de veículo que na sequência do acidente é considerado “perda total”, ocorre até à data em que receba da seguradora a indemnização correspondente, na medida em que, só nesse momento, é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado. VI – Não obstante, a atribuição de uma compensação deverá ser determinada por juízos de equidade que corresponda, no fundo, ao custo da substituição da viatura que deveria ter sido proporcionada e não foi, mas de igual modo não permita um injusto locupletamento do lesado. VII – Assim, a atribuição da indemnização a título de privação pela perda do veículo, não pode ser superior ao valor da indemnização decorrente da perda total do veículo, sob pena de violação do princípio da equidade. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 43/21.0T8CCH.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:
I – RELATÓRIO 1.B... UNIPESSOAL, LDA., intentou a presente ação contra AA, VICTORIA – SEGUROS, S.A. e CARAVELA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo: i) a condenação solidária dos dois primeiros réus no pagamento da quantia de 9.949,00€, referente ao valor da substituição da viatura sinistrada, acrescido do valor de 13.880,00€, a título de indemnização pela privação do uso do veículo, e demais prejuízos, a serem liquidados em sede de execução de sentença; e caso assim não se entenda, total ou parcialmente, ii) a condenação da 3.ª ré no pagamento da quantia de 6.589,62€, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, por aplicação da apólice contratada pela autora a esta ré, acrescida do valor de 13.880,00€, a título de indemnização pela privação do uso do veículo, e demais prejuízos, a serem liquidados em sede de execução de sentença.
Em fundamento alegou, em síntese, que no dia 20 de abril de 2019, pelas 19.30 horas, na Avenida Luís de Camões, em Coruche, se verificou um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel de matrícula ..-LL-.., pertencente à autora e conduzido por BB, e o veículo automóvel de matrícula ..-LP-.., veículo conduzido pelo 1.º réu e segurado pela 2.ª ré, em consequência do qual sofreu danos patrimoniais no seu veículo e com a imobilização do mesmo.
Mais invocou que os veículos circulavam em sentidos opostos e que veículo segurado pela 2.ª ré, sem que nada o fizesse prever e de forma repentina, invadiu a hemi-faixa de rodagem em que seguia o veículo da autora para realizar uma mudança de direção à esquerda, sem sinalizar a mesma, e sem realizar a perpendicular necessária, o que foi causa direta e necessária do embate.
Por outro lado, aduziu também, que a sua viatura possuía contrato de seguro do ramo automóvel celebrado com a 3.ª Ré, o qual incluía a cobertura de choque, colisão e/ou capotamento, tendo como capital seguro para a referida cobertura contratada choque, colisão e/ou capotamento, o montante de 6.589,62€, com franquia de 131,80€, pelo que, com base na responsabilidade contratual, não pode a 3.ª Ré deixar de ser condenada no pedido formulado.
2. Regulamente citados, todos os RR. contestaram. – O primeiro réu, AA, alegando a sua ilegitimidade processual em virtude de o valor peticionado pela autora ser substancialmente inferior ao valor da cobertura da apólice de seguro do seu veículo. Mais impugnou a dinâmica do acidente bem como o valor dos danos patrimoniais peticionados pela autora; – A segunda ré, Victoria Seguros, S.A., impugnando os danos patrimoniais invocados e a dinâmica do acidente descrito pela autora, alegando que a condutora do veículo desta foi a única culpada na produção do acidente, por circular distraída e em excesso de velocidade. Mais invocou que, ainda que assim não entenda, sempre terá de concluir-se pela repartição de culpa dos dois condutores na produção do embate. – A terceira ré, Caravela – Companhia de Seguros, S.A., alegando que, sendo a responsabilidade do acidente unicamente imputável ao 1.º réu o pedido contra si formulado, por ser subsidiário relativamente aos demais, terá necessariamente de ser julgado improcedente. Mas ainda que assim se não entenda, o contrato de seguro de danos próprios celebrado com a autora não abrange todos os pedidos formulados por esta, nem o mesmo foi acionado. Mais invoca que o valor que a autora recebeu relativamente ao salvado terá de ser considerado no valor a atribuir-lhe, caso o pedido subsidiário venha a ser julgado procedente.
3. Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada procedente a exceção de ilegitimidade invocada, absolvendo-se o réu AA da instância, após o que foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
4. Realizou-se a audiência final, tendo seguidamente sido proferida sentença, em cujo dispositivo se consignou: «julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência: 1. Condena-se a ré Victoria - Seguros, S.A. a pagar à autora B... Unipessoal, Lda., 50% (atenta a culpa repartida calculada) das seguintes quantias: a) € 7.749,00 (sete mil quatrocentos e quarenta e nove euros), a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos no veículo, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data da citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento. b) € 1.340,00 (mil trezentos e quarenta euros), a título de indemnização por danos patrimoniais pela privação do uso do veículo, acrescidos de juros moratórios vencidos e vincendos, desde a data da citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se esta ré do demais peticionado, com custas pelo autor e pela ré na proporção de decaimento, nos termos do disposto no artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, absolvendo-se esta ré do demais peticionado, com custas pelo autor e pela ré na proporção de decaimento, nos termos do disposto no artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil. 2. Absolve-se a ré Caravela – Companhia de Seguros, S.A. das quantias peticionadas pela autora, com custas pela autora nos termos do disposto no artigo 527º, nº 1 e 2 do Código de Processo Civil”.
5. Inconformada, a Autora apresentou o presente recurso de apelação da sentença proferida, finalizando a sua minuta recursória com mais de 100 conclusões, as quais, atenta a sua extensão e prolixidade[3], não se reproduzem, sintetizando-se nas seguintes[4]: «4. Entende, assim, a Recorrente que, os factos vertidos nas alíneas b), c), d), e), f), g) e i) foram incorrectamente considerados como factos não provados e, como tal, deverão ser alterados e considerados provados, alguns com pequenas correcções, de forma a ficarem em consonância com a prova produzida em audiência de julgamento, matéria de facto que se impugna e aqui se concretiza com precisão, por incorrectamente julgada, nos termos e com os fundamentos alegados na motivação deste recurso, onde se especifica os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa relativamente a estes factos e onde se enuncia a decisão alternativa que se propõe (…). 5. Por outro lado, e em relação aos factos provados, o facto descrito sob o ponto 6. foi incorrectamente julgado como facto provado, e como tal, deverá ser alterado e considerado facto não provado, enquanto que os descritos sob os pontos 8 e 10, deverão ser rectificados, alterados e objecto de nova redacção, matéria de facto que se impugna e aqui se concretiza com precisão, por incorrectamente julgada, nos termos e com os fundamentos alegados na motivação deste recurso, onde se especifica os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa relativamente a estes factos e onde se enuncia a decisão alternativa que se propõe (…). 6. Deve ser retificada a matrícula constante da alínea j) dos Factos não provados, por se tratar dum lapso manifesto de escrita, uma vez que o douto Tribunal recorrido pretendia indicar a matrícula da viatura, propriedade da Autora, ou seja, ..-LL-.. e escreveu “..-LP-..”. 8. Mas mais, deveriam ter sido considerados como provados outros mais factos, com relevância para a decisão da causa e a aplicação do direito, em consonância com a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e, os quais, (…), deverão ser aditados. (…) 23. Resulta ainda evidente a errada decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de direito, por vício de violação de lei, errada interpretação e aplicação da lei e errada determinação das normas aplicáveis, (…) o que impõe decisão diversa da ora recorrida, decisão que deve ser proferida por V. Excelências, Venerandos Desembargadores, nos termos em que a ora Recorrente indica, alterando a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de Direito, como segue: 24. Labora, porém, e salvo o devido respeito, em erro o douto tribunal recorrido, dado que, o núcleo factual concernente à dinâmica do acidente não passa apenas pelo captado pelo ponto 5. da matéria provada, ou seja, que o condutor do veículo ..-LP-.. efectuou uma manobra de mudança de direcção para o seu lado esquerdo, sem efectuar a manobra em perpendicular, como também pelo facto deste ter realizado tal manobra cruzando a trajectória do veículo com a matrícula ..-LL-.., invadindo a sua via de trânsito, sem a ter sinalizado e sem se ter certificado da presença de veículos que circulassem em sentido contrário, como era o caso da veículo da ora Recorrente, conduzido por BB. 25. Tais condutas foram, pois, a causa exclusiva do acidente em causa nos presentes autos e do qual resultaram os danos evidenciados nos veículos ..-LP-.. e ..-LL-... 26. Portanto, tais manobras irregulares e perigosas de mudança de direcção à esquerda por parte do condutor do veículo segurado pela 2.ª Ré, que circulava de forma desatenta e descuidada, não se apercebendo da presença do veículo com a matrícula ..-LL-.., permite concluir não só que o acidente em causa se deveu unicamente à participação da conduta ilícita do condutor do veículo segurado pela 2.ª ré, como a verificação do embate ocorreu por responsabilidade e culpa exclusivamente atribuída a este. (…) 46. Consequentemente, o condutor do veículo de matrícula ..-LP-.. não violou apenas o disposto no n.º 1 do artigo 44.º do Código da Estrada, como violou também o disposto no n.º 1 do artigo 35.º o Código da Estrada que determina que “o condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito”. 47. Desde logo porque, não há dúvidas que o condutor do veículo “LP” agiu com culpa, uma vez que executou uma manobra de mudança de direcção para o lado esquerdo sem antes ter esperado pela passagem do veículo propriedade da Autora que transitava em sentido contrário, pela metade direita da respectiva faixa de rodagem, e assim acabou por ser embatido. (…) 52. O condutor do veículo com a ..-LL-.., confrontado com a invasão inopinada da sua via de trânsito, não dispôs de nem de tempo nem de espaço para em segurança imobilizar o veículo, embatendo no veículo com a matrícula ..-LP-.., na sua lateral direita, mais concretamente entre o meio e a dianteira, conforme fotografias a páginas 20 e 21 do Relatório de Averiguação, junto como documento n.º 3 à Contestação da Ré Caravela. (…) 61. Conclui-se de tudo quanto se expôs que, o nexo causal do acidente em causa nos presentes autos, resultou da manobra irregular e perigosa de mudança de direcção à esquerda por parte do condutor do veículo com a matrícula ..-LP-.., que circulava de forma desatenta e descuidada, não se apercebendo da presença do veículo com a matrícula ..-LL-.., provocando o embate. 62. Foi, pois, o condutor do veículo com a matrícula ..-LP-.., único responsável e o causador do acidente em causa nos presentes autos. (…) 67. Assim, in casu, face à ocorrência factual supra descrita, não é de admitir nem de aceitar, sequer, a conclusão vertida na douta sentença recorrida de que a condutora do veículo da autora circulava de forma distraída e contribuiu para a produção do acidente em causa nos autos, porque não teve qualquer responsabilidade. 68. Pelo que, e em consequência, também não se pode aceitar, o entendimento da Mmª Juiz a quo quanto à repartição de responsabilidades e consequente graduação de culpas. 69. Andou mal o douto Tribunal recorrido, primeiro, em concluir que resultou provada a culpa dos dois condutores - quando não é isso que resulta da prova produzida - e, em segundo, que é adequada a proporção de 50% para cada um dos veículos quer na produção do acidente quer na contribuição para a gravidade dos danos verificados. (…) 73. Nestes termos, e a entender-se que deverá haver graduação de culpas – no que não se concede -, é por demais evidente que foi o veículo ..-LP-.. que contribuiu decisivamente para a produção do acidente e para a gravidade dos danos provocados em ambos os veículos envolvidos no acidente, potenciando o risco, pelo que, a ser entendido que deverá proceder-se a uma graduação de culpas, o que não se concede, tal repartição é diversa no que respeita aos riscos de circulação, pelo que, deve ser atribuído à ora Recorrente e ao condutor do veículo com a matrícula ..-LP-.., segurado pela 2.ª Ré, respectivamente, as percentagens de 20% e 80%, devendo ser essa a repartição aqui adoptada, por se reputar como justa e proporcional. 74. Importa refutar, terminantemente, a interpretação do Mmº Juiz a quo no que respeita ao valor atribuído a título de indemnização por danos patrimoniais pela privação do uso do veículo, uma vez que o cálculo feito foi atendendo apenas a 67 dias de privação do uso do veículo, tomando como datas balizadoras, a data do embate e a data em que a 2.ª Ré disponibilizou à Autora o valor da indemnização pela perda do veículo (25/06/2019 e não 25/06/2017, como consta, por lapso de escrita, certamente da douta sentença recorrida e que importa corrigir por se tratar dum erro material). 75. A ora Recorrente não recebeu, até à presente data, o valor devido (sendo este o valor patrimonial da viatura atendendo às suas características, beneficiações e ao custo necessário para comprar uma com iguais características em substituição da viatura sinistrada), correspondente a € 9.949,00 (nove mil novecentos e quarenta e nove euros) - (€ 13.500,00 - € 3.551,00 (valor do salvado já recebido, de € 3.551,00)), a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos no veículo e que teria servido para comprar uma viatura que pudesse substituir a sinistrada e, por conseguinte, há mais de 3 anos. 76. Acrescido do valor de indemnização por danos patrimoniais pela privação do uso do veículo em causa, desde 20.04.2019, data em que se deu o sinistro e que a Autora ficou privada do uso da coisa até à data em que se der o pagamento da indemnização. (…) 78. Com efeito, e uma vez mais, mal andou o Tribunal recorrido ao absolver a 3.ª Ré. 82. Conforme se pode verificar, o pedido de condenação da 3.ª Ré formulado pela ora Recorrente, não é subsidiário. 83. Aliás, decorre do pedido da Autora, de forma inequívoca, que “sempre deverá a 3.ª Ré, em qualquer caso”, ou seja, quer haja procedência total ou parcial dos pedidos formulados contra a 2.ª Ré. É o que está escrito na petição inicial!! 84. Pelo que, neste conspecto, não pode o Tribunal a quo decidir como decidiu, absolvendo a 3.ª Ré, deixando de conhecer dos pedidos formulados pela ora Recorrente contra esta. (…) 88. A responsabilidade civil contratual é de aplicar ao caso sub iudice, devendo a 3.ª Ré ser responsabilizada e, consequentemente, condenada a liquidar à Autora os montantes aqui peticionados na Petição Inicial, nos seus exactos termos. (…) 99. Entendemos que o comportamento da 3.ª Ré, não pagando mas também nunca afirmando à Autora que a respectiva responsabilidade era de imputar totalmente ao condutor do veículo ..-LP-.., representa um comportamento culposo em que fez a situação arrastar-se no tempo deixando a Autora à sua mercê e a ter de procurar e mandatar um advogado para agir contra a 2.ª Ré, por entender, ser única e exclusivamente da responsabilidade deste condutor a ocorrência do embate e dos danos verificados, tendo também sido essa a razão para não accionar os danos próprios – por entender que não deveria aceitar isso e ficar prejudicada, quando é à 2.ª Ré que cabe pagar, na totalidade, a indemnização devida. 100. A partir desta data, a conduta da Ré é merecedora de censura e incompatível com uma conduta de boa fé contratual. (…) 104. Pelo que, deve a 3.ª Ré, em qualquer caso, ser condenada no pagamento à Autora, nos termos peticionados na petição inicial. 105. Devendo em consequência, este Venerando Tribunal, após apreciação da prova gravada e, alterados os factos nos termos supra descritos, revogar a douta decisão recorrida e, substituí-la por outra, que julgue totalmente procedente a acção intentada pela ora Recorrente. 106. Conforme referido nestas alegações de recurso, a douta decisão de recurso efectuou uma errada interpretação dos factos, que impunha decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto dada como provada e também uma errada aplicação do direito, nomeadamente dos artigos 11.º, n.º 2 e 24.º, n.º 1 do Código da Estrada e os artigos 342.º, 483.º, 487.º, 503.º, 506.º, 563.º, 570.º, 762.º, n.º 1 e 798.º, todos do Código Civil.». 6. As Rés apresentaram contra-alegações, analisando circunstanciadamente a prova produzida, e pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
A 3.ª Ré, subsidiariamente, pediu a ampliação do âmbito do recurso, alinhando as seguintes conclusões:
«(…)
pp.Vem a Recorrente tentar invocar que a responsabilidade da Recorrida resulta da existência de tomada de posição diferente entre os serviços de protecção jurídica e os serviços internos de gestão de sinistros da Recorrida. (…)
ss. Pelo que, caso este Tribunal entenda avaliar a questão da existência de posições distintas entre os serviços de protecção jurídica da Recorrida, e os serviços de gestão interna de sinistros, e daí retirar alguma das conclusões alegadas pela Recorrente, o que apenas se aceita por mero dever de bom patrocínio, sempre deverá ter presente o vindo de alegar e a prova transcrita em sede de Alegações, e que determina a alteração da decisão quanto à matéria de facto, com a inserção de um novo facto nos factos considerados como factos provados: “26. os serviços de protecção jurídica da 3.ª Ré, à semelhança dos serviços de protecção jurídica de outras seguradoras, é prestado por entidade externa e independente, não tendo a 3.ª Ré influência na posição assumida pelos mencionados serviços.”
tt. Não obstante a Recorrida entender que não lhe poderá ser assacada qualquer responsabilidade, e que bem andou o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez, sempre se deverá considerar que improcede o alegado pela Recorrente no que respeita à diferente tomada de posição dos serviços de protecção jurídica e dos serviços internos da Recorrida, porquanto, os serviços de protecção jurídica, à semelhança dos serviços de protecção jurídica de outras seguradoras, são prestados por entidade externa e independente, não tendo esta qualquer influência na respectiva tomada de posição.
uu.Não poderia a Recorrida interferir na decisão da protecção jurídica, sendo certo que a comunicação que foi remetida à Recorrente –doc. n.º 25 PI – é clara ao referir que, caso a Recorrente decidisse recorrer à via judicial, obtendo um resultado mais favorável que o proposto pela Primeira Ré, os serviços de protecção jurídica assumiriam o pagamento das quantias comprovadamente despendidas e dentro do limite previsto na Apólice.
vv. Não se percebe também pela factualidade vinda de alegar, o que pretenderia a Recorrente que a Recorrida fizesse, quando não tinha – nem tem – legitimidade para accionar a aqui Primeira Ré, desde logo face ao facto provado de que a Recorrente não accionou a cobertura de danos próprios.
ww. Pelo que, e também por esta via, e sendo deferida a alteração da decisão quanto à matéria de facto, improcede, em absoluto, o Recurso interposto pela Recorrente, no que à Recorrida diz respeito, devendo manter-se a decisão proferida na Sentença recorrida ou, entendendo este Tribunal que se deverá pronunciar quanto ao pedido deduzido contra a Recorrida, absolvê-la de todos os pedidos formulados pela Recorrente, tendo presente os argumentos vindos de invocar».
7. Não houve resposta.
8. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objeto do recurso se delimita pelas conclusões das respetivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, as questões a apreciar consistem em saber se: i) deve ou não ser modificada a matéria de facto dada como provada e não provada nos termos propugnados pela Recorrente; ii) a ocorrência do embate é ou não exclusivamente imputável ao condutor do veículo segurado na segunda Ré; iii) em caso afirmativo, determinar o período de tempo em que se verifica a responsabilidade desta seguradora pela indemnização devida pela privação do uso do veículo; iv) apenas no caso de se concluir pela repartição de culpas[5], apreciar se deve ser modificada a matéria de facto provada, aditando-se o facto sugerido pela terceira ré; e após, v) apurar se, e em que medida, esta 3.ª ré é responsável pelo ressarcimento dos danos peticionados pela autora.
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III – Fundamentos III.1. – De facto Na sentença recorrida foram considerados como provados, os seguintes factos:
«1. A autora é proprietária do veículo ligeiro de mercadorias, marca Mercedes-Benz, de matrícula ..-LL-...
2. O veículo ligeiro de passageiros, marca Volkswagen, modelo Sharan, de matrícula ..-LP-.. pertence a AA, que por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...82 tinha transferida para a 2ª ré a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da sua circulação.
3. No dia 20 de Abril de 2019, cerca das 19.30 horas, BB, trabalhadora da autora, conduzia o veículo da autora, de matrícula ..-LL-.. na Avenida Luís de Camões – E.N. 114, em Coruche, no sentido Coruche - Fajarda.
4. No mesmo dia e hora AA conduzia o veículo ..-LP-.. na mesma via, mas no sentido Fajarda – Coruche, e à frente deste veículo circulava, pelo menos, outra viatura[6].
5. O condutor do veículo ..-LP-.. efectuou uma manobra de mudança de direcção para o seu lado esquerdo, sem efectuar a manobra em perpendicular. 5-A. O condutor do veículo ..-LP-.. não abrandou a marcha antes de iniciar a manobra e não sinalizou a mudança de direção com o sinal intermitente[7]. 5-B. O condutor do veículo ..-LP-.. tomou a decisão rápida de virar à sua esquerda pouco antes do entroncamento de acesso à rua para onde pretendia virar[8],quando a viatura ..-LL-.. transitava na sua faixa de rodagem, no sentido contrário, a distância não concretamente apurada[9]. 6. A condutora do veículo de matrícula ..-LL-.. circulava distraída[10]. 6-A. A condutora do veículo ..-LL-.., não teve tempo de travar antes do embate[11].
7. Tendo ocorrido um embate entre os dois veículos.
8. O embate ocorreu entre a frente lateral direita do veículo de matrícula ..-LL-.. e a lateral direita do veículo ..-LP-.., abrangendo as portas dos ocupantes frontal e traseira, com maior impacto a meio da porta dianteira[12].
9. Estava bom tempo.
10. A estrada configura uma recta, com dois sentidos de trânsito, separada por linha longitudinal, que no local do embate é descontínua para acesso à Travessa das Atafonas, sita do lado esquerdo para quem circula no sentido Fajarda - Coruche. 10-A. Na Estrada Nacional 114 (Avenida Luís de Camões), no sentido Coruche – Fajarda existe semáforo que é acionado por velocidade superior a 50 Km/ hora e por botão manual para peões, caso seja acionado[13]. 10-B. A distância desde o sinal horizontal de paragem, junto ao referido semáforo limitador de velocidade, até ao local da curva a partir do qual se tem visibilidade para a reta onde ocorreu o embate, é de 66 metros[14]. 10-C. E a distância com visibilidade desde a curva até ao ponto fixo inalterável identificado no croquis elaborado pela GNR como PFI 1, é de 126 metros[15].
11. A largura da via de acesso à Travessa das Atafonas é de 6,65 metros.
12. O piso em asfalto encontrava-se limpo e seco e em bom estado de conservação.
13. A velocidade máxima permitida no local era de 50 km/hora.
14. A viatura ..-LL-.. era a única que a autora dispunha para a funcionária BB se deslocar, diariamente, de Turquel (onde se situa o armazém da Autora) para as lojas onde presta as suas funções.
15. A Autora possui lojas em Alcobaça, Turquel, Nazaré, Rio Maior, Porto de Mós, Caldas da Rainha, Cartaxo, Coruche, Almeirim e, à data do sinistro, possuía também em Ovar.
16. Por carta datada de 25/06/2019 a 2ª ré comunicou à autora que atribuía responsabilidade de 50% a cada um dos condutores, e que existia uma situação de perda total por o valor da reparação ser de € 14.089,63, sendo o valor comercial do veículo € 11.300,00, propondo assim o pagamento do montante indemnizatório de € 3.874,50 (três mil oitocentos e setenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), ficando o salvado, no valor de € 3.551,00, atribuído pela empresa AOPT – Serviços e Sistemas Automóvel, Lda., na posse da Autora.
17. Nessa data, a autora já havia procedido à venda do salvado.
18. No dia 22/07/2019, o mediador remeteu para a 3.ª Ré toda a correspondência trocada com a 2.ª Ré, informando que esta havia procedido à divisão da responsabilidade no sinistro e que a Autora não concordava.
19. Terminou solicitando a abertura de processo ao abrigo da cobertura de protecção jurídica para regularização do valor da perda total.
20. A viatura da Autora, com a matrícula ..-LL-.., possuía contrato de seguro do ramo automóvel celebrado com a 3.ª Ré, o qual incluía a cobertura de choque, colisão e/ou capotamento, no âmbito da apólice nº ...22, que, à data dos factos sub iudice, se encontrava válido e em vigor, tendo como capital seguro para a referida cobertura contratada choque, colisão e/ou capotamento, o montante de € 6.589,62 (seis mil quinhentos e oitenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos), com franquia de € 131,80 (cento e trinta e um euros e oitenta cêntimos).
21. A autora não acionou junto da 3ª ré o contrato de seguro referido em 20..
22. No contrato de seguro referido em 20., encontra-se como credor hipotecário a Mercedes Benz Financ. Serv. Portugal IFIC, S.A..
23. O veículo ..-LP-.. virou sobre o seu lado esquerdo e ficou encostado ao sinal vertical de informação.
24. O veículo da autora ficou impossibilitado de circular desde a data do embate.
25. A autora teve necessidade de recorrer a viatura pessoal do sócio-gerente para que a funcionária continuasse a exercer as suas funções». E foram julgados não provados os seguintes factos:
«a) O veículo de matrícula ..-LL-.. circulava a velocidade reduzida e a cerca de 1 metro de distância no momento em que o veículo ..-LP-.. iniciou a viragem. b) O facto de circular pelo menos outra viatura à frente do veículo ..-LP-.., impedia que a condutora do veículo ..-LL-.. avistasse aquela viatura[16]. c) O veículo ..-LP-.. não abrandou a marcha antes de iniciar a manobra e não sinalizou a mudança de direcção com o sinal intermitente[17].
d) O condutor do veículo ..-LP-.. decidiu virar à sua esquerda precisamente no momento em que passava o entroncamento de acesso à rua para onde pretendia virar. e) A condutora do veículo ..-LL-.. não teve tempo de travar antes do embate[18].
f) O embate ocorreu na parte lateral direita dianteira do veículo ..-LP-...
g) O estado de conservação do veículo ..-LL-.. era excelente e tinha beneficiações.
h) Os veículos com as características do veículo ..-LL-.. têm muita procura no mercado.
i) A aquisição de um veículo de substituição do veículo ..-LL-.. custa à autora € 13.500,00.
j) A condutora do veículo ..-LL-..[19] seguia em excesso de velocidade.
k) O condutor do veículo ..-LP-.. 1º Réu procedeu à manobra de mudança de direcção à esquerda depois de verificar que, no seu campo de visão, não circulava qualquer veículo em sentido contrário.
l) O veículo ..-LP-.. foi projectado diversos metros, acabando por capotar» m)A condutora do veículo de matrícula ..-LL-.. circulava distraída[20].
*****
III.2. – O mérito do recurso III.2.1. – Da impugnação da matéria de facto
Conforme decorre das conclusões do presente recurso, a Autora pretende a reapreciação por este Tribunal da Relação da matéria de facto constante das alíneas b), c), d), e), f), g) e i) da matéria de facto julgada como não provada, por entender que tais factos se encontram provados; por outro lado, e em relação aos factos provados, invoca ainda que o facto descrito sob o ponto 6. foi incorretamente julgado como facto provado, e como tal, deverá ser alterado e considerado facto não provado, enquanto que os factos descritos sob os pontos 8 e 10, deverão ser retificados, alterados e objeto da nova redação, que propõe. Mais defende que sejam aditados aos factos provados, dois factos resultantes da prova produzida, que enuncia. Finalmente, pretende que deve ser retificada a matrícula constante da alínea j) dos factos não provados, por se tratar dum lapso manifesto de escrita, uma vez que o Tribunal recorrido pretendia indicar a matrícula da viatura, propriedade da Autora, ou seja, ..-LL-.. e escreveu “..-LP-..”.
Quanto à pretendida retificação da matrícula, assiste integral razão à Apelante.
Trata-se de um evidente lapso de escrita, evidenciado do próprio contexto da sentença, e não de um erro de julgamento, podendo inclusivamente ter sido retificado pela julgadora antes de o recurso subir. Como tal não ocorreu, o mesmo pode ser retificado neste momento.
Assim, sem necessidade de maiores considerações, ao abrigo do disposto nos artigos 249.º do Código Civil, e 614.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, procede-se à retificação do lapso de escrita evidenciado na alínea j) da matéria de facto não provada, passando a constar a matrícula correta do veículo, ..-LL-.., onde constava ..-LP-...
No que concerne à impugnação da matéria de facto provada e não provada, efetuada pela autora, ora Recorrente, cumpre preliminarmente afirmar que a mesma se mostra efetuada com observância dos ónus a respectivo cargo previstos nas três alíneas do n.º 1, e no n.º 2 alínea a) do artigo 640.º do Código de Processo Civil, cumprindo consequentemente verificar se existem ou não razões para modificar e aditar a matéria de facto nos termos pretendidos, salientando ainda que, no caso em apreço, também a segunda Ré, ora Recorrida, deu cumprimento ao previsto na alínea b) do n.º 2 da referida disposição legal, designando os meios de prova que em seu entender infirmam as conclusões da Recorrente; tendo a terceira Ré cumprido igualmente os ónus a seu cargo, no que tange à requerida ampliação da matéria de facto e do âmbito do recurso, na parte que lhe respeita.
Como é sabido, nesta reapreciação da matéria de facto, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo[21].
Ora, a convicção do Tribunal, quer de primeira instância, quer da Relação, não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, designadamente a prova documental, e sendo evidentemente globalmente apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
De facto, «[o] “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto -, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência.
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr.,v.g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01)»[22].
Acresce que, relativamente à reapreciação do julgamento de facto pela Relação cumpre ainda ter presente que a mesma se destina primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento - atento o preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que rege sobre a modificabilidade da decisão de facto -, evidenciados a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, por forma a imporem decisão diversa. Significa esta formulação legal que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha. Por isso que, também na respetiva fundamentação a Relação tem de motivar, ou seja, dizer as razões que determinaram o respetivo juízo probatório, para aquilatar se tais elementos impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados. Para tal, e quanto à prova gravada, não basta ouvir os depoimentos ou declarações, que venham indicados pelas partes, impondo-se nesse juízo atentar ainda naqueles em que o julgador de primeira instância fundou a respectiva convicção, porquanto só assim podemos concluir, com o necessário rigor, se os meios de prova indicados pelo Recorrente impõem decisão diversa ou se apenas permitem decisão diversa.
Vejamos, pois, começando por ter presente a fundamentação expressa na decisão recorrida a respeito dos factos ora impugnados, onde se afirmou:
«Quanto aos factos provados em 5. a 8., o tribunal deu os mesmos como provados atendendo ao depoimento da testemunha AA, condutor do veículo ..-LP-.., que pretendia efectuar uma mudança de direcção à esquerda, o que foi corroborado pelo depoimento das testemunhas CC, que seguia também naquele veículo, e pelas testemunhas DD e EE, que se encontravam no local onde ocorreu o embate, e referiram ter visto este veículo a efectuar mudança de direcção à esquerda. No que diz respeito à não realização da manobra na sua perpendicular o Tribunal, na formação da sua convicção, atendeu ao depoimento da testemunha AA, que admitiu pensar que a via para onde pretendia virar era uma rua estreita, provavelmente de sentido único, razão pela qual se entende que é razoável presumir que a manobra não foi efectuada de forma perpendicular. Mais se atendeu ao depoimento das testemunhas DD e EE, que referiram que a condutora do veículo da autora circulava distraída, nem sequer tendo tentado travar a marcha do seu veículo, tendo mesmo a testemunha EE referido que a condutora do veículo da autora não se encontrava a olhar em frente para a via e que quando se apercebe do outro veículo na sua hemi-faixa de rodagem apenas se agarrou ao volante, sem sequer tentar travar. Já quanto aos danos dos veículos o Tribunal atendeu à análise crítica das fotografias dos veículos que se encontram juntas aos autos.
No que diz respeito aos factos provados em 9. a 13. o Tribunal atendeu à análise crítica do documento nº 1 junto com a petição inicial conjugada com o depoimento da testemunha FF, militar da GNR que se deslocou ao local e confirmou as características do mesmo bem como o estado do tempo, corroborado com o que resultou da deslocação ao local efectuada em sede de audiência de discussão e julgamento». (…)
No que concerne aos factos não provados, os mesmos foram assim considerados por não ter sido feita prova bastante da sua ocorrência.
Quanto aos factos constantes nas alíneas a) a e) e j) a l), relativos à dinâmica do embate, verificou-se que o depoimento das testemunhas BB, AA, CC, DD e EE não foram coincidentes entre si, não tendo sido possível atribuir maior credibilidade a uns do que a outros no que a estes factos diz respeito.
Assim, ficando a dúvida sobre os mesmos, e com base na aplicação das regras do ónus da prova, na medida em que sobre a autora impendia uma presunção de culpa que esta não conseguiu ilidir totalmente, tais factos resultaram como não provados (cfr. artigos 503º, nº 1 e 344º, nº 1 do Código Civil).
Relativamente à velocidade, não foi possível apurar as mesmas por total ausência de vestígios, designadamente de travagens, que pudessem ao tribunal formar convicção sobre a velocidade a que seguiam os veículos, para além da percepção dos intervenientes e das testemunhas presentes, que não passa disso mesmo, uma mera percepção e não uma certeza suportada por factos. No que diz respeito aos factos constantes das alíneas f) a i), os mesmos resultaram como não provados por total ausência de prova que os sustentasse, designadamente documental. De facto, das fotografias juntas aos autos verifica-se que o embate no veículo ..-LP-.. ocorreu após a porta lateral direita, e não na lateral dianteira e a autora não juntou prova documental que suportasse o por si alegado quantos aos factos referidos nas alíneas g) a i), nem as testemunhas demonstraram conhecimento sobre tais factos. Desde logo, da análise do documento nº 29 não é possível aferir em que data o mesmo foi obtido e se os veículos aí apostos têm as mesmas características do veículo em causa nos autos. Ora, sobre a autora recaía o ónus da prova sobre estes factos (artigo 342º, nº 1, do Código Civil), o que não logrou fazer, razão pela qual o tribunal deu tais factos como não provados».
No caso em apreço, porque o enfoque da deduzida impugnação concerne à dinâmica do acidente, faremos a apreciação conjunta da factualidade constante dos pontos da matéria de facto provada e nas alíneas da matéria de facto não provada que a Recorrente impugna, tendo para o efeito auditado os depoimentos das testemunhas AA, condutor do veículo ..-LP-.. (LP), e da sua mulher, CC, que consigo seguia no veículo; de BB, condutora do veículo ..-LP-.. (LP), pertencente à Autora; de DD e EE, que presenciaram o acidente. Relativamente aos documentos juntos aos autos, apreciámos, em concreto: o auto de participação de acidente de viação (fls. 48 a 71v.º), ilustrado com as fotos de fls. 54 e 55v.º quanto ao posicionamento dos veículos, e danos no veículo LP, bem como a foto de fls. 70 v.º quanto ao local da ocorrência, o que permitiu a sua visualização com recurso ao Google Maps; o relatório de averiguação automóvel efetuado pela Realperitos, especialmente as fotos que fazem fls. 84 a 87, ilustrativas dos danos evidenciados por ambos os veículos, e do local em que se encontram em cada um deles, e as juntas de 209 a 211 quanto ao local do acidente; a participação de sinistro à segunda Ré, junta de fls. 160 a 162v..º; o relatório de peritagem elaborado pela SGS, relativo à perda total do veículo LL, junto de fls. 163 a 169; a declaração amigável e participação de sinistro de fls. 207v.º e 208; e o auto da inspeção ao local efetuada após a inquirição das testemunhas, constante da ata de audiência de julgamento do dia 02.05.2022 (à qual acedemos no Citius), no qual se consignou que «o Tribunal deslocou-se ao local do acidente, conforme o já determinado, local onde já se encontravam os militares da GNR ... e guarda ..., que auxiliaram o Tribunal na realização de algumas medições, tendo a Mmª Juiz ditado para a acta o seguinte: - Distância com visibilidade desde a curva até ao ponto fixo inalterável identificado no croqui de fls. elaborado pela GNR como PFI 1: 126 metros. - Distância desde o sinal horizontal de paragem, junto ao semáforo, que se situa no sentido Coruche - Fajarda, até ao local da curva a partir do qual se tem visibilidade para a recta onde ocorreu o embate: 66 metros. - Na Estrada Nacional 114 (Avenida Luís de Camões), no sentido Coruche – Fajarda existe semáforo que é accionado por velocidade superior a 50 Km/ hora e por botão manual para peões, caso seja accionado. - Largura da faixa de rodagem da via perpendicular à Estrada Nacional 114 (Travessa das Atafonas) assinalada no croqui elaborado pela GNR: 6,65 metros. - Largura desde o passeio até ao poste informativo na viragem para a Travessa das Atafonas, assinalado no croqui da GNR como PFI 3: 8,10 metros.».
Assim, os acima indicados depoimentos foram concatenados entre si e com a referida prova documental, com potencial relevo a este respeito, ilustrados pela visualização do local onde ocorreu o embate e suas imediações, com recurso às imagens de satélite disponíveis via “Google Maps”, e precisados pelas medições referidas no auto de inspeção ao local, sendo todos os sobreditos elementos probatórios reapreciados por esta conferência, à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer.
Isto dito, impõe-se previamente à pretendida reapreciação da matéria de facto, consignar que, nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 4, aplicável aos acórdãos, por via da remissão expressa no artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC, atento o teor do auto de inspeção ao local, impõe-se o aditamento à matéria de facto provada, dos factos instrumentais relevantes para o apuramento da materialidade atinente à dinâmica do acidente.
Efetivamente, tanto no figurino atual (artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do CPC), como no modelo processual antes vigente, o juiz tem a possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, e de considerar na decisão, os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa, porquanto, ao contrário do que sucede quanto aos factos essenciais – em relação aos quais funciona o princípio da auto-responsabilidade das partes – relativamente aos factos instrumentais o tribunal não está sujeito à alegação das partes, podendo oficiosamente carreá-los para o processo e sujeitá-los a prova.
Como o Supremo Tribunal de Justiça vem desde há muito afirmando[23], «os factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção».
Consequentemente, tendo a julgadora considerado na decisão da matéria de facto provada, apenas alguns dos factos instrumentais que recolheu na inspeção ao local, e não outros, que esta conferência reputa relevantes para a reapreciação da matéria de facto impugnada, aditam-se ao elenco dos factos provados, os seguintes pontos: 10-A. Na Estrada Nacional 114 (Avenida Luís de Camões), no sentido Coruche – Fajarda existe semáforo que é acionado por velocidade superior a 50 Km/ hora e por botão manual para peões, caso seja acionado. 10-B. A distância desde o sinal horizontal de paragem, junto ao referido semáforo limitador de velocidade, até ao local da curva a partir do qual se tem visibilidade para a reta onde ocorreu o embate, é de 66 metros. 10-C. E a distância com visibilidade desde a curva até ao ponto fixo inalterável identificado no croquis elaborado pela GNR como PFI 1, é de 126 metros.
Atento o aditamento ora efetuado, fica prejudicada a apreciação da modificação que a Apelante pretende ver introduzida ao ponto 10 da matéria de facto provada, uma vez que já fica contemplada na matéria oficiosamente aditada.
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Vejamos agora a pretensão da Recorrente.
Pretende a Recorrente que a matéria da alínea b) dos factos não provados, onde consta que “à frente do veículo ..-LP-.. circulavam outras viaturas, o que impedia que a condutora do veículo ..-LL-.. avistasse aquela viatura” seja considerada provada, invocando que realmente os depoimentos das testemunhas não foram coincidentes entre si no que respeita à dinâmica do acidente, como mencionado pela julgadora, mas o Tribunal a quo, devia naturalmente, e como se lhe impunha, ter dado maior credibilidade ao depoimento das testemunhas BB, AA e CC, intervenientes no acidente de viação em discussão, em face dos depoimentos das testemunhas DD e EE, ditas testemunhas oculares.
Mais invocou que as testemunhas DD e EE, ouvidas quanto a esta matéria e indicadas na fundamentação que levou a dar como não provados estes factos, assim como provados outros, tiveram inclusivamente depoimentos contraditórios entre si, demonstrando falta de isenção, coerência, verdade, credibilidade e até mesmo conhecimento direto sobre tais factos.
A este respeito importa desde já precisar – porque esta precisão vale para os demais factos a reapreciar –, que efetivamente os depoimentos das testemunhas não intervenientes no acidente não são coincidentes em vários aspetos, mas tal não significa que as discrepâncias detetadas signifiquem que ocorra da sua parte falta de isenção ou de verdade. Como é do conhecimento geral, muitas vezes as discrepâncias escalpelizadas em tribunal, mais não são do que a manifestação da diferente perspetiva em que as pessoas se encontram, em caso de um evento dinâmico, ou até dos seus diferentes interesses quanto aos pormenores, que nos aparecem relatados por via dessas formas diferentes de olhar a mesma realidade. Note-se que se trata de pessoas que estavam a conversar na rua, perto do restaurante, e, portanto, a sua atenção ao que se passava na estrada até ao momento em que se deu o evento, não será necessariamente a mesma que devem ter os condutores. Porém, não deixa de notar-se que há algumas discrepâncias notórias, cuja explicação não se compreende. Referimo-nos, por exemplo, ao facto de terem asseverado que o condutor parou, “o Senhor fez tudo dentro da norma…O Senhor estava parado e quando virou, virou na mão dele”, quando nem o próprio nem a mulher o disseram. Mas, se a Recorrente entendia, como agora refere nas alegações de recurso, que tais declarações não mereciam credibilidade, então, aquando da audiência de julgamento, tinha ao seu dispor o meio próprio para as colocar em causa: a contradita. Não o tendo feito, de nada serve agora o que a tal respeito veio expender em alegações de recurso, porquanto nada nos autos permite colocar em causa a sua isenção, sendo que, neste momento o que está em apreciação é saber se os meios de prova por si indicados, conjugadamente apreciados em face das regras da experiência comum, impõem ou não decisão diversa da recorrida. In casu, importa também precisar que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova, nos termos do artigo 414.º do CPC, resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita. Significa isso, que na situação vertente, a dúvida sobre a ocorrência de um facto alegado pela autora, que a favoreça, resolve-se contra si. Porém, tal não se confunde – como a genérica declaração efetuada pela julgadora quanto à respetiva convicção, inculca –, com a existência de uma presunção legal de culpa decorrente da relação de comissão entre a sociedade autora e a condutora do veículo (cfr. artigo 503.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil). Com efeito, as presunções não são um meio de prova, mas a inferência ou processo lógico, mediante o qual, por via de uma regra de experiência, verificado um facto base, se extrai dele a ilação da existência de outro facto, que, em regra, é a consequência necessária daquele. Assim, quando “tal inferência é feita pela própria lei (presunção legal), constitui um elemento desta, e o juiz não tem senão que aplicar, uma vez verificada a existência da base da presunção, isto é, do facto conhecido, de sorte que a presunção não é propriamente um meio de prova, mas a atribuição legal de certa relevância a um facto”[24].
Conforme se sumariou no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.2016[25]:
«I.As presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo antes em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base da presunção) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos), nos termos do artigo 349.º do CC.
II. A presunção centra-se, pois, num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência».
Em suma: primeiro, há que fixar os factos-base, e só depois, quando for o caso, extrair deles as devidas ilações, o que não ocorreu na situação ajuizada, porquanto a julgadora usou a presunção legal de culpa para dar como não provados os indicados factos respeitantes à dinâmica do acidente, sem sequer convocar e apreciar conjugadamente a prova produzida, fundamentando aquela sua convicção, o que importa corrigir na reapreciação a efetuar.
Assim, na reapreciação do facto constante na alínea b) dos factos não provados, importa ter presente o depoimento das testemunhas BB, AA, e CC, respetivamente, condutores dos veículos intervenientes no acidente, e passageira, e ainda de DD.
Começando pela testemunha BB, temos de concordar com a apreciação do seu depoimento que foi efetuada pela Apelante quando refere que “sobre esta matéria, assim como sobre toda a dinâmica do acidente, a testemunha em causa depôs de forma espontânea, escorreita, isenta de contradições e foi inequívoca a afirmar que o veículo com a matrícula ..-LP-.. vinha numa fila de carros, embora não tenha conseguido precisar quantos”. Aliás, quando iniciou o seu depoimento, a respeito da dinâmica do acidente começou por referir que ia na sua faixa de rodagem, e quando se aproximou de um entroncamento, mais propriamente quando já ia a passar no entroncamento, “vinha uma fila de carros” (no sentido de marcha contrário ao seu), “onde me sai um carro, atravessa-se literalmente à minha frente”. Seguidamente, prosseguiu afirmando “que vinha de frente, vinha uma fila, não posso precisar de quantos carros porque sinceramente já não me lembro, mas sei que vinham carros”.
Por seu turno, o condutor do referido veículo, AA, perguntado sobre se seguia algum veículo à sua frente, primeiro respondeu que não sabia dizer, e depois referiu “imediatamente à minha frente não, nós … não estamos a ver isso”. Questionado se o trânsito era intenso primeiro respondeu que “não era intenso”, e depois “não me recordo, sinceramente não me recordo, mas não me recordo de trânsito intenso”. Inquirido sobre se tinha visibilidade ou a que distância ia para o carro que circulava à sua frente, respondeu “Não consigo dizer. Tinha alguma visibilidade (para o?) carro à minha frente, mas não sei”.
Também a sua mulher, CC, questionada a este respeito disse que, imediatamente à frente não, mas depois de algumas hesitações, acabou por referir que “tenho ideia (de?) circular à nossa frente, nessa distância, mas tinha bastante visibilidade”.
Vemos, pois, que ambas as testemunhas acabaram por admitir que havia circulação à frente do seu veículo, ainda que não fosse imediatamente à frente e permitisse que tivessem visibilidade para a faixa contrária. E, se assim era, também a condutora do veículo que seguia em sentido contrário, teria pelo menos alguma visibilidade para este veículo.
É certo que a testemunha DD referiu que não iam outros veículos à frente do LP, mas pelo acima referido, há que dar maior relevância ao que referiram os condutores e ocupante dos veículos envolvidos.
Tudo ponderado, em face dos depoimentos a atender e atento o referido princípio a observar em caso de dúvida, cremos que assiste parcial razão à Apelante, devendo o facto dado como não provado na alínea b), ser parcialmente modificado, alteração que se levará ao lugar próprio da matéria de facto provada e não provada.
Assim, deve passar a constar do elenco dos factos provados que: 4 - No mesmo dia e hora AA conduzia o veículo ..-LP-.. na mesma via, mas no sentido Fajarda – Coruche, e “à frente do veículo ..-LP-.. circulava, pelo menos, outra viatura; Mantendo-se como não provado: - “o que impedia que a condutora do veículo ..-LL-.. avistasse aquela viatura”.
*
Relativamente ao facto descrito sob a alínea c), foi considerado não provado que “o veículo ..-LP-.. não abrandou a marcha antes de iniciar a manobra e não sinalizou a mudança de direção com o sinal intermitente”.
A este respeito a testemunha BB, na sequência do que referiu quanto a virem outros veículos à frente do LP, afirmou que “de trás de um carro me sai outro, pronto, não assinalou marcha, saiu literalmente disparado, pronto, é a expressão que eu posso utilizar é, atravessou-se à minha frente, não fez perpendicular, não fez pisca, não assinalou, pronto, nada, do nada saiu-me um carro que se me atravessou à frente do meu, da carrinha porque é uma carrinha”.
Mais adiante, diretamente questionada sobre se o outro veículo não assinalou a marcha, foi perentória ao responder: “Não, não fez pisca porque eu ia a olhar para a frente, ia descansada no meu… Eu tenho trinta e tal anos de carta e se há pessoa que gasta os 4 piscas quando se aproxima de alguma coisa sou eu, eu sei que o Senhor não assinalou marcha que ele literalmente atravessou-se à frente”.
E também sobre o facto de o condutor do LP não ter parado ou abrandado a marcha, a testemunha referiu “Não, eles vinham a andar normal, não sei se era devagar, se era depressa, sinceramente esses pormenores eu não consigo precisar, (…). Aquilo que eu posso dizer é que ele do nada e tenho a certeza que ele foi do nada, porque ele nem sequer deve ter travado porque não deu, dava para perceber que o carro estava a afrouxar e quando vamos de frente quem conduz dá para perceber se um carro afrouxa ou não e ele saiu disparado de trás do outro e tenho a certeza que não assinalou marcha porque dava para perceber pelo pisca, certo? E não vi pisca nenhum”.
Inquirida ainda se, ao invés de reduzir a velocidade e se encostar ao eixo da via, o condutor do LP avançou (pressupõe-se, pois que há palavras inaudíveis nos vários depoimentos, que tentamos depreender do contexto), a testemunha respondeu: “Exatamente. Em (vez de) parar à espera que eu passasse, ele atravessou-se”.
Ora, a este respeito, as declarações desta testemunha são corroboradas pelo depoimento do condutor do LP, o qual, quando questionado: “o Senhor encostou-se ao eixo da via, sinalizou a manobra, reduziu a velocidade, parou para verificar se vinha algum carro?”, respondeu: “Não parei. Não parei.” Perguntado depois: “Mas reduziu a velocidade, encostou-se ao eixo da via ou fez a manobra repentina?”, respondeu: “Eu ia muito devagar, eu ia muito devagar”. Inquirido diretamente sobre se “assinalou a mudança de direção, não, fez o pisca?”, retorquiu “Não me recordo se fiz o pisca”, o que corroborou quando o ilustre mandatário tentou recapitular o seu depoimento, e quando mais adiante foi novamente questionado a este respeito pelo tribunal.
Seguidamente, a Senhora Juíza questionou: “O Senhor faz uma decisão rápida de virar à esquerda porque vê um café?”, tendo a testemunha respondido que “Sim”. Depois de ter tentado precisar como se processou a manobra, sem grande êxito, pois que a testemunha várias vezes referia “não tenho a certeza”, “não me recordo”, acaba por referir “alguns segundos”, ao que a julgadora pergunta: “E então quando decide virar o que é que o Senhor faz? Explique lá, tudo o que fez antes de virar…”, acaba por referir que a “estrada em paralelo, não tenho a certeza, mas que há ali uma zona onde é paralelo (impercetível), mas tenho ideia de reduzir a velocidade e virar, acho que não fiz assim mais nada”.
Também a testemunha CC, perguntada sobre se o marido sinalizou a mudança de direção, respondeu “Eu confesso que a esta distância, já foi há muito tempo, eu não consigo jurar que o meu marido fez o sinal (impercetível), mas por hábito ele costuma sinalizar, portanto, eu à partida acho que (impercetível)”. Novamente instada “mas eu pergunto-lhe neste dia, não é o que é normal, eu pergunto-lhe se ele o fez neste dia, nestas circunstâncias?”, respondeu: “isso eu não me recordo. Não me recordo”, e ainda mais adiante referiu “não posso precisar que ele tenha sinalizado, … e em termos de sinalizar eu não vou jurar”.
Por seu turno, a testemunha GG, quando questionada a este respeito, depois de primeiro ter dito que não reparou, mas provavelmente tinha, acabou por dizer “não vi se tinha pisca ou se não”.
A testemunha DD foi o único a responder que o Senhor estava a fazer o pisca, e que já tinha estado parado para que passassem outros carros.
Como é bom de ver, esta versão não pode ser valorada mais do que o depoimento do próprio condutor! Ora, este quando começa a prestar o seu depoimento, sintetiza o evento dizendo que “vimos um café e queríamos virar para estacionar e parar nesse café, e ao virar à esquerda deu-se o embate”, justificando pouco mais adiante quando perguntado sobre se não avistou a viatura em sentido contrário, que “eu no momento em que vi a viatura já estava a virar à esquerda e já não conseguia não virar”.
Tudo conjugado, ponderando a espontaneidade e precisão do depoimento da condutora do veículo LP, com as hesitações e falta de certeza, a invocação do tempo decorrido, por parte do condutor do veículo LL e passageira, e respigando a parte do depoimento deste em que quando perguntado se abrandou referiu apenas que ia muito devagar, inculcando que não tinha necessidade de abrandar, mas, depois, descrevendo a manobra à julgadora, dizendo que “tinha ideia de reduzir a velocidade e virar, acho que não fiz assim mais nada”, cremos que também quanto a este facto se impõe a sua modificação, neste caso, total.
Assim, elimina-se do elenco dos factos não provados o facto constante na alínea c), aditando-se ao elenco dos factos provados, um novo facto com o seguinte teor: 5-A – O condutor do veículo ..-LP-.. não abrandou a marcha antes de iniciar a manobra e não sinalizou a mudança de direção com o sinal intermitente.
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Relativamente ao facto descrito sob a alínea d), foi considerado não provado que “o condutor do veículo ..-LP-.. decidiu virar à sua esquerda precisamente no momento em que passava o entroncamento de acesso à rua para onde pretendia virar”.
O depoimento da testemunha BB a este respeito já consta transcrito acima. Parte do que referiu o condutor do veículo LP também. Mas há mais no seu depoimento a este respeito. Para além de ter admitido que fez uma decisão rápida de virar quando avistou o café, perguntado pela Senhora Juíza “a que distância antes de virar é que vê o café? Foi logo no imediato? Passou 1, 2 metros?, depois de referir que era difícil, respondeu que porque o café é muito saliente vê-se um pouco antes… “Não sei, alguns segundos, não sei”.
Ora, a este respeito, existem outros elementos probatórios que devem ser convocados. É que está provado que o mesmo não fez a perpendicular devida, tendo inclusivamente a testemunha BB referido no seu depoimento que o condutor do LP não ia a entrar para o dito parque pelo lado que devia, e que teria batido se viesse outro veículo a sair daquele local, porque ali há dois sentidos de trânsito, e este admitido que a rua era estreita e pensava que era de sentido único.
Deste modo, tudo conjugado e tendo presente a forma como o próprio condutor descreve a sua decisão (rápida) de virar à esquerda, e o disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC[26], impõe-se igualmente a modificação da matéria de facto a este respeito, mantendo-se não provada a matéria de facto que consta na alínea d), mas passando a integrar a matéria de facto provada, em termos explicativos, que: “5-B. O condutor do veículo ..-LP-.. tomou a decisão rápida de virar à sua esquerda pouco antes do entroncamento de acesso à rua para onde pretendia virar”; Mantendo-se como não provado que essa manobra foi realizada “precisamente no momento em que passava o entroncamento de acesso à rua para onde pretendia virar”.
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Relativamente ao facto descrito sob a alínea e), foi considerado não provado que “a condutora do veículo ..-LL-.. não teve tempo de travar antes do embate”, pretendendo a Apelante que o mesmo seja julgado provado.
Ora, que a condutora do veículo LL não travou, foi por si assumido no seu depoimento, designadamente quando afirmou que “não, eu à velocidade que ia foi à que bati, tanto que eu ia devagar, como já referi, o airbag não abriu, …. não deu para fazer nada, pronto, eu a única coisa que sei é, de repente eu vi um carro vir direito a mim, atravessar-se à frente”.
O facto de a condutora não ter travado foi igualmente corroborado pelas testemunhas DD e EE, que referiram ter visto a reação da Senhora de se agarrar ao volante quando se apercebeu que ia bater, e não ter qualquer outra reação.
Resta, em bom rigor, saber se existe base factual para que se considere provado que a condutora do veículo “não teve tempo” de travar. Trata-se de ilação que o tribunal devia poder extrair (ou não) de outros factos. Acontece que, a matéria de facto respeitante à dinâmica do acidente está de tal modo circunscrita, que se bem virmos, e tal como vem fixada quanto aos factos provados e não provados, é difícil compreender como é que o mesmo ocorreu, atentos os factos objetivos provados, de que no dia em que o evento ocorreu estava bom tempo, o piso encontrava-se limpo e seco e em bom estado de conservação, e a estrada configura uma reta. E mais se torna escassa, quando da factualidade instrumental que constava no auto de inspeção ao local, e aditámos ao elenco de factos provados (factos provados 10-A a C), verificamos que o condutor do veículo LP tinha uma visibilidade de 126 metros, até à curva a partir da qual é possível visualizar o trânsito no sentido de onde provinha o veículo LL. Ponderando ainda os demais factos instrumentais, acima transcritos e aditados, releva ainda considerar que a 66 metros antes dessa curva (no sentido de marcha da condutora), existe um sinal vertical de controlo de velocidade acima de 50km/hora, tendo a condutora referido que o mesmo não acendeu porque circulava a velocidade inferior. Ainda que não se considerasse esta sua declaração, a verdade é que foi dado como não provado que a Autora circulava com “velocidade excessiva” (o que é igualmente conclusivo e tem de ser entendido in casu como não se demonstrando que circulava a velocidade superior à permitida no local, de 50km/h, tanto mais que o airbag do seu veículo não disparou e os danos apresentados não aparentam ser compatíveis com uma velocidade muito superior). Por outro lado, temos a descrição do condutor e sua mulher quanto à manobra de mudança de direção e a não terem visto o veículo tripulado pela Autora. E cremos que destas declarações conjugadas nos é possível extrair a ilação de que a condutora não teve tempo de travar. Com efeito, como já resulta de excertos das suas declarações acima transcritas, o condutor disse ter tomado a decisão rápida de virar, quando avistaram o café porque queriam parar. Depois de muitas hesitações e insistências, primeiro dizendo que não tinha visto porque não ia virar no carro com a família, se isso tivesse ocorrido, acaba por referir que viu o veículo conduzido pela autora a circular em sentido contrário, e cremos que o depoimento da sua mulher, que também admite ter visto o veículo pertencente à Autora, dá a resposta: pensou que tinha tempo de passar. Assim, se tudo conjugarmos e tivermos ainda presente que o condutor volta a referir que quando vê (novamente, depreende-se) o veículo LL já não tem tempo para parar a manobra que já estava a fazer, e que o evento é dinâmico, cremos ser possível concluir que, não tendo o mesmo sinalizado a manobra, não reduzindo a velocidade, fazendo-a em contínuo, sem sequer desenhar a perpendicular, que a condutora do veículo que seguia na sua linha de marcha, em sentido contrário, não teve tempo de travar, tanto mais que nem sequer podia ter antecipado a realização da manobra efetuada, que o condutor do LP decidiu efetuar. Efetivamente, tendo sido dado como não provado que tal manobra foi iniciada quando o veículo LL circulava a cerca de um metro do LP, não foi considerada qualquer outra distância na materialidade provada, tal não significa que o espaço existente entre um veículo e o outro fosse de molde a dar tempo à condutora para reagir.
Consequentemente, deve ser eliminada esta alínea da matéria de facto não provada, e deverá ser aditada ao elenco dos factos provados.
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Relativamente ao facto descrito sob a alínea f), foi considerado não provado que “o embate ocorreu na parte lateral direita dianteira do veículo com a matrícula ..-LP-..”, pretendendo a Apelante que tal materialidade passe a integrar o elenco dos factos provados, tal como resulta da prova documental produzida, não descortinando a razão pela qual o tribunal a quo julgou tal facto como não provado.
Afirmou a julgadora que tal ocorreu “por total ausência de prova que os sustentasse, designadamente documental. De facto, das fotografias juntas aos autos verifica-se que o embate no veículo ..-LP-.. ocorreu após a porta lateral direita, e não na lateral dianteira”.
Assim, deu como provado o que consta no ponto 8, ou seja, que “o embate ocorreu entre a frente do veículo de matrícula ..-LL-.. e a lateral direita do veículo ..-LP-..”.
Este facto vem também impugnado pela Apelante, que impetra a sua modificação, pelo que se apreciará conjuntamente a pretensão.
Com efeito, não sendo indiferente, antes pelo contrário, a concretização do local onde o embate ocorreu, pois que tal facto, conjugado com os demais, importará na apreciação da conduta dos condutores e designadamente na sua possibilidade (ou não) de evitar o embate, assiste razão à Apelante na precisão que pretende ver efetuada a este respeito (ainda que com formulação diversa da que propõe).
Efetivamente, no caso, para além de ter sido referido pelas testemunhas que o embate ocorreu na lateral direita do veículo LP, como já se encontra provado, e sendo verdade que o embate mostra-se assinalado dessa forma na participação amigável de acidente, junta pela Ré Caravela como documento n.º 2 com a sua contestação, também é certo que assim decorre evidenciado pelas fotografias juntas aos autos (páginas 18 a 23 do relatório do sinistro elaborado pela Realperitos, junto pela referida Ré como Doc. n.º 3), as quais, por um lado, comprovam que o embate não ocorreu na parte lateral direita dianteira do veículo (donde não se impõe a alteração do facto dado como não provado), mas, por outro lado, evidenciam que não basta a menção à lateral direita do mesmo, tal como consta provado. Na verdade, apesar de serem visíveis outros danos no veículo ..-LP-.., os decorrentes do embate encontram-se evidenciados na sua parte lateral direita, como está provado, mas ao centro do veículo, ou seja, e mais concretamente, a partir do espelho lateral do lado do “pendura”, abrangendo as portas desse ocupante e a traseira, mas com incidência mais acentuada a meio da porta dianteira, compatível com o desenho que se mostra elaborado na referida declaração amigável e no croquis do acidente, elaborado pela Guarda Nacional Republicana e junto com a petição inicial. Por seu turno, as fotos do veículo pertencente à Autora, que se mostram juntas como documento n.º 3, com a petição inicial (e não foram impugnadas), igualmente permitem concretizar que o embate ocorreu na frente lateral direita do veículo LL, o que releva considerar, pois que não se mostra igualmente embatida toda a sua parte frontal.
Pelo exposto, não se justifica a alteração do facto não provado em f), mas sim, ao abrigo do já referido artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, impõe-se a concretização do facto provado em 8., aditando-se nos seguintes termos: 8. O embate ocorreu entre a frente lateral direita do veículo de matrícula ..-LL-.. e a lateral direita do veículo ..-LP-.., abrangendo as portas dos ocupantes frontal e traseira, com maior impacto a meio da porta dianteira”.
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No tocante aos factos descritos sob as alíneas g) e i), foi considerado não provado que: “g) O estado de conservação do veículo ..-LL-.. era excelente e tinha beneficiações”; “i) a aquisição de um veículo de substituição do veículo ..-LL-.. custa à autora € 13.500,00.”
A primeira instância considerou que ocorreu uma “total ausência de prova que os sustentasse, designadamente documental”, e quanto a estes dois factos, em concreto, entendeu que “nem as testemunhas demonstraram conhecimento sobre tais factos. Desde logo, da análise do documento nº 29 não é possível aferir em que data o mesmo foi obtido e se os veículos aí apostos têm as mesmas características do veículo em causa nos autos”. Dissente a Apelante, discorrendo sobre a diferença entre o valor venal e o valor de substituição, sublinhando que este veículo tinha aposta publicidade à autora, que esta custeou, considerando que tal facto se encontra provado pelas declarações de parte do seu legal representante, que não foram contraditadas nem infirmadas por qualquer outra testemunha ou documento, pelas fotos juntas pela Ré Caravela que atestam o estado conservação excelente e a publicidade às lojas, e ainda pelo facto de o documento n.º 29, pesquisa efetuada no Standvirtual, não ter sido impugnado por qualquer uma das RR., impondo-se que seja reconhecido o valor ali indicado como sendo o valor comercial e de substituição da viatura, com as mesmas características do veículo em causa nos autos.
Vejamos.
Nas suas declarações de parte (que auditámos para este segmento da impugnação), o legal representante da autora, referindo-se ao veículo sinistrado afirmou que “era um carro que nós tínhamos consideração, com caixa automática, com GPS, naquela altura eram mais valias, além de ter um motor que hoje já nem existe nessas carrinhas, um motor bastante bom e potente”. As fotos do veículo, juntas como documento n.º 1, com a contestação da Ré Caravela, evidenciam o bom estado de conservação exterior do mesmo, e a publicidade nele aposta às lojas da Autora.
Por seu turno, da correspondência trocada entre as partes, profusamente reproduzida na petição inicial, resulta que logo aquando da comunicação da perda total –que a 2.ª Ré comunicou à Autora por carta datada de 02.05.2019 (junta como doc. 8 com a p.i.) –, foi referido que o valor estimado da reparação era de 14.089,63€, sendo o valor comercial do veículo, à data, de 11.300,00€, não havendo notícia de que a Autora tenha contraposto a este valor indicado como sendo o valor comercial do veículo, qualquer outro. Ao invés, da correspondência trocada evidencia-se que a divergência sempre esteve na imputação a ambos os condutores da responsabilidade pela ocorrência do sinistro.
Mas, mais do que isso, o dito documento 29, não só não foi aceite, como pretende a Autora, uma vez que o valor de indemnização proposto foi impugnado, como não impõe decisão diversa da recorrida. Efetivamente, trata-se de uma impressão extraída do sítio do Standvirtual, com a pesquisa por Mercedes-Benz Vito, do ano de 2011, tendo dois resultados: o que a Apelante convoca, de 16.500€, sendo esse veículo com o motor de 135cv, e um outro, de veículo com motor de 110cv e preço anunciado de 9.650€. Nem precisamos de ir ver quais as concretas características da viatura em questão, uma vez que, estamos perante anúncios, que obviamente não significam que os veículos anunciados sejam vendidos pelo valor indicado, tanto mais quando abaixo do mesmo se apresenta visível, a palavra “negociável”. E como, por si só, uma aparência de boa conservação e a existência de publicidade no veículo não são de molde a alterar o seu valor comercial, não impondo decisão diversa da recorrida, nada cumpre alterar a este respeito.
Pelo exposto, mantém-se intocada a matéria de facto julgada não provada nas indicadas alíneas g) e i).
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Pretende ainda a Apelante que o facto provado sob o n.º 6, deve ser considerado não provado, com a mesma redação: “A condutora do veículo de matrícula ..-LL-.. circulava distraída”.
Estamos novamente perante ilação que deveria extrair-se (ou não) do demais acervo factual. A verdade é que resulta da alegação da Ré Vitória na sua contestação, que imputou a responsabilidade que assaca à condutora do veículo pertencente à Autora, de forma conclusiva, já que apenas referiu que a mesma circulava distraída e em excesso de velocidade. Tendo sido julgado não provado este segmento da alegação, como já referido, foi julgado provado que a condutora circulava distraída.
Assumindo tal natureza, aquelas alegações, por si só, não devem merecer a “resposta” de provado ou não provado, pois que o Tribunal só assim deve pronunciar-se sobre factualidade concreta que tenha sido alegada, não podendo o seu julgamento de facto incidir sobre conclusões, considerações jurídicas, ou expressões cuja verificação devia depender da prova dos factos que a eles estariam subjacentes, ou seja, e em concreto, que permitissem concluir que a condutora seguia sem atenção à condução que efetuava.
Sem embargo, como a distração, na linguagem rodoviária, coincide parcialmente com um dos seus sentidos possíveis na linguagem corrente, de desatenção, desconcentração, ou alheamento da ação que está em curso, tendo a primeira instância julgado provado tal facto, atendendo ao depoimento das testemunhas DD e EE, que referiram que a condutora do veículo da autora circulava distraída, nem sequer tendo tentado travar a marcha do seu veículo, tendo mesmo a testemunha EE referido que a condutora do veículo da autora não se encontrava a olhar em frente para a via e que quando se apercebeu do outro veículo na sua hemi-faixa de rodagem apenas se agarrou ao volante, sem sequer tentar travar, a verdade é que, cremos que a demais prova produzida a respeito da dinâmica do acidente, não consente que se retire tal conclusão, sendo que, a dúvida sobre a realidade de um facto se resolve contra a parte a quem o mesmo aproveita, no caso, a dita seguradora.
Com efeito, para além do que já referimos aquando da decisão respeitante à impugnada alínea e), tendo presente as características da via, o facto de o condutor do veículo LP e também a sua mulher, terem confirmado que a mudança de direção à esquerda foi efetuada apesar de terem visto que o veículo LL circulava em sentido contrário – o que, aliás, nem podia deixar de ser atento o traçado da via e a distância a que seria visível, que não seria transponível nos segundos (na expressão do condutor) que mediaram entre a visualização do café, a tomada de decisão de ali parar, e a execução imediata da manobra, sem a assinalar, nem abrandar a velocidade (ainda que reduzida) a que circulava, sendo muito mais verosímil, apreciado de acordo com as regras da experiência comum, e do normal acontecer, a descrição do evento que foi efetuada pela condutora, mormente quando referiu, e repetiu, que o condutor “saiu literalmente disparado, pronto, é a expressão que eu posso utilizar é, atravessou-se à minha frente, não fez perpendicular, não fez pisca, não assinalou, pronto, nada, do nada saiu-me um carro que se me atravessou à frente do meu, da carrinha porque é uma carrinha”.
Perante este quadro, ainda que a condutora do veículo LL tivesse momentaneamente olhado para quem se encontrava no passeio, tal não significa que viesse a conduzir distraída, e por isso não tivesse travado, já que, pode significar exatamente o contrário, ou seja, que estava atenta aos peões que se encontravam próximo da estrada e, seguindo na sua mão de trânsito, numa via que estava livre à sua frente, tivesse como antecipar que um dos veículos que vinha em sentido contrário efetuasse inopinadamente a manobra já descrita, atravessando a sua linha de marcha, sem aguardar que a mesma passasse.
Consequentemente, não apenas por ser conclusivo, mas porque mesmo admitindo que encerra teor factual, se impõe decisão diversa da recorrida, deve ser eliminado este número 6 da matéria de facto provada, e deverá ser aditada ao elenco dos factos não provados nova alínea m), com o mesmo teor.
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Pretende ainda a Apelante que em face da prova produzida e o facto da testemunha AA ter confirmado que efetuou a mudança de direção à esquerda sem se certificar da presença de veículos que circulavam em sentido contrário, e por outro lado, ter confirmado que efetuou tal manobra no momento em que a viatura conduzida por BB se aproximou, corroborado pelo depoimento da testemunha DD, impõe-se, aditar os seguintes factos aos factos provados:
“26. O condutor do veículo ..-LP-.. virou à sua esquerda precisamente no momento em que a viatura ..-LL-.. transitava na sua faixa de rodagem, no sentido contrário”.
“27. O condutor do veículo ..-LP-.. efectuou a manobra de mudança de direcção à esquerda sem se certificar da presença de veículos que circulassem no sentido contrário.”
“28. O condutor do veículo ..-LP-.., por falta de cuidado e distracção, invadiu a faixa de rodagem onde circulava a viatura ..-LL-.., que não dispôs de tempo e espaço para imobilizar o veículo.”
Encurtando razões quanto ao aditamento proposto como ponto 26., pois que já se mostram acima referidas a respeito de outros pontos de facto, tendo a primeira instância dado como não provado que, como a Autora alegara, o veículo LL estaria a cerca de 1 metro de distância no momento em que o veículo LP iniciou a viragem, não deu como provada qualquer distância nem esclareceu factualmente como ocorreu a interseção entre a linha de marcha de ambos os veículos. Ora, a verdade é que da conjugação dos depoimentos, (inclusivamente do depoimento prestado pelo próprio condutor do LP) decorre da instrução da causa que, quando ele estava a fazer a manobra viu o veículo LL, num momento em que já não podia deixar de a concluir, ou seja, quando se encontrava já a atravessar a faixa por onde circulava o outro veículo, o qual também já sabemos que tinha sido visível antes. Portanto, ao abrigo do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea b) e 662.º, n.º 2, alínea c) a contrario, porque tal resulta da instrução da causa e os autos contêm todos os elementos para o efeito, na parcial procedência da pretensão da Apelante, adita-se à matéria de facto provada, no local que se nos afigura ser o lógico, que no caso é no seguimento do que já consta aditado, no ponto 5-B, o seguinte: … quando a viatura ..-LL-.. transitava na sua faixa de rodagem, no sentido contrário, a distância não concretamente apurada.
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Relativamente à demais matéria indicada como novos pontos 27 e 28, sem necessidade de grandes considerações, depois do que acima já referimos a respeito da alegação de factos e não de considerações ou conclusões a extrair daqueles, o que a Apelante pretende ver aditado não é factual mas sim conclusivo.
Como acima já se aflorou, saber se um condutor tripula o veículo com falta de cuidado e distração, sem se certificar do trânsito que circula na via, ou se não dispôs de tempo e espaço para imobilizar o veículo, são inferências que o julgador tem que retirar da matéria de facto que descreve o acidente. Por isso que se tenha procedido às concretizações acima efetuadas, desde sempre incluídas na matéria de facto, quando relevantes, por via das denominadas respostas explicativas, e que, como também já referido, atualmente são consentidas pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, que permite possam inclusivamente ser considerados pelo juiz quaisquer factos essenciais que resultem da discussão da causa, desde que aqueles se integrem no objeto do litígio.
Consequentemente, sendo conclusivo o teor do proposto aditamento, indefere-se o mesmo, ficando, pois, a matéria de facto, provada e não provada, estabilizada nos termos acima mencionados e salientados no local próprio das modificações introduzidas.
Cumpre, assim, passar à apreciação do direito aplicável.
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III.2.2. Responsabilidade civil
Em face do disposto no artigo 483.º do Código Civil[27] “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Acresce que, nos termos genéricos do artigo 342.º do CC, também afirmados a propósito da matéria referente à responsabilidade civil, no artigo 487.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, ao autor (lesado) incumbe a prova dos factos constitutivos do direito invocado, no caso, “a culpa do autor da lesão”, apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso - n.º 2 do citado artigo 487.º - incumbindo, ao invés, à ré a prova de que o acidente ocorreu por culpa do lesado.
Efetivamente, a responsabilidade extracontratual é uma responsabilidade pessoal, e não objetiva pela circulação de veículos ou de outras coisas e é sobre a pessoa responsável que recai o dever de indemnizar, daí que o seguro de responsabilidade civil por acidente de viação seja sempre pessoal, apesar de destinado ao uso de um certo e determinado veículo ou à sua direção efetiva, razão pela qual assenta na atuação ilícita ou com risco do respetivo condutor.
Conforme decorre do relatório supra, na presente ação a Autora alegou factos tendentes a demonstrar a culpa efetiva e exclusiva do condutor do veículo segurado na ré Victoria, na produção do acidente, pressuposto da respetiva obrigação de indemnizar integralmente os danos decorrentes do mesmo.
Por seu turno, a Ré Victoria, invocou que a responsabilidade pela ocorrência do acidente era também imputável à conduta da condutora do veículo pertencente à autora, tendo a decisão recorrida considerado que o acidente se havia devido igualmente à conduta de ambos os condutores, atribuindo a cada um deles 50% da responsabilidade pelo evento danoso, e consequentemente restringindo a obrigação de indemnizar que impende sobre a seguradora do veículo terceiro, a metade do valor dos danos que computou.
Insurge-se a Apelante contra tal repartição de culpas, defendendo que a culpa pela ocorrência do acidente é exclusivamente imputável à atuação do condutor do veículo segurado naquela Ré.
Tendo presente a matéria de facto provada e não provada, que se mostra agora estabilizada na sequência da impugnação da que vinha fixada da primeira instância, e que modificou a matéria atinente à dinâmica do acidente, do acima exposto aquando da decisão proferida, já pode depreender-se que tal alteração se refletirá na questão de direito.
Efetivamente, estando demonstrado que a autora é proprietária do veículo ligeiro de mercadorias, marca Mercedes-Benz, de matrícula ..-LL-.., e que aquando do acidente ora em apreciação o mesmo era conduzido por BB, trabalhadora da autora, funciona a presunção de culpa decorrente dos n.ºs e 1 e 3 do artigo 503.º do CC.
Porém, estabelece o indicado n.º 3 do preceito que a presunção ali plasmada é afastada se aquele que conduzia o veículo demonstrar que não houve culpa da sua parte. Ora, a própria Autora logo alegou na petição inicial que o seu veículo era conduzido por aquela sua funcionária, que no exercício dessa condução, cumpriu com as prescrições estradais, tendo sido o condutor do veículo segurado na Recorrida Victoria quem levou a cabo manobra violadora das regras estradais e única causa do acidente.
Em face da matéria de facto plasmada na sequência da impugnação deduzida pela Apelante, cremos que se mostra afastada a culpa presumida, face à demonstrada culpa efetiva e exclusiva do condutor do veículo segurado nesta Ré, na ocorrência do embate.
Com efeito, mostra-se provado, por um lado, que no dia 20 de abril de 2019, cerca das 19.30 horas, BB, trabalhadora da autora, conduzia o veículo da autora, de matrícula ..-LL-.. na Avenida Luís de Camões – E.N. 114, em Coruche, no sentido Coruche – Fajarda, num local onde a velocidade permitida é de 50km/hora, não se tendo demonstrado que a mesma tivesse excedido esta velocidade ou que circulasse sem atenção.
Por outro lado, provou-se que nesse mesmo mesmo dia e hora AA conduzia o veículo ..-LP-.. na mesma via, mas no sentido contrário, circulando à sua frente, pelo menos, outra viatura. Ocorre que, o referido condutor tomou a decisão rápida de virar à sua esquerda pouco antes do entroncamento de acesso à rua para onde pretendia virar, sem abrandar a marcha antes de a iniciar, sem sinalizar a mudança de direção e sem efetuar a manobra em perpendicular, isto quando a viatura ..-LL-.. transitava na sua faixa de rodagem, no sentido contrário, a distância não concretamente apurada, mas que não possibilitou que a condutora do veículo ..-LL-.., tivesse tempo de travar antes do embate. Mais se provou que o embate ocorreu entre a frente lateral direita do veículo de matrícula ..-LL-.. e a lateral direita do veículo ..-LP-.., abrangendo as portas dos ocupantes frontal e traseira, com maior impacto a meio da porta dianteira, significando, também que quando a manobra foi iniciada o veículo LL vinha necessariamente muito perto, tanto assim que não só o condutor do LL não teve tempo de terminar a manobra, como a condutora do LP não teve sequer tempo de travar antes do embate.
Ora, estando igualmente demonstrado que estava bom tempo, a estrada no local configura uma recta, com dois sentidos de trânsito, que a distância com visibilidade desde a curva existente no sentido de onde provinha a condutora até ao local onde ocorreu o embate é superior a 100 metros, e que o piso encontrava-se limpo e seco e em bom estado de conservação, outra conclusão não se pode retirar que não seja a de que o acidente ficou a dever-se única e exclusivamente à manobra realizada pelo condutor do veículo LL, sem se certificar de que podia atravessar a via onde circulava outro veículo, com a necessária segurança.
Com efeito, de acordo com a regra geral, constante do artigo 29.º, n.º 1, do Código da Estrada[28], o condutor sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha, se necessário parar, ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direção deste.
Por seu turno, do disposto no artigo 35.º, n.º 1, do CE decorre que «o condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito», explicitando o artigo 44.º, n.º 1, a respeito da mudança de direção para a esquerda que o condutor que pretenda efetuar esta manobra «deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afeta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efetuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação», acrescentando o n.º 2, que «se tanto na via que vai abandonar como naquela em que vai entrar o trânsito se processa nos dois sentidos, o condutor deve efetuar a manobra de modo a dar a esquerda ao centro de intersecção das duas vias» (sublinhámos).
Ora, basta cotejar a matéria de facto dada como provada com os comandos decorrentes do Código da Estrada para concluirmos que nenhuma das obrigações que sobre si impendiam para mudar de direção à esquerda, atravessando, por via dessa manobra, a via destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário, foi cumprida pelo condutor do veículo segurado na Ré Victória, e, ao invés, não se tendo provado factos dos quais se inferisse que a condutora do veículo pertencente à Autora circulava com velocidade excessiva e distraída, nem qualquer outra circunstância, designadamente do estado da via ou do tempo, que pudesse influir no evento danoso, dúvidas não podem existir de que a responsabilidade pela ocorrência do embate se deveu única e exclusivamente à conduta do condutor do veículo segurado naquela Ré, afastando a culpa presumida da condutora do veículo pertencente à autora, sua funcionária.
Pelo exposto, procedem as conclusões da Apelante devendo, pelas sobreditas razões, ser revogada a decisão recorrida na parte em que atribuiu a repartição da culpa na produção do acidente, em 50% para cada um dos condutores.
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III.2.3. Da obrigação de indemnizar
Não vindo questionada a verificação dos demais pressupostos da obrigação de indemnizar, por força do contrato de seguro titulado pela apólice junta aos autos, a companhia de seguros Victoria é a responsável pela satisfação à Autora dos danos emergentes do evento danoso decorrente de culpa exclusiva do condutor do veículo cuja circulação estava devidamente segurada, já que nos termos do artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto vigente à data do sinistro, as ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, como acontece no caso dos autos, e que levou, aliás, à absolvição da instância do condutor do veículo segurado.
Consequentemente, estando a referida seguradora obrigada a satisfazer integralmente ao lesado os danos decorrentes do acidente de viação em apreço, e na medida em que tenham neste evento a sua causa, fica prejudicado o pedido formulado contra a seguradora dos danos próprios, a Ré Caravela, que será absolvida, a final, o que igualmente prejudica a deduzida ampliação do objeto do recurso.
Efetivamente, pese embora nas alegações de recurso a Apelante diga que o pedido dirigido contra a 3.ª Ré não é subsidiário, nem se alcança como pode efetuar tal afirmação quando expressamente refere no pedido formulado: “Caso assim V. Exa. não entenda, total ou parcialmente, sempre deverá a 3.ª Ré, em qualquer caso, ser condenada no pagamento à Autora”, nos demais termos referidos no relatório. Interpretando a peça inicial, de harmonia com os cânones previstos nos artigos 236.º a 239.º do Código Civil[29], não há qualquer dúvida de que a interpretação do pedido formulado só pode ser a de que: só no caso em que se julgasse a ação total ou parcialmente improcedente contra a seguradora do veículo terceiro, havia que apreciar da responsabilidade contratualmente assumida pela 3.ª Ré, em caso de choque, colisão ou capotamento. Não assim, obviamente, parece-nos, quando se julgue, como julgamos, que a responsabilidade é totalmente de assacar ao condutor do veículo terceiro, com a consequente obrigação de indemnizar da sua seguradora, sob pena de intolerável enriquecimento sem causa, com a atribuição simultânea de indemnização pelos mesmo danos, agora por via do seguro de danos próprios.
Não pode ser.
Prosseguindo.
Nos termos do artigo 562.º do CC, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, compreendendo-se nesta reparação, não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixar de obter em consequência da lesão – lucros cessantes - artigo 564.º do CC. E, dispõe o artigo 566.º, n.º 2, do CC, que a indemnização em dinheiro, como é o caso, tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado - situação real - na data mais próxima que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos - situação hipotética atual. É a denominada teoria da diferença[30].
Vejamos, pois, as questões colocadas pela Recorrente, relativamente ao quantum da indemnização atribuída pelos danos patrimoniais reclamados, decorrentes da perda total do veículo pertencente à Autora e da privação do seu uso.
A respeito da perda total, ponderou-se acertadamente na sentença recorrida que «no que diz respeito ao valor peticionado quanto ao valor do veículo, importa determinar se essa indemnização se realiza, pela simples atribuição do valor venal da viatura ou, pressuposta a indemnização em dinheiro, pela entrega do custo da reparação desses estragos. A doutrina e a jurisprudência têm debatido este problema. Têm-se entendido que só quando a reconstituição natural se apresente como um sacrifício manifestamente desproporcionado para o lesante e se deva considerar abusiva por contrária à boa fé a sua exigência ao lesado, é que fará sentido excluir o seu direito à reconstituição natural. A este propósito refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2005, p. 378 e nota 824: “Imaginemos, por exemplo, que alguém danifica um automóvel usado de reduzido valor comercial, mas que o lesado quer continuar a utilizar para as suas deslocações. Não faria sentido autorizar-se o lesante a indemnizar apenas o valor em dinheiro do automóvel, sob pretexto de a reparação ser mais cara que esse valor, já que tal implicaria privar o lesado do meio de locomoção de que dispunha e que não pretendia trocar por dinheiro.” Na jurisprudência, neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25/02/2013, no processo nº 1170/10.5TJVNF.P1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/02/2003, no processo nº 02B4016. Ou seja, o veículo, pela sua antiguidade, pode ter um valor comercial reduzido ou diminuto, mas mesmo assim ser apto a satisfazer as necessidades do seu proprietário que, de forma nenhuma poderá satisfazer com uma quantia correspondente a esse valor comercial, o que significa que, sem ele, poderá ver-se privado das comodidades que um veículo, ainda que “velho”, proporcionava o que não pode deixar de ser considerado na reconstituição natural como forma de reparação do lesado».
Não obstante, concluindo-se que «no caso dos autos a autora não logrou provar factos que determinem qual o valor que terá que despender com a substituição da viatura em causa, apenas se tendo provado qual o seu valor venal, que, à data do embate, era de € 11.300,00, pelo que será este o valor a atender para efeitos de indemnização da perda do veículo, deduzido o valor do salvado, que a autora já recebeu, no valor de € 3.551,00, obtendo-se, assim, o valor de € 7.749,00».
Insurgiu-se a Recorrente, impugnando o valor atribuído ao veículo, e defendendo que o valor devido é de 13.500,00€, sendo este, a seu ver, “o valor patrimonial da viatura atendendo às suas características, beneficiações e ao custo necessário para comprar uma com iguais características em substituição da viatura sinistrada),correspondente a €9.949,00 (nove mil novecentos e quarenta e nove euros) - (€ 13.500,00 - € 3.551,00 (valor do salvado já recebido, de € 3.551,00)), a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos no veículo”.
Porém, dependendo esta sua pretensão do sucesso da impetrada modificação de facto, mantendo-se o valor da viatura, no montante que lhe foi atribuído à data do embate, de 11.300,00€, sem necessidade de ulteriores considerações, a sua pretensão está votada ao insucesso, sendo a indemnização devida a este título pela Ré Victoria, no valor de 7.749,00€, atenta a atribuição da responsabilidade integral pelo acidente ao respetivo segurado.
No concernente aos danos decorrentes da privação do uso do veículo, sustentada em pertinente doutrina e jurisprudência, afirmou-se na sentença recorrida ser de «concluir pelo direito de a autora ser indemnizada em virtude da privação do uso do veículo», considerando adequado o valor de 20,00€ que havia sido proposto pela Autora.
Não obstante entendeu que a indemnização a este título só é devida até ao momento em que a Ré comunicou a indemnização correspondente à reparação ou ao valor da sua perda total, expendendo a este respeito a seguinte fundamentação: «Mas até quando deverá a autora ser indemnizada de tal privação? Conforme tem vindo a ser entendido pela jurisprudência a privação do uso deve ser calculada até ao momento em que a seguradora comunique a indemnização correspondente à reparação ou ao valor da sua perda total, na medida em que, só nesse momento, é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado, ainda que o lesado a não aceite (neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/07/2017, no Processo 833/14.0T8VNF.G1, de 25/05/2017, no Processo 1428/16.0T8VRL.G1, do Tribunal da Relação de Évora, de 05/11/2020, no Processo 795/18.5T8TNV.E1). Assim, entre a data do embate e a data em que a 2ª ré disponibilizou à autora o valor da indemnização pela perda do veículo, em 25/06/2019[31], temos 67 dias de privação do uso do veículo. Resta agora determinar o quantitativo de tal indemnização. (…) Ou seja, logrando provar-se que o autor esteve privado do uso do seu veículo por 67 dias, julga-se justo e adequado arbitrar o valor de indemnização pela privação do uso do veículo em € 1.340,00 (= 67 d. x € 20,00).
A apelante dissente, aduzindo em fundamento que «não pode o douto Tribunal recorrido atender a tal data (25/06/2019), porquanto, nesta data, apenas foi disponibilizado pela 2.ª Ré à Autora o valor de € 3.874,50, correspondente a 50% do valor da indemnização que a 2.ª Ré entende ser devida à ora Recorrente, calculada com base no valor venal de € 11.300,00 que atribuiu, unilateralmente, ao veículo da Autora, ora Recorrente».
Assim, como a Recorrente não recebeu, até à presente data, o valor devido pela viatura, considera que «tem direito a ser indemnizada pela privação do uso da viatura entre a data em que se deu o acidente (data em que o proprietário ficou privado do uso da coisa), até ao pagamento pela 2.ª Ré do valor devido pelo valor patrimonial do veículo, nos termos peticionados na p.i., Valor que, à data de entrada da presente acção judicial (15.03.2021) e decorridos que estavam 694 dias, ascendia a € 13.880,00 (treze mil oitocentos e oitenta euros) - (694 dias x € 20,00/dia), acrescido dos demais desde esta data (15.03.2021) até efectivo e integral pagamento à aqui Recorrente dos valores ora reclamados».
A questão ora colocada foi objeto de decisão que mutatis mutandis e com as necessárias adaptações se aplica ao caso em presença, expendida no aresto deste tribunal proferido em 05.11.2020[32], no qual foram adjuntos os juízes desembargadores ora adjuntos, com cuja fundamentação se concorda, e que seguiremos de perto.
Sufragamos o entendimento vertido em inúmeros arestos dos tribunais superiores, de que a falta de reparação ou quando esta não seja viável pela sua grande onerosidade, não retiram ao lesado o prejuízo que sofreu pela privação do veículo, e que ocorre até à data em que receba da seguradora a indemnização correspondente, na medida em que, só nesse momento, é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado[33].
Não obstante, a atribuição de uma compensação deverá ser determinada por juízos de equidade que corresponda, no fundo, ao custo da substituição da viatura que deveria ter sido proporcionada e não foi, mas de igual modo não permita um injusto locupletamento do lesado.
Assim sendo, in casu, verifica-se que desde a data do acidente até à data da entrada em juízo da petição inicial (15.03.2021), haviam decorrido 694 dias, cuja contabilização efetuada pela Autora, ascende a um valor muito superior àquele que o próprio veículo valia, valor que continuando a ser contabilizado, violaria o princípio da equidade (art.º 566.º, n.º 3 do CC).
Como foi decidido no Acórdão do STJ, de 13.07.2017, citado naquele aresto “Compreendendo-se o período de privação do uso do veículo entre 04-01-2013 e a data da entrega efetiva da indemnização pela perda total do veículo (que se desconhece se já ocorreu), uma vez que o valor acumulado da indemnização pela privação de uso ascenderá presentemente a um nível extremamente elevado e desproporcionado, tanto em relação ao valor devido pela perda total do veículo sinistrado, como em relação ao preço de um veículo novo nos últimos anos em que foi o mesmo foi produzido, deve o valor da indemnização a atribuir ter como limite máximo este último valor”.
Portanto, a atribuição da indemnização a título de privação pela perda do veículo, não pode ser superior ao valor da indemnização decorrente da perda total do veículo, sob pena de violação do princípio da equidade.
Assim, “a atribuição da indemnização pela privação do uso será calculada mediante a ponderação da reconstituição que existiria se não se tivesse verificado o evento, nos termos do art.º 562º do CC, e com recurso à equidade, nos termos do art. 566º, nº 3, do C. Civil – cf. Acórdão do STJ de 5/7/2018”.
Na espécie, provou-se que a Autora sabia, desde o dia em que recebeu a carta datada de 25.06.2019, por via da qual a 2.ª ré lhe comunicou que atribuía responsabilidade de 50% a cada um dos condutores, e que existia uma situação de perda total por o valor da reparação ser de € 14.089,63, sendo o valor comercial do veículo € 11.300,00, propondo assim o pagamento do montante indemnizatório de € 3.874,50 (três mil oitocentos e setenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), ficando o salvado, no valor de € 3.551,00, atribuído pela empresa AOPT – Serviços e Sistemas Automóvel, Lda., na posse da Autora, sendo que, nessa data, a autora já havia procedido à venda do salvado.
Discordando desta repartição de culpas, a Autora apenas veio a instaurar a presente ação em 15.03.2021, altura em que, como vimos, o valor diário que peticionava, multiplicado pelos dias passados, já ascendia a valor superior ao do veículo perdido. Portanto, no caso concreto, se é certo que até à presente data, a seguradora recorrida não colocou à disposição da autora o pagamento da indemnização correspondente ao valor da perda total do veículo, e que a Apelante não estava obrigada a aceitar a proposta repartição de culpas, como vimos, com razão, a verdade é que, também não pode onerar a seguradora com a demora na reação judicial e vir, por isso a receber valor superior àquele que valia o seu veículo, por violação do referido princípio da equidade.
Consequentemente, fazendo uso do princípio da equidade e de justiça, ínsito no artigo 566.º, n.º 3, do CC, e tendo em conta todas as circunstâncias do caso concreto, considera-se que a indemnização fixada não pode ser limitada ao reduzido tempo em que a seguradora comunicou uma repartição de culpas que a autora não aceitou, mas não deve ultrapassar o montante da indemnização atribuída pela perda total do veículo, ou seja, o valor de € 11.300,00 (onze mil e trezentos euros).
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, procede parcialmente a apelação.
Parcialmente vencidas, a Autora e a Victoria – Seguros, suportam as custas devidas em ambas as instâncias, na proporção do respetivo decaimento, sendo na Relação apenas na vertente de custas de parte – artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na parcial procedência da apelação, em revogar parcialmente a sentença recorrida, e em consequência: 1. Condenar a ré Victoria - Seguros, S.A. a pagar à autora B... Unipessoal, Lda., as seguintes quantias:
a) € 7.749,00 (sete mil quatrocentos e quarenta e nove euros), a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos no veículo, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data da citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
b) € 11.300,00 (onze mil e trezentos euros), a título de indemnização por danos patrimoniais pela privação do uso do veículo, acrescidos de juros moratórios vencidos e vincendos, desde a data da citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento. 2. Confirmar no demais a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente, e pela Recorrida condenada, na proporção do decaimento, na 1.ª instância e na Relação, sendo nesta apenas na vertente de custas de parte.
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Évora, 9 de fevereiro de 2023
Albertina Pedroso [34]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
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[1] Juízo de Competência Genérica de Coruche.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] Em incumprimento do dever de concluir de forma sintética, imposto pelo artigo 639.º, n.º 1, do CPC.
[4] Mantendo-se a numeração constante da peça processual.
[5] Porque só nessa circunstância se justifica apreciar esse segmento do pedido, já que, a Autora não pode ser duplamente indemnizada pelos mesmos danos. Assim, caso a responsabilidade pela ocorrência do embate seja da exclusiva responsabilidade do segurado da primeira ré, fica prejudicado o conhecimento do pedido formulado. Caso contrário, há que conhecer do pedido deduzido contra a terceira Ré, diversamente do decidido na sentença recorrida.
[6] Proveniente da alteração e eliminação parcial da alínea b) da matéria de facto não provada.
[7] Proveniente da alteração e eliminação da alínea c) da matéria de facto não provada.
[8] Aditado, na sequência da reapreciação do facto dado como não provado na alínea d).
[9] Decorrente da instrução da causa, e aditado na sequência da reapreciação da matéria de facto.
[10] Eliminado, e aditado ao elenco dos factos não provados.
[11] Aditado, na sequência da reapreciação do facto dado como não provado na alínea e).
[12] Aditado, na sequência da reapreciação do facto dado como não provado na alínea f).
[13] Facto instrumental, aditado oficiosamente, aquando da reapreciação da matéria de facto.
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] Parcialmente eliminado e modificada a redação para harmonização com o facto provado aditado ao facto n.º 4.
[17] Eliminado, passando a integrar o elenco dos factos provados.
[18] Eliminado, passando a integrar o elenco dos factos provados.
[19] Procedeu-se à retificação do lapso de escrita evidenciado neste ponto da matéria de facto não provada, passando a constar a matrícula correta do veículo, ..-LL-.., onde constava ..-LP-...
[20] Aditado em virtude da modificação da matéria de facto provada, com eliminação da correspondente matéria.
[21] Cfr. neste sentido, ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; e na jurisprudência de forma meramente exemplificativa, Ac. STJ de 24-05-2012, processo n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[22] Cfr. Acórdão do STJ de 25.01.2006, proferido no Processo n.º 05P3460, e disponível em www.dgsi.pt.
[23] Cfr. inter alia o Ac. STJ de 04.02.2003, processo n.º 03B1987, disponível em www.dgsi.pt.
[24] Assim, Acórdão STJ de 23.03.1994, processo n.º 085026.
[25] Proferido no processo n.º 286/10.2TBLSB.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[26] Que permite possam ser considerados pelo juiz inclusivamente quaisquer factos essenciais que resultem da discussão da causa, desde que aqueles se integrem no objeto do litígio e as partes sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, como é o caso.
[27] Doravante CC.
[28] Doravante abreviadamente designado CE.
[29] Doravante abreviadamente designado CC.
[30] Cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, pág. 778.
[31] Corrige-se o manifesto lapso, já que constava o ano de 2017.
[32] Proferido no processo n.º 795/18.5T8TNV.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[33] Assim, Ac. TRG de 11.07.2007, proferido no processo n.º 833/14.0T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[34] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três desembargadores desta conferência.