RECURSO DE REVISÃO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
FUNDAMENTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO
SENTENÇA CRIMINAL
PROVA DOCUMENTAL
QUEIXA
NOVOS FACTOS
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. Nos termos do artigo 465º do CPP, “tendo sido negada a revisão ou mantida a decisão revista, não pode haver nova revisão com o mesmo fundamento.” Donde aquilo que constituiu fundamento para os primeiro e segundo pedidos de revisão excluído está para apreciação num terceiro pedido de revisão.
II. O recorrente pretende a revisão do acórdão condenatório baseado na falsidade de um depoimento prestado em audiência de julgamento, pelo que deveria ter antes junto, como manda o art.º. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP, sentença transitada em julgado a declarar a falsidade desse depoimento, o que não fez.
III. Não serve para substituir a sentença transitada em julgado a declarar a falsidade desse depoimento a apresentação neste terceiro recurso de revisão de uma queixa para instauração de processo tutelar educativo que acabou arquivada por incompetência para o conhecimento da mesma e que, em termos de factualidade, repisa a versão do peticionante, nos dois pedidos anteriores, limitando-se, como já o tinha feito, a relatar que a ofendida assumiu ter mentido nas declarações para memória futura prestadas no processo. Ou seja, nada traz de novo, nem em termos de meio de prova, nem em termos de facto. Forçoso é, pois, concluir que o peticionante insiste naquilo que apresentou como novos meios de prova ou novos factos e que, por não serem nem uma coisa nem outra, o segundo pedido de revisão rejeitou e o primeiro também já tinha rejeitado.
IV. A falsidade de um meio de prova que tenha sido causal da decisão, só pode fundamentar revisão da condenação quando “uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falso” esse mesmo meio de prova.
V. Inexistindo tal sentença o recurso extraordinário de revisão está votado ao insucesso.

Texto Integral

 Acordam os juízes da 3ª Secção Criminal no Supremo Tribunal de Justiça


I - RELATÓRIO


I-1. Por acórdão de 17/03/2021, transitado em julgado a 26 de abril de 2021, proferido Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., Tribunal Judicial da Comarca ..., foi decidido:

“1. Condenar o arguido AA pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, pp. nos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, em 2 (duas) penas parcelares de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão cada;

2. Condenar o arguido AA pela prática de 1 (um) crimes de abuso sexual de crianças agravados, pp. nos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, em 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

3. Em cúmulo, englobando as penas descritas nos pontos 1. e 2., vai o arguido AA condenado na pena única de 6 anos de prisão.

4. Absolver o mesmo arguido da prática de vinte e cinco de crimes de abuso sexual de menores dependentes agravados, pp. pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 171.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma legal, por que vinha acusado.

5. Vai ainda o mesmo arguido, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 3 do Código Penal, condenado na inibição das responsabilidades parentais pelo prazo de 6 (seis) anos.

6. Condenar AA a pagar à vítima BB a quantia de € 8.000,00 (oito mil euros).”

.

I.2. O arguido vem interpor recurso de revisão tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1.O presente Recurso tem como objeto a revisão desse Acórdão condenatório proferido pelo Tribunal a quo, e transitado a 26 de Abril de 2021.

2. O arguido foi condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças agravados, pp. no n.º 1 do artigo 171.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal (CP), em duas penas parcelares de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão cada, e, ainda, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, pp. no n.º 1 e 2 do artigo 171.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do CP, em 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão, o que resultou numa pena única de 6 (seis) anos de prisão.

3. O arguido encontra-se privado da sua liberdade desde ... de Setembro de 2021, encontrando-se a cumprir pena no Estabelecimento Prisional ....

4. Tendo sempre clamado pela sua inocência e o trânsito em julgado da decisão proferida nos presentes autos nunca foi impedimento de tal clamação, já que ainda hoje o arguido continua a lutar pelo esclarecimento dos factos que, a seu ver, e salvo o devido respeito, foram incorrectamente confirmados.

5. Do Acórdão proferido – cfr. doc. n.º 1 - resulta que o Tribunal alicerçou a sua decisão, fundamentalmente, nas declarações prestadas pela Ofendida, tendo considerado que a mesma “confirmou estes factos de forma espontânea, escorreita e merecedora de credibilidade”.

6. No dia … de Novembro de 2021 foi dirigido aos autos um requerimento elaborado e assinado pela Ofendida que referia ter havido “um mal entendido”, bem como que a mesma não tinha noção das consequências que o processo traria ao arguido, terminando por pedir desculpas pelo sucedido – cfr. doc. n.º 2.

7. A … de Fevereiro de 2022, a Ofendida elaborou e enviou novo requerimento aos autos, referindo “ter mentido em todo o julgamento”, onde acusou arguido “de várias coisas muito graves”, pretendendo que “a verdade seja esclarecida” – cfr. doc. n.º 2 junto.

8. Se do primeiro requerimento poderiam resultar dúvidas relativamente ao que a Ofendida pretendia concretamente alegar, com a junção do segundo requerimento as eventuais dúvidas existentes foram dissipadas, concluindo-se forçosamente que de tal mentira resultou a prisão do arguido.

9. O arguido apresentou queixa-crime contra a aqui Ofendida, junto do DIAP ..., a … de Abril de 2022 – cfr. doc. n.º 3 -, deu origem ao NUIPC 1928/22...., tendo sido proferido Despacho de arquivamento, com fundamento na inadmissibilidade legal do procedimento criminal por inimputabilidade em razão da idade, considerando que, à data dos factos, a denunciada tinha 14 anos - cfr. doc. n.º 4.

10. Nessa sequência, o ora Recorrente requereu a abertura de Inquérito em Processo Tutelar Educativo, a 20 de Julho de 2022 - cfr. doc. n.º 5 -, ao qual veio a ser atribuído o n.º 4705/22...., que veio, também ele, a ser arquivado, considerando que em Fevereiro de 2022 BB atingiu os 18 anos de idade, impossibilitando o prosseguimento do processo nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 28.º da Lei Tutelar Educativa - cfr. doc. n.º 6.

11. Nem o Código Penal português, nem a Lei Tutelar Educativa oferecem respostas ao caso concreto, não dispondo de uma solução; também o Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes não dispõe de uma solução para o caso concreto, considerando que o seu artigo 1.º restringe o âmbito de aplicação a jovens que, à data da prática do crime, tiverem completado 16 anos de idade, mas ainda não tenham atingido os 21 anos.

12. O ordenamento jurídico interno é incapaz de apresentar uma solução para este cidadão que se vê a enfrentar uma pena de prisão, quando a alegada vítima declara expressamente “ter mentido em todo o julgamento”.

13. Veja-se que, pese embora o requerimento junto ao processo pela própria BB, nenhuma autoridade judiciária diligenciou no sentido de se proceder ao apuramento da verdade.

14. Estabelece o artigo 449.º do CPP que “1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando: a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão; b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo; c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação; d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação; e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º; f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação; g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.”.

15. A revisão de sentença transitada em julgado é um direito consagrado expressamente na nossa Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 29.º, relevando para o caso concreto o previsto no n.º 6 deste normativo constitucional que prevê “Os Cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”.

16. A alínea a) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP abre a possibilidade de a revisão da sentença ser efectuada com o trânsito em julgado de uma outra sentença que, entretanto, tenha considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão.

17. No entanto, o mesmo ordenamento jurídico que cria uma solução para as condenações injustas, é o mesmo ordenamento jurídico que, no caso concreto dos autos, impossibilita o recurso a esse mesmo mecanismo, por não oferecer soluções que se coadunem ao caso concreto.

18. Como pode o Recorrente obter uma Sentença transitada em julgado que condene a referida BB pelo crime de falsidade de testemunho (ou decisão semelhante) se inexiste um mecanismo para o efeito?

19. Ainda assim, não podemos deixar de realçar o preceito normativo contido na alínea d) do n.º 1 daquele artigo 449.º do CPP, que refere que a revisão é possível se “Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

20. Sendo certo que não estamos perante um novo meio de prova, o que já foi anteriormente discutido, não podemos deixar de concluir, por demais óbvio, que estamos perante novos factos, factos que inexistiam à altura do julgamento, já que os requerimentos apresentados nos autos são posteriores à sua condenação.

21. O Recorrente não pode aceitar que a existência de lacunas na legislação portuguesa implique a manutenção da sua pena de prisão.

22. Impõe-se, assim, solicitar ao Tribunal ad quem uma apreciação de tudo quanto se vem de expor, considerando-se os requerimentos apresentados e seu conteúdo como novos factos, procedendo-se à revisão do Acórdão transitado em julgado.

23. Julgue-se, pois, o presente recurso procedente e, por via disso, restitua-se, a final, o arguido à situação jurídica anterior à condenação.”


II.3. A resposta do MP foi rematada com 24 conclusões:

“1. No recurso interposto, em face das cartas que a vítima enviou para o processo, refere-se que a mesma não terá relatado a verdade durante as suas declarações prestadas para memória futura, pugnando o arguido pela sua absolvição nesta sede.

2. A novidade da prova aludida no art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP, refere-se ao meio de prova, seja pessoal, documental ou outro, e não ao resultado da produção da prova.

3. Não constituem novos meios de prova as cartas aparentemente subscritas por uma testemunha, posteriormente à sua inquirição em juízo. É que, do ponto de vista processual, estamos perante a mesma fonte probatória, com uma diferença formal: antes, nas declarações para memória futura, a testemunha prestou declarações oralmente, sujeita ao contraditório por todos os demais sujeitos processuais; agora, produziu-as por escrito.

4. Não o Tribunal – qualquer Tribunal – assegurar e certificar-se que aqueles documentos foram produzidos de forma livre de quaisquer constrangimentos.

5. Ao invés, na tomada de declarações para memória futura e numa perspectiva meramente processual há, como houve, a garantia judiciária das circunstâncias de liberdade em que a ofendida depôs, sendo tal prova sujeita aliás à imediação e ao contraditório.

6. Quanto ao teor substancial das declarações, o Tribunal procedeu à devida análise crítica que fundamentou da seguinte forma: “Todavia, a menor BB, nas declarações para memória futura que prestou, confirmou estes factos de forma espontânea, escorreita e merecedora de credibilidade”.

7. As declarações para memória futura da ofendida foram assim, do ponto de vista formal, validamente produzidas perante o M.mo Juiz de Instrução Criminal, que perante ele depôs livremente;

8. sendo o conteúdo validamente analisado e valorado em juízo;

9. inexistindo qualquer motivo para que, agora, possa tais declarações ser postas em crise com aqueles documentos, porque tal prova nem o douto acórdão não enfermam, nem passaram a enfermar, de qualquer invalidade jurídica que reclame a revisão do julgado.

10. Do recurso, infere-se que o Tribunal condenou o arguido com base num testemunho que agora se revela meio proibido de prova – pois, se a testemunha mente, a prova não pode utilizada contra o arguido, por ofender a sua integridade moral. Mas não assiste razão ao arguido.

11. Vejamos: do exame pericial realizado à ofendida e devidamente valorado pelo Tribunal colectivo, não resulta que os factos por ela relatados fossem fruto de efabulação – e este aspecto foi especificamente ponderado e despistado na perícia.

12. A credibilidade das declarações da menor prestadas para memória futura foi corroborada no exame pericial de fls.178 - 184 dos autos, tendo o Tribunal o cuidado de analisar devidamente o relatório, conforme consta na fundamentação do acórdão condenatório.

13. É também de realçar o seguinte segmento daquela perícia, com interesse para o que ora se discute:

14. “Na adolescência, a mentira pode servir para se defender ou para não assumir a responsabilidade, conseguir objetivos pessoais ou para salvaguardar a sua intimidade, o que parece não acontecer neste caso. Também no relato sobre a sua história de vida não foram encontrados indícios da utilização da mentira, como padrão sistematizado de comportamento, donde ser muito provável que os factos a que a BB se refere, e que parecem envolver atos de cariz sexual, possam de facto ter ocorrido, tendo aquela capacidade para perceber o alcance do significado dos factos denunciados e das consequências da denúncia.”

15. Para além disso, e conforme ressuma também do segmento do acórdão condenatório destinado à motivação da decisão de facto, «a testemunha CC, mãe da ofendida, prestou um depoimento que corroborou a versão dos factos trazidos pela menor, nos termos expostos no douto acórdão.

16. Aqueles dois documentos de fls. 420 e 430 dos autos não são assim susceptíveis de pôr em causa todo o acervo probatório carreado para este processo e devidamente analisado do douto acórdão, nem tão-pouco põem em causa a coerência da postura processual e a versão dos factos apresentada pela ofendida, comprovada aliás através de perícia.

17. Pelo contrário, aqueles dois documentos que agora são invocados é que destoam e não fazem qualquer sentido face à coerência e solidez da prova produzida e correctamente apreciada no douto acórdão.

18. De todo o modo, nunca se verificaria in casu o requisito exigido na segunda parte da alínea d), do n.º 1, do artigo 449.º do CPP, ou seja, que o alegado novo facto e invocado ou “novo” meio de prova oferecido suscite graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

19. Ora, face ao exposto, inexistem sequer quaisquer dúvidas sobre a justiça da condenação.

20. Quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista substancial, não há quaisquer fundamentos para que tais missivas se possam considerar novos meios de prova ou que possam trazer novos factos ao processo e que, em suma, possam pôr em crise a prova produzida e correctamente analisada em juízo, nem que tão pouco evidenciem uma flagrante violação do princípio da presunção de inocência do arguido.

21. O recurso extraordinário de revisão é o meio processual especialmente vocacionado para reagir contra clamorosos e intoleráveis erros judiciários ou casos de flagrante injustiça e não para sindicar a decisão condenatória, tendo em conta a prova produzida em devida sede.

22. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º1, do artigo 449.º do CPP, a falsidade dos meios de prova só é admissível como fundamento de revisão, quando uma outra sentença transitada em julgado tiver considerados falsos os meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão. Assim, a ordem jurídica garante a coerência entre decisões judiciárias que, de alguma forma, se possam contradizer. Mas este requisito tão-pouco se encontra preenchido.

23. Por fim, refira-se que esta questão já foi apreciada no apenso B dos autos, e que já mereceu decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Ao renovar a questão já anteriormente decidida, com os mesmos fundamentos, verifica-se aliás que o recorrente pretende uma segunda decisão sobre a mesma questão, o que violaria o princípio ne bis in idem.

24. Por todo o exposto deve ser negado o pedido de revisão formulado, por manifestamente infundado.”


I.4. Nos termos do artigo 454 do CPP, veio informação da mma juíza com o seguinte teor:

“No âmbito do Processo Comum coletivo n.º 506/18.5JACBR, foi proferido acórdão datado de 17.03.2021 e transitado em julgado em 26.04.2021, tendo o arguido (agora recorrente) sido condenado pela prática de:

- dois crimes de abuso sexual de crianças agravados, pp. nos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, em duas penas parcelares de um ano e oito meses de prisão cada;

- um crime de abuso sexual de crianças agravados, pp. nos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, em cinco anos e quatro meses de prisão;

- Em cúmulo jurídico foi o mesmo condenado na pena única de 6 (seis) anos de prisão e na pena acessória de inibição das responsabilidades parentais pelo prazo de 6 (seis) anos, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 3 do Código Penal.


Veio agora interpor o segundo recurso extraordinário de revisão alegando, em síntese, que as cartas juntas aos autos, enviadas pela menor BB, constituem um novo meio de prova que, por si só ou conjugado com a prova já produzida, suscita graves dúvidas sobre a justiça da sua condenação. Nem o processo crime nem o processo tutelar instaurado contra a menor apreciam a questão de saber se a menor faltou à verdade em julgamento, sendo certo que o artigo 449.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal apenas abre a possibilidade da revisão de uma sentença quando exista outra sentença que considere falsos os meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão. Fundamentou o seu pedido de revisão no disposto artigo 449.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal.

O recorrente pugnou, por fim, pela revogação do acórdão recorrido e pela sua substituição por outro que determine a sua absolvição.


*


O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que deve ser negado o pedido de revisão formulado, por manifestamente infundado.

*


Importa, agora, prestar a informação a que alude o artigo 454.º do Código de Processo Penal.

O arguido sustenta o seu pedido de revisão no disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, que determina que:

“1- A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

(…) d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

Por sua vez, o artigo 453.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, preceitua que:

“Se o fundamento da revisão for o previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 449º, o juiz procede às diligências que considerar indispensáveis para a descoberta da verdade, mandando documentar, por redução a escrito ou por qualquer meio de reprodução integral, as declarações prestadas”.

Como vimos, o arguido sustenta o seu pedido de revisão nas cartas enviada pela menor, vítima nos presentes autos. Como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Maio de 2011, proferido no processo n.º 140/05.0JELSB-N.S1, disponível em www.dgsi.pt., não constituem “novos“ meios de prova as cartas subscritas por uma testemunha, posteriormente à sua inquirição em audiência de julgamento. Na verdade, do ponto de vista processual, estamos perante o mesmo meio probatório, com uma diferença meramente formal: antes, em audiência de julgamento, a testemunha prestou declarações oralmente e agora produziu-as por escrito.

A ser assim, e para efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, as cartas enviadas aos autos pela vítima não se revestem de novidade para constituírem fundamento de revisão.

Cremos, ainda, que não ocorre o requisito exigido na segunda parte da alínea d), do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, ou seja, que o alegado “novo” facto invocado ou meio de prova oferecido, suscite “graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

Importa recordar que a credibilidade das declarações da menor prestadas para memória futura foi corroborada no exame pericial de fls.178 e segs., onde se concluiu por um “um parecer positivo quanto à credibilidade e veracidade do relato da menor, uma vez que o seu testemunho apresenta 6 de 11 um conjunto significativo de indicadores compatíveis com experiências efetivamente vividas.”

Para além disso, resulta do acórdão proferido que a testemunha CC, mãe da ofendida, prestou um depoimento que corroborou a versão dos factos trazidos pela menor, tendo o tribunal concluído que se tratava de um depoimento credível.

Face ao exposto, importa concluir que a prova dos abusos não resultou apenas das declarações prestadas pela menor, havendo também outros elementos probatórios que corroboraram a sua versão dos factos.

Por fim, importa lembrar que este é o segundo recurso de revisão apresentado e cremos que o STJ já se pronunciou quanto às questões suscitadas pelo recorrente.

Tudo para se concluir que, quanto a nós, inexiste qualquer fundamento para que se proceda à pretendida revisão do acórdão proferido nestes autos e já transitado em julgado.”


I.5. No STJ o Exmo PGA emitiu o seguinte Parecer:

“(…)

4. Recordemos que o arguido foi condenado pela prática dos seguintes crimes e nas penas abaixo indicadas:

- 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, pp. nos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, em 2 (duas) penas parcelares de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão cada;

- 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravados, pp. nos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, em 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

- em cúmulo jurídico das sobreditas penas parcelares foi o mesmo condenado na pena única de 6 anos de prisão.

Tal sentença transitou em julgado em 26-4-2021.

Ora, o arguido alega, novamente, que as cartas juntas aos autos pela menor ofendida, após o trânsito em julgado do acórdão condenatório, constituem um novo meio de prova que, por si só ou conjugado com a prova já produzida, suscita graves dúvidas sobre a justiça da sua condenação. E é com base nesse facto que fundamenta o seu pedido de revisão no art.º 449º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal; invocando, ainda, a queixa que apresentou contra a vítima e o processo tutelar educativo de que esta foi alvo.

Como é sabido, o recurso de revisão não se destina a colmatar estratégias de defesa que, no momento próprio, não obtiveram sucesso.

Recorde-se que a revisão, tal como se escreveu no ac. STJ de 14/05/2008, “constitui um meio extraordinário de reapreciação de uma decisão transitada em julgado, e tem como fundamento principal a necessidade de se evitar uma sentença injusta, de reparar um erro judiciário, por forma a dar primazia à justiça material em detrimento de uma justiça formal.”

E “assenta num compromisso entre a salvaguarda do caso julgado, que é condição essencial da manutenção da paz jurídica, e as exigências da justiça. Trata-se de um recurso extraordinário, de um “remédio” a aplicar a situações em que seria chocante e intolerável, em nome da paz jurídica, manter uma decisão de tal forma injusta (aparentemente injusta) que essa própria paz jurídica ficaria posta em causa.” – cfr. acSTJ de 04-07-2007, Proc. n.º 2264/07 - 3.ª secção”

Ora, “A alínea d) exige, como pressuposto da revisão, por um lado, o surgimento de factos novos (…) factos novos relativamente aos considerados na sentença revidenda e, por outro, que esses novos factos suscitem dúvidas qualificadas «graves» sobre a justiça da condenação, não bastando apenas que haja dúvidas sobre essa realidade. A novidade que se exige terá de sê-lo, não apenas para o tribunal como para o recorrente. (…) Se este os conhecia e não invocou aquando do julgamento faltou, certamente por estratégia de defesa, ao dever de lealdade e colaboração com o tribunal, pelo que, seria iníquo permitir-lhe agora invocar factos que só não foram oportunamente apreciados por mero calculismo” – (Pereira Madeira in Código de Processo Penal Comentado, págs. 1508 e 1509, 2ª edição revista, 2016).

E, in casu, o depoimento da ofendida já foi devidamente ponderado, no momento próprio, em sede de audiência de discussão e julgamento.

De resto, o teor da nova missiva – alegadamente, de sua autoria – trazida à colação, nem sequer é conclusivo relativamente a uma eventual ausência de responsabilidade criminal por parte do arguido.

E tudo o mais alegado pelo arguido continua a não relevar para a finalidade por ele pretendida.

Em suma, nem a vítima alegou que os crimes não ocorreram; nem, tão pouco, o seu depoimento foi o único meio de prova em que o Tribunal alicerçou a condenação do arguido e que, acrescente-se, também não foi infirmado pelos meios previstos na al. a) do citado art.º 449º.

5. Assim, os fundamentos invocados pelo arguido não parecem ser suficientemente ponderosos para suscitar graves dúvidas sobre a justiça da sua condenação, como bem ficou demonstrado na resposta ao recurso de revisão e na informação provenientes do Tribunal da condenação; pelo que, em conformidade, nos parece dever ser negada a requerida revisão. 

I.6. Notificado do Parecer do MºPº, o recorrente nada disse.


1.7. O processo foi aos vistos e decidiu-se em conferência.


I.8. Admissibilidade e objeto do recurso

O recurso é admissível, uma vez que o Recorrente tem legitimidade, (art. 450, nº 1, al. d)), está em tempo, assenta o recurso na al. d), do nº 1, do artigo 449 do CPP, e, nos termos do alegado, traz uma circunstância que o Recorrente afirma como nova, a queixa para instauração de processo tutelar educativo, que, também, na sua pretensão, com os demais fundamentos antes apresentados constituirá fundamento de revisão, por serem, diz, “factos novos”.


O objeto do recurso visa a revisão do acórdão de 17/03/2021, transitado em julgado em 26/04/2021.

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

Factos

II.1. Em sede de matéria de facto fez-se constar da sentença condenatória os seguintes factos provados:

“1. A ofendida BB nasceu a .../.../2004, pelo que tem atualmente 16 (dezasseis) anos de idade.

2. É filha de DD e de CC.

3. Do relacionamento dos pais da ofendida, nasceu igualmente o irmão desta, EE

, nascido a .../.../2008, o qual tem atualmente 12 (doze) anos de idade.

4. Os pais da ofendida já se encontram separados há mais de 9 (nove) anos.

5. Em data não concretamente apurada, mas durante o mês de março de 2017, a mãe da ofendida iniciou um relacionamento amoroso com o arguido AA e passou a viver em casa deste, sita na Rua ..., no lugar..., ..., na área do concelho ....

6. Além da ofendida, da mãe desta e do arguido, também ali passou a viver o irmão daquela, EE.

7. Sucede que a ofendida frequentava a Escola Básica e Secundária ... e, por isso, ela e o irmão apenas residiam em casa do arguido, aos fins de semana e nos períodos em que estavam de férias.

8. Durante a semana e no período escolar, para estarem mais perto das escolas que frequentavam, a ofendida e o seu irmão viviam em casa dos seus avós paternos, sita na ..., na área da freguesia ... e do concelho ....

9. Assim, por regra, durante aquele período, à sexta-feira à noite, o arguido e a mãe da ofendida iam buscar esta e o seu irmão a casa dos seus avós paternos e iam lá levá-los, ao domingo à noite.

10. Todavia, não sendo esta a regra, havia fins-de-semana em que a ofendida e o seu irmão ficavam em casa dos avós paternos.

11. Nos dias em que estavam em casa do arguido, este e a mãe da ofendida partilhavam um dos quartos e a ofendida e o seu irmão partilhavam outro, apesar de aquela casa ter três quartos.

12. Era o arguido o grande suporte económico daquele agregado familiar, uma vez que a mãe da ofendida trabalhava em casa como doméstica.

13. Assim, era habitual ser o arguido a comprar roupa e calçado à ofendida.

14. Sucede que a partir do mês de março de 2018, o arguido formulou o propósito de se aproveitar da fragilidade da ofendida BB e de abusar sexualmente dela.

15. Por via disso, no período compreendido entre o dia 1 de março de 2018 e o dia 8 de março de 2018, passou a ser frequente o arguido abeirar-se da ofendida e tocar-lhe e apalpar-lhe as nádegas.

16. Em data não concretamente apurada, mas ainda durante o período compreendido entre o dia 1 de março de 2018 e o dia 8 de março de 2018, numa ocasião em que a ofendida já estava a dormir na companhia do seu irmão, o arguido entrou no quarto daqueles e começou a colocar para trás as mantas que cobriam aquela.

17. Nessa ocasião, a ofendida BB acabou por acordar, mas apesar disso, o arguido colocou uma mão por baixo das calças de pijama e das cuecas que aquela tinha vestidas e fez-lhe diversos movimentos de fricção na vagina.

18. Em ato contínuo, o arguido introduziu-lhe um dedo no interior da vagina e fez diversos movimentos de vaivém.

19. A partir dessa data, o arguido, com uma frequência quase diária e sempre que a ofendida se encontrava em sua casa, deslocava-se à noite ao quarto daquela.

20. Essas deslocações sucediam quer quando a mesma já se encontrava a dormir na companhia do seu irmão ou quando este ocasionalmente estava a dormir noutro quarto.

21. Algumas dessas deslocações aconteciam também quando, além do irmão da ofendida, também ali se encontrava o neto do arguido a dormir.

22. Nessas ocasiões, o arguido colocava uma mão por baixo das calças de pijama e das cuecas que aquela tinha vestidas e fazia-lhe diversos movimentos de fricção na vagina.

23. Em ato contínuo, o arguido introduzia-lhe um dedo no interior da vagina e fazia diversos movimentos de vaivém.

24. Por vezes, o arguido também lhe apalpava as mamas.

25. Em todas essas ocasiões, a ofendida acordava sempre que sentia o arguido a mexer no seu corpo, mas o seu irmão e o neto do arguido quando ali se encontravam, nunca acordavam.

26. Além disso, noutras ocasiões, o arguido baixou as calças e cuecas da ofendida BB até à zona dos joelhos e introduziu-lhe um dedo no interior da vagina ao mesmo tempo que lhe fez diversos movimentos de vaivém.

27. Por vezes, a ofendida tirava a mão do arguido e dizia-lhe para ir embora, mas aquele voltava a colocar-lhe a mão na vagina e só ia embora quando queria.

28. Noutra ocasião, o arguido após ter colocado um dos seus dedos no interior da vagina da ofendida e ao mesmo tempo que se estava a masturbar, agarrou na mão daquela e encostou-a ao seu pénis que se encontrava ereto.

29. Sucede que ao sentir a sua mão tocar no pénis do arguido e ao verificar que o mesmo estava ereto, a ofendida tirou logo dali a sua mão.

30. Apesar disso, o arguido continuou a masturbar-se e acabou por ejacular para cima do braço da ofendida.

31. Certa vez, o arguido deslocou-se ao quarto da ofendida numa altura em que esta já estava a dormir na companhia do seu irmão.

32. Logo de seguida, o arguido tentou colocar-se em cima da ofendida, mas esta acordou.

33. Em ato contínuo, o arguido disse-lhe: “se tu fizeres o que eu quero, dou-te um telemóvel”.

34. Sucede que, nessa ocasião, a ofendida percebeu que o arguido queria ter relações sexuais consigo e disse-lhe que não ia fazer nada do que ele queria.

35. No dia … de agosto de 2018, o arguido voltou a deslocar-se à noite ao quarto da ofendida, colocou uma mão por baixo das calças de pijama e das cuecas que aquela tinha vestidas e introduziu-lhe um dedo na vagina ao mesmo tempo que fez diversos movimentos de vaivém.

36. Sucede que a ofendida acordou e afastou a mão do arguido ao mesmo tempo que lhe disse “pára…eu vou contar tudo à minha mãe…”, ao passo que aquele retorquiu “não digas nada, depois a gente fala” e abandonou aquele quarto.

37. Assim, entre o dia 10 de março de 2018 e o dia 3 de agosto de 2018, o arguido AA praticou os factos supra descritos, pelo menos, uma vez em cada um dos fins de semana existentes nesse período em que a ofendida ia passar os fins de semana a sua casa.

38. No período compreendido entre o dia 23 de março de 2018 e o dia 9 de abril de 2018, a ofendida gozou as férias escolares da Páscoa e, nesse período, o arguido praticou os factos supra descritos, pelo menos, duas vezes.

39. A partir do dia 23 de junho de 2018, a ofendida gozou as férias escolares do Verão em casa do arguido.

40. Sucede que, no dia 3 de agosto de 2018, a ofendida contou à sua mãe os atos que o arguido andava a praticar com ela.

41. Por via disso, a partir desse dia, a ofendida, a sua mãe e o seu irmão deixaram de residir em casa do arguido.

42. Assim, no período compreendido entre o dia 23 de junho de 2018 e o dia 2 de agosto de 2018, o arguido praticou os factos supra descritos, pelo menos, duas vezes.

43. O arguido AA bem sabia que atentava contra o livre desenvolvimento da personalidade e sexualidade da ofendida, não se demovendo, contudo, de agir dessa forma para satisfazer os seus desejos libidinosos.

44. O arguido aproveitou-se da situação de proximidade familiar que a ofendida BB tinha consigo, bem sabendo que os atos acima descritos eram adequados a prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade daquela, na sua esfera sexual, aproveitando-se da sua imaturidade, ingenuidade e inexperiência e da menor resistência que a mesma, por isso, oferecia para melhor concretizar os atos sexuais que manteve com ela.

45. O arguido sabia bem a idade da ofendida BB e que esta vivia consigo e dependia de si economicamente, era sua enteada, que lhe devia particulares obrigações de respeito em virtude de tais circunstâncias, que ignorou e de que se aproveitou.

46. O arguido AA atuou sempre de forma deliberada, livre e consciente,

bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.

47. No CRC do arguido nada consta.”


II.2. Com a seguinte motivação:

“A convicção do Tribunal quanto à factualidade considerada provada radicou na análise crítica, concatenada e ponderada da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal).

Analisemos, em pormenor.

No que se refere aos factos constantes dos pontos 1. a 13. dos factos provados, considerámos a confissão do arguido. Atendemos, ainda, ao assento de nascimento da menor BB de fls. 23 e ao depoimento da mãe desta – CC – que também confirmou estes factos.

Relativamente aos factos descritos nos pontos 14. a 46., importa dizer, desde logo, que o arguido negou a prática dos factos.

Todavia, a menor BB, nas declarações para memória futura que prestou, confirmou estes factos de forma espontânea, escorreita e merecedora de credibilidade.

O exame pericial constante de fls. 178 e seguintes veio confirmar a veracidade das declarações prestadas pelo menor quando concluiu que: “(…) do ponto de vista psicológico, foi possível constatar que tem capacidade para prestar testemunho.

Procedendo a uma análise do relato da BB à luz dos indicadores de credibilidade salientados pela literatura (validade e veracidade das alegações) verificamos que aquela

apresenta características encontradas em relatos verdadeiros.

(…)

Coligindo tudo o que foi possível avaliar e analisando o relato da BB à luz dos indicadores de validade e veracidade e não havendo indicadores significativos de fantasia, mentira ou sugestão (não nos parece que existam, neste caso específico, processos que possam contaminar a veracidade do testemunho, nomeadamente a presença de distorções significativas de memória), resulta um parecer positivo quanto à credibilidade e veracidade do relato da menor, uma vez que o seu testemunho apresenta um conjunto significativo de indicadores compatíveis com experiências efetivamente vividas.”.

Por sua vez, a testemunha CC, mãe da ofendida, prestou um depoimento que corroborou a versão dos factos trazidos pela menor. Este depoimento mostrou-se muito credível, sendo que a mesma demonstrou o quanto é difícil estar “no meio” da filha e do seu companheiro. Por um lado, queria acreditar neste, para que os abusos nunca tivessem ocorrido, mas, por outro lado, tem consciência que a filha falou a verdade, pois viu indícios dessa realidade. Com efeito, a mãe da menor explicou que no momento em que a sua filha lhe contou que era abusada sexualmente pelo arguido (companheiro da testemunha) nos moldes descritos nos factos dados como provados logo acreditou nela, pois já achava que o arguido se “agarrava” muito à BB, que já o tinha visto a passar as mãos pelos seis da menor (embora não tenha gostado, pensou que tinha sido uma brincadeira) e, já no verão, viu “pingos” no chão do quarto da menor que coincidem com o relato da menor relativamente ao dia em que o arguido terá ejaculado, ficando com a convicção que efetivamente se tratava de vestígios de ejaculação.

Em suma, a prova pericial confirma a veracidade das declarações do menor e a prova testemunhal indicada também acaba por corroborar o relato da menor, não existindo qualquer dúvida quanto à ocorrência dos factos.

Importa referir que tanto o arguido como mãe da menor referiram que, durante o período em que viveram juntos, a regra era os menores passarem o fim-de-semana em casa do arguido mas que, por vezes, ficavam em casa dos avós paternos, pelo que este facto foi dado como provado.

Esta mesma prova permitiu-nos, também, dar como assente os factos descritos no ponto 37. Com efeito, a menor BB confirmou que, no período temporal indicado, o arguido ia ter consigo para praticar os atos descritos nos factos provados todos os fins de semana e quase todos os dias do fim de semana em que ficava em sua casa. A ser assim, não se conseguindo concretizar melhor o número de vezes que no fim de semana os factos ocorreriam, demos como assente a versão que favorece o arguido, fazendo apelo ao princípio constitucional “in dubio pro reu”. Não podíamos, evidentemente, dar como assente que os factos ocorriam todos os dias, quando a própria menor relatou que aconteciam “quase todos os dias”, esclarecendo que pode ter havido dias no fim de semana em que o arguido não a procurou, embora não fosse esta a regra. Em consequência do que fica dito tivemos de dar como assente que, durante os fins de semana que a menor passava em casa do arguido, este a abordava pelo menos uma vez.

Já explicámos o motivo por que considerámos que as declarações da menor eram credíveis e consistentes, pois foram corroboradas pelos demais meios de prova, o que voltamos aqui a reproduzir para fundamentar este ponto 37.

Em suma, a prova já indicada e explicada – declarações da arguida que mereceram credibilidade e que foram corroboradas pela prova pericial e testemunhal – permitiu-nos concluir com segurança que o arguido praticava os factos descritos pelo menos uma vez em cada um dos fins de semana em que a menor estava em sua casa.

Importa, a este passo, dizer que as declarações do arguido não nos mereceram credibilidade, pois tentou, sem êxito, como veremos, dar justificações para ofendida o acusar dos factos descritos na acusação, mas que foram totalmente descredibilizadas com a demais prova produzida.

Com efeito, o arguido alegou que a menor terá inventado os factos por não a ter autorizado a ir à festa da aldeia e por temer mudar de escola e ir viver para casa do arguido a tempo inteiro. Todavia, não só a menor desmentiu estes factos como a testemunha CC também o fez, explicando que nunca proibiu a filha de ir à festa, como já tinham decidido que a menor não ia mudar de escola, pelo que estes nunca seriam motivos válidos para a menor imputar ao arguido os factos em análise.

O arguido também defendeu que a menor terá inventado esta acusação por não a deixarem ter um namorado, mas também aqui a versão do arguido foi desmentida pela testemunha CC, mãe da menor, que relatou que apenas lhe diziam que era muito nova e que primeiro estavam os estudos.

Quanto ao facto de a menor dormir com o seu irmão e, por vezes, com o neto do arguido e estes nunca se terem apercebido de nada, importa apenas relembrar que os menores, por regra, têm um sono muito profundo, pelo que seria normal que não se apercebessem da presença do arguido no local.

O arguido ainda tentou demonstrar que tinha uma relação muito próxima com a menor e que trocaram as mensagens de fls. 239 e 239 verso. Todavia, em julgamento o próprio arguido admitiu que as mensagens em causa foram enviados do telemóvel da mãe da menor – sua companheira – e que as duas primeiras mensagens de fls. 239 e a primeira de fls. 239 verso são da autoria da mãe da menor.

A defesa também quis demonstrar que a ausência sequelas psicológicas podia significar que a menor faltava à verdade, mas também aqui o relatório pericial foi determinante ao explicar que tal facto não condiciona a credibilidade/veracidade do parecer emitido, ou seja, que o seu relato merece credibilidade.

Com efeito, pode ler-se no relatório pericial elaborado pelo INML de fls. 178 e seguintes: “relativamente à condição psicológica da BB, embora fosse apurado um quadro de ajustamento psicológico geral (tal não condiciona a credibilidade/veracidade do parecer positivo emitido, até porque, sabemos através da investigação, que um número significativo de vítimas deste tipo de crime se apresenta assintomática ou manifesta dificuldades clinicamente significativas algum tempo após a experiência traumática), foram detetados alguns indicadores de perturbação emocional na descrição dos alegados episódios abusivos (sentimentos de vergonha/ humilhação/medo e falta de controlo durante e perante os mesmos) que embora possam ser encarados como definitivos e inquestionáveis, podem funcionar com um “sinal de alerta”, pois são compatíveis com o conhecimento teórico de como as crianças/adolescentes atormentadas abordam a temática abusiva”.

Os factos descritos nos pontos 14 e 43 a 46 foram dados como provados, tendo em conta as regras da experiência comum e os demais factos assentes. Como vem sendo dito na jurisprudência, dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infração.

Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência – neste sentido vide Ac. da R.P. 0140379, de 03.10.2001, Ac. R.G. 1559/05.1, de 14.12.2005, ambos em www.jurisprudencia.vlex.pt.

No que se refere aos antecedentes criminais do arguido, valorámos o CRC junto aos autos a fls. 249.

Os factos descritos nos pontos 48 a 57 resultam provados tendo em consideração o relatório social de fls. 253. Também atendemos ao depoimento das testemunhas de defesa FF, irmã do arguido, GG, amigo, HH, avó da menor, que confirmaram a reinserção social do arguido e o quanto a família parecia harmoniosa.”


Direito


II.3. Breve excurso sobre o recurso de revisão, os seus pressupostos e a sua finalidade:

Teleologicamente o recurso de revisão visa a reposição da verdade e, por ela, da justiça, no dirimir da tensão entre a segurança do caso julgado e a justiça do caso concreto. Por isso é que já Luís Osório, in “Comentário ao Código de Processo Penal”, VI, 402, sublinhava que “O princípio da res judicata pro veritate habetur (tem-se por verdade a coisa julgada) é um princípio de utilidade e não de justiça e assim não pode impedir a revisão da sentença quando haja fortes elementos de convicção de que a decisão proferida não corresponde em matéria de facto à verdade histórica que o processo penal quer e precisa em todos os casos alcançar. Se o processo civil admite a revisão do caso julgado, com mais razão a deve admitir o processo penal.” E no âmbito do processo civil já o Professor Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil, Anotado”, Volume V, Coimbra Editora, 1984, pág. 158, ensinava: “Estes recursos pressupõem que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. O recurso extraordinário visa eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça.”

“O recurso extraordinário de revisão constitui um direito fundamental dos “cidadãos injustamente condenados”, conforme dispõe o art. 29.º, n.º 6, da CRP [“Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença (…)”.] No conflito frontal entre o valor da certeza e da segurança jurídicas, assegurado pelo caso julgado, e as exigências da verdade material e da justiça, valor esse que é condição fundamental da paz jurídica comunitária que todo o sistema judiciário prossegue, e as exigências da verdade material e da justiça, que são também pressuposto e condição de aceitação e legitimidade das decisões jurisdicionais, o recurso de revisão pretende encontrar um ponto de equilíbrio, uma solução de concordância prática que concilie até onde é possível esses valores essencialmente contraditórios. Na lei processual penal, esse equilíbrio é conseguido a partir do reconhecimento de que o caso julgado terá de ceder, em casos excecionais e taxativamente enumerados, perante os interesses da verdade e da justiça.” in ac. do STJ 03/04/2013, proc. 157/05

Claro que a latitude a fornecer ao recurso de revisão será definida pelo legislador sobretudo tendo em conta os princípios da justiça e da proporcionalidade (29º, nº 6, da CRP: “nas condições que a lei prescrever”, em conferida liberdade de conformação ao legislador). E que vai mudando tanto quanto o princípio da justiça o imponha, por direito dos “cidadãos injustamente condenados” (citado nº 6). Basta assinalar que por via da reforma do CPP em 2007, através da L. 48/2007, de 29/08, foram acrescentadas as alíneas f) e g), ao catálogo fechado dos fundamentos para revisão.

A latitude, em termos de fundamentos, do recurso de revisão está inscrita no numerus clausus das alíneas do artigo 449º do CPP:

“a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.”

Trata-se de recurso extraordinário que o texto constitucional consagrou no artigo 29º, nº 6, e, na decorrência, se suporta nos fundamentos taxativamente fixados no artigo 449º, nº 1, do CPP. Secundando a norma constitucional interna, no Direito Europeu também o artº. 4º, nº. 2, do protocolo adicional nº. 7 à CEDH prevê que a descoberta de factos novos ou recentemente revelados ou a existência de um vício fundamental no processo anterior permita a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa.

Fundamentos da revisão, em enumeração fechada, orientados uns pro societate, als a) e b), e visando outros finalidades pro reo, as demais alíneas.

Tal recurso extraordinário constitui-se meio processual especialmente vocacionado para reagir contra clamorosos e intoleráveis erros judiciários ou casos de flagrante injustiça. Só deverá ser excecionalmente admitido naqueles casos que se evidencie ter havido erro na decisão. O carácter extraordinário na forma e excecional na admissão há de levar inelutavelmente a um grau de exigência incompatível com uma leviana e generalizada aceitação do mesmo. Como comumente tem adiantado a doutrina e a jurisprudência, só circunstâncias imperiosas poderão levar à quebra do caso julgado, não se aceitando que tal recurso extraordinário se transforme em apelação disfarçada ou em adicional recurso de impugnação para nova reapreciação do anterior julgado. É a própria Lei fundamental que autonomiza o recurso de revisão do recurso normal, prevendo-os respetivamente nos artigos 29º, nº 6, e 32º, nº 1, e é a jurisprudência constitucional que afirma a necessidade da sua não banalização e não desvalorização do recurso (cfr ac. do TC nº 376/2000).

Depois necessário é que se invoque e se demonstre que um daqueles vícios/fundamentos foi determinante da injustiça cometida seja de condenação ou de absolvição.

II.4. O presente recurso de revisão é o terceiro recurso de revisão apresentado pelo arguido.

Houve um primeiro, invocando a al. d), do artigo 449, decidido por acórdão do STJ de 17/02/2022, 506/18.5JACBR-B.S1, já publicado no sítio da dgsi. Está assim sumariado: “A revisão de sentença transitada em julgado com fundamento em falsidade de meio de prova relevante para a decisão condenatória, só é admissível quando outra sentença tiver considerado falso o meio de prova.”

Como da publicação se extrai, incidiu sobre o manuscrito que, com data de 10.11.2021 foi junto aos autos, em que, em síntese, a menor vítima assume um “mal entendido” e, onde, além do mais, constava: “Quero retirar a queixa que pôs contra AA. Houve um mal entendido naquela altura, eu era uma menina e não sabia os problemas que isto iria trazer, como as consequências, também nunca pensei no que iria dar e no que isto nos ia trazer a todas.

E peço imensa desculpa por este mal entendido.”

A Revisão foi recusada com os seguintes fundamentos:

“3. O condenado funda a sua pretensão na previsão da al. d), do n. º1 da norma transcrita, cumprindo indagar se existem novos factos ou meios de prova que, deper si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Na apresentação concludente do fundamento ou causa de revisão alegada, o recorrente socorre-se de um documento presumivelmente manuscrito pela ofendida e junto aos autos, onde consta:

«Quero retirar a queixa que pôs contra AA. Houve um mal entendido naquela altura, eu era uma menina e não sabia os problemas que isto iria trazer, como as consequências, também nunca pensei no que iria dar e no que isto nos ia trazer a todas. E peço imensa desculpa por este mal entendido».

4. No entendimento do requerente estamos perante um «novo elemento diretamente relacionado com os factos probandos e que dúvidas sérias levanta quanto à existência dos elementos essenciais do crime».

5. Novos factos ou meios de prova é uma indicação alternativa. São factos novos ou novos meios de prova os que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação, e que, sendo desconhecidos da jurisdição no ato do julgamento, permitam suscitar graves dúvidas acerca da culpabilidade do condenado; para efeito de fundamentar o pedido de revisão de decisões penais, os meios de prova são novos quando não foram administrados e valorados no processo que conduziu à condenação, e não eram conhecidos pelo arguido. Novos meios de prova são aqueles que são processualmente novos, ou seja, que não foram apresentados ou não poderiam ser apresentados por desconhecimento, no processo da condenação. Se foram apresentados no processo da condenação, ou poderiam tê-lo sido, não são novos no sentido da “novidade” que está subjacente na definição da alínea d) no nº 1 do artigo 449º do CPP (literalmente ac. STJ de 18.05.2011, disponível em www.dgsi.pt). Finalmente, a novidade refere-se ao meio de prova, seja pessoal, documental ou outro, e não ao resultado da administração do meio de prova; no caso de provas pessoais, a “novidade” refere-se à testemunha na sua identidade e individualidade e não ao resultado da prova efetivamente produzida (ac. cit.).

6. A decisão condenatória proferida em 1.ª instância transitou em julgado sem que o arguido tivesse interposto recurso. Não sendo o recurso de revisão um sucedâneo do recurso ordinário, está votada ao insucesso a pretensão subliminar do recorrente de revisitar e questionar a decisão da matéria de facto, como se fosse um recurso ordinário, socorrendo-se para isso da transcrição de depoimentos prestados pela vítima, pela sua mãe e avó.

7. Segundo o recorrente o manuscrito junto aos autos é um «novo elemento diretamente relacionado com os factos probandos e que dúvidas sérias levanta quanto à existência dos elementos essenciais do crime». Diz o manuscrito:

«Quero retirar a queixa que pôs contra AA. Houve um mal entendido naquela altura, eu era uma menina e não sabia os problemas que isto iria trazer, como as consequências, também nunca pensei no que iria dar e no que isto nos ia trazer a todas.

E peço imensa desculpa por este mal entendido».

8. A declaração, na sua literalidade, como bem realça o M.º P.º nada refere quanto à (in)veracidade do depoimento que a menor prestou nos autos, pois reporta-se a questão diversa, a pretensão (quero) de retirar a queixa que pôs contra AA, pois não sabia os problemas que isto iria trazer, como as consequências, também nunca pensei no que iria dar e no que isto nos ia trazer a todas. Como diz a juíza do processo, a menor não refere que faltou à verdade nas declarações que prestou anteriormente, pelo que não pode dizer-se que a menor negou a existência de abusos. Não se vê como a declaração, de per si ou combinada com os meios de prova apreciados no processo, suscite graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Do querer retirar a queixa não se pode inferir, sem mais, o que quer que seja sobre a (in)justiça da condenação. Mesmo que os crimes fossem semipúblicos, não tem qualquer efeito «retirar a queixa» depois do trânsito em julgado da decisão condenatória (art. 116.º/2, CP).

9. Admitindo, por mera hipótese de raciocínio e argumentação, que o manuscrito diz mais do que dele consta, concretamente, como quer o recorrente, que a vítima quis por termo ao processo, porque o considera injusto e sem fundamento de facto e injusta a condenação do arguido, importa referir o seguinte: admitindo que o documento foi produzido pela vítima, temos que a fonte da prova é uma e a mesma pessoa que nos autos prestou depoimento como vítima/testemunha para memória futura. Não há assim novo meio de prova, quer porque a fonte de prova é a mesma testemunha que prestou depoimento nos autos, quer ainda porque o documento é na essência uma declaração.

10. Mas vamos admitir, como mera hipótese, por eficácia de raciocínio e argumentação, que aquilo que consta do documento desdiz o dito no processo, ou dizendo de uma forma mais clara e crua, que resulta do documento que a testemunha mentiu no processo e agora diz a verdade.

11. O “facto novo”, para efeito de revisão de sentença, é aquele que nunca foi ponderado anteriormente no julgamento e não o que, tendo aí sido escalpelizado, foi julgado de uma determinada maneira e, posteriormente, se pretende que venha a ser julgado em sentido diverso (ac. STJ de 14.02.2013, disponível em www.dgsi.pt). O recorrente no julgamento da 1ª instância negou a autoria dos crimes. Esse facto foi aí ponderado e objeto de decisão, pois não há qualquer presunção de que o arguido cometeu o crime, pelo contrário vigora o princípio in dubio pro reo. Assim, a «novidade» seria agora a subliminar alegação da falsidade do meio de prova corporizado no depoimento da vítima prestado no processo e que foi relevante para afirmar provados os factos que suportam o cometimento dos crimes e a condenação proferida.

12. A falsidade de meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão é um dos fundamentos de revisão (art. 449.º/1/a, CPP). Ocorre que o recorrente não apelou à falsidade do depoimento da vítima, apesar de subliminarmente pretender instilar a dúvida quanto à falsidade do depoimento da vítima dos crimes, em cujo depoimento também se ancorou a matéria de facto provada. Com esse fundamento, só haveria lugar a revisão da sentença se a falsidade resultasse de uma outra sentença transitada em julgado (art.º 449.º/1/a, CPP) e como tal sentença não existe, a pretensão do recorrente com esse fundamento, está votada ao fracasso. Mas, então, bem vistas as coisas, o pedido, embora coberto com o manto diáfano da invocação de novos factos e novos meios de prova, reconduz-se à alegação, subliminar é certo, de que a vítima mentiu em julgamento. Isto é, o que o recorrente está a fazer, na verdade, com uma patente troca de etiquetas, é invocar a falsidade do meio de prova produzido no julgamento, mas fá-lo por via ínvia, sem juntar certidão da sentença onde tal falsidade tenha sido declarada, como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal de 14.02.2013, acima referido e aqui seguido de perto. Ora essa falsidade, subentendida na alegação do recorrente, a existir, tem de ser declarada pelo meio próprio, uma sentença transitada em julgado e não por um papel junto aos autos. Nestas situações, por razões facilmente apreensíveis, a exigência do legislador é qualificada.

13. Neste contexto, não há dúvidas – muito menos, graves dúvidas – sobre a justiça da condenação. O pedido formulado pelo recorrente mostra-se manifestamente infundado.”

II.5. A seguir veio de novo requerer segundo recurso de revisão, invocando a alínea d) do artigo 449 do CPP, que foi decidido por acórdão de 14/07/2022, 506/18.5JACBR-D.S1, também já publicado no sítio da DGSI. Com o seguinte sumário:

“I - Havendo uma diferente versão narrativa dos mesmos factos que já haviam sido contados no julgamento, isso não integra qualquer novidade de meios de prova ou qualquer novidade de factos (art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP).

II - Pretendendo o recorrente a revisão do acórdão condenatório baseado na falsidade de um depoimento prestado em audiência de julgamento, deve juntar (como determina o art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP) sentença transitada em julgado a declarar a falsidade desse depoimento, não bastando para o efeito juntar declaração escrita de retratação da testemunha e prova de ter apresentada queixa crime no Ministério Público.”


Também daí se extrai que o recorrente, para fundamentar este seu segundo pedido de revisão, vem juntar não só a acima referida declaração que se diz ser de 10.11.2021 (que instruiu o primeiro pedido de revisão, que foi negado), como também uma outra, com igual sentido, que data de 8.02.2022, bem como cópia da queixa-crime enviada por correio registado para o DIAP em 13.04.2022 contra a mesma ofendida BB (na qual denunciava a prática por aquela de um crime de falsidade de testemunho previsto no art. 360.º, n.º 1, do CP), concluindo que se trata de um novo facto que coloca em grave dúvida a justiça da sua condenação.

Foi negada a revisão nos seguintes termos:

“O que o recorrente pretende é procurar demonstrar que há um depoimento falso de testemunha ouvida em julgamento.

Neste pedido de revisão apenas se pode avaliar a materialidade subjacente ao documento junto datado de 8.02.2022, complementada com a queixa-crime apresentada no DIAP de 13.04.2022, admitindo que essa articulação pode ser considerada como um diverso fundamento daquele que foi apresentado na revisão anterior, visto o disposto no art. 465.º do CPP.

Ora, o que sucede é que estamos perante uma diferente versão narrativa dos mesmos factos que já haviam sido contados no julgamento, o que não se pode confundir com qualquer novidade de meios de prova ou com qualquer novidade de factos.

E, assim, do que se trata é que o recorrente pretende a revisão do acórdão condenatório baseado na falsidade de um depoimento prestado em audiência de julgamento, pelo que deveria ter antes junto (como determina o art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP), sentença transitada em julgado a declarar a falsidade desse depoimento, o que não fez, por inexistir.

De resto, nem o meio por si utilizado é o adequado, nem serve para substituir a sentença transitada em julgado a declarar a falsidade desse depoimento, que falta (nem mesmo quando o apresenta juntamente com a queixa crime que apresentou no DIAP ...).

Aliás, como esclarecidamente se refere no ac. do STJ de 18.02.2021, “só há lugar à revisão da sentença com base em falsidade de depoimento, se a falsidade resultar de uma outra sentença transitada em julgado.” (art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP).

Portanto, para além de não terem sido apresentados novos factos ou novos meios de prova (o que invalida o preenchimento do pressuposto previsto no art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP), também não foi junta certidão de sentença transitada em julgado a declarar a falsidade do depoimento da testemunha invocada no recurso (BB), o que igualmente impede a invocação do fundamento previsto no art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP.

De esclarecer, ainda, que as declarações apresentadas constituem apenas mera prova documental (art. 164.º do CPP), particular, não servindo para demonstrar a veracidade da declaração neles contida.

Além disso, como assinala o Sr. PGA neste STJ (e foi salientado na informação da Srª. Juiz), “no processo da condenação, no qual, conforme previamente referido, confirmou os factos «de forma espontânea, escorreita e merecedora de credibilidade», a vítima foi submetida a exame pericial e não foram detectados «indicadores significativos de fantasia, mentira ou sugestão» mas antes «um conjunto significativo de indicadores compatíveis com experiências efectivamente vividas». Por outro lado, a sua mãe, em depoimento que o tribunal, com a mais-valia da oralidade e da imediação, considerou credível, afirmou ter «consciência que a filha falou a verdade, pois viu indícios dessa realidade», «achava que o arguido se “agarrava” muito à BB», «já o tinha visto a passar as mãos pelos seios da menor (embora não tenha gostado, pensou que tinha sido uma brincadeira)» e «viu “pingos” no chão do quarto da menor que coincidem com o relato da menor relativamente ao dia em que o arguido terá ejaculado, ficando com a convicção que efectivamente se tratava de vestígios de ejaculação». Neste contexto probatório, a declaração de retractação, na nossa perspectiva, sempre seria insuficiente para suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação, ou seja, para suscitar dúvidas que apontam «seriamente para a absolvição do recorrente como a decisão mais provável».

Ou seja, nem com a versão fáctica alegada na petição da revisão, nem com base nos documentos com ela juntos, se podia concluir que o recorrente tivesse trazido factos novos ou provas novas que fossem suscetíveis de fundamentar a revisão, nomeadamente (o fundamento previsto no art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP), que fossem de molde a criar graves e fundadas dúvidas sobre a justiça da condenação.

Tão pouco o demais alegado em sede de motivação da sua petição da revisão da decisão condenatória suscita quaisquer dúvidas sobre a justiça da condenação, estando, por isso, afastada a autorização da revisão da sentença.

Em conclusão: não se verificam os pressupostos da revisão da sentença requerida pelo recorrente nesta providência, sendo manifestamente infundado o presente recurso extraordinário.”

II.6. Volvendo ao nosso caso:

Nos termos do artigo 465º do CPP, “tendo sido negada a revisão ou mantida a decisão revista, não pode haver nova revisão com o mesmo fundamento.”

 Donde aquilo que constituiu fundamento para os primeiro e segundo pedidos de revisão excluído está para apreciação hic et nunc. No presente pedido de revisão apenas se pode avaliar se a apresentação da queixa para abertura de processo tutelar educativo, única circunstãncia factual alegadamente nova após a decisão do segundo pedido de revisão, constitui fundamento e fundamento diverso para novo pedido de revisão. Já que a materialidade subjacente às declarações juntas datadas 10/11/2021 e de 8.02.2022, e a apresentação da queixa ao DIAP, em 13/04/2022, arquivada em 18/07/2022, com notificação em 20/07/2022, já foram apreciadas e decididas nos dois primeiros processos de revisão.

A queixa para instauração de PTE foi apresentada em 20/07/2022 e foi arquivada por incompetência para o conhecimento da mesma em 08/11/2022, com notificação em 09/11/2022. Esta queixa, ao invés do que pretende o Recorrente, em termos de factualidade repisa a versão do peticionante, nos dois pedidos anteriores, limitando-se, como já o tinha feito, a relatar que a ofendida assumiu ter mentido nas declarações para memória futura prestadas no processo em 18/12/2018. Ou seja, nada traz de novo, nem em termos de meio de prova, nem em termos de facto. Forçoso é, pois, concluir que o peticionante insiste naquilo que apresentou como novos meios de prova ou novos factos e que, por não serem nem uma coisa nem outra, o segundo pedido de revisão rejeitou, e o primeiro também já tinha rejeitado.

Ora, nos termos do artigo 465º do CPP, “tendo sido negada a revisão ou mantida a decisão revista, não pode haver nova revisão com o mesmo fundamento.”   

É verdade que o Recorrente, a cada novo pedido de revisão que apresenta, vai aditando elemento ou elementos de forma a dar a aparência de que o fundamento não é o mesmo e dessa forma ultrapassar a limitação expressa no citado artigo 465º do CPP e, assim, evitar a rejeição liminar ao abrigo de tal normativo.

Todavia certo é que o acrescento para a apresentação deste terceiro pedido de revisão não constitui sequer fundamento. O dito acrescento materializa-se numa mera queixa para instauração de um processo tutelar educativo contra a menor aduzindo que esta prestou falso testemunho no processo de julgamento. Ora, tal processo acabou liminarmente arquivado por impossibilidade legal de instauração. Com o que forçoso é concluir que nem tal queixa constitui meio de prova e muito menos novo meio de prova e nem tal queixa se traduz num novo facto relativo à essencialidade do objeto do processo de condenação. (cfr acs do STJ de 24/11/2021, proc. 516/09.3GEALR-B.S1, 01/07/2020, proc. 739/09.5TBTVR-E.S1, de 18/11/2020, proc. 569/15.5T9GMR-E.S1, e de 13/12/2007, proc. 07P623)

De todo o modo, sempre se dirá, com o segundo dos acórdãos que

“I - Havendo uma diferente versão narrativa dos mesmos factos que já haviam sido contados no julgamento, isso não integra qualquer novidade de meios de prova ou qualquer novidade de factos (art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP).

II - Pretendendo o recorrente a revisão do acórdão condenatório baseado na falsidade de um depoimento prestado em audiência de julgamento, deve juntar (como determina o art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP) sentença transitada em julgado a declarar a falsidade desse depoimento, não bastando para o efeito juntar declaração escrita de retratação da testemunha e prova de ter apresentada queixa crime no Ministério Público.”

Ou, na formulação do primeiro dos acórdãos citados,:

“A revisão de sentença transitada em julgado com fundamento em falsidade de meio de prova relevante para a decisão condenatória, só é admissível quando outra sentença tiver considerado falso o meio de prova.”

Ou na asserção do Acórdão de 23-04-2014, proc. n.º 1231/09.3JAPRT-C.S1:

“A alteração do depoimento de testemunha ou das declarações dos próprios arguidos, modificando a versão anteriormente apresentada na audiência de julgamento, não representa um facto novo, mas antes uma diferente narrativa dos mesmos factos.”

Ou na perfilhação do acórdão de 17-03-2016, proc.  n.º 2/11.1SLPRT-A.S1,:

Desde há muito que o STJ considera que a declaração de uma testemunha onde se altere o depoimento prestado em audiência de julgamento não representa um facto novo, antes uma diferente narrativa dos mesmos factos e daí que não integre o fundamento de revisão da al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP. Apenas uma sentença transitada em julgado que entretanto houvesse considerado falso esse meio de prova pode consubstanciar o fundamento da al. a) do n.º 1 do art. 449.º do CPP.

Ou ainda na afirmação do ac. do STJ de 12/01/2022, proc. nº 107/19.0PJAMD-A.S1,:

“II - Se a retratação de testemunha, declarante ou coarguido vertida em declaração escrita, com assinatura reconhecida notarialmente, fosse relevante, o legislador teria criado uma norma própria que, prescindindo de decisão judicial, conferiria à retratação “falsário” valor bastante para fundamentar a rescisão de uma decisão judicial (condenatória ou absolutória).

III - Ao invés, nos termos da lei - art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP - a falsidade de um meio de prova que tenha sido determinante para a decisão, somente pode fundamentar que se autorize a revisão da condenação quando “uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falso” esse mesmo meio de prova.

IV - Inexistindo tal sentença o recurso extraordinário de revisão está votado ao insucesso.”

Por último, em jeito de obiter dictum, não se afirme que o ordenamento jurídico interno é incapaz de fornecer solução para a questão. Fornece, haja fundamentos de facto e direito concomitante e sempre haverá acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, como rege o artigo 2º, nº 2, do CPC.

Em conclusão: não se verificam os pressupostos da revisão da sentença requerida pelo recorrente nesta providência, sendo manifestamente infundado o presente recurso extraordinário.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão pedida pelo condenado AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC`s, sem prejuízo de apoio judiciário que eventualmente lhe tenha sido concedido.

Nos termos do art. 456.º do CPP, o recorrente vai condenado a pagar a quantia de 15 (quinze) UC`s, por ser manifestamente infundado o pedido de revisão formulado aqui em apreciação.


STJ, 01 de fevereiro de 2023

Ernesto Vaz Pereira (Relator)

José Luís Lopes da Mota (1º Adjunto)

Paulo Ferreira da Cunha (2º Adjunto)

Nuno António Gonçalves (Presidente da Secção)