RECLAMAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INDEFERIMENTO
Sumário


I -    Repristinando argumentos que utilizou na sua motivação de recurso pretende o recorrente, a coberto de uma reclamação, obter decisão de sentido oposto ao assumido no acórdão reclamado.
II -   Porém, não são invocadas, a este propósito, quaisquer nulidades do acórdão nem, tão-pouco, quaisquer motivos justificativos de uma eventual correcção do mesmo.
III - O reclamante limita-se, no caso, a afirmar a sua discordância com o acórdão reclamado. Tal discordância é, naturalmente, legítima; porém, não constitui fundamento de nulidade do acórdão nem, tão pouco, é motivo para a sua correcção.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


I.

1. Nos autos de processo comum  colectivo que, com o nº 586/15.5TDLSB, corre termos no Juízo central criminal ..., J..., o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi julgado e, a final, absolvido da prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1 al. d) e n.º 4 do Código Penal, com referência aos artigos 26.º, 255.º, al. a) e 386.º, n.º 1, al. c) (na redacção das Leis n.ºs 108/2001 e 59/2007) e d) do Código Penal (após a entrada em vigor da Lei 32/2010), que lhe era imputado, mas condenado:

a) pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1, com referência aos artigos 26.º e 386.º n.º 1, al. c) (na redacção das Leis n.ºs 108/2001 e 59/2007) e d) do Código Penal (após a entrada em vigor da Lei 32/2010), na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de proibição do exercício de função de Administrador de Insolvência pelo período de 5 (cinco) anos;

b) na procedência integral ou parcial dos vários pedidos de indemnização cível deduzidos:

i. no pagamento à demandante Massa Falida de M... da quantia de € 10.450,00 (dez mil quatrocentos e cinquenta euros), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e demandado do demais peticionado;

ii. no pagamento à demandante ASCENDUM, S.A. da quantia global de € 18.751,77 (dezoito mil setecentos e cinquenta e um euros e setenta e sete cêntimos), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e, os vincendos até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e o demandado do demais peticionado;

iii. no pagamento à demandante Massa Falida de Champedisco – Cortiças e Exportação, Ld.ª da quantia global de € 283.150,00 (duzentos e oitenta e três mil cento e cinquenta euros), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento;

iv. no pagamento à demandante Massa Falida de Fonsecas – Comércio e Representações, S.A. da quantia global de € 674.548,46 (seiscentos e setenta e quatro mil quinhentos e quarenta e oito euros e quarenta e seis cêntimos), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e o demandado do demais peticionado;

v. no pagamento à demandante Massa Falida de Citrotejo – Comércio e Serviços de Automóvel, Lda. da quantia global de € 143.654,25 (cento e quarenta e três mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e vinte cinco cêntimos), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e o demandado do demais peticionado;

vi. no pagamento à demandante Massa Insolvente da Fonsêcautos – Comércio de Automóveis e Lubrificantes, Ld.ª da quantia global de € 169.569,40 (cento e sessenta e nove mil quinhentos e sessenta e nove euros e quarenta cêntimos), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e o demandado do demais peticionado;

vii. no pagamento à demandante Massa Falida de Carriço & Monteiro, S.A. da quantia global de € 290.224,94 (duzentos e noventa mil duzentos e vinte e quatro euros e noventa e quatro cêntimos), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e o demandado do demais peticionado;

viii. no pagamento à demandante Massa Falida de Organizações Beti S.A. da quantia global de € 46.000,00 (quarenta e seis mil euros), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento;

ix. no pagamento à demandante Massa Insolvente de Marirui – Empreendimentos Imobiliários, Ld.ª da quantia global de € 938.000,00 (novecentos e trinta e oito mil euros), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e o demandado do demais peticionado;

x. no pagamento à demandante Massa Insolvente de FINLUSA – Sociedade de Casas de Madeira, Ld.ª da quantia global de € 17.500,00 (dezassete mil e quinhentos euros), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento;

xi. no pagamento à demandante Massa Falida de BAROBRA – Sociedade de Construções e Projetos, Ld.ª da quantia global de € 95.000,00 (noventa e cinco mil euros), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento;

xii. no pagamento à demandante Massa Falida de Bragança & Bastos, Lda., da quantia global de € 12.765,05 (doze mil setecentos e sessenta e cinco euros e cinco cêntimos), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento;

xiii. no pagamento à demandante Massa Insolvente de Supermercados A.C. Santos, S.A. da quantia global de € 206.908,00 (duzentos e seis mil novecentos e oito euros), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e demandado do demais peticionado;

xiv. no pagamento à demandante Massa Falida de Nunes Barros & Pinto – Construções Civis, Lda. da quantia global de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento;

xv. no pagamento à demandante Massa Insolvente Algestor, Ld.ª da quantia global de € 1.200,00 (mil e duzentos euros), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento.

Foi, ainda, determinada no acórdão proferido, a entrega dos montantes apreendidos nas contas bancárias tituladas pelo arguido, pela Lavapor e pela S... aí identificadas às Massas Insolventes H... BB; Barobra – S. Const. e Proj., Lda.; Nunes Barros & Pinto – Construções Civis, Lda.; A... - Ar Condicionado, Lda.; C.... - Carpintaria, Lda.; M..., Lda.; A..., Lda.; O... - Oficina de Decoração, Lda.; Organizações Beti S.A.; N... & R..., Lda.; MARIRUI – Empreendimentos Imobiliários, Ld.ª; Bragança & Bastos, Lda.; D..., Ld.ª; M...; Champedisco – Cortiças de Exportação, Lda.; F... - Electricidade Mecânica, Lda.; Finlusa – Sociedade de Casas de Madeira, Lda.; G..., ld.ª; J..., S.A.; Fonsecas – Comércio e Representações, S.A.; Carriço & Monteiro, S.A.; Fonserent – Comércio e Aluguer de Veículos, Lda.; Citrotejo – Comércio e Serviços de Automóvel, Lda.; Fonsecautos – Comércio de Automóvel e Lubrificantes, S.A.; P... - Comércio e Automóveis, Lda.; P..., Lda.; A...; Algarestor, Lda.; ; Supermercados A C Santos, S.A.; A..., E..., Ld.ª; M... Soc., Ld.ª, de forma rateada e proporcional aos montantes que foram levantados e transferidos pelo arguido AA das contas dessas massas insolventes.

Foi ainda determinada no mesmo acórdão a entrega do montante apreendido à massa insolvente Lavapor no montante de € 684.110,23, às massas insolventes Marirui – Empreendimentos Imobiliários, Lda.; O... - Oficina de Decoração, Lda.; Bragança & Bastos, Lda.; D..., Lda.; Barobra – Soc. Const. e Proj., Lda.; F... - Electricidade Mecânica, Lda.; M...; C.... - Carpintaria, Lda.; A... - Ar Condicionado, Lda.; Nunes Barros & Pinto – Construções Civis, Lda.; M..., Lda.; Champedisco – Cortiças e Exportação, Lda.; J..., S.A.; G..., Lda; Organizações Beti, S.A.; Finlusa – Sociedade de Casas de Madeira, Lda.; N...; Fonsecas – Comércio e Representações, S.A.; Carriço & Monteiro, S.A.; Bragança & Bastos, Lda.; Citrotejo – Comércio e Serviços Automóvel, Lda.; Fonsecautos – Comércio de Automóvel e Lubrificantes, S.A.; Fonserent – Comércio e Aluguer de Veículos, Lda.; P..., Lda.; A...; D..., Lda.; Algarestor, Lda. e Supermercados AC Santos, S.A., de forma rateada e proporcional aos montantes que foram levantados e transferidos pelo arguido AA das contas dessas massas insolventes a favor da Lavapor.


2. Inconformado, o arguido recorreu directamente para este Supremo Tribunal, pedindo a revogado do acórdão recorrido, “absolvendo-se o arguido do crime pelo qual foi condenado, ou, por dever do patrocínio, quando assim se não entenda, corrigida a qualificação jurídica e, em qualquer caso, reduzida a pena para 3 anos, suspensa no restante da sua execução, mais se julgando, extintos, por caducidade, os pedidos de indeminização civil, bem como deles se absolvendo o demandado por ilegitimidade passiva, e declarado inexistente o acórdão na parte em que declarou/condenou as sociedades S... e Lavapor, por não serem sujeitos processuais nem terem sido demandadas, citadas ou notificadas no processo, com o que farão costumada e esperada JUSTIÇA”.


3. Em 7 de Abril de 2021 foi proferido acórdão neste Supremo Tribunal de Justiça, no qual foi decidido:

a) conceder parcial provimento ao recurso interposto da decisão de admissão liminar dos pedidos cíveis, proferida no despacho em que foi recebida a pronúncia, revogando o despacho recorrido na parte em que liminarmente admitiu os pedidos formulados por

- M...;

- “Massa Falida de Champedisco – Cortiças e Exportação, Ld.ª”;

- “Massa Insolvente da Sociedade Fonsecas – Comércio e Representações, S.A.”;

- “Massa Insolvente da Sociedade Citrotejo – Comércio e Serviços Automóvel, SA”;

- “Massa Insolvente da Sociedade Fonsecautos – Comércio de Automóveis e Lubrificantes, Ld.ª”;

- “Massa Insolvente da Sociedade Carriço & Monteiro, Ld.ª”;

- “Massa Insolvente da Organizações BETI, S.A.”;

- “Massa Insolvente de Marirui – Empreendimentos Imobiliários, Ld.ª”;

- “Massa Insolvente de FINLUSA – Sociedade de Casas de Madeira, Ld.ª”;

- “Massa Falida de BAROBRA – Sociedade de Construções e Projectos, Ld.ª”;

- “Massa Insolvente da Sociedade Comercial Bragança & Bastos, Ld.ª”;

- “Massa Insolvente de Supermercados A.C. Santos, S.A.”; e

 - “Massa Insolvente de Nunes Barros & Pinto, Construções Civis, Ld.ª”, que assim são rejeitados, por intempestividade dos mesmos; e negando provimento ao recurso na parte relativa à admissão liminar do pedido cível formulado pela Ascendum, SA, nessa parte mantendo o despacho recorrido;

b) conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido do despacho proferido em 9 de Dezembro de 2019, na parte em que a Mª juíza titular dos autos decidiu a incompetência do Tribunal em razão da matéria, a falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e a prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido, declarando nulo tal despacho, o que determina – artº 122º, nº 1 do CPP – a invalidade do acórdão, na parte em que não conheceu dessas questões, por as considerar previamente decididas, tal determinando a necessidade de elaboração de novo acórdão, onde o tribunal colectivo conheça das mesmas; e negando provimento ao mesmo recurso no restante;

c) conceder parcial provimento aos recursos (dois) interpostos pelo arguido das decisões proferidas nas sessões de audiência de discussão e julgamento que tiveram lugar em 11 de Fevereiro de 2020 e 18 de Fevereiro de 2020, na parte relativa à sua condenação no pagamento de taxa sancionatória excepcional, nessa parte revogando as decisões recorridas, negando provimento aos mesmos, no restante;

d) negar provimento aos demais recursos interpostos de decisões interlocutórias;

e) conceder provimento ao recurso interposto do acórdão final, declarando o mesmo nulo, por omissão da enumeração dos factos provados e não provados – artºs 368º, nº 2, 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a) do CPP – devendo ser elaborado novo acórdão pelo tribunal recorrido onde, para além de elencar os factos provados e não provados constantes das contestações – penal  e dos pedidos cíveis –, bem como a respectiva indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção, deverá emitir pronúncia sobre as questões supra referidas em III.6 - incompetência do Tribunal em razão da matéria, falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido”.


4. Inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal Constitucional que, por decisão sumária proferida em 27 de Setembro de 2021 e mantida, em sede de reclamação, por acórdão proferido em 20 de Janeiro de 2022, entendeu não conhecer do objecto do recurso.


5. Regressados os autos à 1ª instância foi, em 7 de Abril de 2022, proferido novo acórdão, no qual se decidiu julgar “parcialmente procedente a acusação/pronúncia por parcialmente provada e, em consequência (…):

a) Absolver o arguido AA pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1 al. d) e n.º 4 do Código Penal, com referência aos artigos 26.º, 255.º, al. a) e 386.º, n.º 1, al. c) (na redacção das Leis n.ºs 108/2001 e 59/2007) e d) do Código Penal (após a entrada em vigor da Lei 32/2010), que lhe era imputado.

b) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1, com referência aos artigos 26.º e 386.º n.º 1, al. c) (na redacção das Leis n.ºs 108/2001 e 59/2007) e d) do Código Penal (após a entrada em vigor da Lei 32/2010), na 5 (anos) anos e 6 (seis) meses de prisão.

c) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição do exercício de função de Administrador de Insolvência pelo período que se fixa em 5 (cinco) anos.

d) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo e nos demais encargos, nos termos legalmente determinados, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC´s, (cfr. artigos 513.º e 514.º, todos do Código de Processo Penal e artigo 8.º, do Regulamento das Custas Processuais), tendo em conta a dimensão e complexidade do processo.

e) Julgar o pedido de indemnização cível deduzido pela demandante cível ASCENDUM, S.A. parcialmente procedente, por parcialmente provado, e consequentemente condenar o arguido e demandado AA ao pagamento à demandante da quantia global de € 18.751,77 (dezoito mil setecentos e cinquenta e um euros e setenta e sete cêntimos), a título de indemnização

devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e, os vincendos até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se o arguido e o demandado do demais peticionado;

f) Condenar o demandado e arguido e a demandante civil no pagamento das custas cíveis, na proporção do respectivo decaimento (cfr. artigo 527.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo de isenção de que possam legalmente beneficiar;

g) Determinar ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, a recolha de amostra de vestígios biológicos destinados a análise de ADN ao arguido AA, com os propósitos referidos no n.º 3 do artigo18.º, do mesmo diploma legal, caso não conste ainda o seu perfil da base de dados;

h) Determina-se a entrega dos montantes apreendidos nas bancárias tituladas pelo arguido, pela Lavapor e pela S... identificadas em A. às Massas Insolventes H... BB; Barobra – S. Const. e Proj., Lda.; Nunes Barros & Pinto – Construções Civis, Lda.; A... - Ar Condicionado, Lda.; C.... - Carpintaria, Lda.; M..., Lda.; A..., Lda.; O... - Oficina de Decoração, Lda.; Organizações Beti S.A.; N... & R..., Lda.; MARIRUI – Empreendimentos Imobiliários, Ld.ª; Bragança &Bastos, Lda.; D..., Ld.ª; M...; Champedisco – Cortiças de Exportação, Lda.; F... - Electricidade Mecânica, Lda.; Finlusa – Sociedade de Casas de Madeira, Lda.; G..., ld.ª; J..., S.A.; Fonsecas – Comércio e Representações, S.A.; Carriço & Monteiro, S.A.; Fonserent – Comércio e Aluguer de Veículos, Lda.; Citrotejo – Comércio e Serviços de Automóvel, Lda.; Fonsecautos – Comércio de Automóvel e Lubrificantes, S.A.; P... - Comércio e Automóveis, Lda.; P..., Lda.; A...; Algarestor, Lda.; ; Supermercados A C Santos, S.A.; A..., E..., Ld.ª; M... Soc., Ld.ª, de forma rateada e proporcional aos montantes que foram levantados e transferidos pelo arguido AA das contas dessas massas insolventes;

i) Determina-se a entrega do montante apreendido à massa insolvente Lavapor no montante de € 684.110,23, às massas insolventes Marirui – Empreendimentos Imobiliários, Lda.; Ofidec – Oficina de Decoração, Lda.; Bragança & Bastos, Lda.; D..., Lda.; Barobra – Soc. Const. e Proj., Lda.; F... - Electricidade Mecânica, Lda.; M...; Carpimotas –Carpintaria, Lda.; Arcondi – ar Condicionado, Lda.; Nunes Barros & Pinto – Construções Civis, Lda.; M..., Lda.; Champedisco – Cortiças e Exportação, Lda.; J..., S.A.;

G..., Lda; Organizações Beti, S.A.; Finlusa – Sociedade de Casas de Madeira, Lda.; Navegação Fluvial C. J. Cruz & R. Cruz; Fonsecas – Comércio e Representações, S.A.; Carriço & Monteiro, S.A.; Bragança & Bastos, Lda.; Citrotejo – Comércio e Serviços Automóvel, Lda.; Fonsecautos – Comércio de Automóvel e Lubrificantes, S.A.; Fonserent – Comércio e Aluguer de Veículos, Lda.; P..., Lda.; A...; D..., Lda.; Algarestor, Lda. e Supermercados AC Santos, S.A., de forma rateada e proporcional aos montantes que foram levantados e transferidos pelo arguido AA das contas dessas massas insolventes a favor da Lavapor;

j) Determina-se o levantamento da apreensão das demais contas bancárias”.


6. Mais uma vez inconformado, recorreu o arguido AA directamente para este Supremo Tribunal de Justiça. E em 10 de Janeiro de 2023 foi por este Tribunal proferido acórdão negando provimento ao recurso e confirmando integralmente o acórdão recorrido.


7. Vem agora o arguido AA arguir a nulidade desse acórdão, para tanto alegando:

«1.ª Questão – Nulidade insanável do acórdão por infração às regras de competência em razão da hierarquia, devendo o Supremo Tribunal de Justiça enviar o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa – Acórdão com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional 80/2001 de 21.02.2001

1. É inquestionável que no acórdão reclamado é reconhecido que o recorrente questiona/impugna o julgamento da matéria de fato, como, de resto, sempre o fez ab ovo. Com efeito,

2. Consta (pág. 316) no acórdão recorrido “Discordando do factualismo apurado, restava-lhe impugnar o mesmo, em sede de recurso interposto para o tribunal competente. O arguido, porém, não impugnou a decisão em matéria de facto e recorreu, de direito, diretamente para este Supremo Tribunal de Justiça.”

3. Consta novamente (pág. 331) no acórdão recorrido: “Pretendendo o recorrente impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, deveria ter dado cumprimento ao estatuído no artº 412º, nºs 3 e 4 do CPP e endereçar o recurso ao tribunal competente para dele conhecer – o Tribunal da Relação. Dirigindo o recurso a este Supremo Tribunal, o mesmo visa exclusivamente matéria de direito, podendo - e porque se trata de acórdão proferido pelo tribunal coletivo, que aplicou pena de prisão superior a 5 anos – ter como fundamento a existência dos vícios da decisão a que aludem os nºs 2 e 3 do artº 410º do CPP.”

4. E consta ainda: “Tendo o arguido optado por recorrer diretamente para este Supremo Tribunal e invocado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada, resta dizer que o mesmo não transparece do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo manifesto que o factualismo apurado é suficiente em ordem a alcançar uma solução de direito justa e legalmente correta.”

5. Mas, o acórdão recorrido não toma em consideração que “É certo que “O STJ só conhece dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP por sua própria iniciativa e nunca a pedido do recorrente, que para o efeito terá de interpor recurso para a Relação.” – Ac. do STJ de 03.10.2002 apud Manuel Lopes Maia Gonçalves in Código de Processo Penal Anotado, 16.ª Edição, 2007, pág. 878.

6. O recorrente, por manifesto e evidente lapso, como afirmado no acórdão sub judice, não atentou que o STJ não era competente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso que interpôs questionando outrossim a matéria de facto, mas, sim, o Tribunal da Relação de Lisboa.

7. Certo é que, como foi detetado e afirmado, por várias vezes, no acórdão ora reclamado, a matéria de facto é questionada/impugnada pelo recorrente, além do mais na respetiva motivação e nas conclusões III alíneas g) a m), XX, alíneas g), h), e i), XXII al. c), XXIV als. a) e c), XXVII alíneas j), k), m), n), o), p), q) e t), XXVIII, alíneas n), f), q) r), s), t), u), x) a y) e XXX als. a) a c).

8. Mantém atualidade o acórdão do STJ de 26.06.2003, referenciado in ob. loc. cit., segundo o qual “Para conhecer dos recursos interpostos de um acórdão final do tribunal coletivo em que são invocados quaisquer dos vícios previstos no artigo 410.º do CPP é competente o Tribunal da Relação. II – No recurso direto para o STJ da decisão final do tribunal coletivo só pode invocar-se matéria de direito, e não também matéria de facto, ainda que a coberto dos vícios do artigo 410.º n.º 2 do CPP.”.

9. “Cabe à Relação apreciar os recursos em que se invoquem os vícios referidos no artigo 410 n.º 2 e 3 do CPP98, independentemente de serem bem ou mal invocados, dado que o Supremo não pode conhecer quando tenham por objecto acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo (artigo 432, alínea d), 434, 427 e 428 n.º 1 do citado Código).” – Ac. do STJ de 30.03.2000

10. Igualmente e quiçá ex abundatis, mas por dever do patrocínio, “O recurso que verse, ou verse também, matéria de facto, designadamente os vícios referidos no art. 410°, terá sempre que ser dirigido à Relação, em cujos poderes de cognição está incluída a apreciação da matéria de facto e da consequente matéria de direito (cfr. jurisprudência constante do Supremo Tribunal: v. g., entre muitos outros, o acórdão de 21 de junho de 2001, proc. 1295/01). Se no caso de invocação expressa dos vícios da matéria de facto, o recurso de decisão do tribunal colectivo deve ser interposto para o tribunal da Relação (artigos 432º, alínea d), 434º e 427º do CPP), por igualdade de razão e coerência de sistema também tem de ser interposto para o tribunal da Relação o recurso de decisão do tribunal colectivo em que se suscite a insuficiência do exame crítico das provas, dada a identidade da natureza dos juízos que estão pressupostos à decisão de um e outro.” Ac. do STJ de 16.03.2005

11. O recorrente errou, na verdade, ao endereçar o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, mas por esse erro não perde o direito constitucional de ver o recurso apreciado pelo tribunal competente em razão da hierarquia. Na verdade,

12.“Sendo a fixação da competência uma matéria de interesse e ordem pública, tal natureza subtrai a mesma da livre opção dos recorrentes.” – Ac. do STJ de 20.02.2002 in ob. cit. pág. 940.

13. Portanto, conclui-se que, s. d. r., este Supremo Tribunal de Justiça não tinha, não tem, competência, em razão da hierarquia para julgar o presente recurso, mas sim, ao invés, competente é o Tribunal da Relação de Lisboa, questão que é do conhecimento oficioso e não depende da vontade ou de declaração do recorrente.

14. Vale aqui e mutatis mutandi “A violação das regras da competência em razão da hierarquia pelo tribunal da Relação, constitui nulidade insanável, de conhecimento oficioso, em qualquer fase do procedimento, nos termos do artigo 119 alínea d) daquele Código, pelo que tal acórdão é nulo e de nenhum efeito, devendo o recurso ser para ela remetido, a fim de aí ser apreciado.” - Citado acórdão do STJ de 30.03.2000

15. Significa tudo isto que o recorrente endereçou mal o recurso, é um facto, mas não vê precludir o direito ao recurso quanto à matéria de facto, pois este Supremo Tribunal de Justiça está vinculado ope legis a remeter o recurso para o tribunal competente.

16. O Tribunal Constitucional no acórdão de 80/2001 de 21.02.2001 declarou com força obrigatória geral “...por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição, a norma que resulta das disposições conjugadas constantes dos artigos 33º, nº 1, 427º, 428º, nº 2, e 432º, alínea d), todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal coletivo de 1ª instância pelo arguido e para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação.”.

17. Assim, s. d. r., tendo este STJ, verificado que no recurso o recorrente intentou questionar, como efetivamente, questionou, a matéria de fato devia ter remetido o processo para a Relação, cabendo a esta julgar o recurso em toda a sua plenitude, incluindo a impugnação da matéria de facto efetuada pelo recorrente.

18.E a esse dever de determinar a remessa para o Tribunal da Relação de Lisboa, não é obstáculo a apreciação efetuada por este Supremo Tribunal de Justiça quanto ao modo e suficiência da impugnação efetuada, porquanto não só carece de competência para conhecer de questões de facto, que pertence à Relação e nesta “Se houver o entendimento de que os recorrentes não obedeceram completamente aos comandos previstos no artº 412º, nºs 3 e 4, deverá o Tribunal da Relação mandar aperfeiçoar as conclusões, a fim de assegurar um segundo grau de recurso em matéria de facto.” – Acs. do STJ de 20.09.2006 e 17.05.2007

19. É que também o eventual incumprimento ou cumprimento defeituoso do disposto no artigo 412.º, n.º 3 e 4 do CPP não pode ter como consequência imediata a perda irreparável do direito ao recurso, sem que ao arguido seja dada oportunidade de corrigir as respetivas conclusões.

20. Como decidido no acórdão 485/2008 do TC “A concordância prática entre o valor da celeridade, conatural ao processo penal, e a plenitude das garantias de defesa é possível, coma formulação de convite para, em prazo curto, ser suprida a deficiência, “sem necessidade de se chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem ao valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido (...)” e, por isso, o Tribunal Constitucional decidiu “Julgar inconstitucional, por violação do artigo32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 412.º, n.ºs 2, alínea b), 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a inserção apenas nas conclusões da motivação do recurso das menções aí referidas determina a imediata rejeição do recurso;”

21.E o convite ao suprimento das deficiências tem de ser feito no tribunal competente em razão da hierarquia, para o conhecimento do recurso que é o Tribunal da Relação de Lisboa.

22. De tudo isto decorre, ainda, e s. d. r., que é manifesto que o acórdão recorrido viola o caso julgado constitucional com força obrigatória geral.

23. Resta-nos, assim, invocar hic et nunc, quanto a esta questão a inconstitucionalidade e/ou a violação do caso julgado constitucional, com força obrigatória geral, por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição, da norma que resulta das disposições conjugadas constantes dos artigos 33º, nº 1, 427º, 428º,, e 432º, alínea c), todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal coletivo de 1ª instância pelo arguido e para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação.

24. Assim como invocar outrossim a aplicação de norma julgada inconstitucional com força obrigatória geral fixada pelo acórdão 320/2002 e segundo o qual “O Tribunal declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência”.

2.ª Questão – Violação do caso julgado pelo acórdão de 07.04.2021

1. No primeiro acórdão de 07.04.2021 foi decidido:

2. “Com efeito, lida e relida a decisão recorrida, não encontramos uma única referência aos factos descritos na contestação do arguido, na matéria de facto provada e não provada. (pág. 361 e segs.).

3. Isto é: no douto acórdão recorrido não consta, na enumeração dos factos provados e não provados, uma única referência aos alegados na contestação, sendo certo que esta peça, contendo efectivamente extensas considerações de direito, alberga também alguns factos – particularmente a partir do artº 720º - que não podem considerar-se “irrelevantes”, “conclusivos” ou matéria de direito e, por isso, genericamente abrangidos pela referência contida na parte inicial do ponto II do acórdão.

4. De outro lado, é manifesto que a expressão “Com relevância para a decisão da causa nada mais se provou” não abrange, também, os factos descritos na contestação, porquanto o colectivo teve necessidade de especificar aqueles que, “com relevância para a decisão da causa” se não provaram sendo, todos eles, resultantes da acusação/pronúncia.

5. Que tais referências genéricas de exclusão não abrangiam os factos constantes da contestação resulta, ainda, do facto de na “motivação da decisão de facto” não se fazer referência, mais uma vez, a qualquer facto daquela peça: o tribunal a quo, enunciou o seu processo de formação da convicção, as provas relevantes para a fixação da matéria de facto provada e as razões que presidiram à exclusão da factualidade assente de determinados factos e, nestes, apenas se referiu – mais uma vez – aos descritos na acusação/pronúncia, omitindo qualquer referência à contestação. Aqui chegados, há que concluir, então, que o acórdão recorrido omitiu, na enumeração dos factos provados e não provados e respectiva motivação, qualquer referência aos factos constantes da contestação.

6. Tal nulidade determina a prejudicialidade do conhecimento das restantes, dado que, na sequência do suprimento da mesma pelo tribunal recorrido, se ignoram as consequências desse facto no acórdão a prolatar (pág. 365)

7. Como acima se referiu, a nulidade do acórdão decorrente da omissão da descrição dos factos provados e não provados, determina a elaboração de nova decisão pelo tribunal recorrido (onde, para além de elencar os factos provados e não provados constantes das contestações – penal e dos pedidos cíveis –, bem como a respetiva indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção, deverá emitir pronúncia sobre as questões supra referidas em III.6 - incompetência do Tribunal em razão da matéria, falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido). Em face dessa nova decisão sobre matéria de facto, será naturalmente proferida nova decisão de direito. Deste modo, o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso interposto do acórdão final mostra-se, por ora, prejudicado, só podendo ser apreciadas em função da nova decisão a proferir. (pág. 368)

8. Foi deliberado Conceder provimento ao recurso interposto do acórdão final, declarando o mesmo nulo, por omissão da enumeração dos factos provados e não provados – artºs 368º, nº 2, 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a) do CPP – devendo ser elaborado novo acórdão pelo tribunal recorrido onde, para além de elencar os factos provados e não provados constantes das contestações – penal e dos pedidos cíveis –, bem como a respectiva indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção, deverá emitir pronúncia sobre as questões supra referidas em III.6 - incompetência do Tribunal em razão da matéria, falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido. (pág. 370).”

Ao passo que no acórdão de 11.01.2023 se diz (pág. 275) que:

9. “Como é claro e resulta do texto do acórdão proferido por este Supremo Tribunal em 7 de abril de 2021, não foi ordenado o reenvio do processo para novo julgamento. E isso porque, desde logo, em causa não estava a existência de qualquer um dos vícios elencados no nº 2 do artº 410º do CPP.

10. Com efeito: No parcial provimento do recurso interposto pelo arguido do despacho proferido em 9 de Dezembro de 2019, na parte em que a Mª juíza titular dos autos decidiu a incompetência do Tribunal em razão da matéria, a falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e a prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido, foi declarado nulo tal despacho, o que determinou – artº 122º, nº 1 do CPP – a invalidade do acórdão, na parte em que não conheceu dessas questões, por as considerar previamente decididas.

11. Tal determinou, como consta do referido acórdão, “a necessidade de elaboração de novo acórdão, onde o tribunal colectivo conheça das mesmas” (subl. nosso); bem assim, foi dado provimento ao recurso interposto do acórdão final, declarando o mesmo nulo, por omissão da enumeração dos factos provados e não provados – artºs 368º, nº 2, 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a) do CPP – “devendo ser elaborado novo acórdão pelo tribunal recorrido onde, para além de elencar os factos provados e não provados constantes das contestações – penal e dos pedidos cíveis –, bem como a respectiva indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção, deverá emitir pronúncia sobre as questões supra referidas em III.6 - incompetência do Tribunal em razão da matéria, falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido”(subl. nosso).

12. As nulidades que este Supremo Tribunal, no seu acórdão de 7 de Abril de 2021, declarou, respeitam ao acórdão recorrido (mais exactamente a concretas omissões nele detectadas) e determinaram, como consequência necessária (que aí se declarou) a elaboração de novo acórdão, onde fossem supridas as referidas omissões. Isto e apenas isto. Não foi ordenada a repetição do julgamento (até porque não havia fundamento para tal); antes e tão-só, a elaboração de novo acórdão, naturalmente pelos mesmos juízes que elaboraram o primeiro (pois que foram eles que estiveram presentes no julgamento efectuado e assistiram à produção da prova) e sem necessidade de nova audiência de julgamento destinada à produção de qualquer prova, porquanto não havia qualquer prova a produzir. Em face dessa nova decisão sobre matéria de facto, será naturalmente proferida nova decisão de direito” (subl. nosso). Não se verificam, pois, as nulidades a este propósito apontadas pelo recorrente.

13. De outro lado, não tendo sido ordenado o reenvio do processo para novo julgamento da matéria de facto, manifestamente não se verificam as inconstitucionalidades apontadas pelo recorrente em II. h) e III. q) das conclusões que extraiu da sua motivação de recurso.

14.E para dizer (reafirmar) que este Supremo Tribunal não determinou novo julgamento, ainda que parcial; bem distintamente, ordenou apenas – como pensamos ter já deixado claro - a elaboração de um novo acórdão, a produzir pelos mesmos juízes que elaboraram o primeiro (precisamente porque foram eles que estiveram presentes no julgamento efectuado e assistiram à produção da prova) onde fossem supridas as omissões detectadas.”

A violação do caso julgado anterior é evidente:

- No acórdão de 07.04.2021, foi determinado o “novo julgamento” dos factos relativos à contestação do arguido, em face ao que seria naturalmente proferida “nova decisão de direito”, tendo sido ainda declarado neste acórdão “Deste modo, o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso interposto do acórdão final mostra-se, por ora, prejudicado, só podendo ser apreciadas em função da nova decisão a proferir”, e ainda se declarou/alertou que “Naturalmente, proferida nova decisão, se da mesma vier a ser interposto recurso per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça, deverá ser oportunamente tido em conta o estatuído no artº 379º, nº 3 do CPP.”

- Em lado algum s. d. r., se lê no acórdão de 07.04.2021 que tenha sido deliberado “a elaboração de um novo acórdão, a produzir pelos mesmos juízes que elaboraram o primeiro...”.

- Foi precisamente por que não foi produzida qualquer prova relativa aos fatos alegados na contestação do arguido, com a consequente omissão de descrição dos fatos provados e não provados relativos à contestação do arguido, nem foi efetuado qualquer exame crítico das provas que foi declarada a nulidade do acórdão e determinado reenvio do processo ao tribunal recorrido para suprir tal nulidade, logo viola o anterior acórdão, e também por contradição a afirmação de que “pois que foram eles que estiveram presentes no julgamento efetuado e assistiram à produção da prova.”

- Se não houve produção de prova, obrigatoriamente na audiência de julgamento (art. 355.º/1 do CPP), é óbvio que os senhores juízes da primeira instância não assistiram à produção de prova quanto à contestação do arguido e, logo, não podiam suprir, de memória que, aliás, não detinham, a referida omissão de descrição desses factos.

- Mais grave: é que não houve i. e., não se realizou em momento algum audiência de julgamento para produção de prova dos factos alegados pela defesa do arguido e constantes na contestação e que o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 07.04.2021 não considerou irrelevantes: bem pelo contrário.

- Logicamente que sem audiência de julgamento não há produção de prova, logo não podem os juízes que presidiram ao julgamento terem presenciado, discreteado e valorado a produção de prova e muito menos submetido as mesmas ao contraditório pleno.

15. Como se definiu no acórdão deste STJ de 03.03.2002 “I - O direito ao recurso em matéria penal, no sentido de direito à reapreciação da declaração de culpabilidade e da condenação por uma segunda jurisdição, está inscrito no art. 32.º, n.º 1, da Constituição, como direito fundamental, o que impõe que a lei assegure um regime (no sentido de um duplo grau de jurisdição), prevendo e tornando efectiva tanto a modelação processual de um sistema coerente e acessível de recursos, como os tipos organizatórios adequados e suficientes para concretizar as imposições constitucionais.

II - A modelação (pressupostos; prazos; conformação estritamente processual ou procedimental) supõe regras, e mesmo porventura regras estritas e objectivas, para o exercício do direito; mas também, por outro lado, as dúvidas de interpretação sobre os pressupostos devem ser sempre consideradas em favor do direito (e da garantia de defesa) e não contra o titular do direito. No domínio dos direitos e garantias é a regra do favor reo e o princípio favorabilia amplianda, odiosa restringenda.

III - O princípio do processo equitativo - essencial, fundador e conformador do processo penal - na dimensão de 'justo processo' ('fair trial'; 'due process'), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.

IV - A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.”.

16. Seja ao caso julgado formal seja ao caso julgado material, o Tribunal Constitucional tem reconhecido a proteção constitucional do caso julgado, com base nos princípios da confiança e da segurança jurídica, que decorrem da consagração do Estado de direito democrático, nos termos do artigo 2.º da Constituição (vide, nomeadamente, Acórdãos com os n.ºs 301/2006, 310/2005, 151/2015, 680/2015).

17. Ao ter devolvido o processo ao tribunal recorrido (é em qualquer caso reenvio) para que fosse proferida nova decisão de facto (relativa à contestação do arguido) e nova decisão de direito não há dúvida que viola o caso julgado formal formado pelo anterior acórdão a rejeição da verificação e declaração nulidade decorrente da falta de distribuição do processo, com exclusão dos juízes que intervieram no anterior julgamento e de realização de audiência, com o novo fundamento de que o que havia sido deliberado foi a elaboração de um novo acórdão, a produzir pelos mesmos juízes que elaboraram o primeiro (...) pois que foram eles que estiveram presentes no julgamento efetuado e assistiram à produção da prova.

18. É inconstitucional, por violar os artigos 2.º e 32.º/1 da Constituição, a norma extraída dos artigos 97.º/2, 379.º, 380.º estes ex vi artigo 425.º/4 do CPP, artigo 620.º/1 do CPC ex vi art. 4.º do CPP, na interpretação de que não viola o caso julgado anterior o indeferimento de nulidade do novo acórdão condenatório com o fundamento de que o que foi “..deliberado foi a elaboração de um novo acórdão, a produzir pelos mesmos juízes que elaboraram o primeiro (...) pois que foram eles que estiveram presentes no julgamento efetuado e assistiram à produção da prova...”, quando no acórdão anterior se havia declarado a nulidade do acórdão condenatório, decorrente da omissão da descrição dos factos provados e não provados, determinada a elaboração de nova decisão pelo tribunal recorrido (onde, para além de elencar os factos provados e não provados constantes das contestações – penal e dos pedidos cíveis –, bem como a respetiva indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção, deverá emitir pronúncia sobre as questões supra referidas em III.6 - incompetência do Tribunal em razão da matéria, falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido). Em face dessa nova decisão sobre matéria de facto, será naturalmente proferida nova decisão de direito. Deste modo, o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso interposto do acórdão final mostra-se, por ora, prejudicado, só podendo ser apreciadas em função da nova decisão a proferir.

19. Doutra banda, devemos ter presente que na interpretação da decisão judicial dispositivo e fundamentação devem ser sempre interpretados conjuntamente. A compreensão do dispositivo depende do exame da fundamentação, que também somente será devidamente interpretada a partir do que foi enunciado no dispositivo. A decisão há de ser interpretada, enfim, como um todo. E que as postulações das partes são dados que sempre devem ser levados em consideração para a interpretação da decisão. Cfr. Daniel Freitas in Notas para uma teoria da interpretação da decisão judicial.

20. Mutatis mutandi, “Para alcançarmos o verdadeiro sentido de uma sentença, a sua interpretação não pode assentar exclusivamente no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se também considerar e analisar todos os antecedentes lógicos, que a suportam e a

pressupõem, dada a sua íntima interdependência bem como outras circunstâncias, mesmo posteriores à respetiva elaboração.” – Ac. do STJ de 01.07.2021

21.S. d. r. que é muito, ao contrário do que se refere no acórdão de 07.04.2023,ocorre reenvio do processo sempre que o tribunal de recurso, seja o Supremo seja a Relação, não possa proferir a decisão e o devolva ao tribunal recorrido, como é o caso, quer se trate por nulidades de julgamento ou falta dele quer se trate dos vícios referidos no artigo 410.º do CPP.

22.É inconstitucional, por violar o artigo 32.º/1 da Constituição a norma extraída dos artigos 33.º/1,379.º/1 als. a), e c), este ex vi artigos 425.º/4 e 426.º/1 do CPP na interpretação de que a declaração de nulidade do acórdão recorrido, por omissão de julgamento e consequente descrição no acórdão condenatório da matéria de facto da contestação do arguido e devolução do processo à primeira instância para que proceda a novo julgamento da matéria de fato e novo julgamento de direito não corresponde ao reenvio do processo e, consequentemente os juízes que intervieram no julgamento anterior não estão impedidos de redigir novo acórdão condenatório.

23. Como se fundamentou no acórdão da RE de 06.11.2008 “I – Determinado por um tribunal superior o reenvio do processo para novo julgamento total ou parcial da questão – há sempre lugar, após o novo julgamento e na Instância inferior, ao proferimento de uma nova sentença ou acórdão, no qual se incorporam os resultados da prova produzida em consequência do reenvio, ou seja, se acrescenta à matéria de facto já assente como provada e não provada mais factos, se reformula a fundamentação da decisão da matéria de facto, acrescentando a parte referente ao resultado do reenvio, e se conhece afinal do objecto total ou parcial do processo, balizado pelos objectivos do reenvio, e consoante o mesmo se mostra definido por referência à acusação, à pronúncia, aos pedidos cíveis, às contestações e à discussão da causa, isto é, o tribunal "a quo" extrai as consequências jurídicas do que se provou ou deixou de provar em resultado do reenvio – fundamentação jurídica e penas que até podem vir a ser uma reprodução do que já constava do acórdão primitivo, se o acrescento da matéria de facto provada e não provada derivado do reenvio não impuser uma reformulação da fundamentação jurídica e das penas concretas já aplicadas. II – Enferma de nulidade, por omissão de pronúncia, o acórdão proferido pelo tribunal recorrido que se limita a enunciar os novos factos provados resultantes do reenvio e respectiva fundamentação.”.

3.ª Questão – Nulidade ou, mesmo inexistência do acórdão por condenação com base em “factos” de que não foram produzidas provas por falta de realização da audiência de julgamento.

1. Dispõe o artigo 355.º/1 do CPP, “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.”.

2. Como decorre da acta da audiência de julgamento da sessão dia 11.02.2020 e cujo excerto aqui transcrevemos, o arguido requereu a produção de prova quanto à matéria da sua contestação/defesa.

3. “Considerando o disposto no art.º 344.º do C.P.P. o arguido vem requerer, que fique consignado em acta, que a confissão dos factos deve ser corrigida, como não abrangendo os pontos de facto constantes na acusação sobre os números 22, 25, 27, 30, 32, 37, 39, 40, 51, 52, 53, 579, 580, 581, uma vez que não corresponde, na perspectiva do arguido, à verdade quer nos conceitos quer nas respectivas interpretações, aliás como se decidiu no acórdão do S.T.J. de 06 de 1991, a confissão do arguido, mesmo no caso de ser admitida não impede necessariamente a produção de prova em audiência, mormente,no que respeita à prova da defesa, pelo que o arguido requer a produção de prova, quanto aqueles concretos pontos de facto, tanto mais que os mesmos são claramente impugnados pelos art.º 723.º e seguintes da contestação, e aqueles que se mostram inconciliáveis com a defesa considerada no seu todo, assim requer-se a audição do arguido a tal matéria, e a subsequente produção da prova requerida e indicada pelo arguido.”.

4. Mais consta: “Concedida a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público o qual no seu uso promoveu: Na primeira sessão de julgamento o arguido confessou os factos integralmente e sem reservas, após conferência com o seu ilustre advogado manteve tal confissão tento o mesmo ilustre defensor considerado a confissão do arguido integral e sem reservas, o que resulta claro e não só da acta dessa sessão como da própria gravação (...)Assim em suma, requer-se a prossecução da audiência de julgamento, tendo-se por assente quanto à prova ainda a produzir a confissão integral e sem reservas do arguido.”

5. O tribunal a quo tomou a seguinte deliberação: “Atentas as declarações prestadas pelo arguido quer em sede de 1.º (primeiro) interrogatório de arguido detido, quer as prestadas na audiência de discussão e julgamento, e a posição por si assumida na audiência, conforme resulta da acta do dia 19 de Novembro de 2019, em que o arguido declarou por si e com a não oposição do seu Ilustre mandatário, confessar integralmente e sem reservas os factos que lhe são imputados na acusação/pronúncia, nos termos do disposto no art.º 344.º n.º4 do Código de Processo Penal, delibera este tribunal colectivo, não dever ter lugar à audição das testemunhas indicadas na acusação/pronúncia, e bem assim das testemunhas indicadas nos pedidos de indemnização civil que foram deduzidos pelos assistentes e demandantes e nas contestações do arguido que sejam comuns às indicadas na acusação/pronuncia.”

6. “O princípio do contraditório (art. 327º do CPP) tem tutela constitucional expressa para o julgamento (art. 32º, nº5 CRP). Os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao contraditório e a contraditoriedade abrange tanto a produção como a valoração de todas as provas. Acusação e defesa podem oferecer as suas provas, controlar as provas contra si oferecidas e discutir o valor e o resultado de todas elas. As provas que hão-de ser objecto de apreciação têm, assim, de ser discutidas no contraditório da audiência de julgamento e só estas valem para a decisão (art. 355º do CPP). O direito, reconhecido ao acusado, de “interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação” integra também o direito a um processo equitativo, previsto no art. 6º (nº 3/d)) da CEDH. Na expressão esclarecedora de Damião da Cunha, trata-se da salvaguarda da observância de um contraditório pela (para a) prova e não apenas de um contraditório sobre a prova. “Ponto decisivo num processo de estrutura acusatória é que na audiência de julgamento se concretize um contraditório pela prova”.

7. Na sequência do acórdão deste STJ de 07.04.2021 certo é que não se realizou nenhuma audiência de julgamento.

8. Se nenhuma audiência de julgamento se realizou é óbvio que o acórdão recorrido assenta em provas que não se produziram na audiência de julgamento, pelo que padece de nulidade ou inexistência, vícios estres que também contaminam o acórdão sub judice.

9. Com efeito, o artigo 425.º, n.º 4 do CPP estabelece que “é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º.”

10. Fundamentou-se no acórdão deste STJ de 22.06.2022 Tal normativo reflete o princípio da fundamentação, “consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República, o qual se traduz na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão – n.º 4 do artigo 97.º deste Código. Tal princípio, relativamente à sentença penal concretiza-se, porém, mediante uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a actividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória […]. A lei impõe, pois, que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e os não provados, para o que os deve enumerar, ou seja, indicar um a um, mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação de exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, isto é, dando a conhecer as razões pelas quais valorou ou não valorou as provas e a forma como as interpretou, impondo, ainda, obviamente, o tratamento jurídico dos factos apurados, com subsunção dos mesmos ao direito aplicável […]” (Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2014, pp. 1168 e 1169).”

11. A prova, na vertente penal, produzida antes do acórdão deste STJ de 07.04.2021 foi única e exclusivamente a confissão do arguido, pois não só o Ministério Público na sessão de 11.02.2020 prescindiu das suas testemunhas e produção de prova, como o tribunal de primeira instância indeferiu ali o requerimento do arguido para que fosse produzida a prova que indicara.

12. Nem sequer ao arguido foi consentido depor acerca dos factos da sua contestação!

13. Os documentos não são factos, mas meros meios de prova de factos alegados (Ac. da RG de 02.07.2013) e, para valerem como prova, necessitam de ser discreteados na audiência de julgamento que tem se realizar, não podendo existir, para o Direito, uma sentença não precedido de audiência de julgamento.

14.O tribunal de primeira instância não pode decidir como provados factos da contestação do arguido, com base nos documentos juntos pela acusação, mas para os quais não se realizou audiência de julgamento, sendo, pois, inexistentes, por não valerem como prova, os fatos acrescentados como provados e não provados ao acórdão primitivo, na sequência do acórdão deste STJ que ordenou a realização de novo julgamento de facto, novo julgamento de direito, bem como a prolação de nova decisão final em conformidade com o que ser viesse a apurar na sequência desse novo julgamento.

15.S. d. r. , que é muito, ousamos alegar que julgamento não é o acórdão sendo este uma mera descrição daquele que consiste em decidir e, portanto, é inexistente o acórdão que narra uma decisão sem que quanto a esta não se tenha realizado a audiência de julgamento com a consequente produção de prova.

4.ª – Questão – Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão relativa à relevância probatória da confissão e consequente recusa de aplicação da atenuação especial da pena.

1. Este STJ para negar a aplicação da atenuação especial da pena, plasmada no artigo 377.º-A do Código Penal, considerou que a confissão livre e espontânea do arguido não assumiu relevância para a prova dos factos.

2. Ora, s. d. r., o arguido não pode concordar com tal juízo.

3. A relevância da confissão do arguido é de tal ordem que voltamos a transcrever o que o Ministério Público promoveu: Assim em suma, requer-se a prossecução da audiência de julgamento, tendo-se por assente quanto à prova ainda a produzir a confissão integral e sem reservas do arguido.”

4. A acusação foi julgada procedente exclusivamente com base na confissão integral e sem reservas do arguido.

5. O Ministério Público prescindiu das suas testemunhas e ancorou o seu pedido condenatório na confissão do arguido.

6. Ao confessar, o arguido viu postergar o seu direito constitucional de contraditar as provas, nomeadamente valorar os documentos, caso a caso e que foram apresentados pelo assistente BCP, pois como se refere em sede de recurso, uma parte não despicienda dos movimentos efetuados pelo arguido não só têm justificação legal, como e. g. muitos dos movimentos sequer se realizaram, faltando assinaturas na maioria deles, faltando valorar os créditos e/ou débitos referidos na acusação assim como na contestação.

7. O arguido em momento algum dificultou ou onerou a produção de prova, tanto assim que já em sede de primeiro interrogatório judicial admitiu a «generalidade» dos factos o que levou a que entre esse momento e a acusação nenhuma outra diligência de relevo tenha sido feita no inquérito.

8. Como referido, os documentos não são por si só prova, mas meios de prova que precisam de ser devidamente valorados, i. e., sujeitos ao contraditório na audiência de julgamento de modo o que este se exerça pela prova.

9. A confissão do arguido não constituiu mera estratégia de defesa, mas verdadeira e imprescindível colaboração na descoberta da verdade, para além de inequívoca manifestação de culpabilidade (Ac. da RP de 05.06.2015), para mais, que, como referido, já em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o arguido admitira a generalidade da prática dos factos, e, mais, a confissão do arguido não só foi apenas relevante para a descoberta da verdade, mas verdadeiramente imprescindível para essa finalidade, posto que face a ela o Ministério Público renunciou à produção de prova que lhe cabia.

10."A colaboração com a justiça, enquanto comportamento pós-facto (positivo) do agente do crime, assume enorme relevo jurídico, quer se manifeste sob a forma de confissão, quer se manifeste sob a forma de arrependimento.” - José António Rodrigues da Cunha in A Colaboração do Arguido com a Justiça - A Confissão e o Arrependimento no Sistema Penal Português, pág. 48.

11.“A confissão que se mostre útil para a administração da justiça, designadamente ao nível da descoberta da verdade, não pode deixar de ser valorada no momento da escolha e da determinação da pena.

Com efeito, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, de um modo genérico, toda a colaboração prática com as autoridades na descoberta da verdade deve ser creditada a favor do agente no balanço das necessidades preventivas do caso.”. Idem, pág. 56.

12.A confissão do arguido não só foi útil como determinante ou relevante para a administração da justiça, pois que face a ela o Ministério Público prescindiu das suas testemunhas e o tribunal de primeira instância dispensou inclusive a produção de prova da contestação.

13. Só assim não seria, se e. g., o arguido inicialmente negasse os factos ou se remetesse ao silêncio e, posteriormente confessasse os factos depois de produzida toda a prova contra ele apresentada incluindo a testemunhal e pericial.

14. A norma do artigo 377.º - A do Código Penal, enquanto norma de direito material, sujeita ao princípio da legalidade, deve ser interpretada e aplicada de acordo com o princípio da odiosa restringenda, favorabilia amplianda.

15. As especificações previstas no n.º 2 e na al. b) do n.º 3 do art. 374.º do CPP são obrigatórias e a sua falta determina a nulidade da sentença, nos termos do art. 379.º, n.º 1, do CPP. Ac. do STJ de 29.01.2014

5.ª -Questão – Omissão de identificação de casos em que uns cidadãos são sancionados com coimas e o arguido com pena de prisão.

1. Refere o acórdão reclamado (pág. 307) que “Ora, o arguido não identificou sequer uma única situação em que, perante factualidade igual – ou substancialmente idêntica – à imputada ao arguido, o tratamento subsequente fosse distinto.”

2. Porém, é s. d. r., manifesto o erro do pressuposto de facto de tal afirmação. Na verdade,

3. Consta no ponto 263 da motivação do recurso que: “Não tendo procedido a uma compilação exaustiva certo é que é possível verificar que tanto a CAAJ como, assim, os Tribunais Administrativos não têm, com fundamento no concurso efetivo e na aplicação do artigo 20.º do RGCO, recusado competência para conhecer e sancionar os ilícitos cometidos pelos administradores da insolvência citando-se, a título de exemplo:

- O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16.01.2020, processo 0912/18;

- O acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 10.12.2019, processo 302/18;

- O acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 22.10.2015, processo 01118/10;

- O acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28.01.2016, processo 00001/15;

- O acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15.02.2019, processo 00088/16, todos disponíveis em www.dgsi.pt.”

4. E no ponto 264 da motivação é ainda motivado que “Se bem que se tenha pronunciado, sobre a conformidade do artigo 18.º/1 al. a) do estatuto do administrador judicial, verdade é que o Tribunal Constitucional, no acórdão 332/2019 afirmou a vigência do respetivo regime sancionatório, atestando a conformidade da mesma lei com a Constituição, extraindo-se dos fundamentos do acórdão que “…importa notar que a norma contida no artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Administrador Judicial – que constitui objeto do presente recurso –, operando uma evidente restrição a direitos com projeção constitucional da pessoa visada no processo disciplinar (seja na perspetiva do exercício de uma profissão, previsto no artigo 47.º,n.º 1, seja – atendendo às particulares características do exercício da função em causa – na perspetiva da liberdade de iniciativa económica privada, a que se refere o artigo 61.º, n.º 1), fá-lo para proteção de outros interesses constitucionalmente relevantes.”.

5. E a esta matéria referem-se as conclusões XV alíneas b) e e) do recurso interposto.

6. Sendo que nesta última está concluído que “É possível verificar que tanto a CAAJ, como assim, os Tribunais Administrativos não têm, com fundamento no concurso efetivo e na aplicação do artigo 20.º do RGCO, recusado competência para conhecer e sancionar os ilícitos contraordenacionais cometidos pelos administradores da insolvência, conforme os casos que logramos identificar na motivação.”

7. De todo o modo, além dos acórdão atrás citados este Supremo Tribunal de Justiça, tem acesso direto às publicações da CAAJ no seu sítio na internet e através delas dissiparia as dúvidas de que existem administradores da insolvência sancionados pelas mesmas condutas, mesmos bens jurídicos, mesmas necessidades de prevenção com coima e sanções acessórias.

8. Reproduz-se hic et nunc o printscreen das sanções publicitadas ao dia de hoje:

(…)

9. Também se junta o printscreen das medidas cautelares aplicadas a administradores da insolvência:

(…)

10. Portanto, não pode subsistirem dúvidas de que perante os mesmos ilícitos, existe tratamento desigual violador do artigo 13.º da Constituição demonstrando-se, assim, o erro nos pressupostos de facto do acórdão quanto a esta questão.

11. Aliás, o arguido, em sede de contestação, havia requerido que fosse oficiado à CAAJ para remeter cópias das suas decisões de modo a demonstrar esse tratamento desigual, requerimento esse que foi indeferido, decisão confirmada em recurso.

12. Não foi por falta de diligência do arguido que o tribunal não tomou conhecimento de que o regime legal contraordenacional existe e está a ser aplicado pela CAAJ, pelos Tribunais Administrativos e das poucas vezes que chegou ao Tribunal Constitucional foi afirmada a sua conformidade com a Constituição.

6.ª - Questão - Contradição dos fundamentos de facto com o direito quanto à falta de tipicidade da conduta imputada ao arguido na medida em que, como assente, não foi lesado o bem jurídico direito patrimonial do Estado.

1. Foi suscitada a questão de que, ainda que o administrador da insolvência tivesse a qualidade de funcionário, não lesou qualquer direito patrimonial do Estado na medida em que sobre os montantes em causa não incidia – não incide – qualquer direito patrimonial do Estado.

2. O acórdão recorrido afirma isto mesmo, i. e., de que não está em causa qualquer direito patrimonial do Estado, quando se diz que “O arguido, administrador de insolvência, apropriou-se ilegitimamente de montantes que lhe não pertenciam, mas sim aos credores das massas, ...”

3. Ora, e sempre s. d. r., o acórdão é outrossim e neste particular, contraditório, pois cita Conceição Cunha que afirma “Saliente-se que, quer os bens sejam do Estado quer de particulares, está sempre em causa um direito patrimonial do Estado – a sua propriedade (tratando-se de bens estaduais) ou a sua posse legítima (tratando-se de bens de particulares).”

4. Ou seja, para a consumação do crime de peculato, não basta o exercício de uma função pública, sendo necessário que sobre os bens objeto de ação incida um direito patrimonial do Estado (propriedade ou posse) o que o acórdão não identifica em momento algum.

5. Ao citar a lição de Conceição Cunha o acórdão recorrido reconhece que tem de estar em causa um qualquer direito patrimonial do Estado, mas, depois, contradiz-se na medida em que afirma que os montantes em causa pertenciam aos credores.

6. O que o acórdão não consegue ultrapassar é que os montantes não foram entregues ao arguido para passar a exercer a posse em nome e por conta do Estado o que gera a invocada contradição.

7. Os credores não são Estado nem os seus créditos são confiados ao Estado seja para que finalidade for.

8. Logo é manifesto o erro nos pressupostos de facto o que gera nulidade do acórdão.

Nestes termos e nos melhores de Direito,

E sempre com o mui douto suprimento de vossas excelências, deve ser julgada procedente a presente reclamação e, consequentemente:

(i) Declarada a nulidade insanável do acórdão recorrido, por violação das regras de competência, ordenando-se, nos termos do artigo 33.º/1 do CPP, a remessa do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, ou quando assim se não entenda, mas sem conceder;

(ii) Declarada a nulidade do acórdão sub iudicio, por ofender o caso julgado formado pelo acórdão deste mesmo tribunal de 07.04.2021 e também por erro nos pressupostos de fato de que os juízes que efetuaram o primeiro julgamento assistiram, em audiência de julgamento, à produção de prova dos factos constantes na contestação do arguido, quando certo é que não houve julgamento desses factos e, portanto, não só os juízes do primeiro julgamento não podiam efetuar esse novo julgamento, ainda que parcial como o acórdão das primeira instância enferma de inexistência, por falta de realização da audiência de julgamento; sempre sem renunciar,

(iii) Deve ser reformado o acórdão reclamado, em conformidade com as demais nulidades aqui assinaladas, por manifestos erros nos pressupostos de fato e de direito, substituindo-se por outro que absolva o arguido, ou aplique a atenuação especial da pena, em conformidade com a Lei e com a Constituição, pois só assim se fará Justiça e se cumprirá o Estado de Direito».


5. Respondeu o Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal, pugnando pelo indeferimento da arguida nulidade:

«1 – Por acórdão de 10 de Janeiro de 2023 deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido nestes autos, foi decidido negar provimento ao recurso que havia sido interposto pelo arguido AA do acórdão de 7 de Abril de 2022 do Juízo central criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., por via do qual, e no que ora releva, na parcial procedência da acusação/pronúncia, foi aquele condenado, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1, com referência aos artigos 26.º e 386.º, n.º 1, alíneas c) (na redacção das Leis n.º 108/2001 e 59/2007) e d), do Código Penal (após a entrada em vigor da Lei 32/2010), na pena de 5 (anos) anos e 6 (seis) meses de prisão e, ainda, na pena acessória de proibição do exercício de função de Administrador de Insolvência pelo período de 5 (cinco) anos.

Nessa decisão de 7 de Abril de 2022, foi ainda julgado parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização cível deduzido pela demandante cível ASCENDUM, S.A., e, consequentemente, foi condenado o arguido e demandado AA ao pagamento à demandante da quantia global de € 18.751,77 (dezoito mil setecentos e cinquenta e um euros e setenta e sete cêntimos), a título de indemnização devida por conta dos danos patrimoniais sofridos, a que acrescem os competentes juros de mora legais vencidos, contados desde a data da notificação para contestar e os vincendos até integral e efectivo pagamento, tendo sido absolvido o arguido/ demandado do demais peticionado.

2 – Por reclamação apresentada nos autos em 26.01.2023, o recorrente AA vem arguir 1) a nulidade insanável desse acórdão de 10.01.2023, por infração às regras de competência em razão da hierarquia, devendo o Supremo Tribunal de Justiça enviar o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa – Acórdão com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional 80/2001 de 21.02.2001.

Mais considera ocorrer 2) violação do caso julgado pelo acórdão de 07.04.2021, 3) nulidade ou, mesmo inexistência do acórdão por condenação com base em “factos” de que não foram produzidas provas por falta de realização da audiência de julgamento; 4) contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, relativa à relevância probatória da confissão e consequente recusa de aplicação da atenuação especial da pena, e 5) omissão de identificação de casos em que uns cidadãos são sancionados com coimas e o arguido com pena de prisão.

Termina, pedindo que seja:

(i) Declarada a nulidade insanável do acórdão recorrido, por violação das regras de competência, ordenando-se, nos termos do artigo 33.º/1 do CPP, a remessa do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, ou quando assim se não entenda, mas sem conceder;

(ii) Declarada a nulidade do acórdão sub iudicio, por ofender o caso julgado formado pelo acórdão deste mesmo tribunal de 07.04.2021 e também por erro nos pressupostos de fato de que os juízes que efetuaram o primeiro julgamento assistiram, em audiência de julgamento, à produção de prova dos factos constantes na contestação do arguido, quando certo é que não houve julgamento desses factos e, portanto, não só os juízes do primeiro julgamento não podiam efetuar esse novo julgamento, ainda que parcial como o acórdão das primeira instância enferma de inexistência, por falta de realização da audiência de julgamento; sempre sem renunciar,

(iii) Deve(r) ser reformado o acórdão reclamado, em conformidade com as demais nulidades aqui assinaladas, por manifestos erros nos pressupostos de fato e de direito, substituindo-se por outro que absolva o arguido, ou aplique a atenuação especial da pena, em conformidade com a Lei e com a Constituição, pois só assim se fará Justiça e se cumprirá o Estado de Direito.

3 – Diz o arguido/recorrente/reclamante, a propósito da primeira das apontadas questões, (…) por manifesto e evidente lapso, como afirmado no acórdão sub judice, não atentou que o STJ não era competente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso que interpôs questionando outrossim a matéria de facto, mas, sim, o Tribunal da Relação de Lisboa, asseverando que questionou/impugnou o julgamento da matéria de facto, disso dando conta as conclusões III alíneas g) a m), XX, alíneas g), h), e i), XXII al. c), XXIV als. a) e c), XXVII alíneas j), k), m), n), o), p), q) e t), XXVIII, alíneas n), f), q) r), s), t), u), x) a y) e XXX als. a) a c).

Mais considera que, tendo invocado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada, o acórdão recorrido não toma em consideração que “(…) O STJ só conhece dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP por sua própria iniciativa e nunca a pedido do recorrente, que para o efeito terá de interpor recurso para a Relação.” – Ac. do STJ de 03.10.2002 apud Manuel Lopes Maia Gonçalves in Código de Processo Penal, Anotado, 16.ª Edição, 2007, pág. 878, entendimento em apoio do qual cita diversa jurisprudência do S.T.J., firmada nos já distantes anos de 2000 a 2005, não deixando de dizer que se acaso se tivesse entendido estar-se na presença de um eventual incumprimento ou cumprimento defeituoso das normas a que se referem os n.º 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal (C.P.P.), isto sempre na óptica de o seu recurso visar também a decisão proferida sobre a matéria de facto, nem assim se deveria ter deixado de determinar a remessa do processo para o Tribunal da Relação de Lisboa, instância a quem competia o conhecimento e decisão do recurso sobre a matéria de facto, para concluir que, ademais, o acórdão recorrido (decerto ter-se-á querido dizer o acórdão a que se dirige a reclamação) viola o caso julgado constitucional com força obrigatória geral, referindo-se ao acórdão 80/2001, de 21.02.2001, do Tribunal Constitucional, em que se declarou com força obrigatória geral “...por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição, a norma que resulta das disposições conjugadas constantes dos artigos 33º, nº 1, 427º, 428º, nº 2, e 432º, alínea d), todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal coletivo de 1ª instância pelo arguido e para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação.”.

Salvaguardado o devido respeito, parece que o reclamante labora em equívoco, senão mesmo nalguma confusão.

O mais relevante, até pela implicação que tem na análise desta questão, prende-se com o objecto e natureza do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça pelo arguido AA.

Dispõe o artigo 434.º do C.P.P., que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º.

Referem-se estes preceitos legais aos recursos interpostos a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º; e c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º.

Assim sendo, e se acaso tivesse aquele recurso a componente que o reclamante agora invoca, decerto não teria deixado de ser remetido para o Tribunal da Relação de Lisboa, por ser esse o competente para o efeito.

A questão é que, manifestamente, o recurso em apreço não comporta essa vertente, de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Não, o arguido/recorrente, ora reclamante, não se enganou ao endereçar o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, tal como não se tinha enganado anteriormente quando interpôs recurso, igualmente per saltum, para o Supremo Tribunal de Justiça do primeiro acórdão proferido, em 29.09.2020, na 1ª instância.

Não, o reclamante não incumpriu, ou cumpriu defeituosamente, as normas que regulam o procedimento a observar na impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Diga o que disser o reclamante, em desespero de causa, quiçá, agora que é conhecida a decisão, que lhe é desfavorável, do Tribunal de recurso, o que aquela peça recursiva visa é a discussão e decisão da matéria de direito.

Diga o que disser o reclamante, qualquer das conclusões invocadas no ponto 7 do requerimento em apreço, só pode ser vista na perspectivação das questões de direito suscitadas, na sistematização do recurso, nos respectivos títulos, e não como impugnação de facto.

Essa foi a compreensão do Tribunal ad quem, e outra não poderia ter sido, na realidade.

Já sobre a questão que se prende com o conhecimento dos vícios da decisão, a que se referem as alíneas a), b) e c), do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P., e, em particular, o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, invocado pelo reclamante como fundamento da competência da Relação para o conhecimento do recurso, e sem perder de vista ter sido entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, sedimentado e pacífico, que este Alto Tribunal só conhecia dos vícios da decisão por sua iniciativa, e nunca a pedido do recorrente (cfr. por todos, o acórdão de 16.03.2022, proferido no processo n.º 150/11.8JAAVR.P2.S1, 3.ª Secção, Relatora: Conselheira Conceição Gomes), tal compreensão deixou de poder subsistir a partir de 21 de Março de 2022, data da entrada em vigor das alterações introduzidas ao C.P.P. pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, atenta a redacção que passaram a ter os artigos 432.º e 434.º, com os limites acima apontados, ou seja, quando se trate de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, ou de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, sendo precisamente neste último que se insere a decisão de que foi interposto recurso, em tempo já abrangido pela vigência da norma processual a que se tem vindo a aludir.

Não corresponde, assim, à realidade que agora se vivencia, a afirmação de que (…) este Supremo Tribunal de Justiça não tinha, não tem, competência, em razão da hierarquia para julgar o presente recurso, mas sim, ao invés, competente é o Tribunal da Relação de Lisboa, questão que é do conhecimento oficioso e não depende da vontade ou de declaração do recorrente, nem tem, agora, aplicação a jurisprudência invocada, e, principalmente, é manifesto que, contrariamente ao pretendido pelo reclamante, o acórdão recorrido não viola o invocado caso julgado constitucional com força obrigatória geral.

4 – Na continuação do questionamento do acórdão de 10 de Janeiro de 2023, considera o reclamante que o mesmo atenta contra o caso julgado firmado no acórdão de 7 de Abril de 2021 (aquele que, pela primeira vez, decidiu neste Supremo Tribunal recurso interposto da primitiva decisão condenatória em 1ª instância), porquanto nele se teria determinado novo julgamento” dos factos relativos à contestação do arguido, em face ao que seria naturalmente proferida “nova decisão de direito.

Para que nenhuma dúvida subsista e melhor se compreenda o infundado do alegado pelo reclamante, passa-se a transcrever o que, de relevo, na apreciação desta questão, consta desse acórdão de 7 de Abril de 2021:

(…)

4. E decidindo:

Por razões de natureza metodológica, iniciaremos a apreciação das questões colocadas neste recurso por aquelas onde se mostra suscitada a anulação do acórdão pois que, na eventual procedência das mesmas, mostrar-se-á prejudicado o conhecimento, por ora, das restantes.

F). Nulidade do acórdão por omissão da descrição dos factos provados e não provados:

Entende o recorrente que é nulo o acórdão recorrido, por omissão da descrição dos fatos provados e não provados constantes na contestação.

Afirma que, “compulsado o acórdão recorrido, vemos que nem uma palavra foi dedicada em relação à contestação do arguido quando nesta, além das várias questões de direito, consta matéria de fato relevante quer para a questão de saber se o arguido praticou o crime, e qual o crime, qual o dolo subjacente à sua conduta, quais as quantias que correspondem à sua remuneração e reembolso de despesas e quais as que se destinaram ao pagamento de dívidas das massas (em relação às quais, aliás, nenhum ilícito é praticado) qual a viabilidade de restituição das verbas pela sociedade Lavapor, se as quantias transferidas para esta se trataram de empréstimos”; que tal matéria “está expressamente alegada na contestação, designadamente a partir do artigo 720.º da contestação, sendo de sublinhar que dos artigos 726.º a 756.º é descrito com rigor como, por quem e porque é que foi constituída a sociedade Lavapor”; “sobressaem os artigos 852.º a 870.º da contestação, dos quais resulta a explanação das situações relevantes para a apreciação de qual a real intenção do arguido, avultando que a Lavapor foi uma sociedade que se dedicou à lavagem e tratamento de roupa hospitalar dos hospitais do Estado e que tal atividade foi fortemente afetada do ponto de vista financeiro, dado se ter desenvolvido durante o período da crise financeira (2008/2015), que implicou uma forte quebra nos preços e, consequentemente, respetivas margens”; e que é “bem diferente ou diverso o dolo de quem age com o intuito de enriquecer ilicitamente assim se apropriando do alheio, de quem age com o intuito de superar dificuldades financeiras pontuais por se ter confrontado com condições de financiamento e exploração adversas, mas que sempre acreditou (representou) ter – e tinha – meios para recuperar o dinheiro investido e restituir os valores em causa”.

Na sua resposta, o Exmº magistrado do MºPº, entendendo não se mostrar verificada a pretendida nulidade, afirma não corresponder à realidade a afirmação de que nenhuma palavra é dedicada, no acórdão, à contestação, “o que resulta, desde logo da leitura da Parte I – Relatório do douto acórdão”.

É efectivamente verdade que no relatório do acórdão recorrido se faz referência ao facto de o arguido ter apresentado contestação, aí se sumariando algumas das questões por ele suscitadas em tal peça.

Nem de outra forma poderia ser, aliás. Mas por aí se quedou o tribunal colectivo.

Com efeito, lida e relida a decisão recorrida, não encontramos uma única referência aos factos descritos na contestação do arguido, na matéria de facto provada e não provada.

Sob o ponto II, com o título “Fundamentação de facto” e o subtítulo “Matéria de facto provada” fez-se consignar no acórdão recorrido:

«Apreciada a prova produzida em audiência resultaram provados os seguintes factos, com relevância e pertinência para a boa decisão da causa, sendo os restantes factos irrelevantes, conclusivos e/ou questões de direito:”.

Segue-se a enumeração dos factos provados, todos eles resultantes da pronúncia ou relativos às condições pessoais do arguido e extraídos do respectivo relatório social, bem como relativos aos diversos pedidos cíveis nestes autos formulados, após o que, sob a epígrafe “Factos não provados” se consignou: “Com relevância para a decisão da causa nada mais se provou, designadamente que: ”,seguindo-se a enumeração de vários factos constantes da pronúncia.

Isto é: no douto acórdão recorrido não consta, na enumeração dos factos provados e não provados, uma única referência aos alegados na contestação, sendo certo que esta peça, contendo efectivamente extensas considerações de direito, alberga também alguns factos – particularmente a partir do artº 720º - que não podem considerar-se “irrelevantes”, “conclusivos” ou matéria de direito e, por isso, genericamente abrangidos pela referência contida na parte inicial do ponto II do acórdão. De outro lado, é manifesto que a expressão “Com relevância para a decisão da causa nada mais se provou” não abrange, também, os factos descritos na acusação, porquanto o colectivo teve necessidade de especificar aqueles que, “com relevância para a decisão da causa” se não provaram sendo, todos eles, resultantes da acusação/pronúncia.

Que tais referências genéricas de exclusão não abrangiam os factos constantes da contestação resulta, ainda, do facto de na “motivação da decisão de facto” não se fazer referência, mais uma vez, a qualquer facto daquela peça: o tribunal a quo, enunciou o seu processo de formação da convicção, as provas relevantes para a fixação da matéria de facto provada e as razões que presidiram à exclusão da factualidade assente de determinados factos e, nestes, apenas se referiu – mais uma vez – aos descritos na acusação/pronúncia, omitindo qualquer referência à contestação.

Aqui chegados, há que concluir, então, que o acórdão recorrido omitiu, na enumeração dos factos provados e não provados e respectiva motivação, qualquer referência aos factos constantes da contestação.

E perante tal contestação, que consequências há a retirar?

Dispõe-se no artº 368º do CPP que no processo de deliberação subsequente ao encerramento da discussão, o tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão (nº 1) e, de seguida, “o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa (…)” – nº 2 deste preceito.

Por seu turno, estabelece-se no nº 2 do artº 374º do mesmo diploma que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Temos por pacífico o entendimento que neste Supremo Tribunal se tem vindo a consolidar sobre a abrangência dos factos provados e não provados a enumerar: «Como decorre do nº 2 do art. 368º do CPP e escreve o Conselheiro Oliveira Mendes, no Código de Processo Penal, Comentado 16, a enumeração dos factos provados e dos factos não provados “deve incluir todos os factos submetidos à apreciação do tribunal e sobre os quais a decisão tem que incidir, ou seja, os factos alegados pela acusação e pela defesa, bem como os resultantes da discussão da causa que tenham interesse para a decisão, sendo que no caso de dedução de pedido de indemnização civil, deve ainda incluir os factos constantes do pedido de indemnização e da contestação”» - Ac. STJ de 21/6/2017, Proc. 48/03.3TDPRT.P1.S1.

E, como se escreve no Ac. STJ de 9/11/2011, Proc. 36/06.8GAPSR.S1, «Só a enumeração concreta e especificada dos factos alegados na acusação ou na pronúncia e, eventualmente nos casos em que existam, contestação criminal, pedido cível deduzido e contestação a este, permite ao tribunal superior, em recurso, determinar se certo facto foi efectivamente apreciado e considerado provado ou não provado, ou se, pelo contrário, nem sequer foi considerado».

Mesmo no que concerne aos factos não provados, o Cons. Vinício Ribeiro, “Código de Processo Penal, notas e comentários”, 2ª ed., 1057, dá-nos conta de que numa fase inicial este Supremo Tribunal «admitia como satisfazendo a exigência legal da enumeração dos factos não provados a declaração genérica de “nada mais se provou” ou fórmulas semelhantes (…). Posteriormente, o STJ enveredou pela inadmissibilidade das declarações genéricas (…)».

No mesmo sentido vai a lição de Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 214: “Na sentença, o tribunal tem de indicar os factos provados e os não provados (artº 374º, nº 2). Esses factos não são apenas os factos da acusação, mas também os alegados pela defesa na contestação. O contraditório não se faz apenas nem muitas vezes de modo essencial pela discussão das provas sobre os factos da acusação, mas pela invocação de factos que, desde que provados, ilidem as provas da acusação, afastam a qualificação criminosa ou diminuem a responsabilidade do arguido”.

E ainda no mesmo sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., 967: «O dever de fundamentação da sentença exige: a. a enunciação como provados ou não provados de todos os factos relevantes para a imputação penal, a determinação da sanção, a responsabilidade civil constantes da acusação ou pronúncia e do pedido de indemnização civil e das respectivas contestações (…), incluindo os factos não provados da contestação, importando saber se o tribunal recorrido apreciou ou não toda a matéria relevante da contestação (…)» (negrito do original).

Ora, nos termos do disposto no artº 379º, nº 1, al. a) do CPP, é nula a sentença “que não contiver as menções referidas no nº 2 (…) do artº 374º”.

E assim sendo, há que concluir pela nulidade do acórdão recorrido, por omissão da enumeração dos factos provados e não provados – artºs 368º, nº 2, 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a) do CPP.

Tal nulidade determina a prejudicialidade do conhecimento das restantes, dado que, na sequência do suprimento da mesma pelo tribunal recorrido, se ignoram as consequências desse facto no acórdão a prolatar.

(…)

V. Aqui chegados:

Como acima se referiu, a nulidade do acórdão decorrente da omissão da descrição dos factos provados e não provados determina a elaboração de nova decisão pelo tribunal recorrido (onde, para além de elencar os factos provados e não provados constantes das contestações – penal e dos pedidos cíveis –, bem como a respectiva indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção, deverá emitir pronúncia sobre as questões supra referidas em III.6 - incompetência do Tribunal em razão da matéria, falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido).

Em face dessa nova decisão sobre matéria de facto, será naturalmente proferida nova decisão de direito.

Deste modo, o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso interposto do acórdão final mostra-se, por ora, prejudicado, só podendo ser apreciadas em função da nova decisão a proferir.

Naturalmente, proferida nova decisão, se da mesma vier a ser interposto recurso per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça, deverá ser oportunamente tido em conta o estatuído no artº 379º, nº 3 do CPP.

Por tudo quanto exposto fica e em conclusão, acordam os juízes deste Tribunal em: (…)

e) conceder provimento ao recurso interposto do acórdão final, declarando o mesmo nulo, por omissão da enumeração dos factos provados e não provados – artºs 368º, nº 2, 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a) do CPP – devendo ser elaborado novo acórdão pelo tribunal recorrido onde, para além de elencar os factos provados e não provados constantes das contestações – penal e dos pedidos cíveis –, bem como a respectiva indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção, deverá emitir pronúncia sobre as questões supra referidas em III.6 - incompetência do Tribunal em razão da matéria, falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido.

(…).

É da mais linear apreensão que em parte alguma desse acórdão de 07.04.2021 se decidiu o que pretende o reclamante: a realização de novo julgamento.

O que aí se diz é, sim, e não mais do que isso, que (…) a nulidade do acórdão decorrente da omissão da descrição dos factos provados e não provados determina a elaboração de nova decisão pelo tribunal recorrido (onde, para além de elencar os factos provados e não provados constantes das contestações – penal e dos pedidos cíveis –, bem como a respectiva indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção, deverá emitir pronúncia sobre as questões supra referidas em III.6 - incompetência do Tribunal em razão da matéria, falta de personalidade jurídica e judiciária da demandante e prescrição da responsabilidade civil do demandante/arguido).

Em face dessa nova decisão sobre matéria de facto, será naturalmente proferida nova decisão de direito. (…).

E foi em função do assim determinado que, como lhe competia, procedeu o Tribunal a quo.

Improcede, pois, a pretendida violação de caso julgado.

5 – Segue-se na reclamação em presença, a invocação da sua nulidade, ou mesmo da sua inexistência, por condenação com base em “factos” de que não foram produzidas provas por falta da audiência de julgamento, relativamente ao acórdão de 10 de Janeiro de 2023.

Em causa está a norma do artigo 355.º do C.P.P., de acordo com a qual Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.

A valoração da prova em violação dos nºs 1 e 2 inquina a sentença de vício que implica a prolação de nova decisão com extirpação de respectiva anomia, vício que parte da jurisprudência qualifica de nulidade, como é o caso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/6/2007, publicado na CJ (STJ) XV, II, 230. [1]

Cumpre referir, desde logo, que a arguição desta nulidade, a verificar-se, pela sua própria natureza, só à decisão da 1ª instância poderia ser oposta, que não à proferida em sede de recurso.

Mas, o que importa reter é que, contrariamente ao pretendido, não se verifica qualquer nulidade.

Sobre os elementos de prova considerados pelo Tribunal a quo na formação da sua convicção, no que respeita aos factos provados e não provados, e, em particular, no que respeita aos constantes da contestação apresentada pelo arguido, nas vertentes criminal e civil, dá-nos conta a exposição patente a fls. 170 e ss. do acórdão proferido em 07.04.2022, o que afasta veleidade como a do reclamante, que só a concepção de que a anulação da primitiva decisão da 1ª instância deveria ter dado lugar a novo julgamento – o que, como se viu, não ocorre – permite compreender.

6 – Por fim, e na consideração das demais questões enunciadas na reclamação, concretamente 1) contradição insanável entre a fundamentação e a decisão relativa à relevância probatória da confissão e consequente recusa de aplicação da atenuação especial da pena, 2) omissão de identificação de casos em que uns cidadãos são sancionados com coimas e o arguido com pena de prisão, e, por fim, 3) contradição dos fundamentos de facto com o direito quanto à falta de tipicidade da conduta imputada ao arguido na medida em que, como assente, não foi lesado o bem jurídico direito patrimonial do Estado, verifica-se respeitarem, todas elas, a matérias devidamente equacionadas e decididas no acórdão reclamado, cujo sentido, ainda que o reclamante dele discorde, não é passível de reanálise, esgotado que se mostra o poder jurisdicional deste Alto Tribunal, sendo que, como é manifesto, nenhuma nulidade, de verificação típica, como é sabido, consubstanciam.

7 – Nestes termos, e pelo que antecede, é parecer do Ministério Público dever ser julgada improcedente, nas apontadas vertentes, a reclamação apresentada pelo arguido/recorrente AA».


II. Realizada a conferência, cumpre decidir:


1. Dispõe-se no artº 379º, nº 1 do CPP:

“É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374.º (…);

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

E, nos termos do estatuído no nº 1 do artº 380º do mesmo diploma:

“O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:

a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;

b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial”.

Como é fácil constatar, o reclamante limita-se, no caso, a afirmar a sua discordância com o acórdão reclamado. Tal discordância é, naturalmente, legítima; porém, não constitui fundamento de nulidade do acórdão nem, tão pouco, é motivo para a sua correcção.

Em boa verdade, perante a profundidade, detalhe e acerto da resposta apresentada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, pouco resta acrescentar.

Vejamos, ainda assim:


2. No que diz respeito à 1ª questão suscitada no requerimento em apreciação:

Afirma o recorrente que existe uma “nulidade insanável do acórdão por infração às regras de competência em razão da hierarquia, devendo o Supremo Tribunal de Justiça enviar o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa”. E isto porque, em seu entendimento, se afirma no acórdão reclamado “que o recorrente questiona/impugna o julgamento da matéria de fato”. E aponta como exemplo o seguinte excerto: “Discordando do factualismo apurado, restava-lhe impugnar o mesmo, em sede de recurso interposto para o tribunal competente. O arguido, porém, não impugnou a decisão em matéria de facto e recorreu, de direito, diretamente para este Supremo Tribunal de Justiça.” E, mais adiante: “Pretendendo o recorrente impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, deveria ter dado cumprimento ao estatuído no artº 412º, nºs 3 e 4 do CPP e endereçar o recurso ao tribunal competente para dele conhecer – o Tribunal da Relação. Dirigindo o recurso a este Supremo Tribunal, o mesmo visa exclusivamente matéria de direito, podendo - e porque se trata de acórdão proferido pelo tribunal coletivo, que aplicou pena de prisão superior a 5 anos – ter como fundamento a existência dos vícios da decisão a que aludem os nºs 2 e 3 do artº 410º do CPP.

Afirma o recorrente que pretendia efectivamente impugnar a matéria de facto e que a interposição de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça se deveu a “manifesto e evidente lapso”.

Temos alguma dificuldade em tecer qualquer consideração sobre este “manifesto e evidente lapso” do recorrente.

No acórdão proferido neste Supremo Tribunal em 7 de Abril de 2021, deixámos consignado:

“Na verdade, se há algo de que o arguido se não pode queixar é de ter sido patrocinado neste processo de forma ligeira, desinteressada ou negligente. Toda a defesa do arguido – justiça lhe seja feita – foi organizada e pensada de uma forma estruturada, coerente e empenhada, evidenciando um bom estudo das questões jurídicas subjacentes”.

Afirmar, agora, que interpôs recurso dos acórdãos proferidos em 1ª instância directamente para este Supremo Tribunal “por manifesto e evidente lapso” é algo que nem o dever de patrocínio é capaz de justificar: o arguido recorreu directamente para este Supremo Tribunal não uma, mas duas vezes, identificando as normas ao abrigo das quais o fazia e identificando as questões a submeter à apreciação deste Tribunal, nelas nunca incluindo a impugnação da matéria de facto.

E dizer que este Supremo Tribunal, no acórdão reclamado, afirma que o recorrente impugna a matéria de facto é algo totalmente deslocado da realidade, quando é certo que, como o recorrente bem sabe, aquilo que se afirma no acórdão reclamado é exactamente o contrário.

E tanto assim é que o reclamante acaba por citar um excerto do referido acórdão em que se afirma precisamente o contrário daquilo que ele pretende: “O arguido, porém, não impugnou a decisão em matéria de facto e recorreu, de direito, diretamente para este Supremo Tribunal de Justiça”.

Quando se afirma, no acórdão reclamado, “Discordando do factualismo apurado, restava-lhe impugnar o mesmo, em sede de recurso interposto para o tribunal competente”, ou “Pretendendo o recorrente impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, deveria ter dado cumprimento ao estatuído no artº 412º, nºs 3 e 4 do CPP e endereçar o recurso ao tribunal competente para dele conhecer”, não se está a dizer que o recorrente “discorda” do factualismo apurado, ou que “pretende” impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, como parece evidente e resulta claro para qualquer leitor médio. O que aí se diz é que “caso o recorrente discordasse do factualismo apurado” ou “caso o recorrente pretendesse impugnar a decisão da matéria de facto”. E isso parece-nos tão evidente que nem conseguimos perceber como é possível tentar sustentar o contrário.

De outro lado, certo é que o recorrente não impugnou a decisão em matéria de facto, como expressamente se afirma no acórdão reclamado. Se o pretendia fazer e não o fez, sibi imputet.


3. Aquilo que o reclamante expõe, a coberto da 2ª, 3ª e 4ª questões, é tão-só a manifestação de uma discordância quanto ao decidido no acórdão reclamado. Repristinando argumentos que utilizou na sua motivação de recurso pretende, a coberto desta reclamação, obter decisão de sentido oposto ao assumido no acórdão reclamado.

Porém, não são invocadas, a este propósito, quaisquer nulidades do acórdão nem, tão-pouco, quaisquer motivos justificativos de uma eventual correcção do mesmo.

Mais uma vez: a discordância do recorrente, absolutamente legítima, não fere de nulidade o acórdão recorrido.


4. Como 5ª questão, discute o reclamante o acerto de uma proposição constante do acórdão reclamado: “Ora, o arguido não identificou sequer uma única situação em que, perante factualidade igual – ou substancialmente idêntica – à imputada ao arguido, o tratamento subsequente fosse distinto”. E afirma ter indicado, no ponto 263 da sua motivação do recurso, que: “Não tendo procedido a uma compilação exaustiva certo é que é possível verificar que tanto a CAAJ como, assim, os Tribunais Administrativos não têm, com fundamento no concurso efetivo e na aplicação do artigo 20.º do RGCO, recusado competência para conhecer e sancionar os ilícitos cometidos pelos administradores da insolvência citando-se, a título de exemplo (…)”, indicando alguns arestos de tribunais administrativos.

Mais uma vez: não vem minimamente invocado (muito menos demonstrado) que em qualquer um dos casos referidos a factualidade neles em discussão fosse igual ou substancialmente idêntica à imputada ao arguido.

E, de outro lado, não vemos em que é que a situação apontada integre causa de nulidade do acórdão (nem, em rigor, o reclamante se dá ao incómodo de o referir.


5. Por fim, refere o reclamante (6ª questão) que existe uma “contradição dos fundamentos de facto com o direito quanto à falta de tipicidade da conduta imputada ao arguido na medida em que, como assente, não foi lesado o bem jurídico direito patrimonial do Estado”.

E isto porque, note-se bem, se citou determinado entendimento de Conceição Cunha, alegadamente desconforme com o entendimento perfilhado no acórdão, assim concluindo: “Ao citar a lição de Conceição Cunha o acórdão recorrido reconhece que tem de estar em causa um qualquer direito patrimonial do Estado, mas, depois, contradiz-se na medida em que afirma que os montantes em causa pertenciam aos credores”.

E também aqui e por esse motivo encontra o reclamante uma nulidade, pois que “é manifesto o erro nos pressupostos de facto o que gera nulidade do acórdão”…

O excerto do acórdão a que se refere o reclamante é este:

“No mesmo sentido aponta Conceição Ferreira da Cunha [2]: “Saliente-se que, quer os bens sejam do Estado quer de particulares, está sempre em causa um direito patrimonial do Estadoa sua propriedade (tratando-se de bens estaduais) ou a sua posse legítima (tratando-se de bens de particulares) -, estando também neste segundo caso presente a tutela do direito de propriedade dos particulares (…)”; que acrescenta [3]: “O dinheiro ou coisa móvel (…) podem ser públicos ou particulares, embora estejam sujeitos, ainda que temporariamente, ao poder público” (negr. do original) [4]. O negrito era, efectivamente, do original; o sublinhado foi agora acrescentado, para que não subsistam dúvidas.

Também aqui, portanto e como no restante, é manifesta a sem razão do reclamante.


III. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a arguida nulidade do acórdão, condenando o requerente em 3 UC’s de taxa de justiça.


Lisboa, 15 de Fevereiro de 2023 (processado e revisto pelo relator)


Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

Ana Brito (Juíza Conselheira adjunta)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro adjunto)

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[1] Cfr. Conselheiro Oliveira Mendes, Comentário, página 1091, in Código de Processo Penal Comentado.
[2] “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo III, 688.
[3] Op. cit., 694.
[4] Ainda no mesmo sentido, cfr. Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal, Parte Geral e Especial”, notas 5 e 9 ao artº 375º, p. 1316 e 1317, bem como Simas Santos e Leal-Henriques, “Código Penal anotado”, vol. IV, 841.