I. No caso foi proferida sentença a 24/05/2021, transitada em julgado a 02/07/2021, nos termos da qual o Tribunal decidiu:
“a) Julgar provada a prática pelo arguido de actos objectivamente integradores de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, 183.º, nº 1, al. a), 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts 22 e 23, 154 nº 1 e 2 e 155 nº 1 al. a) e al. c) por referência ao art. 132 nº 2 al. l), todos do Código Penal;
b) Declarar o arguido inimputável perigoso, por força de anomalia psíquica, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal;”
II. Na sequência, em aplicação de medida de segurança, determinou-se o internamento e tratamento do arguido em estabelecimento psiquiátrico adequado à sua patologia, pelo período mínimo de 1 (um) mês e máximo de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses”.
III. O peticionante deu entrada na Clínica Psiquiátrica em 10/01/2023. Pelo que o termo do internamento ocorrerá em 10/05/2026, com, ut art. 93º, nº 2 do C.P., obrigatória revisão até 10/01/2025. (cfr também art. 501º do CPP).
IV. O peticionante considera não ter praticado qualquer ilícito, ou por falecerem os respetivos elementos típicos ou por estar excluída a ilicitude ou por faltar o dolo.
V. No momento, e é neste momento que tem se aferir da legalidade do internamento, face ao princípio da atualidade, o internamento continua sustentado em tais factos dados como provados na decisão que lhe aplicou a medida de segurança de internamento e sem ultrapassar o limite que lhe foi fixado.
VI. A pretensão do Requerente acaba por ser a de reapreciação factual do seu caso. Só que a providência de habeas corpus, não se configurando como adicional recurso, não cuida da reanálise do caso trazido à sua apreciação, visa antes e só a eventual constatação de uma atual ilegalidade do internamento patente, em forma de erro grosseiro ou de manifesto abuso de poder. E in casu inexiste qualquer abuso de poder ou ilegalidade na aplicação da medida de segurança de internamento em cumprimento.
I - RELATÓRIO
I.1. No processo n.º 3179/18.1T9ALM-A.S1, o arguido AA detido na Clínica ... do EP ..., desde 10/01/2023, apresentou, subscrito por si, em manuscrito, pedido de habeas corpus, nos seguintes termos:
“AA com identificação ... com o NIF ... número de segurança social ... nascido em .../10 /72 com residência na rua ... ... número ... ... freguesia ... concelho ... distrito ... e recluso na Clínica ... do EP ... com o número ... vem por este meio declarar o habeas corpus requerendo a libertação imediata.
I
O aqui requerente da liberdade encontra-se privado dela devido aos factos contidos no processo n.º 3179/ 18.1T9 ALM
Ora, o contido no processo em questão enquadra no artigo 16 º/2 do CP, havendo exclusão da ilicitude.
Tal acontece porque a frase proferida pela queixosa (doravante BB), que é.
“Na sua opinião não existe pretensão legal o que explicou tal circunstância ao aqui requerente da liberdade (doravante RL) e que o RL não aceita tal coisa “
Digo aqui o RL que isso é mentira.
Se e somente uma frase, falha verdade é que poderá haver ilícito, mas adianta-se que não existe dolo genérico.
II
Descrição de todo o contato tido com BB
Fui à revisão com BB, e ela apresentou-se de folhas brancas e um lápis.
Perguntei-lhe se tem os escritos informáticos que lhe enviei acerca da questão que iria patrocinar. Em seguida ponho-me a explicar à parte da questão entre mim e o denunciado por aqui RL ter sido vítima do dolo de perigo. BB diz que vai abrir a Constituição de assistente, mas que vai dar escusa. Perguntei-lhe porquê; ou seja, qual o motivo da escusa. Diz BB que “os advogados têm Independência de técnica…”
Terminando a frase com mais duas ou três palavras que nada justificam de forma clara e objetiva.
Dos escritos que deram azo à acusação efetuada foram e foram enviados devido a aborrecimento.
“Venho por este meio dar-lhe um prazo de 10 dias para me informar do motivo da escusa, se não cenário possível pode ser ir parar a buraco onde não se mexe.”
Os outros e-mails foram:
“Agora que já passaram 10 dias, lá para o fim do ano irá ter notícias minhas”
Lá para o fim do ano seria quando o prazo de 6 meses para apresentar a queixa se extinguia.
“Ladrões, Delinquentes, …, bater, matar”
Estes e-mails devem ter sido enviados depois de contatar a O.A a requerer o motivo da escusa. Nada disseram.
Ao primeiro e-mail afirmam que constitui um crime de coação. A mim parece-me que boa educação.
Do terceiro e-mail, conhecem-se por um crime de injúria. Vê-se que este e-mail está no plural e como é bem sabido não se julgam pessoas sem que haja certa de condenação. O Tribunal Judicial ..., como o exemplo, julgam-me bem, sabendo que ilícito algum cometi. Esse julgamento foi salvo erro em 2009. Por isso recai este e-mail no artigo 16º/2 CP.
Os e-mails foram todos enviados depois da reunião. A reunião durou cerca de 5 minutos e foram todas as palavras as que estão descritas ditas.
Os e-mails denotam aborrecimento pois contêm erros de sintaxe. Como bem se sabe aborrecimentos não constituem ilícito algum.
III
Considerando-se outra vez a frase proferida por BB, no processo com referência ...42 e no nº 3179/18.1T9ALM “Na sua opinião não existe pretensão legal e que explicou tal circunstância ao arguido ele não aceitou.”
A única coisa provada é que deu escusa e afirma BB que o disse na reunião. Já tinha eu afirmado que tal é mentira.
O processo que foi dado a BB para patrocinar recai num juízo de valor, intencional e enquadrado no dolo de perigo (dano de resultado) e até se pode considerar, crime continuado, onde a minha pretensão está aprovada. Este processo pode ser consultado no TAF..., ou seja pode-se considerar a escusação particular por mim efetuada.
Se uma acusação particular tiver fundamento, o que deve ter, pelo artigo 16º/ 2, exclui-se o ilícito.
IV
A única coisa provada na frase em questão é que BB deu escusa.
BB nada de claro ou objetivo afirmou acerca do processo que lhe foi entregue.
Assim pelo artigo 16º/2 não se indica a ilicitude.
V
Como consta o julgamento foi feito à revelia, isto é, não lhes respondi.
Fui prestar as declarações neste caso e terei afirmado que só aceito o arquivamento tudo o resto é correspondido com Habeas Corpus. Assim o fiz.
Por último sou uma pessoa muito chateada com as instâncias criminais locais.
Pode-se falar em julgamento sem ilícito, falta de acusação em crimes públicos, etc.
Prometo fazer melhor, na medida do possível, mas julgar uma pessoa quando esta não cometeu qualquer ilícito, sendo isso provado.
VI
O aqui RL é intitulado (?) de doente mental psicótico, porém afirma com frases de seriedade e convicção absoluta que nunca cometeu qualquer crime doloso.”
I.2. O peticionante não invoca qualquer das alíneas do artigo 222, nº 2, do CPP para sustento da sua pretensão.
I.3. Veio a informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP, do seguinte teor:
“Nos presentes autos, de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi deduzida acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de coação agravada na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º e 23.º, 154.º, n.º 1 e 2, e 155.º, n.º, 1 al. a) e al. c), por referência, ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal, e um crime de injúria gravada, p e p pelo artigo 181.º, n.º 1 e 184.º, por referencia ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal.
Realizou-se audiência de julgamento, com observância das formalidades legais e na ausência do arguido, tendo este sido regularmente representado na pessoa da sua Ilustre Defensora Oficiosa.
Foi proferida sentença a 24.05.2021, transitada em julgado a 02.07.2021, nos termos da qual o Tribunal decidiu:
“a) Julgar provada a prática, pelo arguido AA, de actos objectivamente integradores de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, 183.º, nº 1, al. a), 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts 22 e 23, 154 nº 1 e 2 e 155 nº 1 al. a) e al. c) por referência ao art. 132 nº 2 al. l), todos do Código Penal.
b) Declarar o arguido AA inimputável perigoso, por força de anomalia psíquica, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal;
c) Absolver, por isso, o arguido AA da prática de de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, 183.º, nº 1, al. a), 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts 22 e 23, 154 nº 1 e 2 e 155 nº 1 al. a) e al. c) por referência ao art. 132 nº 2 al. l), todos do Código Penal.
d) Determinar o internamento e tratamento do arguido em estabelecimento psiquiátrico adequado à sua patologia, pelo período mínimo de 1 (um) mês e máximo de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses”.
Por despacho proferido a 06.09.2021, transitado em julgado, foi o arguido considerado notificado da sentença proferida nos autos.
A 13.12.2022 veio a DGRSP indicar unidade de saúde mental não prisional para cumprimento da medida de segurança aplicada ao arguido, tendo sido emitidos os competentes mandados de detenção.
No dia 10.01.2023, o arguido deu entrada na Clínica ..., para cumprimento da medida de internamento.
Por despacho de 25.01.2023, foi homologada a liquidação da medida de segurança de internamento aplicada ao arguido, cujo termo máximo ocorrerá em 10.05.2026.
O arguido encontra-se, actualmente, em cumprimento da medida de segurança de internamento, de forma ininterrupta, desde 25.01.2023.
Vem o arguido ora colocar em causa a sua condenação, invocando que actuou ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, nos termos do artigo 16.º, n.º 2 do Código Penal, concluindo que, não obstante padecer de doença mental psicótica, nunca cometeu nenhum ilícito.
Constata-se, porém, conforme decorre do acima exposto que o arguido foi julgado nos presentes autos, tendo sido proferida sentença, da qual não foi interposto recurso, já se encontrando transitada em julgado.
A audiência de julgamento decorreu na ausência do arguido, porquanto este não compareceu, porém, foi regularmente representado, para todos os efeitos, na pessoa da sua Ilustre Defensora Oficiosa.
Em face do exposto, entende-se que a privação da sua liberdade não é ilegal e deve manter-se, não se mostrando ultrapassado o prazo legalmente fixado para a cessação da medida de segurança de internamento aplicada nem tendo sido coligida para os autos qualquer informação que justifique a sua cessação, nos termos do artigo 92.º, n.º 1 do Código Penal.”
I.4. O processo mostra-se instruído com certidão dos autos composta pelo requerimento para petição de Habeas Corpus, apresentado pelo arguido, e certidão do despacho de recebimento da acusação de fls. 208, promoção e despacho de fls. 250-251, das actas de audiência de julgamento de fls. 303-308 e 329-330, sentença proferida nos autos a fls. 316-328, com certificação do trânsito em julgado, informação de fls. 337-337v, promoção e despachos de fls. 339 e 342, informação de fls. 369, informação de fls. 380 e 387, e promoção e despacho de liquidação da medida de fls. 391 e 395.
I.5. Objeto do presente habeas corpus
Citemos as frases relevantes para o pedido: “o contido no processo em questão enquadra no artigo 16 º/2 do CP, havendo exclusão da ilicitude. mas adianta-se que não existe dolo genérico.”; “Dos escritos que deram azo à acusação efetuada foram e foram enviados devido a aborrecimento. Ao primeiro e-mail afirmam que constitui um crime de coação. A mim parece-me que boa educação.”; “Do terceiro e-mail, conhecem-se por um crime de injúria.”; “Vê-se que este e-mail está no plural e como é bem sabido não se julgam pessoas sem que haja certa de condenação.”; “O Tribunal Judicial ..., como o exemplo, julgam-me bem, sabendo que ilícito algum cometi.”; “Esse julgamento foi salvo erro em 2009. Por isso recai este e-mail no artigo 16º/2 CP.”; “Os e-mails denotam aborrecimento pois contêm erros de sintaxe. Como bem se sabe aborrecimentos não constituem ilícito algum.”; “Se uma acusação particular tiver fundamento, o que deve ter, pelo artigo 16º/ 2, exclui-se o ilícito. Assim pelo artigo 16º/2 não se indica a ilicitude.”; “Pode-se falar em julgamento sem ilícito, falta de acusação em crimes públicos, etc.”; “Prometo fazer melhor, na medida do possível, mas julgar uma pessoa quando esta não cometeu qualquer ilícito, sendo isso provado.”.
Ao que, por via de tal argumentário, se extrai da petição apresentada, o fundamento da mesma é ter havido aplicação de medida de segurança sem suporte factual ou sem suporte factual típico, ausência de facto ou falta de facto típico que impediriam a aplicação de medida de segurança e, na proibição invocada, integrariam a previsão da ilegalidade da al. b), do nº 2, do artigo 222 do CPP.
O peticionante considera não ter praticado qualquer ilícito, ou por falecerem os respetivos elementos típicos ou por estar excluída a ilicitude ou por faltar o dolo.
Invocando o peticionante a falta de elementos típicos ou a falta de ilicitude ou a inexistência de dolo, o fundamento da petição caberá na alínea b) do nº 2 do artigo 222º do CPP: ilegalidade da prisão por “ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite.”
Impõe-se, pois, julgar se o internamento e tratamento do arguido em estabelecimento psiquiátrico adequado à sua patologia, internamento em cumprimento desde 10/01/2023, se mostra ilegal face a tal dispositivo.
I.6. Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 223.º do CPP.
Após o que a Secção reuniu para deliberar, fazendo-o nos termos que se seguem.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto
II.1. Nos autos, de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 3179/18.1T9ALM-A a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ..., juiz ..., foi deduzida acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de coação agravada na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º e 23.º, 154.º, n.º 1 e 2, e 155.º, n.º, 1 al. a) e al. c), por referência, ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal, e um crime de injúria gravada, p e p pelo artigo 181.º, n.º 1 e 184.º, por referencia ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal.
Realizou-se audiência de julgamento, com observância das formalidades legais e na ausência do arguido, tendo este sido regularmente representado na pessoa da sua Ilustre Defensora Oficiosa.
Foi proferida sentença a 24.05.2021, transitada em julgado a 02.07.2021, nos termos da qual o Tribunal decidiu:
“a) Julgar provada a prática, pelo arguido AA, de actos objectivamente integradores de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, 183.º, nº 1, al. a), 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts 22 e 23, 154 nº 1 e 2 e 155 nº 1 al. a) e al. c) por referência ao art. 132 nº 2 al. l), todos do Código Penal.
b) Declarar o arguido AA inimputável perigoso, por força de anomalia psíquica, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal;
c) Absolver, por isso, o arguido AA da prática de de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, 183.º, nº 1, al. a), 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts 22 e 23, 154 nº 1 e 2 e 155 nº 1 al. a) e al. c) por referência ao art. 132 nº 2 al. l), todos do Código Penal.
d) Determinar o internamento e tratamento do arguido em estabelecimento psiquiátrico adequado à sua patologia, pelo período mínimo de 1 (um) mês e máximo de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses”.
Por despacho proferido a 06.09.2021, transitado em julgado, foi o arguido considerado notificado da sentença proferida nos autos.
A 13.12.2022 veio a DGRSP indicar unidade de saúde mental não prisional para cumprimento da medida de segurança aplicada ao arguido, tendo sido emitidos os competentes mandados de detenção.
No dia 10.01.2023, o arguido deu entrada na Clínica ..., para cumprimento da medida de internamento.
Por despacho de 25.01.2023, foi homologada a liquidação da medida de segurança de internamento aplicada ao arguido, cujo termo máximo ocorrerá em 10.05.2026.
O arguido encontra-se atualmente em cumprimento da medida de segurança de internamento, de forma ininterrupta, desde 10.01.2023.
Direito
II.2. O art. 27º, da Constituição da República Portuguesa consagra o direito à liberdade pessoal, como direito fundamental, é de aplicação direta e vincula todas as entidades públicas e privadas e a sua limitação, suspensão ou privação apenas opera nos casos e com as garantias da Constituição e da lei – arts. 27º, nº 2 e 28º, da CRP, e art. 5º, da Convenção Europeia dos Direitos do Humanos.
“A liberdade é um momento absolutamente decisivo e essencial – para não dizer o próprio e constitutivo modo de ser – da pessoa humana (Ac. do TC nº 607/03: “exigência ôntica”), que lhe empresta aquela dignidade em que encontra o seu fundamento granítico a ordem jurídica (e, antes de mais, jurídico-constitucional) portuguesa (art. 1º da Constituição). Pode dizer-se, nesse sentido, a “pedra angular” do edifício social” (Ac. do TC nº 1166/96)”. (in “Constituição Portuguesa Anotada”, Jorge Miranda e Rui Medeiros, nota ao artigo 27, Universidade Católica Editora, 2ª edição).
Mas a CRP não absolutiza tal direito, porque, admite que seja restringido em expressos e contados casos, além do mais, em caso de aplicação judicial de medida de segurança. (27º, nºs 2, da CRP)
Para garantia do primado da liberdade e evitação do abuso de poder, o art. 31º, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Habeas Corpus”, consagra no seu nº1 que «Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente».
Maia Costa, recuperando a discussão havida na IV Revisão Constitucional à volta do artigo 31º e da latitude do habeas corpus lembra a posição de Barbosa de Melo, que fez vencimento, no sentido de o “abuso de poder” integrar um elemento material que acresce a um elemento formal que é a detenção ou prisão ilegal. Sendo dois elementos distintos, o “abuso de poder” será um plus relativamente à ilegalidade da privação da liberdade, ou seja, uma actuação especialmente gravosa no âmbito dessa ilegalidade. Por isso que, nem toda a detenção ou prisão ilegal envolverá necessariamente “abuso de poder”. Mas, frisa, Maia Costa, o “abuso de poder” não deve ser entendido como elemento subjetivo da atuação da entidade responsável pela privação da liberdade, antes como elemento objetivo: gravidade excecional da violação da lei.” (in “Habeas Corpus: passado presente e futuro”, “Julgar” on line, nº 29, 2016, Maia Costa).
A Lei Fundamental tal importância lhe atribuiu que fixou logo a seguir o prazo célere e urgente de oito dias para a sua decisão, em audiência contraditória, e, em “acção popular”, permitiu que um terceiro requeresse o habeas corpus (nºs 2 e 3).
Na sequência o CPP conformou-a em providência simples e expedita dirigida diretamente ao Presidente do STJ e com os fundamentos taxativos do artigo 222, nº 2.
Assim, sob a epígrafe “habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, dispõe o artigo 222 do CPP:
“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”
II.3. Resulta dos elementos enviados e da informação remetida que estamos perante a aplicação de uma medida de segurança de internamento, por sentença de 24.05.2021, transitada em julgado a 02.07.2021, pela prática de actos objectivamente integradores de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, 183.º, nº 1, al. a), 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts 22 e 23, 154 nº 1 e 2 e 155 nº 1 al. a) e al. c) por referência ao art. 132 nº 2 al. l), todos do Código Penal, na sequência de declaração do arguido AA, aqui peticionante, inimputável perigoso, por força de anomalia psíquica, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal;
O peticionante acaba a colocar em causa a realização do julgamento e a decisão proferida no que à aplicação da medida de segurança concerne.
Certo é que, a sentença foi proferida na presença do seu defensor, lhe foi notificada e transitou em julgado (cfr certidão junta).
E transitou em julgado por dela nem sequer ter sido interposto recurso. ou seja, nos termos processuais penais o arguido conformou-se com a mesma.
Diga.se desde já que a medida de internamento, por via da sentença transitada, foi proferida pelo juiz competente, o juiz ... do Juízo Local Criminal .... Com o que afastada fica eventual ilegalidade da aplicação de medida de internamento por entidade incompetente, que, aliás, não vem invocada (cfr artigo 222, nº 2, al. a), do CPP).
Por outro lado, a medida de internamento foi aplicada por factos pelos quais a lei a permite. Foi proferida sentença a 24.05.2021, transitada em julgado a 02.07.2021, nos termos da qual o Tribunal decidiu:
“a) Julgar provada a prática, pelo arguido AA, de actos objectivamente integradores de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, 183.º, nº 1, al. a), 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts 22 e 23, 154 nº 1 e 2 e 155 nº 1 al. a) e al. c) por referência ao art. 132 nº 2 al. l), todos do Código Penal.
b) Declarar o arguido AA inimputável perigoso, por força de anomalia psíquica, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal;
A jurisprudência do STJ, pese embora o preceito constitucional e o regime processual que lhe dá corpo utilizem apenas os termos prisão e detenção, vem entendendo que o habeas corpus se aplica as restrições à liberdade ambulatória expressamente admitidas no art.º 27º da Lei Fundamental. Por via de aplicação de medida de segurança, o internamento de inimputáveis perigosos em estabelecimento de cura, tratamento e segurança é, sem dúvida, uma das restrições à liberdade ali enunciadas. Podendo, pois, reagir-se contra a ilegalidade da mesmo por abuso de poder, através da providência de habeas corpus (acs do. STJ de 11/7/2019, Proc. 1609/18.1T9AMD-D.S1, de 21/04/2021, proc. nº 523/17.2PBEVR-B.S1, e de 16/03/2022, proc. nº 2782/10.2TXPRT-G.S).
O peticionante acaba a colocar em causa a prática de tais factos e a decisão proferida no que à aplicação da medida de segurança concerne. Mas, certo é que, a sentença foi proferida na presença do seu defensor, lhe foi notificada e transitou em julgado. E transitou em julgado por dela nem sequer ter sido interposto recurso. ou seja, nos termos processuais penais, o arguido conformou-se com a mesma.
Ora, a pretensão do aqui peticionante deveria ter sido colocada em sede de recurso ordinário da decisão da dita sentença. Era esse o lugar próprio para impugnar a factualidade dada como provada, para atacar a prática da factualidade imputada, a qualificação jurídica que lhe foi atribuída e para discutir a verificação de pressupostos de aplicação da medida de segurança.
O habeas corpus não é um recurso, não é um substitutivo ou sucedâneo do recurso, muito menos o recurso dos recursos, é um instituto a manter distinto dos recursos (cfr “Curso de Direito Processual Penal”, II, Germano Marques da Silva). É uma “providência” que não se confundindo com o recurso, pode até correr termos lado a lado e simultaneamente (219, nº 2, do CPP). Quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão ou a privação da liberdade, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
Como o vem entendendo a jurisprudência deste STJ, o habeas corpus é uma providência excepcional e expedita destinada a responder a situações de gravidade extrema visando reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação, de “abuso de poder” na expressão constitucional. Não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Pese embora possam ser interpostos, com objetos diferentes é bom de ver, em paralelo (artigo 219, nº 2, do CPP). E não se destina a apreciar erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade.
Ou seja, a providência excepcional de habeas corpus não se substitui nem pode substituir‑se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. “Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere — mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art. 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal — aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite». Não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e a correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele expediente só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários: justamente, os casos indiscutíveis ou de flagrante ilegalidade, que, por serem‑no, permitem e impõem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal, e, por isso, sem remédio” (in ac. STJ de 1/2/2007, proc. 07P353). (V. também acs. STJ de 01/02/2007, proc. nº 07P353, de 23/07/2021, proc. nº 52/19, de 22/9/2021, proc. 3825/21, de 14/4/2021, proc. nº 292/21, de 03/01/22, proc. nº 2184/21 e de 15/12/2021, 1420/11, entre muitos outros).
Tais limitações de função, com chancela constitucional, não lhe retiram, porém, o papel e instrumento de garantia privilegiada do direito à liberdade. O habeas corpus “testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”. (in “CRP Anotada”, Gomes Canotilho e Vital Moreira).
“No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.
“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”
“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei” (in “Habeas Corpus: passado presente e futuro”, “Julgar” on line, nº 29, 2016, Maia Costa)..
Por último, e para esgotar as hipóteses de ilegalidade do internamento previstas taxativamente no artigo 222, nº 2, do CPP, sempre se dirá, apesar de não vir invocada, que a ilegalidade de excesso de prazo se não verifica.
Na sentença decidiu-se “Determinar o internamento e tratamento do arguido em estabelecimento psiquiátrico adequado à sua patologia, pelo período mínimo de 1 (um) mês e máximo de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses”.
Ora, o detido deu entrada na Clínica Psiquiátrica em 10/01/2023. Pelo que o termo do internamento ocorrerá em 10/05/2026, com, ut art. 93º, nº 2 do C.P., obrigatória revisão até 10/01/2025. (cfr art. 501 do CPP)
No momento, e é neste momento que tem se aferir da legalidade do internamento, face ao princípio da atualidade, o internamento continua sustentado em tais factos dados como provados na decisão que lhe aplicou a medida de segurança de internamento e sem ultrapassar o limite que lhe foi fixado.
Em suma, estamos, pois, ao invés do alegado, perante factos que sustentam, nos termos da lei, a medida de segurança de internamento aplicada não se verificando nem abuso de poder nem ilegalidade na medida de internamento aplicada e em cumprimento.
A pretensão do Requerente acaba por ser a de reapreciação do seu caso. Só que a providência de habeas corpus não cuida da reanálise do caso trazido à sua apreciação, visa antes e só a eventual constatação de uma atual ilegalidade do internamento patente, em forma de erro grosseiro ou de manifesto abuso de poder. E in casu inexiste qualquer abuso de poder ou ilegalidade na aplicação da medida de segurança de internamento em cumprimento.
Nesta conformidade, o pedido é manifestamente infundado, devendo ser indeferido, ao abrigo do artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP.
III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal em indeferir o pedido de habeas corpus por manifestamente infundado.
Nos termos do disposto no artigo 223º, nº6, do CPP, condena-se o peticionante no pagamento de 6 UCs
Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
Supremo Tribunal de Justiça, 15 de fevereiro de 2023.
Ernesto Vaz Pereira (Relator)
José Luís Lopes da Mota (1º Adjunto)
Paulo Ferreira da Cunha (2º Adjunto)
Nuno António Gonçalves (Presidente da Secção)