ACTA DA AUDIÊNCIA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
DOCUMENTO AUTENTICADO
FORÇA PROBATÓRIA ESPECIAL
FALSIDADE
IRREGULARIDADE
DEPÓSITO DA SENTENÇA
INEXISTÊNCIA DA SENTENÇA
Sumário

I – A acta do debate instrutório e da audiência de julgamento obedece a regras especiais.
II – Sendo a acta da audiência um instrumento destinado a descrever fielmente o modo como decorreu a sessão de audiência de julgamento, presidido por autoridade judiciária, não restam dúvidas de que estamos perante um documento autêntico.
III – Em virtude desse enquadramento jurídico, e por força do disposto no art.º 169º do CPP, consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa.
IV – No processo penal os documentos públicos têm uma força probatória reforçada, que pode ser inquinada por um juízo fundado de suspeita da sua validade ou exactidão.
V – Não se tendo procedido à leitura integral da sentença conforme erroneamente declarado na acta, facto que veio a reconhecer o próprio juiz, determinando a retificação daquele documento, por forma a que dele ficasse a constar que a leitura da sentença foi efetuada por súmula, estamos perante uma mera irregularidade da acta, traduzida na desconformidade entre o que nela foi declarado e o que realmente ocorreu, que dessa forma teria ficado sanada.
VI – O desrespeito dos comandos inscritos nos artigos 372.º, n.º 5, e 373.º, n.º 2, do CPP, enquanto dispõem que o depósito da sentença tenha lugar em acto imediato à respetiva leitura, configura não mais do que uma irregularidade, insuscetível de afetar o valor do acto praticado.
VII – Já relativamente à alegada leitura da sentença por apontamento, vem sendo sustentado por alguma jurisprudência que não havendo redução da decisão a escrito, nem depósito na secretaria, tal vício, mais do que uma nulidade, traduz uma autêntica inexistência da sentença.

Texto Integral

Proc. nº 2816/16.7JAPRT.P1
Recurso Penal
Juízo Local Criminal de Gondomar – Juiz 2

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório
No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 2816/16.7JAPRT, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Gondomar, AA, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, tendo a final sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto decide-se:
- Condenar o arguido AA, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros) num total de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros), pela prática, na forma continuada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, nº 1, al.ª d) do CP.
- Condenar o arguido em 4 (quatro) UC de taxa de justiça criminal.
- Após trânsito, remeta boletins ao Registo Criminal.”.

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Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]:
“1. Porque se demonstra nos autos a falsidade da ata de 10.05.2021, atinente à leitura da Sentença em audiência, quando nela se consignou que o Mm.º Juiz procedeu à sua leitura pública e na íntegra já que apenas relatando meros apontamentos;
2. Porque a data aposta na Sentença não corresponde à verdade e não decorre de mero lapso de escrita e apenas em Janeiro de 2022 foi elaborada;
3. Porque inexiste sentença juridicamente válida, cuja consequência é a nulidade insanável da sessão da audiência de julgamento atinente à leitura da Sentença que, por isso, deverá ser repetida com a anulação dos termos processuais posteriores a 10.05.2021.
4. Porque a delonga no conhecimento do efetivo teor da Decisão em apreço viola o disposto no art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa:
5. Porque a mesma Decisão enferma de erro de julgamento da matéria de facto, vícios previstos nas alíneas a) e b) do nº2, do art.º 410.ºdo CPP, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vícios esses que resultam do próprio texto da decisão;
6. Porque julgou erradamente matéria de facto, considerando provados factos que devia ter julgado como não provados e incorreu em erro notório na apreciação da prova testemunhal e pericial;
7. Porque a Decisão valora a prova obtida contra as regras das presunções, assente em premissas erradas e revelada por um percurso com espaços vazios e incongruentes;
8. Porque a Decisão em apreço se baseia em depoimentos que ela própria considera evasivos, ou seja, próprios de quem não diz a verdade ou seja, ainda, de quem foge à verdade que conhece;
9. Porque a Decisão em apreço se alicerça nos depoimentos das testemunhas que a própria qualifica como evasivos e é contrária ao documento junto na audiência de 18.11.2020 e certificado a fls. na data de 23.11.2020;
10. Porque os factos provados elencados em 5 a 9, 15 e 20 a 22 devem passar a integrar os factos não provados;
11. Porque as presunções probatórias em que se alicerça a convicção do Julgador não encontram respaldo em qualquer outro facto ou evidência objetivável;
12. Porque a Decisão em apreço viola o princípio de “in dubio pro reo”;
13. Porque o relatório pericial é inconclusivo quanto à autoria das letra e assinaturas apostas nos documentos;
14. Porque nenhuma prova foi feita no sentido de comprovar que o Recorrente tenha “mandado alguém” apor as letras ou assinar os documentos valorados na Decisão recorrida;
15. Porque a Decisão em apreço viola por erro de interpretação e de aplicação o disposto nos artºs 127.º, 163.º, 321.º, 365.º, 372.º, 373.º, 374.º, 379.º, n.º 1 a), 410.º, n.º 2, a), b) e c) e 20.º, n.º 4 da CRP, deve o presente recurso ser provido e, por via dele, revogada a Decisão em apreço absolvendo-se o Recorrente como é de inteira e sã justiça.”.
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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso, com a consequente manutenção da sentença recorrida, salientando, em síntese, que a falsidade da ata e consequente “inexistência” da sentença invocadas pelo recorrente não se verificam, não se mostrando, para além disso, que a decisão recorrida padeça dos vícios decisórios invocados ou que haja sido incorretamente julgada a matéria de facto impugnada pelo recorrente, posição condensada no seguinte conjunto de conclusões:
“1- O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o Recorrente extrai da respetiva motivação (artigo 402.º e 412.º, n.º 1, do CPP).
2 - As Atas de audiência de julgamento são documentos autênticos, que fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e dos nele atestados com base nas perceções da entidade documentadora (artigo 371.º do CC);
3 - A força probatória do documento autêntico apenas pode ser ilidida com base na sua falsidade (artigo 372.º do C. Civil);
4 - A falsidade da ata de audiência de julgamento deve ser arguida no prazo de 10 dias, a contar daquele em que deva entender-se que a parte teve conhecimento do ato (artigo 451.º, n.º 2, do CPC);
5 – A falsidade da ata de 10/05/2021 devia ser requerida nos 10 dias subsequentes, o que não foi feito;
6 - A arguição da falsidade da ata em sede de alegações de recurso é intempestiva;
7 - Além disso, a falsidade da ata de audiência de julgamento realizada na 1.ª instância tem de nesta ser invocada e não diretamente para o Tribunal da Relação por via de recurso da decisão final.
Sem Prescindir,
8 - A circunstância de a sentença não ter sido depositada em ato contínuo ao da sua leitura, não permite, só por si, o juízo simplista de que não estivesse integralmente escrita, não sendo a sentença juridicamente inexistente;
9 - Há um lapso de escrita evidente na data da sentença porque tal data - 10/05/2022 - não foi sequer atingida, o que pode ser corrigido por aplicação do n.º 1, al. b), do artigo 380.º, do CPP;
10 - Da ata de audiência de julgamento extrai-se que a sentença foi lida publicamente e na íntegra, e o facto do depósito não ter ocorrido em ato seguido ao da sua leitura, constitui uma mera irregularidade, insuscetível de afetar o valor do ato praticado, e que se encontra sanada pela junção aos autos e depósito da sentença escrita;
11 - Os direitos de defesa do arguido nunca foram restringidos, designadamente o direito ao recurso da sentença, pelo que, não há violação do disposto no artigo 20.º, n.º 4, da CRP;
12 - Na apreciação da prova vigora o princípio fundamental de que, quanto à questão de facto, a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador, devidamente fundamentada (artigo 127.º do CPP);
13 - No processo de formação da convicção do Tribunal, valem as regras da experiência, tendo por referência as bases de conhecimento do homem médio;
14 - E face aos princípios da oralidade e da imediação, é o Tribunal de 1.ª instância que está em melhores condições para fazer um adequado uso do princípio de livre apreciação da prova;
15 - Ora, na motivação da matéria de facto, o Tribunal a quo justificou pormenorizadamente as provas em que fundou a sua convicção, em conjugação com as regras da normalidade, referindo, nomeadamente, os depoimentos do queixoso e da sua mulher, das testemunhas, BB, CC e DD, dos intermediários de crédito, do motorista de pesados que trouxe o carro de França, do próprio arguido, a prova documental;
16 - Ao contrário do que o Recorrente sustenta, as testemunhas EE e FF, apenas conheciam GG como importador de automóveis, que ia espalhando por vários stands, não o relacionando com o veículo em causa nos autos;
17 - O Tribunal não se socorreu do princípio in dubio pro reo porque não teve qualquer dúvida na valoração da prova e no juízo de censura que dirigiu à conduta do arguido;
18 - Na sentença recorrida ponderou-se toda a prova produzida, justificando os motivos que levaram a dar maior credibilidade ao depoimento do ofendido, alicerçado na restante prova testemunhal, pericial e documental, em detrimento da versão apresentada pelo arguido;
19 - O Tribunal a quo apreciou criticamente a prova produzida em obediência ao princípio da livre apreciação da prova, de acordo com as regras da experiência e com a sua livre convicção, inexistindo qualquer erro na apreciação da matéria de facto;
20 - A matéria de facto dada como provada na sentença recorrida não merece qualquer reparo;
21 - Não obstante o resultado do relatório pericial, na sentença justificou-se que mesmo não sendo possível a demonstração do ato e momento da assinatura dos documentos, o arguido era o único que podia beneficiar daquela atuação, excluindo a possibilidade de ter sido outra pessoa ou de as coisas se terem passado de outra forma;
22 - Tais conclusões resultam de toda a prova produzida conjugada entre si, mormente a prova testemunhal, pericial e bem assim, documental, que o tribunal valorou cautelosamente, segundo um juízo orientado pela imediação que ocorre em sede de audiência de discussão e julgamento e conjugado com as regras da experiência comum e o normal ocorrer das coisas;
23 – A decisão não enferma de qualquer vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, nem viola o princípio in dubio pro reo, tendo pleno assento na prova produzida e deverá ser confirmada in totum.”.
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A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso e consequente confirmação da decisão recorrida.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo o recorrente apresentado resposta ao parecer, reiterando a procedência do recurso.
Procedeu-se a exame preliminar, tendo sido colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, nº 2 ou o art.º 379.º, nº 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
a) A ata de audiência de julgamento realizada a 10/5/2021 padece de falsidade, inexistindo sentença juridicamente válida?
b) A sentença recorrida enferma dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e erro notório na apreciação da prova)?
c) Houve errada apreciação e valoração da prova produzida na audiência de julgamento, tendo sido violados os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, com a consequência de que foram incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 5º a 9º, 15º, e 20º a 22º dados como assentes?
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.
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Factos provados e não provados (transcrição):
“II. Fundamentação
Matéria de Facto Provada:
1. O arguido é o legal representante e sócio-gerente, desde a data da sua constituição, que teve lugar 7 de agosto de 2009, da sociedade A..., Lda., com sede na Estrada ..., ..., em ..., Gondomar, que tem como objeto social, designadamente, a compra, venda e troca de veículos automóveis, outras atividades de crédito, comissões por angariação de créditos, possuindo para tanto e em tal local um stand com exposição de veículos para venda.
2. Em dia não concretamente apurado do mês de fevereiro de 2016, CC, acompanhado de DD, sua esposa, dirigiu-se ao stand de automóveis do arguido, tendo ficado interessado na aquisição de um veículo da marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-QT-...
3. Porque pretendia que a aquisição de tal veículo ocorresse com recurso a financiamento por meio de crédito bancário, CC entregou ao arguido uma fotocópia do seu cartão de cidadão bem como procedeu ao preenchimento de diversa documentação.
4. Em face da recusa da entidade financeira consultada em lhe conceder o crédito pretendido, CC preencheu nova documentação, mas, desta feita, em nome de HH, seu filho, vindo o financiamento a crédito a ser aprovado e o negócio realizado em nome deste último, tendo o averbamento do registo de propriedade sido feito em 8 de março de 2016.
5. Depois disso, e aproveitando-se da circunstância de se encontrar em poder de cópias dos documentos pessoais de CC, sabendo que os mesmos não eram seus e que não os podia usar sem autorização ou consentimento do seu titular, o arguido decidiu importar, de França, o veículo da marca Renault, modelo ..., de cor preta, com o número de quadro ... e a matrícula ..-..-JG, em nome daquele mas sem a sua autorização ou conhecimento, forjando todos os documentos que para o efeito fossem necessários, tudo por forma a fazer constar perante todas as entidades oficiais e eventuais compradores a aparência de ser seu importador e efetivo vendedor o referido CC e, dessa forma, a eximir-se da responsabilidade inerente à importação e circulação de tal veículo automóvel e consideração de rendimento tributável, realizando todo o processo de importação, legalização, registo e posterior venda em nome daquele.
6. Assim, e em execução de tal desígnio, em data não concretamente apurada mas situada entre o mês de fevereiro de 2016 e o dia 5 de junho de 2016, o arguido adquiriu tal veículo em França a B..., tendo o vendedor, conforme instruções fornecidas pelo arguido ou por terceiro a seu mando, emitido uma fatura em nome de CC para que o veículo pudesse ser transportado para Portugal pela transportadora C..., Unipessoal, Limitada, como ocorreu em 5 de Junho de 2016.
7. Após, o arguido ou alguém a seu mando, elaborou com recurso a processador de texto, um documento que intitulou “Doc. de habilitação (artigo 433.º do R.A.)”, com o seguinte teor: “CC, CONTRIBUINTE N.º ..., NOMEIA SEU REPRESENTANTE INDIRECTO A II, CONT. ..., PORTADOR DA CÉDULA N.º ... EMITIDO PELA ALFÂNDEGA DO PORTO, HABILITANDO-O A PRATICAR POR SUA CONTA OS ACTOS INERENTES À DECLARAÇÃO ADUANEIRA OU FISCAL DE MERCADORIAS DE QUE SEJA DESTINATÁRIO O EXPEDIDOR PARA IMPORTAÇÃO DO VEÍCULO MARCA RENAULT, CHASSIS N.º ... A PRESENTE HABILITAÇÃO É VÁLIDA NA ALFÂNDEGA DO ..., E VÁLIDA PELO PERÍODO DE LEGALIZAÇÃO DA PRESENTE VIATURA, SALVO REVOGAÇÃO EXPRESSA, DEVIAMENTE COMUNICADA À ALFANDEGA COMPETENTE” e datou-o de “GONDOMAR, 07 DE JUNHO DE 2016”.
8. Por baixo dos dizeres “Gondomar, 07 de junho de 2016”, o arguido ou alguém a seu mando manuscreveu o nome “CC”, procurando imitar a assinatura constante do Cartão do Cidadão do mesmo.
9. De igual modo, na posse de um formulário, Modelo 9 do IMTT, de pedido de certificado de matrícula, na quadrícula respeitante ao requerente onde foi datilografado o nome e morada de CC, o arguido ou um terceiro a seu mando no espaço reservado e assinalado como de assinatura do requerente, manuscreveu o nome “CC”, procurando imitar a assinatura constante do Cartão do Cidadão do mesmo.
10. Seguidamente, na posse desses documentos assim elaborados, o arguido entregou-os a EE, legal representante da sociedade D..., Limitada, a quem solicitou os serviços de importação do veículo em causa, que, de nada desconfiando, acedeu fazê-lo através da sociedade E..., dando em 7 de junho de 2016 entrada do processo de regularização de tal veículo junto da Alfândega, no ....
11. Nessa sequência, veio a ser emitida, em 8 de junho de 2016, a DAV- Declaração Aduaneira de Veículo, figurando com adquirente/proprietário do veículo CC, tendo ao mesmo sido atribuída a matrícula ..-RM-...
12. Desse modo, o referido veículo viria a ser registado na Conservatória do Registo Automóvel a favor de CC, em 28 de julho de 2016.
13. Uma vez registado tal veículo em nome de CC, o arguido decidiu colocá-lo à venda no seu stand.
14. No dia 1 de agosto de 2016, BB mostrou-se interessado na compra do mesmo tendo acordado com o arguido a sua venda pelo preço de € 14.800,00 (catorze mil e oitocentos euros) com recurso a financiamento bancário.
15. Então, e para efetuar a transmissão da propriedade de tal veículo, o arguido muniu-se de um impresso modelo único do IMTT de requerimento de registo automóvel e, o próprio ou alguém a seu mando, preencheu-o na parte destinada à identificação do sujeito passivo/vendedor com os reais dados identificativos de CC, bem como apôs, no seu verso, pelo seu próprio punho ou de um terceiro a seu mando, na quadrícula 8, local destinado a assinaturas, os dizeres, de forma manuscrita, respeitantes ao nome de CC, procurando imitar a assinatura constante do Cartão do Cidadão do mesmo, tudo sem o seu conhecimento ou consentimento.
16. Em seguida e na posse de um contrato de crédito da instituição de crédito Banco 1... e da documentação do veículo a financiar, designadamente da fotocópia do cartão de cidadão de CC, da declaração de venda do importador, do DAV, do modelo 9 do IMT, da declaração de expedição internacional e do original do requerimento de registo automóvel do veículo ..-RM-.. onde constava a assinatura forjada de CC, o arguido, entregou-os, em mão, a FF, para que este diligenciasse pelo registo de tal veículo a favor de BB, com quem havia efetuado o negócio de venda do mesmo.
17. Como contrapartida e para pagamento do preço acordado, o arguido recebeu de JJ enquanto representante de tal empresa financeira o cheque número ..., do Banco 2..., no valor de €14.800,00, que lhe foi pago à boca de caixa na sucursal do Banco 2... da rua ... n. ..., em Gondomar.
18. No seguimento do contratado, o veículo ..-RM-.. foi averbado em nome de BB, com reserva de propriedade a favor da instituição de crédito Banco 1..., em 4 de agosto de 2016.
19. Em consequência da conduta do arguido e por não ter sido pago, no prazo legal, ou seja, até 6.9.2016, o Imposto Único de Circulação, a Autoridade Tributária e Aduaneira no âmbito do processo de liquidação oficiosa, emitida em 31.10.2016, notificou CC para proceder à regularização de tal dívida.
20. O arguido sabia que as suas descritas condutas eram proibidas e penalmente puníveis.
21. Por via dos factos descritos, o arguido previu e quis usar os dados de identificação constantes dos documentos pessoais de CC, sem o seu conhecimento ou autorização, para dessa forma importar e legalizar em seu nome o veículo ..-RM-.. e, posteriormente, proceder à venda do mesmo ainda no seu nome, não figurando, assim, tal venda como lucro da real atividade do arguido e, passando aquele a ser responsável, além do mais, perante todas entidades e terceiros pelos factos decorrentes da posse, venda e circulação do ..-RM-.., designadamente o IUC, bem sabendo que ao fazê-lo em nome de CC o prejudicava porquanto toda e qualquer responsabilidade seria a este sempre imputada e solicitada, como foi.
22. Agiu, ainda, sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que os documentos referidos foram indevidamente assinados, com assinaturas que não eram do verdadeiro titular, contra a vontade deste e sem o seu conhecimento e que neles, em consequência, foram inscritos factos sem correspondência à realidade que bem conhecia e que eram juridicamente relevantes e quis, ao utilizá-los ou usá-los nas ditas circunstâncias, obter benefício, eximindo-se de toda e qualquer responsabilidade decorrente da propriedade e uso daquele veículo, o que conseguiu, bem sabendo que os mesmos não lhe eram devidos.
Mais se provou que:
23. O arguido já foi condenado na pena de 240 dias de multa pela prática de crime semelhante ao destes autos, por factos cometidos em 10.8.2016, tendo a sentença condenatória sido proferida em 13.11.2018 e transitado em julgado em 10.9.2019 (Proc. 2222/16.3JAPRT do JL Criminal da Maia, J2).
24. O arguido é o quarto elemento de seis irmãos, oriundo de um agregado familiar de condição socioeconómica estável, o pai empresário da construção civil e a mãe doméstica.
25. O seu processo de desenvolvimento psicossocial decorreu na família de origem onde se manteve até aos 28 anos e em cujo contexto registou observação de práticas educativas segundo padrões de normatividade.
26. Encetou escolaridade em idade normal, obtendo continuado sucesso académico, tendo frequentado o Ensino Superior em Economia, onde se manteve até à idade de 22 anos, vindo a desistir, faltando-lhe poucas cadeiras para a licenciatura.
27. Desde os 22 anos de idade que passou a desenvolver atividade profissional ligada a área de comércio, compra e venda de veículos automóveis, sendo que aos 24 anos tornou-se socio gerente da sociedade A..., Lda. com sede na estrada ..., ... em ..., tendo stand de exposição de automóveis naquela direção.
28. Contraiu casamento aos 29 anos, após período de vivência em união de facto e de cuja relação conjugal tem dois filhos. Mantém aquele relacionamento matrimonial, que caracteriza como estável e firmado por laços de coesão intrafamiliar.
29. À data dos factos de que vem acusado, o arguido mantinha situação profissional como empresário do ramo automóvel e residia com a esposa em ....
30. Na atualidade, mantém idêntico enquadramento laboral e inserção familiar, na direção mencionada nos autos, residindo com a esposa de 38 anos, com habilitações do ensino superior, licenciada em psicologia, laboralmente ativa e com os dois filhos de idades compreendidas entre os 2 anos e os 11 meses.
31. O arguido considera a sua situação económica como estável, tendo, contudo, já vivenciado algumas dificuldades financeiras, contando nesses momentos com o apoio familiar, pais e irmãos.
32. Como despesas domésticas tem a amortização da moradia no valor de 500€, água e luz, cerca de 150€ e do pagamento da ama dos filhos em 150€. Apresenta problemas de saúde, doença inflamatória crónica- doença de Krohn diagnosticada há cerca de dois anos, mantendo regulares consulta e tratamentos no Centro Hospitalar .... As rotinas do arguido, centram-se na realização da atividade laboral e expressa como ocupação dos seus tempos livres, convívio com a família, esposa e filhos.
33. Apresenta juízo de censura ainda que não se identificando com os factos da presente acusação.
Matéria de facto não provada
Inexiste.”.
“*
Apreciando os fundamentos do recurso.
I) Falsidade da ata e “inexistência” da sentença.

O recorrente invoca a falsidade da ata da audiência de julgamento realizada no dia 10/5/2021, argumentando que, contrariamente ao que nela foi exarado, o tribunal a quo não procedeu à leitura pública e integral da sentença, fazendo a comunicação da decisão através de meros “apontamentos”, sendo certo que a decisão apenas veio a ser elaborada em janeiro de 2022, altura em que se procedeu ao respetivo depósito na secretaria.
Para uma correta apreensão dos dados do problema, façamos uma síntese dos dados processuais relevantes.
Assim:
- A audiência de discussão e julgamento com produção da prova e alegações orais foi concluída em 7 de janeiro de 2021, tendo sido designada a data de 25 de janeiro do mesmo mês, pelas 9.30 horas, para a leitura da sentença (cfr.499).
- Posteriormente, através de despacho, tal diligência foi adiada, tendo sido designado o dia 10 de maio, pelas 14 horas, para a sua realização (cfr. fls. 501 e 502).
- No dia 10 de maio de 2021, à hora designada, foi aberta a audiência, tendo ficado exarado na ata que o “meritíssimo juiz procedeu à leitura pública e na íntegra da sentença”, encontrando-se presentes o arguido e seu ilustre mandatário (cfr. fls. 503).
- Com data de 25 de maio de 2021 foi apresentado um requerimento pelo arguido, com o seguinte teor:
“No passado dia 10 do corrente foi, por apontamento, lida a sentença condenatória nos presentes autos sem que até ao dia de hoje esteja o seu teor disponível para conhecimento na plataforma citius, tal como não consta o respetivo depósito nem a ata de julgamento - leitura.
Deste modo, desta aquela data encontra-se o aqui mandatário signatário impedido de ter acesso à sempre douta decisão e por conseguinte impossibilitado do conhecimento cabal dos factos que permitirão formar uma convicção segura acerca da possibilidade de interposição do competente recurso.
Tal facto determina a impossibilidade de cabal exercício do direito de defesa pelo arguido bem como ser assegurado o respetivo patrocínio sendo que se afigura que o prazo de recurso ainda não iniciou.
Termos em que se requer seja o signatário notificado se a sentença foi, ou não depositada e, em caso afirmativo, em que data e qual o seu teor integral.”.
- Sobre este requerimento foi proferido despacho, datado de 2/6/2021, com o seguinte teor: “O prazo para recurso iniciar-se-á com o depósito da sentença (artº 411º, alª b) do CPP)“.
- A sentença constante de fls. 504 a 512 dos autos foi assinada eletronicamente pelo sr. Juiz titular do processo, em 6/1/2022.
- Em 6/1/2022 foi depositada a sentença na secretaria, do que foi dado conhecido ao ilustre defensor do arguido, consignando-se a fls. 517 que nessa data também foi disponibilizada no sistema citius pelo sr. Juiz subscritor.
- O recurso foi apresentado pelo arguido em 7/2/2022.
- Com data de 3/11/2022 foi proferido o despacho que consta de fls. 556, com o seguinte teor:
“Faz-se consignar que:
- O atraso no depósito da sentença foi levado ao conhecimento do Conselho Superior da Magistratura que já tomou posição sobre o mesmo.
- A ata da audiência do dia 10.5.2021, é uma ata “padronizada”, que o signatário assinou sem tomar na devida conta que nela se dizia que a sentença que se segue foi lida “na íntegra”.
Trata-se de lapso do signatário, que a assinou sem tomar na devida conta esse aspeto.
Como tal, ao abrigo do disposto no artº 380º, nºs 1 e 3 do CPP, determina-se a sua retificação, dela devendo ficar a constar que “o Mm.º Juiz procedeu à leitura por súmula da sentença que se segue […]”.
*
Dispõe o art.º 99.º do CPP que:
«1 - O auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os atos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e atos decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele.
2 – O auto respeitante ao debate instrutório e à audiência denomina-se ata e rege-se complementarmente pelas disposições legais que este Código lhe manda aplicar.
3 - O auto contém, além dos requisitos previstos para os atos escritos, menção dos elementos seguintes:
a) Identificação das pessoas que intervieram no ato;
b) Causas, se conhecidas, da ausência das pessoas cuja intervenção no ato estava prevista;
c) Descrição especificada das operações praticadas, da intervenção de cada um dos participantes processuais, das declarações prestadas, do modo como o foram e das circunstâncias em que o foram, incluindo, quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual, à consignação do início e termo de cada declaração, dos documentos apresentados ou recebidos e dos resultados alcançados, de modo a garantir a genuína expressão da ocorrência;
d) Qualquer ocorrência relevante para apreciação da prova ou da regularidade do ato.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 169.º»
A ata do debate instrutório e da audiência de julgamento obedece a regras especiais (artigos 305.º, 362.º, 363.º e 364.º do CPP).
Tratando-se o documento em causa de instrumento destinado a descrever fielmente o modo como decorreu a sessão de audiência de julgamento, presidido por autoridade judiciária nos termos do disposto no art.º 1º b) do CPP, não restam dúvidas de que estamos perante um documento autêntico.
Em virtude desse enquadramento jurídico, e por força do disposto no art.º 169º do CPP, “Consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa”.
A força probatória dos documentos autênticos e autenticados no processo penal e no processo civil é distinta, sujeita ainda à disciplina própria de cada um desses meios de prova. No processo penal os documentos públicos têm uma força probatória reforçada, que pode ser inquinada por um juízo fundado de suspeita da sua validade ou exatidão [art.º 169.º]. Por sua vez, no processo civil os documentos autênticos têm uma força probatória plena [371.º, n.º 1 Código Civil] que “só pode ser ilidida com base na sua falsidade”, sujeita ao respetivo ónus de prova [372.º, n.º 1, 342.º, 347.º, do Código Civil].[2]
Com efeito, ao contrário do CPP de 1929, o CPP de 1987 não prevê o incidente de falsidade. De acordo com o disposto no art.º 170.º, o tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, declarar no dispositivo da sentença, mesmo que esta seja absolutória, a falsidade de um documento, devendo, para tal fim, quando o julgar necessário e sem retardamento sensível do processo, mandar proceder às diligências e admitir a produção da prova necessárias.
Por outro lado, tanto a prova reforçada ou plena dos documentos autênticos, restringe-se aos factos materiais aí narrados ou atestados, mas já não relativamente aos meros juízos pessoais do documentador, pois estes “só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador” [371.º, n.º 1 do C. Civil].
Sendo certo que os documentos autênticos (e autenticados) encerram uma presunção de verdade dos factos materiais deles constantes, não se trata, no entanto, de uma presunção juris et de jure, irrefutável, sem admissibilidade de prova em contrário. Nem sequer de uma presunção iuris tantum, que pode ser ilidida mediante prova em contrário. A sua ilisão faz-se não mediante simples contraprova – como é característico das presunções hominis –, mas pela existência de fundada suspeita (cfr. o art.º 170.º, n.º 3) sobre a autenticidade ou veracidade do documento.[3]
Perante isto, a questão que se coloca é a de saber se estamos em condições de emitir um fundado juízo de suspeita quanto à exatidão do conteúdo da mencionada ata de audiência de julgamento, particularmente no que se refere à circunstância de a sentença não ter sido lida publicamente e na íntegra, como aí se declarava.
Quanto à questão da falta de publicidade da audiência, nada invoca em contrário o recorrente e, na verdade, nenhuma razão temos para suspeitar da veracidade desta declaração contida na ata. Com efeito, não só o arguido, como também o seu ilustre defensor terão estado presentes e não encontramos qualquer indício de que tenha sido restringida a publicidade da audiência.
Já relativamente à questão da leitura integral da sentença, igualmente declarada na ata, é manifesto que tal não sucedeu, como, de resto, veio a reconhecer o sr. Juiz, determinando a retificação daquele documento, por forma a que dele ficasse a constar que a leitura da sentença foi efetuada por súmula (cfr. o despacho constante de fls. 556).
A irregularidade da ata, traduzida na desconformidade entre o que nela foi declarado e o que realmente ocorreu, teria ficado, assim, sanada.
Contudo, o recorrente invoca que a sentença não foi lida por súmula, como da ata entretanto foi feito constar, mas sim por apontamento, já que a sentença não estaria redigida, sendo, por isso, inexistente.
Em primeiro lugar, importa assinalar que a possibilidade de o tribunal dispensar a leitura integral da sentença encontra-se legalmente prevista. Com efeito, o n.º 3 do artigo 372.º do CPP prescreve que, podendo ser omitida a leitura do relatório, a leitura da fundamentação ou, se esta for muito extensa, de uma sua súmula, bem como do dispositivo, é obrigatória, sob pena de nulidade.
Prescreve, por sua vez, o n.º 5 do referido art.º 372.º do CPP que “Logo após a leitura da sentença, o presidente procede ao seu depósito na secretaria. O secretário apõe a data, subscreve a declaração de depósito e entrega cópia aos sujeitos processuais que o solicitem”.
No presente caso, o depósito da sentença ocorreu apenas em 6/1/2022, data em que a mesma foi disponibilizada no sistema “citius” pelo sr. Juiz, seu subscritor, sendo certo que a audiência de leitura foi realizada no dia 10/5/2021.
Importa, por isso, determinar os efeitos da observância extemporânea desta formalidade legal. Como é sabido, em matéria de nulidades processuais penais vigora o princípio da legalidade, de acordo com o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei (cfr. art.° 118.°, n.°1, do Código de Processo Penal), sendo que, nos casos em que a lei não comine a nulidade, o ato ilegal é irregular (cfr. art.° 118°, n° 2, do Código de Processo Penal).
Deste modo, o princípio da legalidade do processo e dos atos implica um numerus clausus dos fundamentos da invalidade, com o sentido de que a nulidade do ato não resulta da simples violação ou inobservância de disposições legais, mas tem que estar expressamente prevista como consequência da violação ou inobservância das condições ou pressupostos que a lei expressamente referir. A violação ou inobservância das condições ou pressupostos do ato, que não constitua nulidade, determina apenas a «irregularidade» do ato. [4]
O legislador não cominou com a sanção da nulidade a preterição desta formalidade legal. Sendo assim, e como se observa no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/3/2016 [5], o desrespeito dos comandos inscritos nos artigos 372.º, n.º 5, e 373.º, n.º 2, do CPP, enquanto dispõem que o depósito da sentença tenha lugar em ato imediato à respetiva leitura, configura não mais do que uma irregularidade, insuscetível de afetar o valor do ato praticado.[6]

Relativamente à alegada leitura da sentença por “apontamento”, vem sendo apontado por alguma jurisprudência que, não havendo redução da decisão a escrito, nem depósito na secretaria, tal vício, mais do que uma nulidade, traduz uma autêntica inexistência da sentença.
É inexistente a sentença “lida” por apontamento, sem redução a escrito nem depósito na secretaria, como se observa no acórdão deste TRP de 11/4/2018 (relatado pelo Desembargador Vítor Morgado, in www.dgsi).[7] Na sugestiva expressão de Alberto dos Reis, [8] “(…) a sentença meramente verbal, da qual não ficou vestígio escrito, não existe, nem sequer materialmente. Foi um som que passou (…)”.
Contudo, e como se observa no referido acórdão do TRC, de 16/3/2016, a inexistência jurídica está reservada a situações inequivocamente reveladoras de não se mostrar a sentença, à data da sua leitura em sede de audiência de julgamento, concebida/escrita.[9]
E, como também aí se adverte, com vista a contrariar semelhante asserção, não parece razoável contrapor constituir inequívoca demonstração de que a sentença não se encontrava integralmente elaborada a circunstância de não haver sido, em ato contínuo, depositada.
No presente caso, consideramos que não fica efetivamente demonstrado, apesar do hiato temporal existente entre a leitura e o depósito, que a sentença não existisse àquela data, por não se encontrar redigida.
Para além de não ser invocada pelo recorrente qualquer desconformidade substancial entre a peça processual lida e a depositada – sendo certo que, manifestamente, a data aposta na sentença configura um erro material, suscetível de correção (art.º 380.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do CPP) -, também não se evidencia que a sentença tivesse sido lida por “apontamento” (ou seja, com base num rascunho ou num apontamento do que se pretenderia vir a configurar uma futura sentença) e não por “súmula”, como ficou consignado na ata de julgamento, após a correção efetuada.
Por fim, sendo a todo o título irregular e censurável o hiato de tempo que mediou entre a leitura da sentença e o seu depósito, não se pode afirmar que o direito do recorrente a uma decisão em prazo razoável tenha sido violado (art.º 20.º, n.º 4 da CRP). Além disso, não houve qualquer preterição das garantias de defesa constitucionalmente tuteladas, incluindo o direito ao contraditório e ao recurso, que foram exercidas sem constrangimentos pelo recorrente.
Improcede, deste modo, o presente fundamento do recurso.
*
II) Impugnação da matéria de facto e vícios decisórios – concretamente, “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão” e “erro notório na apreciação da prova”.
Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cfr. art.º 428.º do Código Processo Penal).
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- na impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Quanto a esta última modalidade de impugnação (a ampla) o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão [10].
Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.
Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cfr. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal]. [11]
Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida [12].
Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [13]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [14].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.
A este propósito refere Germano Marques da Silva[15] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de primeira instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz "desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cfr., no sentido apontado, o acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss).
Contudo, e como observa o Conselheiro António Gama [16], a imediação não pode funcionar como desculpa de menor rigor na elaboração da fundamentação, nem torna, em regra, inatacável a decisão do tribunal de 1ª instância.
Como fez notar o STJ, no acórdão de 30/11/2006 [17], “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento”.[18]
Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
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A presunção de inocência é, consabidamente, um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova [19].
Visando o processo penal apurar se, no caso concreto, estão verificados os pressupostos para que o Estado exerça o seu jus puniendi através da aplicação de uma sanção penal, o princípio da presunção de inocência garante que a condenação só será proferida se e quando se fizer prova inequívoca, através de meios legalmente admissíveis e válidos, de que o acusado praticou os factos que lhe são imputados. Porque na dúvida sobre a culpa do arguido (um non liquet em matéria de prova dos factos) se impõe a sua absolvição, o princípio da presunção de inocência é identificado com o in dubio pro reo.
Entre o princípio da livre apreciação da prova e o princípio basilar da presunção de inocência, de que o “in dubio pro reo” é uma das suas várias dimensões, existe uma estreita conexão.
O “in dubio pro reo”, sendo uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência, configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos [20] - ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto -, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o nº 2 do art.º 410.º do CPP, a eventual violação do in dubio pro reo há de resultar, claramente, do texto da decisão recorrida e, portanto, ocorrerá quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que deverá decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto [21].
*
Delineados os princípios gerais da apreciação crítica da prova e decisão da matéria de facto, analisemos os pontos da matéria de facto questionados pelo recorrente.
Como vimos, o recorrente defende que os factos constantes dos pontos 5º a 9º, 15º e 20º a 22º dados como assentes foram incorretamente julgados, impondo a prova produzida na audiência de julgamento decisão diversa, coincidente com a falta de demonstração dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime por que foi condenado, enfermando, ainda, a decisão recorrida dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova.
Esta hipótese – que configura o chamado recurso de «revista ampliada» - integra-se nas patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410.º, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.
O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [22].
Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
O vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão reporta-se a lacunas no elenco factual vertido na decisão, pelo que tal vício ocorre quando da leitura desta se evidencia a omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados - por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição - e não o foram, em prejuízo do dever de descoberta da verdade e boa decisão da causa que incumbe ao tribunal, como nos dá conta o acórdão deste TRP, de 15/11/2018 [23].
Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito, isto é, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respetivas premissas [decisão de facto]. Ou, dito de outra forma, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adotada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objeto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal [24].
O vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP abrange, na verdade, dois vícios distintos:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [25].
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
Já o erro notório na apreciação da prova, consagrado no art.º 410.º, n.º 2, al. c), do Cód. Proc. Penal, refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes se traduz em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados ou na apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[26]
Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso, e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [27].
Na sentença recorrida, o Tribunal a quo fundamentou nos seguintes moldes a sua convicção quanto à demonstração da factualidade atrás transcrita:
“III. Motivação
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo, pois que «se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados ao bem fundado da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal - até porque nela desempenha uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros» Direito Processual Penal – Coimbra Editora –1974, págs. 202/205).
Assim, a convicção do tribunal apoiou-se no exame crítico das declarações do arguido e depoimentos das testemunhas, documentos e perícias juntos aos autos, tudo caldeado pelas regras da experiência.
Prova por declarações:
Arguido.
Admitiu ter vendido um Renault ... ao CC, referindo que, por lhe ter sido recusado crédito bancário, o negócio fez-se em nome do filho.
Negou, porém, qualquer envolvimento na importação do veículo ..-RM-... Explicou, a este respeito, que tinha uma espécie de parceria com um indivíduo chamado GG, falecido em finais de 2018, em que este comprava carros que deixava no seu stand à consignação. O GG, que considerava como uma espécie de sócio informal, estava frequentemente nas suas instalações tendo acesso franco a toda a documentação. A importação deste carro obedeceu, por isso, a esta forma de proceder, tendo sido o GG a preparar o dossiê para a legalização e quem o entregou ao despachante e pagou os valores necessários.
Admitiu que o ..-RM-.. foi vendido no seu stand.
Prova testemunhal:
- CC. Ofendido. Depôs com assertividade, pese embora em algumas passagens fosse pouco objetivo e algo evasivo. De todo o modo, o tribunal considerou o seu depoimento genericamente credível.
Referiu ter entregado ao arguido fotocópia do seu cartão de cidadão e certificado de morada quando pretendeu adquirir um automóvel no stand do arguido com recurso a crédito bancário. Não tendo sido tal crédito aprovado, adquiriu um outro automóvel em nome do seu filho, também com recurso a crédito.
Sempre tratou com o arguido e nunca com algum GG, que desconhece quem seja.
Soube da situação dos autos quando recebeu notificações das Finanças para pagar o IUC de carros que não tinha.
Foi falar com o arguido e este disse-lhe para pagar que lhe dava o valor despendido. Assumiu perante si que tinha mandado vir vários carros de França em seu nome. Instou-o a que fosse a ultima vez que tal acontecia. Como, algum tempo depois, voltou a receber uma dessas notificações, foi à polícia. Ao comunicar ao arguido esse facto, o mesmo ter-lhe-á respondido “O que o senhor foi fazer…”.
- DD, mulher do ofendido.
O seu depoimento foi semelhante ao do marido no modo como foi prestado e na credibilidade que infundiu ao tribunal.
Referiu que foi ao stand do arguido uma ou duas vezes e foi sempre com ele que ela e o marido trataram. Mencionou a não aprovação do crédito em nome do marido e o recurso ao nome do filho para o conseguirem.
Receberam, mais tarde, cartas das Finanças para pagarem impostos de veículos que não lhes pertenciam e foram à polícia.
Já depois disso levaram as cartas ao arguido que lhes terá dito “deixe ficar as cartas que eu pago isso”. Quando soube que tinham ido à Polícia o arguido disse-lhes “Ei, não deviam ter ido…”.
- EE, ajudante de despachante na empresa D..., Lda. Depôs de forma livre e espontânea.
Tem memória de ter recebido os documentos de fls. 90 a 92. Não sabe se foi levantar a algum stand ou se alguém lhos levou.
Sabia quem era o GG, sendo conhecido no ramo da venda de automóveis. Porém, referiu nunca ter feito nenhum desalfandegamento em seu nome.
- II, sócio-gerente da sociedade E..., Lda. Depôs de forma livre e espontânea.
Dedica-se à legalização de automóveis importados, cedendo o carimbo a troco de uma avença mensal. Opera com a D..., Lda. Não teve qualquer contacto com a empresa A..., Lda.
- BB, comprador do Renault ... com a matrícula ..-RM-... Depôs de forma livre e espontânea.
A aquisição com recurso a crédito teve lugar no stand do arguido onde o carro estava em exposição. Sempre tratou com o arguido. Foi-lhe dito que o carro era importado e estavam à espera de matrículas. Desconhece quem seja o GG. Viu nos documentos o nome de CC, mas pensou que fosse alguém do stand.
- JJ, profissional de seguros e intermediário de crédito. Depôs de forma livre e espontânea.
Tem uma relação preferencial com a financeira Banco 3.... Interveio na aquisição efetuada pela testemunha BB como intermediário de crédito. Foi-lhe pedido para receber o dinheiro e transferi-lo para o arguido. Reconheceu como sua a assinatura no rosto do cheque de fls. 286.
- FF, responsável comercial da Banco 3.... O arguido é seu cliente há mais de 12 anos. Depôs de forma livre e espontânea.
Financiam a compra a crédito de viaturas que o arguido tem para vender. Era sempre o arguido quem enviava a documentação. Houve uma altura em que o GG também aparecia nos escritórios.
- KK, motorista de pesados.
Conhece o arguido, para quem já transportou carros. No caso concreto, e uma vez que já fez inúmeros transportes de carros importados, não se lembra quem lhe pediu o serviço, nem onde foi entregar o carro. Sabe, porém, que nunca deixou no stand do arguido carros pedidos por particulares. Por regra tratava diretamente com o arguido, que era sempre quem lhe pagava o serviço prestado.
Conhece o GG, sabendo que também importava carros. Contudo, o arguido nunca lhe pagou carros importados pelo GG.
- LL, irmã do arguido.
Abonou o seu porte.
Prova documental:
- Print do IMT de pesquisa do DAV de fls. 7.
- Print do Registo Automóvel, de fls. 8, 11 a 13 e 150.
- Print da base de dados IMT de característica do veículo e dados de homologação de fls. 14 a 16.
- Ficha de registo automóvel de fls. 74 a 76.
- Informação do IRN de Viseu de fls. 81 a 83;
- Cópia da DAV, do cartão de cidadão, do pedido de certificado de matrícula, do documento de habilitação e da declaração de expedição internacional de fls. 90 a 109.
- Certidão permanente da sociedade E... Lda., de fls. 97 a 100.
- Certidão permanente da sociedade “F..., unipessoal, Lda.” de fls. 120 a 121.
- Certidão permanente da sociedade A..., Lda. de fls. 164 a 166.
- Certidão permanente da sociedade D..., Lda. de fls. 186 a 189.
- Certidão permanente da sociedade C..., Unipessoal, Limitada, constante de fls. 212 a 213.
- Carta da Conservatória do Registo Automóvel de fls. 145.
- Documento único Automóvel de fls. 146.
- Notificação de liquidação oficiosa de IUC de fls. 147.
- Fatura de fls. 155.
- Original do pedido de certificado de matrícula, do documento de habilitação e do Requerimento de Registo Automóvel, constantes de saco prova da PJ apostos na contracapa.
- Certificado de matrícula francês de fls. 143.
- Acordo de prestação de serviços de fls. 184 a 185.
- Informação bancária e cópia de cheque de fls. 285 a 286.
- Certidão judicial de fls. 361 a 411.
Nesta sede, remete-se apenas para o teor de cada um dos documentos acima referidos, consignando-se a sua análise.
O seu valor probatório será discriminado abaixo quando fizermos o exame crítico de toda a prova.
Prova Pericial:
- Relatório de perícia grafológica constante de fls. 203 a 210 relativa à assinatura aposta nos documentos ali melhor enunciados.
Foi examinada a letra do arguido e da testemunha CC.
Os peritos referem que os autógrafos produzidos, seja pelo arguido seja pela testemunha eram de traçado muito irregular.
No caso do arguido, aliás, os autógrafos eram desenhados e pouco fluentes.
No caso da testemunha, os autógrafos apresentavam paragens e retoques.
Por isso, conclui-se apenas como muitíssimo provável que a assinatura aposta no requerimento de registo automóvel referente à viatura com a matrícula ..-RM-.. não seja da autoria da testemunha CC.
Quanto ao mais, as fragilidades acima assinaladas, não permitiram resultados conclusivos.
Isto visto.
- Quanto ao negócio inicial:
O arguido admitiu ter vendido um carro ao CC e os respetivos termos, nomeadamente, por lhe ter sido recusado crédito bancário, ter sido em nome do filho que o crédito e a aquisição foi formalizada.
Assentiu terem-lhe sido entregues por aquele, fotocópias dos documentos.
Neste ponto, o queixoso e a sua mulher atestaram também terem-se deslocado ao stand do arguido e tratado sempre com ele.
Esta parte da narrativa acusatória não oferece, por isso, controvérsia.
- Quanto à importação e venda da viatura ..-RM-...
Neste ponto, não tendo o arguido admitido ter falsificado as assinaturas dos documentos que instruíram o desalfandegamento da viatura e a sua posterior alienação e sendo este um ato que, por natureza, se pratica com discrição, a sua prova teria de buscar-se de forma indireta, através de factos concretos que, sendo consistentes e convergindo todos no mesmo sentido, isolem o arguido como a única pessoa que, no plano das regras da normalidade, assim poderia ter agido.
Ora, o processo de importação, legalização e posterior aquisição está perfeitamente documentado, aqui se remetendo para os documentos acima enunciados.
Porém, de acordo com o depoimento do queixoso, nessa parte corroborado pelo da sua mulher, nunca o mesmo importou este Renault ....
Neste ponto, quer o seu comprador, a testemunha BB, quer o próprio arguido referiram que o veículo se encontrava em exposição no stand deste e que foi lá que o mesmo foi visto e negociado. O comprador referiu também que foi o arguido quem tratou dos procedimentos para a concessão de crédito.
De resto, nenhum dos outros intervenientes no processo de importação e venda do veículo em questão- seja o responsável pela D..., sejam os intermediários de crédito, seja o motorista de pesados que trouxe o carro de França-, referiram ter alguma vez tratado com o queixoso do que quer que fosse.
Tendo isto presente e constatando-se que o próprio arguido, nas suas declarações, parece descartar essa possibilidade, endossando-a ao GG, logo haverá que CC é absolutamente alheio a tal negócio, sendo, por isso, forjadas as assinaturas com o seu nome. De resto, e ainda que apenas relativamente à declaração de venda do veículo em causa, a prova pericial considera muitíssimo improvável que tivesse sido ele a assiná-la.
Aqui chegados cabe determinar, então, se o arguido teve alguma intervenção na importação e posterior venda do veículo em questão, maxime, se foi ele que colocou a assinatura com o nome do CC nos documentos que instruíram o desalfandegamento da viatura e a sua posterior revenda.
Neste ponto, não tendo o arguido admitido tê-lo feito, a sua prova teria de buscar-se de forma indireta, através de factos concretos que, sendo consistentes e convergindo todos no mesmo sentido, indicassem o arguido como a única pessoa que, no plano das regras da normalidade, assim poderia ter agido.
Vejamos.
Sabemos, desde logo, que o arguido, em razão do primeiro negócio, ficara munido de cópia dos documentos do queixoso.
Sabemos também que o veículo em questão foi visto pelo comprador no seu stand, tendo sido com ele que a sua aquisição foi negociada.
Sabemos que a fatura pelos serviços de intermediação de crédito de fls. 155 foi emitida em nome do arguido. Ou seja, foi ele quem diligenciou pela concessão de crédito ao comprador.
Sabemos também que o cheque para o pagamento do preço da sua aquisição foi emitido a favor de JJ, intermediário de crédito que prestava serviços ao arguido, tendo sido levantado por este à boca de caixa (veja-se a assinatura e número de documento de identificação apostos no seu verso- cfr. fls. 286).
De resto, o comprador do veículo também referiu que a quantia mutuada nunca passou por si, tendo ido diretamente para o arguido.
O preço do carro, como referiu o seu comprador, foi de €14.950,00. O cheque é de €14.800,00, sendo compatíveis os montantes considerando-se o eventual desconto da comissão do referido intermediário.
As datas da venda do veículo e da emissão do cheque são, de resto, muito próximas.
Ou seja, todo o processo teve o arguido como pivot, tendo sido no seu stand que os documentos do CC foram inicialmente entregues, tendo sido aí que o ..-..-RM foi exposto e depois vendido, tendo sido ele a solicitar a intermediação para o financiamento da sua aquisição e tendo sido ele, finalmente, quem embolsou o preço.
Perante isto, o que contrapôs o arguido?
Que tudo deve ter sido feito por um indivíduo de nome GG, entretanto falecido, que considerava como uma espécie de sócio informal. Isto é, vendia carros à consignação no seu stand, tendo acesso franco aos escritórios. Teria sido assim que acedeu ao dossiê do queixoso e se serviu da sua documentação.
Porém, esta versão, não tem o menor respaldo na prova produzida.
É certo que o tal GG era conhecido de algumas testemunhas como importador de automóveis, que ia espalhando por vários stands.
Porém, nada de concreto existe a relacioná-lo com o veículo aqui em causa.
Aliás, se bem virmos o depoimento da testemunha KK, nunca o mesmo lev
O processo de importação, como já vimos acima, tem o arguido como interlocutor nos seus passos fundamentais, nomeadamente, e o aspeto económico é aqui decisivo, na fase da sua exposição ao público, concessão de crédito, venda e respetivo pagamento.
Dos autos não ressuma que o referido GG tivesse intervindo em qualquer das fases referidas na acusação no que concerne a este concreto veículo.
Como tal, e sem prejuízo do princípio da presunção da inocência, não basta ao arguido lançar uma qualquer versão alternativa para que a mesma possa infundir dúvidas no processo de formação da convicção do julgador. Esta há de ter o mínimo de verosimilhança e respaldo nos meios de prova existentes. E não tem. Se se tratasse de um veículo vendido pelo arguido à consignação em favor do referido GG, algum documento haveria de ter que pudesse apresentar. Algum dos indivíduos intervenientes no processo haveria de ter contactado o GG. Se o preço por si levantado à boca de caixa tivesse sido entregue ao GG o arguido deveria ter algum modo de o demonstrar. Mas, nada.
Por isso, tendo a versão narrada na acusação ampla corroboração nos meios de prova analisados em juízo e não tendo estes sido postos em xeque pela versão alternativa apresentada pelo arguido, consideramos provada a factualidade daquela constante.
É certo que, como acima logo se assumiu, não foi produzida prova direta da assinatura daqueles documentos. Porém, a prova tanto pode ser direta como indireta ou indiciária. Enquanto a prova direta se refere diretamente ao tema da prova, a prova indireta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova- cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99 ss. A prova indireta (ou indiciária) não é um "minus" relativamente à prova direta. Pelo contrário, pois se é certo que na prova indireta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indireta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis. A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.- Ac. STJ de 20/4/2006, Cons. Rodrigues da Costa, Proc. 06P363, www.dgsi.pt.
Como é sabido, a prova indiciária, devidamente valorada, permite fundamentar uma condenação (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, reimp. Lisboa, 1981, págs. 288-295, Id., Curso de Processo Penal, 2º Vol., Lisboa, 1986, págs. 207- 208, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Lisboa, S. Paulo, 1993, vol. II, pág. 83 e Ac. do S.T.J. de 8-1-1995, B.M.J. n.º 451, pág. 86 e Ac. da Rel. de Coimbra de 6-3-1996, Col. de Jur. ano XXI, tomo 2, pág. 44).
Ainda a este propósito, parece-nos útil relembrar uma passagem de Cesare Beccaria, in "Dei delitti e delle pene”, que diz: "Podem dividir-se as provas de um crime em perfeitas e imperfeitas. Chamo perfeitas as que excluem a possibilidade de que alguém não seja culpado; chamo imperfeitas aquelas que não o excluem. Das primeiras mesmo uma só é suficiente para a condenação; das segundas são necessárias tantas quantas bastem para formar uma prova perfeita, isto é, que se por cada uma delas em particular é possível que o réu não seja culpado, pela sua concordância na mesma matéria é impossível que o não seja"- Ed. Calouste Gulbenkian, Trad. de José Faria Costa, p. 88/89.
Ou seja, como logo de início se assumiu, mesmo não sendo possível a demonstração do ato e momento da assinatura daqueles documentos- e por isso não se afirma perentoriamente que tenha sido o arguido a fazê-lo, ficando a hipótese de ter incumbido alguém de o fazer por si- o certo é que o mesmo era o único que podia beneficiar daquela atuação.
Os factos indiretos acima elencados apontam para si apenas, excluindo a possibilidade de ter sido outra pessoa ou de as cisas se terem passado de outra forma.
Porém, e ainda que à sobreposse, o xeque-mate à sua tese é dado pelo teor das conversas que manteve com as testemunhas CC e DD, no qual, mais do que demonstrar que sabia que o carro em questão fora importado fraudulentamente em nome daquele, prontificou-se a pagar o imposto de circulação em falta e, quando tomou conhecimento que aquele casal tinha ido à polícia, logo mostrou, para além de desagrado, apreensão.
É certo que, neste ponto, aqueles dois depoimentos apresentaram alguma dissemelhança entre si, não na reação do arguido à informação que lhes foi dada, mas nas diligências prévias por ambos encetadas (nomeadamente no encadeamento cronológico da ida ao stand com as notificações para pagar, na ida à polícia e às Finanças e na comunicação de que tinham apresentado queixa às autoridades). Porém, tomamos por normal essa confusão face ao tempo, entretanto, decorrido, retendo, na parte que aqui interessa, que o arguido não foi apanhado de surpresa e ficou preocupado ao saber que tinha sido feita uma participação policial.
O pagamento daqueles impostos é o comportamento típico de quem reconhece ser da sua responsabilidade e dívida ou, numa outra perspetiva, uma forma de apaziguar o casal que ali se apresentou para que não levantasse ondas, perdoe-se-nos o plebeísmo; a irritação ao saber que os mesmos tinham ido à polícia demonstra a sua má-consciência- quem não deve, não teme- e a preocupação em que tal fraude fosse investigada pelas instâncias policiais e judiciárias.
Ademais, segundo a testemunha CC referiu que o arguido chegou mesmo a admitir ter sido ele quem assim procedeu, facto que dele mereceu o aviso/ameaça “que seja a última vez…”.
Numa passagem de "Dei delitti e delle pene”, Cesare Beccaria dizia: "Podem dividir-se as provas de um crime em perfeitas e imperfeitas. Chamo perfeitas as que excluem a possibilidade de que alguém não seja culpado; chamo imperfeitas aquelas que não o excluem. Das primeiras mesmo uma só é suficiente para a condenação; das segundas são necessárias tantas quantas bastem para formar uma prova perfeita, isto é, que se por cada uma delas em particular é possível que o réu não seja culpado, pela sua concordância na mesma matéria é impossível que o não seja"- Ed. Calouste Gulbenkian, Trad. de José Faria Costa, p. 88/89.
Ora, no caso concreto, se não temos uma “prova perfeita”- que seria a confissão ou o testemunho de alguém que tenha visto o arguido a partir o vidro do carro e a apoderar-se da carteira que lá estava dentro-, temos uma série de “provas imperfeitas” que nos permitem reconstituir todos os momentos do “pedaço de vida” aqui em apreço.
Por esta soma de razões, considerou o tribunal demonstrada a matéria descrita na acusação.”.

Importa reiterar que, para alterar a decisão sobre a matéria de facto, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da proferida (artigo 412.º., n.º 3, alínea b), do CPP) - situação que deve distinguir-se daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
Como salientou o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP, datado de 9/11/2016 (e disponível em www.dgsi.pt), “para tanto, não basta apontar disparidades, divergências, incongruências ou até contradições entre os vários depoimentos. A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, nem, tão pouco, tem de aceitar ou rejeitar cada um dos depoimentos na globalidade. A sua tarefa é dilucidar, em cada um deles, o que merece crédito e o que lhe suscita reservas ou mesmo descrédito. Sobretudo quando a prova seja, exclusiva ou essencialmente, testemunhal, ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.”.
E convém não esquecer que “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª Instância”, como ensina o Professor Germano Marques da Silva (in “Forum Iustitiae”, Ano 1.º, n.º 0, págs. 21 e 22).
Da análise da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica e sustentada na prova produzida, as razões pelas quais, no confronto da versão dos factos trazida, por um lado, pelo ofendido - versão parcialmente corroborada pelas testemunhas de acusação inquiridas na audiência - e, por outro, pelo arguido, conferiu maior credibilidade á primeira.
O recorrente, embora com referenciação e/ou transcrição de depoimentos, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente que o tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na sentença recorrida, sendo da análise conjugada das declarações do ofendido, dos depoimentos prestados pelas mencionadas testemunhas e da prova documental contida no processo - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção.
Verifica-se, ainda, que os elementos de prova que o recorrente indica para contrariar as conclusões obtidas pelo tribunal (fundamentalmente, as suas próprias declarações) não impõem, efetivamente, decisão diversa da recorrida.
Com efeito, o arguido limita-se a negar as acusações que lhe são dirigidas e aponta, no recurso, incongruências que considera existir nas declarações do ofendido CC e no depoimento da testemunha DD sem que, de modo algum, se possa concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Na verdade, o que ressalta da motivação é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento.
É de notar que, diversamente do que defende o recorrente, os depoimentos prestados pelas testemunhas EE e FF de modo nenhum contrariam as asserções e conclusões firmadas pelo tribunal a quo. Com efeito, estas testemunhas, embora tivessem declarado que conheciam GG, sabendo que se dedicava à importação de veículos automóveis, nenhuma relação estabeleceram entre este indivíduo e o negócio de importação e subsequente venda do veículo automóvel de matrícula ..-RM-.. a BB, o único que está em causa nos presentes autos.
Do mesmo modo, o documento constante de fls. 487 – subscrito, note-se, por DD e não pelo seu marido – consubstancia uma declaração de desistência de queixa apresentada contra o arguido no processo n.º 3178/16.8JAPRT, pelo que não se vê que ligação e relevância possa ter para a análise do presente caso (algo que, de resto, o recorrente não esclarece na motivação do recurso).
Também as conclusões extraídas pelo tribunal a quo a partir da globalidade da prova, criticadas pelo recorrente – designadamente, as constantes dos pontos 5) a 9), 15) e 20) a 22), isto é, os factos relacionados com os atos de “falsificação” dos documentos e com o dolo do arguido -, não merecem qualquer censura, já que se encontram apoiadas em raciocínios indutivos lógicos e congruentes com as regras da experiência comum.
Neste âmbito, importa desde logo salientar que o julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além da dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada.
Na verdade, “como todos os juízos históricos, o juízo de convicção do julgador da matéria de facto não é mais do que um juízo de probabilidades sobre a verdade ou falsidade de certas proposições. Quando o juiz dá como provado um determinado facto, isso significa, no nosso ordenamento jurídico, que, com os meios limitados à sua disposição e a imperfeição inerente à natureza humana, atingiu a «certeza subjetiva» da veracidade da correspondente afirmação de facto” (Margarida Lima Rego, “Decisões em ambiente de incerteza: probabilidade e convicção na formação das decisões judiciais”, Revista Julgar, n.º 21, Set/Dez de 2013, p. 121).
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [28].
Além disso, encontra-se consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. Portanto, tanto a prova direta, como a indireta ou indiciária são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta.
De resto, a associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objetivos e regras objetivas leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.[29]
Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.[30]
Com efeito, a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.[31]
Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes.
No presente caso, consideramos que os indícios destacados na decisão recorrida (de forma lógica e congruente) são suficientemente graves, precisos e concordantes, permitindo as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo no sentido da demonstração da autoria do crime imputado ao arguido/recorrente e, bem assim, da verificação do dolo na respetiva execução.[32]

Deste modo, não podemos deixar de concluir que a decisão recorrida encontra-se perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo [33] (sendo certo que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia) [34].
Com efeito, e como se observa na sentença recorrida, não basta ao arguido lançar uma qualquer versão alternativa para que possa infundir dúvidas no processo da formação da convicção do julgador. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção.
Ora, a tese veiculada pelo arguido – a de que a responsabilidade pelas falsificações dos documentos não seria sua, mas antes de GG, interessado na importação do veículo em causa – não se mostra alicerçada em qualquer meio de prova e revela-se, antes, inverosímil.
Já a tese da acusação encontra pleno acolhimento na prova produzida, globalmente apreciada e conjugada, apesar da insuficiência da prova pericial para a demonstração, por si só, da autoria das falsificações imputadas ao arguido.[35] Com efeito, ficou demonstrado que o arguido tinha na sua posse documentos pessoais de CC e que tratou diretamente da venda do automóvel com o comprador, no seu stand, recebendo o preço respetivo, através do desconto do cheque à boca de caixa, pelo que ilógico seria que o tribunal não concluísse pela autoria da falsificação dos documentos necessários para a viabilização do negócio (diretamente ou por intermédio de alguém agindo a seu mando) que lhe havia sido imputada.
Em suma, concluímos pela observância do princípio “in dubio pro reo” e pela inexistência de “erro notório na apreciação da prova” (o vício decisório elencado no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP), sendo certo, ainda, que os elementos de prova indicados pelo recorrente para fundamentar a sua discordância de forma alguma imporiam decisão diversa da recorrida.
Do mesmo modo, é patente que a sentença recorrida não apresenta qualquer lacuna factual, não se evidenciando a omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição.
Finalmente, inexiste qualquer contradição (muito menos insanável) entre a fundamentação e a decisão, vício decisório este que nada tem que ver com a discordância do recorrente relativamente ao posicionamento do tribunal face à prova dos factos, antes decorre de raciocínios ilógicos ou incongruentes expressos na decisão ou da manifesta impossibilidade de conciliação lógica entre os factos provados ou entre eles e os factos não provados.
Em suma, a decisão mostra-se coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais ou de factos contrários às regras da experiência comum, nela inexistindo também qualquer lacuna factual ou inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão.
Improcede, assim, na totalidade o presente recurso, nenhuma censura merecendo a sentença recorrida.
*
III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso do arguido, confirmando-se integralmente a sentença recorrida, sem prejuízo da correção do erro material nela constante referente à data da sua prolação (10/5/2021, em vez de 10/5/2022, como ali está escrito).
Custas do recurso pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC (art.º 513º, nº 1, do CPP).
Notifique.
*
(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
*
Porto, 14 de dezembro de 2022.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso
__________________
[1] Mantendo-se a ortografia original do texto, sem prejuízo da correção de eventuais manifestos lapsos de escrita.
[2] Cfr., neste sentido, o acórdão deste TRP de 5/1/2011, relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[3] Cfr., neste sentido, o acórdão deste TRP de 6/6/2001, relatado pelo Desembargador Marques Pereira e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado (2014), anotação ao artigo 119º, pág.383, citado no acórdão deste TRP de 11/4/2018, relatado pelo Desembargador Luís Coimbra e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[5] Relatado pela Desembargadora Maria José Nogueira e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[6] Dispõe o art.º 123.º do CPP: “1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiver assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado. 2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.”
[7] De acordo com o acórdão do TRP de 5/2/2003, publicado na Col. Jur., ano XXVII, tomo I, página 216, «Se a sentença consistiu numa pronúncia oral, que não chegou a ser reduzida a escrito, é claro que não existe sentença».
[8] “Código de Processo Civil anotado”, volume V, Coimbra Editora, reimpressão de 1984, página 119.
[9] Situação que se configurava no processo que deu origem ao recurso decidido no acórdão deste TRP, datado de 11/4/2018 e relatado pelo Desembargador Vítor Morgado, já que aqui, diversamente do que sucede no caso de que nos ocupamos no presente recurso, nunca existiu sentença escrita que tivesse sido depositada.
Por forma a evitar que se converta em regra uma situação excecional, que configura uma patologia extrema, na expressão utilizada no acórdão do TRC de 16/3/2016, parece-nos recomendável uma leitura parcimoniosa dos preceitos normativos e, sobretudo, uma particular atenção às particularidades das circunstâncias de cada caso.
[10] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º), e não apenas a permitirem.
[11] Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pg.s. 176 e segs.), «não podemos esquecer a perceção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros fatores» (assim, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reações, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2003, proc. nº 3100/02, relatado por Leal Henriques, acessível em www.dgsi.pt).
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.”.
Não basta, portanto, para que o tribunal possa modificar a decisão quanto à matéria de facto que a solução defendida em recurso, aparentemente, se mostre tão plausível como a assumida pelo tribunal. Neste caso, deve prevalecer a opção do tribunal de primeira instância, que beneficiou da oralidade e da imediação na audiência de discussão e julgamento, ferramentas que não estão ao dispor do tribunal de recurso.
[12] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Como é sublinhado no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível em www.dgsi.pt), “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[13] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[14] Cfr., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRG de 21/6/2010 (relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso e disponível para consulta em www.dgsi.pt), o prof. Enrico Altavilla já há muito ensinava que "o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" – Psicologia Judiciária, vol. II, 3º ed. pág. 12. [15] In “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111.
[16] In “A NECESSIDADE DE REFORMAR O SISTEMA DE RECURSOS NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA. O SISTEMA DE RECURSOS EXIGE REFORMAS?”, Reforma do Sistema de Recursos – Setembro 2019 - Ebook do Cej, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Reforma_Recursos.pdf.
[17] Relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em www.dgsi.pt.
[18] Nesta linha, o acórdão n.º 116/07 do TC julgou inconstitucional a norma do artigo 428.º, n.º, 1 “quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objetivos indicados na fundamentação da sentença objeto de recurso foram colhidos da prova produzida”.
[19] Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª edição revista, pág. 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
[20] Como é salientado no acórdão deste TRP de 4/5/2016 (relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt), “A dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável, objetivável. A dúvida insanável pressupõe que houve todo o empenho e diligência do tribunal no esclarecimento dos factos sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.”.
Consta também do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt) o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
[21] Neste sentido, o acórdão do STJ de 29/5/2008 (Relator: Conselheiro Rodrigues da Costa), disponível em www.dgsi.pt.
[22] Cfr., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[23] Relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt.
Também no acórdão do TRP de 9/1/2020, relatado pelo Desembargador Nelson Fernandes e disponível em www.dgsi.pt, é referido que “O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.”.
[24] Cfr. o acórdão do TRC, de 24/10/2018 (Vasques Osório, in www.dgsi.pt).
Também no acórdão do TRL, de 29/1/2020 (José Alfredo Costa, in www.dgsi.pt), se afirma que “Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando da factualidade vertida na decisão se constata que faltam dados e elementos que, podendo e devendo ser investigados não o foram, sendo de considerar que são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.”.
[25] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em www.dgsi.pt, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[26] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cfr. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[27] Cfr. o acórdão do TRP, de 15/11/2018, relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio, consultável em www.dgsi.pt, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
[28] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[29] Como é observado no acórdão deste TRP de 3/2/2016 (relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, disponível para consulta em www.dgsi.pt), “A prova indireta (ou indiciária) não será um “minus” relativamente à prova direta, pois se até é certo que na prova indireta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência e vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.”.
[30] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cfr., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[31] Como é observado no acórdão deste TRP de 14/7/2020, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, 2, c), do CPP).
[32] Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum (cfr. o acórdão deste TRP de 31/10/2018, in www.dgsi.pt). Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
No presente caso, é evidente que o tribunal não podia deixar de concluir, como concluiu, quanto à autoria atribuída ao arguido (atuando por si próprio ou por intermédio de outrem, agindo a seu mando e no seu interesse) quanto aos atos de falsificação dos documentos e à intenção que presidiu ao seu comportamento, em face de todo o circunstancialismo descrito na matéria de facto provada.
[33] Consta do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt, o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[34] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[35] Nem se percebe bem a crítica dirigida pelo recorrente à valoração efetuada pelo tribunal a quo da prova pericial: para além de outros elementos corroborantes, a prova pericial contribuiu para a demonstração que o preenchimento e assinatura dos documentos em causa não terá sido efetuado pelo ofendido CC; por outro lado, se não confirma a hipótese da participação do arguido, pelo seu próprio punho, nesses atos, também não a exclui, já que quanto a este aspeto não foram obtidos na perícia resultados conclusivos.
Por outro lado, sempre subsistiria a hipótese, admitida na sentença, que as falsificações tivessem efetuadas por terceira pessoa, atuando a mando e no interesse do arguido.