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MEIOS DE PROVA
ADMISSIBILIDADE
INSPECÇÃO JUDICIAL
PRESSUPOSTOS
Sumário
1.–Por força do princípio do inquisitório, deve o juiz acautelar a necessidade de produção dos meios de prova requeridos pelas partes face aos factos alegados, apenas indeferindo esses meios de prova quando os meios não se adeqúem ao objecto processual ou se revelem inúteis;
2.–Para que se ordene a realização de prova por inspecção judicial é fundamental que se perspective tal diligência como útil para a decisão da causa, sendo a mesma de indeferir quando se mostre desnecessária ou inútil, o que deverá constar de despacho fundamentado.
Texto Integral
Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I.–RELATÓRIO
1.–No âmbito de acção intentada por A [Fundação ……] contra Apl - Administração do Porto de Lisboa, SA, no decurso da audiência de discussão e julgamento, foi proferido despacho indeferindo a inspecção ao local requerida pela A..
2.–Inconformada, a apelante recorre deste despacho, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“A.-O presente processo corresponde a uma ação de impugnação da aquisição por usucapião pela Ré dos prédios sitos na Rua ....., n.ºs ... a ..., L____, titulada por escritura de justificação notarial de 20 de dezembro de 1994. B.-A Autora requereu no presente processo a prova por inspeção judicial através de deslocação aos prédios sitos na Rua ....., n.ºs ... a ..., L____. C.-O Tribunal a quo indeferiu o pedido de prova por inspeção judicial através de deslocação aos prédios em causa nos autos, por entender que tal meio de prova não é útil para a descoberta da verdade. D.-O Tribunal a quo apresentou os seguintes fundamentos no despacho de indeferimento da prova por inspeção judicial:
i)- A resposta aos temas da prova pode extrair-se da prova testemunhal prestada na audiência de julgamento e da prova documental existente nos autos;
ii)- O Tribunal não possui conhecimentos técnicos, pelo que a deslocação ao local apenas permitiria concluir o que consta atualmente nos mapas do Google;
iii)- Existe um consenso de que o edificado em discussão nos autos corresponde aos edifícios de Nº... a ... da Rua ..... . E.-A prova por inspeção judicial possibilita ao Tribunal a apreensão e a perceção direta do que está em causa, sem intermediação ou interposição de algo ou de outrem, ao contrário do que sucede nos restantes meios de prova, como por exemplo a prova testemunhal ou a prova documental. F.-A boa interpretação da norma constante do artigo 490.º, n.º 1 do CPC impõe que se considere que a decisão do Tribunal relativa ao pedido de prova por inspeção judicial é um poder-dever, pelo que deve ser deferida e realizada a prova por inspeção judicial sempre que este meio de prova seja abstratamente útil para o apuramento da verdade. G.-A prova por inspeção judicial apenas deverá ser rejeitada pelo Tribunal quando se mostre de todo desnecessária ou inútil. H.-A decisão do Tribunal de rejeitar a prova por inspeção judicial quando a mesma seja abstratamente útil para o apuramento da verdade constitui uma violação do princípio do inquisitório, previsto na norma do artigo 411.º do CPC, nos termos do qual cabe ao Tribunal realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. I.-A inspeção judicial através da deslocação aos prédios sitos na Rua ....., n.º ... a ..., L_____, permitiria ao Tribunal uma perceção direta e mais detalhada quando em comparação com a visualização dos prédios através de mapas do motor de busca Google e a nomeação e a intervenção de técnico na inspeção judicial auxiliaria o Tribunal em termos técnicos no âmbito da inspeção judicial aos prédios. J.-Ao não ter procedido à nomeação de técnico para o elucidar sobre a averiguação e interpretação dos factos a observar, o Tribunal violou a norma do artigo 492.º do CPC, que prevê que o Tribunal nomeie e faça-se acompanhar de técnico na realização da prova por inspeção judicial. K.-As partes não estão de acordo quanto à localização nem quanto à caraterização dos prédios sitos na Rua ....., n.ºs ... a ..., L____, o que se manifesta no facto de estas duas matérias constituírem temas da prova e de as partes expressarem posições divergentes quanto à caraterização dos prédios: a Ré alega que é um “lote de terreno para construção” e a Autora que são “prédios edificados”. L.-Os documentos juntos nos autos não são coincidentes quanto à caraterização dos prédios sitos no n.ºs ... a ... Rua ....., L_____. M.-A prova por inspeção judicial auxiliaria o Tribunal na correta interpretação gráfica dos documentos juntos ao processo pela Autora no seu Articulado Superveniente de 29-03-2022, referentes à descrição dos prédios sitos no n.º ... a ... Rua ....., L_____. N.-A decisão ora recorrida rejeitou um meio de prova que poderia ser útil para a descoberta da verdade, pelo que esta decisão violou as normas dos artigos 411.º, 490.º e 492.º do CPC e 390.º do CC e em consequência deve ser revogada e substituída por decisão que defira e ordene a realização da inspeção judicial.”.
3.– Não foram apresentadas contra-alegações.
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II.–QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que a questão a decidir é determinar se deve ser ordenada a inspecção requerida nos autos.
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III.–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Da análise dos autos principais através do sistema Citius resultam os seguintes factos: 1.–A A. intentou a presente acção declarativa de impugnação da aquisição por usucapião pela R. dos prédios sitos na Rua ....., nºs ... a ..., L____, titulada por escritura de justificação notarial;
2.–No despacho saneador proferido foram fixados os seguintes temas da prova:
“1)- Local em que o prédio se encontra;
2)- Da caracterização do prédio descrito na escritura de justificação como um lote de terreno para construção;
3)- Se foi conquistado ao Rio Tejo, por volta do ano de 1906; data de início dos respetivos aterros; ou
4)- Se o prédio se encontra em terra firme pelo menos desde 1900, e nele existem construções;
5)- Das referidas edificações: se foram realizadas por JAS..., em que data, e que título;
6)- Da inscrição na matriz predial do/s imóvel/is: data da inscrição, artigo/s matricial/is, descrição do imóvel/is, titulares inscritos.
7)- Dos atos de uso, fruição e disposição do/s imóvel/is pela ré ou pelo Estado, e desde que data;
8)- Dos atos de uso, fruição e disposição do/s imóvel/is pela autora e seus antecessores, e desde que data;
9)- Da convicção com que a autora e seus antecessores praticaria os atos referidos em 8”;
3.–A A. apresentou requerimento no qual requereu “nos termos previstos no artigo 490.º do Código de Processo Civil, a realização de inspeção judicial através de deslocação aos prédios sitos na Rua ....., n.ºs ...-..., ..., ..., ..., ... e ... na freguesia do ....., em L____, com vista a confirmar a factualidade relativa aos temas da prova 1), 2), 3), 4), 5) e 6) fixados no Despacho Saneador”; 4.–A R. nada requereu ou opôs quanto a este pedido; 5.–No decurso da audiência de discussão e julgamento, foi proferido despacho indeferindo a inspecção ao local requerida.
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IV.–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em audiência de discussão e julgamento e que “Por não ser útil para o apuramento da verdade”, indeferiu a inspecção judicial ao local requerida pela A., ora apelante.
Insurge-se esta com este indeferimento, alegando que “a decisão do Tribunal relativa ao pedido de prova por inspeção judicial é um poder-dever, pelo que deve ser deferida e realizada a prova por inspeção judicial sempre que este meio de prova seja abstratamente útil para o apuramento da verdade”, apenas devendo ser rejeitada quando se mostre de todo desnecessária ou inútil, o que não é o caso, já que a prova por inspecção judicial auxiliaria o Tribunal na correcta interpretação gráfica dos documentos juntos.
Mais alega que “A decisão do Tribunal de rejeitar a prova por inspeção judicial quando a mesma seja abstratamente útil para o apuramento da verdade constitui uma violação do princípio do inquisitório, previsto na norma do artigo 411.º do CPC, nos termos do qual cabe ao Tribunal realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio” (Cls. H).
Apreciando.
Nos termos do art. 390º do CC, “a prova por inspecção tem por fim a percepção directa de factos pelo tribunal”, dispondo o art. 391º do mesmo diploma que “O resultado da inspecção é livremente apreciado pelo tribunal”.
Como nos explica Luís Filipe Pires de Sousa in Direito Probatório Material, Coimbra, 2020, pág. 196, “A inspecção consiste na atividade (do juiz, acompanhado das partes) de perceção sensorial do estado ou condição de coisas ou pessoas que, por razões objetivas e intrínsecas à sua natureza, não podem ser adquiridas para o processo na sua corporeidade física, mas que assumem relevo na formulação de um juízo sobre a prova dos factos controversos no processo. Através da inspeção, permite-se ao juiz (co)fundamentar a decisão de facto numa observação direta das coisas ou pessoas, evitando-se os riscos inerentes à fundamentação da decisão num conhecimento indireto, veiculado por outras provas”.
Por seu turno, dispõe o art. 490º, nº 1 do CPC que “O tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária”.
Saliente-se que a utilização da expressão “sempre que o julgue conveniente” não determina que a realização da inspecção judicial seja um poder discricionário do juiz.
Como se refere no Ac. TRP de 26-11-2013, proc. 309/07.2TBLMG.P1, relator Rodrigues Pires, citado pela apelante, “É antes um poder-dever, que só poderá deixar de ser exercido no caso da diligência requerida se mostrar de todo desnecessária ou inútil para a descoberta da verdade, o que deverá constar de despacho fundamentado e susceptível de recurso, sob pena de o direito à prova por inspecção, reconhecido no art. 390º do Cód. Civil, ficar na dependência da livre vontade do juiz”.
Fundamental para que se ordene a realização de prova por inspecção judicial é que se perspective tal diligência como útil para a decisão da causa, sendo a mesma de indeferir quando se mostre desnecessária ou inútil, o que deverá constar de despacho fundamentado.
Tem, pois, razão a apelante quando afirma que “A prova por inspeção judicial apenas deverá ser rejeitada pelo Tribunal quando se mostre de todo desnecessária ou inútil” (Cls. G).
No caso dos autos, a apelante requereu a realização da prova por inspecção judicial para prova da matéria de facto constante dos temas de prova 1), 2), 3), 4), 5) e 6).
Tais temas de prova são os seguintes: 1)-Local em que o prédio se encontra; 2)-Da caracterização do prédio descrito na escritura de justificação como um lote de terreno para construção; 3)-Se foi conquistado ao Rio Tejo, por volta do ano de 1906; data de início dos respetivos aterros; ou 4)-Se o prédio se encontra em terra firme pelo menos desde 1900, e nele existem construções; 5)-Das referidas edificações: se foram realizadas por JAS..., em que data, e que título; 6)-Da inscrição na matriz predial do/s imóvel/is: data da inscrição, artigo/s matricial/is, descrição do imóvel/is, titulares inscritos.
Da leitura da petição inicial resulta que estes temas de prova consubstanciam parte da factualidade alegada na petição inicial e na qual a apelante baseia a sua pretensão, a saber: a impugnação da aquisição por usucapião pela R. dos prédios em causa nos autos efectuada através de escritura de justificação notarial.
Tem sido entendido que a acção de impugnação de escritura de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa, cfr. art. 10º, nº 3, al. a) do CPC, já que se destina à declaração da inexistência do direito arrogado na escritura. Consequentemente, é ao justificante que incumbe o ónus da prova dos factos constitutivos e integradores da aquisição do direito de propriedade, cfr. art. 343º, nº 1 do CC.
Não obstante, tem a apelante direito a efectuar a respectiva contra-prova, não lhe podendo ser negados meios de prova requeridos, quando tal não se justifique, mas apenas quando sejam desnecessários ou inúteis.
Não é o caso vertente.
Na verdade, considerando o pedido deduzido e os temas de prova fixados entende-se que não se pode afirmar, de forma categórica, que a inspecção judicial requerida não tenha qualquer interesse para os autos, nomeadamente para esclarecer os meios de prova já existentes, confirmando ou infirmando o que deles resulta.
Ora, como bem refere a apelante, a “A decisão do Tribunal de rejeitar a prova por inspeção judicial quando a mesma seja abstratamente útil para o apuramento da verdade constitui uma violação do princípio do inquisitório, previsto na norma do artigo 411.º do CPC, nos termos do qual cabe ao Tribunal realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”.
Nos termos do art. 411º do CPC, “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Consagração do princípio do inquisitório, pressupõe este preceito a compatibilização entre o princípio do dispositivo, que determina a necessidade de alegação de factos pelas partes, e a actuação do juiz sobre o qual impende a responsabilidade de realizar diligências que repute como essenciais.
Quer isto dizer que, por força do princípio do inquisitório, deve o juiz acautelar a necessidade de produção dos meios de prova requeridos pelas partes com os factos alegados, apenas indeferindo esses meios de prova quando os meios não se adequem ao objecto processual ou se revelem inúteis. Neste sentido, veja-se Ac. TRC de 25-10-2022, proc. 4322/21.9T8LRA-A.C1, relator Luís Cravo.
Não tendo ainda sido fixada a factualidade assente e não assente e revestindo a inspecção judicial requerida uma forma de salvaguardar a descoberta da verdade material e de se alcançar uma justa composição do litígio, não se mostra possível dizer que essa inspecção é inútil ou desnecessária.
Acresce que quaisquer óbices do tribunal recorrido quanto a esta inspecção com fundamento na ausência de conhecimentos técnicos podem ser afastados através de mecanismo previsto no art. 492º do CPC.
Por outro lado, considerando o objecto da inspecção requerida e os temas de prova em causa, não se verifica qualquer desadequação entre esses temas e a inspecção, em termos tais que permitam concluir pela irrelevância da inspecção requerida. Ou seja, impunha-se ao tribunal recorrido proceder à realização da prova pericial requerida, por não se mostrar inequívoca a inutilidade da mesma.
Impõe-se, assim, a procedência da apelação, com a revogação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus termos com a realização da prova por inspecção requerida.
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V.–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos com a realização da prova por inspecção requerida.
Sem custas.
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Lisboa, 14 de Fevereiro de 2023
Ana Rodrigues da Silva Micaela Sousa Cristina Silva Maximiano