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VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FORÇA PROBATÓRIA DE DOCUMENTO PARTICULAR
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
CONFISSÃO JUDICIAL ESCRITA
FALTA DE REDUÇÃO A ESCRITO DE DEPOIMENTO DE PARTE
CONFISSÃO EM LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Sumário
I - Quanto ao ónus impugnatório previsto no art. 640º do C.P.Civil de 2013, têm vindo a constituir entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça que: 1) o Recorrente tem sempre que indicar os «concretos prontos de facto» que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; 2) o Recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, mas não sendo necessário que tal especificação também conste das conclusões; 3) relativamente aos «pontos de facto» cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em «prova gravada», para além da supra referida especificação dos meios de prova, o Recorrente está obrigado a indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos, mas não sendo necessário que tal indicação conste das conclusões; e 4) na motivação, o Recorrente tem expressar a decisão, no seu entendimento, que deve ser proferida sobre os «concretos prontos de facto» que impugnou, tendo em atenção a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se compreende em razão do reforço do ónus de alegação, com vista a evitar a interposição de recursos com conteúdo genérico ou inconsequente. II - O incumprimento de qualquer dos ónus supra indicados conduz à imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto (rejeição que será total ou parcial, consoante o incumprimento seja relativo a todo o âmbito da impugnação ou seja relativo apenas a uma parte da impugnação), não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões. III - A força probatória do documento particular circunscreve-se ao âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém de uma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. IV - A autoridade de caso julgado não prescinde da identidade de partes, pressupondo que as partes no processo em que foi proferida a decisão a impor sejam as mesmas do processo em que se pretende que seja imposta aquela decisão. V - A autoridade de caso julgado de uma decisão não abrange os seus fundamentos de facto, pelo que os mesmos não gozam dessa eficácia extraprocessualmente. VI - Decorre do disposto no art. 358º/1 do C.Civil que só a confissão judicial escrita tem força probatória plena, pelo que o facto de a audiência ser gravada não dispensa a redução a escrito a declaração confessória. VII - A falta de redução a escrito do depoimento de parte, nos segmentos em que ocorra confissão, constitui nulidade que ficará sanada se não for oportunamente arguida. Não sendo a nulidade tempestivamente arguida, o depoimento só pode ser livremente valorado pelo Tribunal (cfr. art. 358º/4 do C.Civil). VIII – Por força do disposto no nº2 do art. 353º do C.Civil, em caso de litisconsórcio necessário, a confissão só é eficaz (tem força probatória plena) se for feita por todos os litisconsortes.
Texto Integral
ACORDAMOS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
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1. RELATÓRIO 1.1. Da Decisão Impugnada
Por apenso em processo de insolvência, no qual, por sentença de 25/03/2021, se declarou insolvente AA, o Autor BB intentou contra a Ré MASSA INSOLVENTE, contra o Réu INSOLVENTE, e contra os Réus TODOS OS CREDORES DA MASSA INSOLVENTE, ao abrigo do preceituado no art. 146º, n.º 2 do CIRE, acção para verificação ulterior de créditos, pedindo que seja «julgada totalmente procedente, por provada, a presente acção e se condene o Réu a pagar ao Autor a quantia de 59.250,00€, sendo: - 45.000,00 € a título de capital; - 6.750,00 € de juros vencidos; - 5.000,00 €, a título de cláusula penal e - 2.500,00 € a título de honorários com advogado e despesas judiciais. Mais se condene o Réu no pagamento da quantia de 1.000,00 € por cada mês de atraso no pagamento do seu débito, até efectivo e integral pagamento».
Fundamentou a sua pretensão, essencialmente, no seguinte: «no decorrer dos anos de 2005 a 2009, o Autor fez vários empréstimos, em dinheiro, ao Insolvente, que passou a incumprir com os compromissos que assumira com o Autor; tal como lhe foi exigido pelo Autor, em 05.11.2009, o Insolvente, através da declaração de dívida, por si subscrita, confessou-se devedor ao Autor da quantia de € 45.000,00, entregando, ainda, a este, o cheque nº...02, emitido com a mesma data, no valor de € 45.000,00, mais tendo declarado que o montante em dívida seria liquidado no prazo de 10 anos, sendo devidos juros à taxa de 5% ao ano e assumido que, caso não liquidasse o montante em dívida naquele prazo, se obrigava a liquidar a quantia de € 1.000,00, por cada mês de atraso, bem como todas as despesas com advogado e tribunal; na data do vencimento do empréstimo, 08.11.2019, o Insolvente não restituiu a quantia mutuada, nem liquidou os juros vencidos em 2017, 2018 e 2019, tudo no valor de € 51.750,00; em 06.03.2020, o Autor instaurou a acção declarativa nº857/20...., na qual peticionou a condenação do insolvente no pagamento da quantia global de a quantia de € 59.250,00; o Réu não apresentou contestação, tendo sido proferida sentença, em 29.09.2020, entretanto transitada em julgado, a qual o condenou em conformidade com o peticionado».
O Credor CC contestou, pugnando que «a) as excepções peremptórias da caducidade do direito de acção, da preclusão do direito e do caso julgado e da autoridade e força do caso julgado sejam julgadas provadas e procedente, com as legais consequências, absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados pelo Autor; caso assim se não entenda: b) a acção seja julgada não provada e improcedente, com as legais consequências, nomeadamente deve decidir-se pelo não reconhecimento do crédito peticionado pelo Autor; c) deve, ainda, o Autor ser condenado por litigância de má-fé em multa e em indemnização a favor do contestante CC em montante a liquidar oportunamente nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 543º do CPC».
Fundamentou a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «invocação da caducidade do direito de acção, a preclusão do direito, do caso julgado e da autoridade e força do caso julgado, porque a questão do suposto crédito já foi invocada, discutida, apreciada e decidida no apenso de Reclamação de Créditos, com decisão já transitada em julgado relativamente ao crédito de que o BB se arrogava e arroga titular, não lhe tendo sido reconhecido qualquer crédito; e a sentença da acção nº857/20.... foi proferida com base em factos e documentos falsos e por não corresponder à verdade, constituindo processo simulado entre as partes que dele se serviram para praticar um acto simulado e para conseguir um fim proibido por lei».
A Massa Insolvente, o Insolvente e os restantes Credores da Massa Insolvente não contestaram.
Foi proferido despacho saneador, no qual, para além do mais, foram julgadas improcedentes a excepção peremptória de caso julgado e/ou autoridade e força do caso julgado e a excepção preclusão do direito de acção/caducidade deduzidas pelo Credor CC, foi identificado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte decisório: “Em conformidade com o exposto, julga o Tribunal a presente acção totalmente improcedente termos em que decide absolver os réus do respectivo pedido. Ademais, julga-se improcedente o incidente de litigância de má fé deduzido pelo Réu contra o Autor”.
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1.2. Do Recurso do Autor
Inconformado com a referida decisão, o Autor interpôs recurso de apelação, pedindo que «o presente recurso seja julgado procedente e ser a sentença revogada e substituída por outra que julgue a ação totalmente procedente por provada, sem prejuízo da apreciação das demais questões suscitadas no presente recurso», e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações: “A. TENDO EM CONTA QUE, o Recorrente juntou aos autos: Doc. ... – Uma declaração de dívida, que só por si comprova a existência do crédito, titulando o contrato de mútuo. Doc. ... – Um cheque, identificado na referida Declaração da Dívida, como garantia do contrato de mútuo. Doc. ... - Cópia de sentença, transitada em julgado, proferida no âmbito dos autos de ação com processo comum, que com o nº 13/20...., correram termos pelo Juízo Local Cível do Tribunal Judicial ..., na qual o Insolvente foi condenado a pagar ao ora Recorrente, o valor reclamado por este na presente acção. TENDO EM CONTA QUE: A FACTUALIDADE ALEGADA PELO RÉU/RECORRIDO, DE QUE TAL ACÇÃO N.º 13/20.... EM ACTO SIMULADO DAS PARTES, para conseguir um fim proibido por lei, com o intuito de verem “reconhecido judicialmente” crédito fictício sobre o então Réu e ora Insolvente, com vista a provocarem o rateio no produto da venda dos bens deste, prejudicando e impedindo o credor CC de receber a totalidade ou grande parte do crédito de que é titular sobre o Insolvente, causando-lhe prejuízo, FOI DADA POR NÃO PROVADA. TENDO EM CONTA QUE: A própria Sentença Recorrida refere: “Acresce, no que respeita à factualidade tida como não provada relacionada com a simulação (e mesmo com a litigância de má-fé) alegada pelo réu contestante, que a conclusão quanto à mesma assim resulta pela insuficiência de prova quanto à respectiva realidade.” CONCLUI-SE QUE: “A prova documental trazida aos autos pelo Autor, cujo valor ou força probatória o ora Recorrido não logrou infirmar/fazer cessar, é, por si só, bastante para se provar o contrato de mútuo. Ocorre caso julgado. B. TENDO EM CONTA, O depoimento produzido pelo Réu Insolvente, que acima se transcreve fls. 10 a 12, IMPÕE SE CONCLUA QUE: 1. - O depoimento prestado pelo Réu Insolvente, foi requerido pelo Réu, ora Recorrido. 2. - Tal depoimento de parte, previsto no artº 452º CPC, tem a sua irretratibilidade prevista no artº 465º do mesmo diploma lega. 3. - Do depoimento de parte, consagrado em tal dispositivo legal, e acima transcrito, resultam factos, absolutamente indesmentíveis e que jamais podem ser retirados dos autos, a saber: - O Réu Insolvente confessa - confissão irretratável - o crédito reclamado pelo Autor, confissão que é expressa, com força probatória plena contra o confitente - art. 358.º, n.º 1 do CC -, que ultrapassa a livre apreciação do Tribunal – dito artº 358º, nº 4 -, C. A Sentença Recorrida ignorou a força probatória plena de tal confissão, violando o disposto nos artºs 358º e 674º do Cód. Proc. Civil, violação que expressamente se invoca, sendo certo que invocada tal violação pode a mesma suscitar a intervenção das instâncias superiores, por força do disposto no art. 674º, nº 3 do CPC. D. SOBRE A FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA, quando refere:- “Efectivamente, pese embora Autor e Insolvente procurem confirmar os factos alegados pelo primeiro com vista a fundamentar o respectivo pedido, o certo é que, desde logo, contradizem-se quanto ao período em que os supostos empréstimos terão ocorrido, o primeiro a afirmar que teria feito entregas ao longo de um a dois anos e o segundo a referir-se a um período de cerca de cinco anos; por outro lado, nenhum foi capaz de, sustentadamente, explicar em que circunstâncias e que montantes eram emprestados de cada vez, nem como chegaram ao montante que entretanto foi firmado no cheque id. nos autos, ou ao montante de juros entretanto calculado, não nos podendo in casu bastar com uma simples “confissão” por banda do réu insolvente.”, TENDO EM CONTA, Os depoimentos prestados pelo Autor/Recorrente, em sede de depoimento de parte, a requerimento do ora Recorrido, transcrito a fls. 12 a 15, comparado com o depoimento de parte prestado pelo Réu Insolvente - fls. 13 a 15 -, IMPORTA CONCLUIR QUE: 1. - O Autor não confessa que não tem sobre o Insolvente o crédito por ele reclamado, que era o que o Recorrido pretendia provar, mas não fez. 2. - As partes, Autor e Insolvente NÃO SE CONTRADIZEM, Já que: a)- O Réu Insolvente refere 4 anos mais ou menos, entre 2005 e 2009, altura em que entregou ao Autor a declaração da dívida e o cheque, da quantia global mutuada de € 45.000,00. b)- O Autor nunca afirmou o número de anos em concreto, dizendo que emprestou várias vezes, e fazendo apelo ao tempo já passado desde 2005/2009, para poder dar certezas, justificando a dificuldade, ao dizer:“ [00:09:09] T.: sr. Dr., emprestei em parcelas de 10 mil… sei que eram… uma vez emprestei-lhe 10 mil, outras vezes 5 mil. A primeira vez acho que foi 7.500. Mas não posso dizer mais. Quer dizer, não me recordo mais, … já foi há tantos anos, sr. Dr !... 3. - Mesmo que entre os depoimentos de ambas as partes houvesse uma diferença de 2 anos, sobre os momentos em que ocorreram os vários mútuos, não é verdadeiro fundamento/motivação aquilo que a sentença recorrida refere para dar por não provada a existência do mútuo em causa. 4. - No ano de 2022, não é exigível ao Autor, pessoa com mais de 80 anos de idade, ainda por cima sucateiro de profissão, gente que, por regra, negoceia dezenas de vezes ao dia e com dinheiro vivo - facto público e notório – que ele saiba, com precisão, uma a uma, que quantias emprestara entre 2005 e 2009, ou seja, desde há 17 anos a esta parte. 5. - Com a quantia mutuada de € 45.000,00, confessada na Declaração de Dívida e no Cheque juntos aos autos, os valores parciais dos empréstimos, passaram a partir de 2009, ou seja, há 13 anos, a deixar de ser algo de importante para ser necessário mantê-los na memória, factos que decorrem das regras do conhecimento, da experiência comum. E. TENDO EM CONTA, Os depoimentos das testemunhas DD – fls 17 a 20 -EE – fls. 19 a 23 - e FF – fls. 20 a 24 – IMPORTA CONCLUIR, ao contrário do que consta da fundamentação “ Por fim, nenhuma das diversas testemunhas inquiridas demonstrou ter efectivamente conhecimento directo do alegado mútuo, senão do que lhes era ouvido dizer, designadamente pelos próprios (Autor e Devedor).” Nenhuma das diversas testemunhas inquiridas demonstrou ter efectivamente conhecimento directo do alegado mútuo, QUE ASSIM NÃO É, PORQUANTO dos depoimentos acima transcritos resulta que: - fls. 17 a 26 - 1. - Todas têm conhecimento directo dos factos relativos aos mútuos em causa. 2. - É o próprio Réu/Recorrido, nos factos por si alegados na Contestação, a referir-se, expressamente, a duas pessoas - DD e EE - como pessoas das relações muito próximas, íntimas, do Autor. 3. - Estes DD e EE, foram arrolados pelo próprio Réu/Recorrido. 4. - A testemunha DD declarou que foi ele quem pediu ao Autor/Recorrente emprestasse dinheiro ao Réu Insolvente, o mesmo declarando a testemunha EE. 5. - O Autor confirmou que quem lhe pediu emprestasse dinheiro ao Réu Insolvente, foi o DD. 6. - A outra testemunha, também arrolada pelo Réu, de nome GG, disse:- Fls. 26 [00:03:02] Adv.: Olhe, alguma vez se constou que ele pedia dinheiro emprestado, ou que precisava de dinheiro emprestado? [00:03:11] T.: não sei de nada. Não sei de nada. [00:03:14] Adv.: mas alguma vez lhe constou isso? [00:03:18] T.: não estou a par de nada. Não estou a par de nada. [00:03:19] Adv.: não está a par de nada disso ? [00:03:21] T.: não estou a par disso. Não sei de nada. Não sei, nunca ouvi falar. [00:05:02] Adv.: Portanto, o sr. não sabe… e sabe se ele recebeu o dinheiro todo das obras? Ou se ficou a perder dinheiro com algumas obras que fez? [00:05:12] T.: não estou a par de nada. F. NÃO TENDO O RECORRIDO PROVADO que tal crédito era fictício, NENHUM DOS DEMAIS RÉUS HAVENDO CONTESTADO o pedido formulado pelo Autor/Recorrente, CONCLUI-SE QUE, A presente acção tem de ser julgada procedente por provada, revogando-se a sentença recorrida. G. A SENTENÇA RECORRIDA, ao referir “Para fundamentar a determinação da matéria de facto dada como provada e não provada, o Tribunal Recorrido declara “ter conjugado a prova documental junta aos autos e das declarações/depoimentos prestados pelas partes, bem como das inquirições das testemunhas auscultadas”.” em suma, dir-se-á que, da prova produzida, não resulta que o Autor tenha logrado provar, como lhe incumbia, os factos que sustentam o respectivo reconhecimento do crédito cuja verificação ora pretende e, consequentemente, julgando a acção improcedente, COMETE UM ERRO DE JULGAMENTO, H. Tal erro de julgamento ( error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzido numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consistente num desvio à realidade factual decorrente da prova carreada para os autos. I. O FUNDAMENTO USADO PELA SENTENÇA RECORRIDA QUANDO REFERE: “ O Autor alegou que o crédito reclamado emergia de múltiplos empréstimos, celebrados ao longo de dois anos, por meio dos quais havia emprestado ao insolvente a quantia reclamada. Todavia, esses alegados mútuos não foram juntos aos autos”, NÃO É FUNDAMENTO BASTANTE PARA CONCLUIR QUE INEXISTIU O MÚTUO, DESDE LOGO PORQUE, relativamente a estes tipos de mútuos, em que o credor entrega ao devedor os documentos/prova -declarações, letras, cheques -do mútuo, paga a dívida são entregues ao mutuário e a mais das vezes são destruídos, na presença de ambos, porquanto ocultam empréstimos com fuga ao pagamento de imposto de capital, COMO DECORRE DOS DEPOIMENTOS TRANSCRITOS, ASSIM COMO DA EXPERIÊNCIA COMUM. L. EM CONSEQUÊNCIA DISSO, a matéria de facto deve ser alterada, no sentido de a matéria das alíneas a) a g) dos factos dados por não provados, ser daí retirada, passando a integrar a matéria de facto dada por provada, passando esta a ter a seguinte composição: Factos provados: 3.1.- O ora Autor, em 06.03.2020, instaurou no Tribunal Judicial da Comarca ... - no Juízo Central Cível ... – Juiz ..., ação declarativa que, com o nº 857/20...., na qual peticionou a condenação do então Réu, ora Insolvente, no pagamento da quantia global de quantia de € 59.250,00, sendo € 45.000,00 a título de capital, € 6.750,00 de juros vencidos, € 5.000,00 a título de cláusula penal pelo atraso no pagamento do seu débito na data do vencimento, e € 2.500,00 a título de honorários com advogado e despesas judiciais. 3.2.- Citado, o Réu/Insolvente não apresentou contestação, tendo sido proferida sentença, em 29.09.2020, entretanto transitada em julgado, nos termos da qual foi decidido: “Decide-se assim julgar totalmente procedente por provada, a presente ação e condenar o Réu a pagar ao Autor a quantia de €59.250,00 (cinquenta e nove mil duzentos e cinquenta euros), sendo: - €45.000,00, a título de capital; - €6.750,00, de juros; - €5.000,00, a título de cláusula penal e - €2.500,00 a título de honorários com advogado e despesas judiciais. - Mais se condena o Réu no pagamento da quantia de €1.000,00, por cada mês de atraso no pagamento do seu débito, até efeito e integral pagamento”. 3.3.- O ora contestante CC interpôs recurso de revisão da sentença id. em 3.2. 3.4- No decorrer dos anos de 2005 a 2009, o Autor, a pedido de um amigo em comum, fez vários empréstimos, em dinheiro, ao ora Insolvente AA, que este dizia necessitar para aplicar em investimentos na sua atividade profissional de construção civil. 3.5.- Por várias ordens de razões, que foi alegando relacionadas com a crise que se abateu especialmente na construção civil, o ora Insolvente passou a incumprir com os compromissos que assumira com o ora Autor. 3.6.- Face aos incumprimentos reiterados do Insolvente, o Autor, no final de 2009, exigiu-lhe que emitisse uma declaração de dívida na qual aquele se assumisse devedor da quantia que, efetivamente, lhe devia, acrescida de um cheque que, também, titulasse a mesma. 3.7.- Assim, em 05.11.2009, o Insolvente, através da declaração de dívida, por si subscrita, confessou-se devedor ao Autor da quantia de € 45.000,00, entregando, ainda, a este, o cheque n.º ...02, emitido com a data de 05.11.2009, sobre o Banco 1..., no valor de € 45.000,00, mais tendo declarado o Insolvente que o montante em dívida seria liquidado no prazo de 10 anos, sendo devidos juros à taxa de 5% ao ano e assumido que, caso não liquidasse o montante em dívida naquele prazo, se obrigava a liquidar a quantia de € 1.000,00, por cada mês de atraso, bem como todas as despesas com advogado e tribunal. 3.8.- Durante os anos de 2010 até 2016, o Insolvente, tal como se tinha comprometido, foi pagando ao ora Autor os montantes correspondentes aos juros anuais que se foram vencendo, não o tendo feito dali em diante. 3.9.- Na data do vencimento do empréstimo, 08.11.2019, o Insolvente não restituiu a quantia mutuada, como se comprometeu, nem liquidou os juros vencidos em 2017, 2018 e 2019, tudo no valor de € 51.550,00. 3.10- Interpelado para proceder ao pagamento daquele seu débito, o Insolvente não o fez. M. COM TODO O RESPEITO, a sentença recorrida é nula, por violação do disposto no artº 615º do Cód. Proc. Civil, onde se encontram enumeradas, dispondo esse preceito, que, para além das demais situações contempladas nesse normativo, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b), e os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (nº 1, al. c). Os autos dispõem de prova documental, testemunhal e confessada, que, houvesse sido fundamentada/motivada, conduziria, necessariamente, à procedência desta acção. Sendo que, apesar de tais elementos de prova existirem nos autos -e que o Réu contestante não logrou contrariar minimamente - a decisão recorrida não contém a fundamentação/motivação que a lei impõe, não fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer. Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afetam formalmente a sentença, com ausência de razões inequívocas da explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia). N. São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada. O. A sentença recorrida violou o disposto nos artºs 412º, 413º, 423º e segts, 465º, 498º, do Cód. Civil e artºs 615º, 619º e segts. do Cód. Proc. Civil”.
Apenas o Réu Credor CC contra-alegou, pugnando para que seja negado provimento ao recurso.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR
Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[1] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[2]).
Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pelo Autor são três as questões a apreciar por este Tribunal ad quem:
1) Se a decisão recorrida padece da nulidade nos termos das alíneas b) e/ou c) do nº1 do art. 615º do C.P.Civil de 2013;
2) Se a sentença recorrida deve ser alterada quanto ao decidido aos «factos não provados a) a g)», os quais devem ser dados como provados;
3) E, caso se responda afirmativamente à questão anterior (parcial ou totalmente), se deve ser reconhecido o crédito invocado pelo Autor.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos:
3.1. O ora Autor, em 06.03.2020, instaurou no Tribunal Judicial da Comarca ... - no Juízo Central Cível ... – Juiz ..., ação declarativa que, com o nº 857/20...., na qual peticionou a condenação do então Réu, ora Insolvente, no pagamento da quantia global de a quantia de € 59.250,00, sendo € 45.000,00 a título de capital, € 6.750,00 de juros vencidos, € 5.000,00 a título de cláusula penal pelo atraso no pagamento do seu débito na data do vencimento, e € 2.500,00 a título de honorários com advogado e despesas judiciais.
3.2. Citado, o Réu/Insolvente não apresentou contestação, tendo sido proferida sentença, em 29.09.2020, entretanto transitada em julgado, nos termos da qual foi decidido: “Decide-se assim julgar totalmente procedente por provada, a presente ação e condenar o Réu a pagar ao Autor a quantia de €59.250,00 (cinquenta e nove mil duzentos e cinquenta euros), sendo: - €45.000,00, a título de capital; - €6.750,00, de juros; - €5.000,00, a título de cláusula penal; e - €2.500,00 a título de honorários com advogado e despesas judiciais. Mais se condena o Réu no pagamento da quantia de €1.000,00, por cada mês de atraso no pagamento do seu débito, até efeito e integral pagamento”.
3.3. O ora contestante CC interpôs recurso de revisão da sentença id. em 3.2.
Na mesma sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos:
a) No decorrer dos anos de 2005 a 2009, o Autor, a pedido de um amigo em comum, fez vários empréstimos, em dinheiro, ao ora Insolvente AA, que este dizia necessitar para aplicar em investimentos na sua atividade profissional de construção civil.
b) Por várias ordens de razões, que foi alegando relacionadas com a crise que se abateu especialmente na construção civil, o ora Insolvente passou a incumprir com os compromissos que assumira com o ora Autor.
c) Face aos incumprimentos reiterados do Insolvente, o Autor, no final de 2009, exigiu-lhe que emitisse uma declaração de dívida na qual aquele se assumisse devedor da quantia que, efetivamente, lhe devia, acrescida de um cheque que, também, titulasse a mesma.
d) Assim, em 05.11.2009, o Insolvente, através da declaração de dívida, por si subscrita, confessou-se devedor ao Autor da quantia de € 45.000,00, entregando, ainda, a este, o cheque n.º ...02, emitido com a data de 05.11.2009, sobre o Banco 1..., no valor de € 45.000,00, mais tendo declarado o Insolvente que o montante em dívida seria liquidado no prazo de 10 anos, sendo devidos juros à taxa de 5% ao ano e assumido que, caso não liquidasse o montante em dívida naquele prazo, se obrigava a liquidar a quantia de € 1.000,00, por cada mês de atraso, bem como todas as despesas com advogado e tribunal.
e) Durante os anos de 2010 até 2016, o Insolvente, tal como se tinha comprometido, foi pagando ao ora Autor os montantes correspondentes aos juros anuais que se foram vencendo, não o tendo feito dali em diante.
f) Na data do vencimento do empréstimo, 08.11.2019, o Insolvente não restituiu a quantia mutuada, como se comprometeu, nem liquidou os juros vencidos em 2017, 2018 e 2019, tudo no valor de € 51.750,00.
g) Interpelado para proceder ao pagamento daquele seu débito, o Insolvente não o fez.
h) A acção n.º 857/20.... assenta em acto simulado das partes, para conseguir um fim proibido por lei, com o intuito de verem “reconhecido judicialmente” crédito fictício sobre o então Réu e ora Insolvente, com vista a provocarem o rateio no produto da venda dos bens deste, prejudicando e impedindo o credor CC de receber a totalidade ou grande parte do crédito de que é titular sobre o Insolvente, causando-lhe prejuízo.
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Questão Prévia
Estatui o art 617º do C.P.Civil de 2013 (que é aplicável aos despachos ex vi do nº3 do art. 613º/3 do mesmo diploma legal): “1. Se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento… 5. Omitindo o juiz o despacho previsto no nº1, pode o relator, se o entender indispensável, mandar baixar o processo para que seja proferido; se não puder ser apreciado o objeto do recurso e houver que conhecer da questão da nulidade ou da reforma, compete ao juiz, após a baixa dos autos, apreciar as nulidades invocadas ou o pedido de reforma formulado, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o previsto no nº6”.
No âmbito do presente recurso, o Autor/Recorrente arguiu, expressamente, a nulidade da decisão recorrida «por violação do disposto no artº 615º do Cód. Proc. Civil, onde se encontram enumeradas, dispondo esse preceito, que, para além das demais situações contempladas nesse normativo, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b), e os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (nº 1, al. c)… a decisão recorrida não contém a fundamentação/motivação que a lei impõe, não fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer» (cfr. conclusões M e N).
No despacho em que admitiu o recurso, o Tribunal a quo omitiu, em absoluto, a apreciação das referidas nulidades, tal como impõe expressamente o nº1 do art. 617º.
Porém, ao abrigo do disposto na 1ªparte do nº1 do art. 617º, este Tribunal ad quem entende não ser indispensável a baixa do processo, pelo que se passará a conhecer do objecto do recurso.
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4.2. Das Nulidades da Sentença Recorrida
Importa ter presente que as nulidades da decisão (sentença, ou despacho) constituem vícios intrínsecos da própria, deficiências da respectiva estrutura, o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo.
Como se explica no Ac. desta RG de 17/12/2018[3], “Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronúncia ultra petitum. Trata-se de vícios que «afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)» (Abílio Neto,… Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), sequer do poder à sombra do qual a sentença é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso (Ac. STJ. 08/03/2001…”.
Prescreve o art. 615º do C.P.Civil de 2013 (relativamente à sentença mas que também é aplicável aos despachos ex vi do nº3 do art. 613º/3 do mesmo diploma legal):“1 - É nula a sentença quando:… b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;…”.
A causa de nulidade prevista na alínea b) está directamente conexionada com a obrigação de fundamentação especificamente imposta no nº3 do art. 607º (“Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”) e com a obrigação geral de fundamentação imposta no nº1 do art. 154º (“As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”), ambos do C.P.Civil de 2013.
A necessidade de fundamentação das decisões judiciais constitui mesmo uma condição da sua própria legitimação (estatui o art. 205º/1 da C.R.Portuguesa que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”)e da verificação de um processo equitativo (exigência esta que decorre, no plano do direito fundamental internacional, do disposto no art. 6º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem das Liberdades Fundamentais, e no art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e, a nível constitucional, do estipulado no art. 20º/4 da C.R.Portuguesa).
Explicava Alberto dos Reis[4] que “A exigência de motivação é perfeitamente compreensível. Importa que a parte vencida conheça as razões por que o foi, para que possa atacá-las no recurso que interpuser.Mesmo no caso de não ser admissível recurso da decisão o tribunal tem de justificá-la, pela razão simples de que a decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. Claro que a força obrigatória da sentença ou despacho está na decisão; mas mal vai a força quando se não apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer de que decisão é conforme à justiça. A função própria do juiz é interpretar a lei e aplicá-la aos factos em causa; por isso, deixa de cumprir o dever funcional o juiz que se limita a decidir, sem dizer como interpretou e aplicou a lei ao caso concreto. A decisão é um resultado, é a conclusão dum raciocínio; não se compreende que se enuncie unicamente o resultado ou a conclusão, omitindo-se as premissas de que ela emerge”.
Esta causa de nulidade da sentença, mas com igual cabimento quanto aos despachos, respeita apenas à falta absoluta de fundamentação, como tem sido unanimemente defendido pela Doutrina. Entre outros:
- explicam A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil[5] que “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”;
- ensinava Alberto os Reis[6] que “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”;
- referia Rodrigues Bastos[7] que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença”
- afirma Teixeira de Sousa[8] que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais…o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo… e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão… a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”;
- e concretiza Tomé Gomes[9] que “a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão”.
A nível jurisprudencial também, desde há muito, que os tribunais superiores têm considerado, de forma unânime, que esta nulidade apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos, e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta: entre outros, refere-se o Ac. do STJ de 15/05/2019[10] (“Para que se verifique a nulidade de falta de fundamentação prescrita no art. 615, nº 1, al, b), do CPC, não basta que a justificação seja deficiente, incompleta ou não convincente. É preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”), o Ac. do STJ de 02/03/2021[11] (“Só a absoluta falta de fundamentação - e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação - integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”) e o Ac. desta RG de 17/11/2004[12] (no qual se refere “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), repetidamente aconselha que: a extensão da obrigação de motivação pode variar consoante a natureza da decisão e deve analisar-se à luz das circunstâncias do caso concreto; a motivação não deve revestir um carácter exageradamente lapidar, nem estar por completo ausente (cf. Vincent e Guinchard, Procédure Civile, Dalloz, §1232, e arestos aí citados). Mostra-se ainda útil esclarecer, a este propósito, que a exegese do disposto no art.º 668º nº1 al. b) C.P.Civ., de há muito vem entendendo que a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso… Só a ausência de qualquer fundamentação é susceptível de conduzir à nulidade da decisão. Ao aludir-se a “ausência de qualquer fundamentação” quer referir-se a falta absoluta de fundamentação, a qual porém pode reportar-se seja apenas aos fundamentos de facto, seja apenas aos fundamentos de direito”).
Em resumo: uma situação é a sentença (ou o despacho), não estar motivada ou fundamentada e outra é essa motivação ou fundamentação ser deficiente, incompleta, errada e/ou não convincente, sendo que a primeira configura a causa de nulidade prevista na alínea b) do referido art. 615º/1 e a segunda é (“apenas”) configura uma causa de recurso por erro de julgamento, de facto ou de direito (não produzindo qualquer nulidade da sentença ou do despacho, somente “enfraquecendo” o seu valor doutrinal e sujeitando-a, consequentemente, ao risco de ser revogada ou modificada em sede recurso). E podemos deixar assente ser esta a única interpretação legalmente admissível do normativo em causa.
Tal interpretação tem, aliás, inteira aplicação aos despachos: como se decidiu no Ac. desta RG de 21/05/2015[13], “É nulo um despacho que omite por completo a fundamentação em que se baseia, limitando-se a deferir o requerido”.
A causa de nulidade prevista na alínea c) assenta numa ideia de que os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão funcionam como premissas lógicas necessárias para a formação do silogismo judiciário: logo, quando numa sentença se expende uma argumentação que se baseia em determinados pressupostos de direito e de facto, os quais apontam inequivocamente para uma solução, mas se verifica que, a final, é tomada uma decisão que é oposta àquela solução, então “ocorre uma violação das regras necessárias à sustentação lógica da sentença, de tal maneira que nem se conseguirá dizer se a sentença fez uma correcta ou uma errada aplicação do direito, porque a mesma encerra em si um vício lógico de tal maneira grave que a torna inaproveitável como sentença”[14].
Explicam Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[15] que “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa da nulidade da sentença”.
Pode afirmar-se que esta nulidade está directamente conexionada com a obrigação de fundamentação da decisão prevista nos arts. 154º e 607º/3 e 4 do C.P.Civil de 2013, e com necessidade da sentença constituir um silogismo lógico-jurídico em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor)[16].
Este caso de nulidade, enquanto vício de natureza processual, “não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal - ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente”[17].
Em resumo, como se decidiu no Ac. do STJ de 09/02/2017[18], “Ocorre a nulidade prevista no art. 615º, nº1, al. c) do CPC quando os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, não se verificando quando a solução jurídica decorreu de interpretação dos factos, diversa da pretendida pelo arguente”.
Em sede de recurso, o Autor/Recorrente defende que «é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b), e os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (nº 1, al. c). Os autos dispõem de prova documental, testemunhal e confessada, que, houvesse sido fundamentada/motivada, conduziria, necessariamente, à procedência desta acção. Sendo que, apesar de tais elementos de prova existirem nos autos - e que o Réu contestante não logrou contrariar minimamente - a decisão recorrida não contém a fundamentação/motivação que a lei impõe, não fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer» (cfr. conclusão M).
Importa começar por frisar que, atento o disposto no nº4 do mesmo art. 615º (“As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”), dúvidas não existem que, cabendo recurso da sentença ora impugnada, tais nulidades deviam e tinham que ser invocadas em sede de recurso.
No que concerne à arguição da nulidade prevista na alínea b), revela-se absolutamente infundada e até “roça” a litigância de má fé.
Com efeito, através da mera análise da decisão recorrida, é de uma evidência extrema que a mesma contém um elenco dos factos que o Tribunal a quo considerou provados e não provado, contém a motivação da factualidade provada e não provada (com análise dos vários meios de prova produzidos), e contém o enquadramento jurídico de toda esta factualidade, indicando as normas legais aplicáveis e as razões jurídicas da improcedência da pretensão do Autor, logo jamais se pode concluir no sentido de uma ausência absoluta de falta de fundamentação (de facto ou de direito).
Aliás, a argumentação em que o Autor baseou a dedução da nulidade (e supra transcrita) comprova, por si só, que o mesmo discorda do entendimento sufragado pelo Tribunal a quo quanto à decisão de facto, designadamente, no que respeita à falta de demonstração probatória dos factos que aquele alegou para reclamar o reconhecimento do seu crédito, entendimento que pode estar errado, podendo até consubstanciar um erro de julgamento, de facto e/ou de direito, mas que não configura uma ausência total de fundamentação.
Nestas circunstâncias, inexiste o vício de falta de fundamentação previsto na alínea b) do nº1 do art. 615º.
E no que concerne à arguição da nulidade prevista na alínea c), verifica-se que, na formulação das respectivas conclusões (tal como já sucedia com as alegações), o Autor não identificou nem concretizou qualquer «oposição entre os fundamentos invocados e a decisão tomada» e/ou qualquer «ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível»: com efeito, aquele limitou-se a identificar a norma legal em que fundamenta a invocada nulidade, omitindo em absoluto qual é o concreto fundamento/pressuposto em que se alicerçou o raciocínio da decisão e que está (poderia estar) em oposição com o conteúdo do decisório e qual o concreto segmento de decisão que é incompreensível.
Frise-se que, como decorre das restantes conclusões formuladas, a pretensão recursória da revogação da sentença (e sua substituição por outro que reconheça o crédito que invocou) alicerça-se, essencialmente, na alteração de vários pontos de facto (que, no seu entender, devem ser eliminados da matéria de facto não provada e passar a integrar a matéria de facto provada), o que, por si só, demonstra (ainda que indirectamente) que existe total consonância entre os fundamentos de facto e os fundamentos de direito invocados na decisão recorrida e que o decisório está também em consonância com tais fundamentos (o caminho percorrido pelo Tribunal a quo na decisão recorrida mostra-se lógico e coerente, já que, não estando provados os factos que consubstanciariam o crédito invocado, conclui-se pelo não reconhecimento do mesmo e, em consequência, pela improcedência da pretensão/acção), sendo que só a alteração da decisão de facto é que poderá sustentar e conduzir a uma decisão de reconhecimento do seu crédito. E daqui mais resulta (simultaneamente) que o Autor/recorrentes compreendeu integralmente o sentido da decisão recorrida.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que quer a decisão recorrida não padece de qualquer das causas de nulidade invocadas e, por via disso, o recurso tem de improceder quanto a esta questão.
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4.3. Da Alteração da Matéria de Facto
Nos termos do art. 640º/1 do C.P.Civil de 2013: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No que respeita à especificação dos meios probatórios, a alínea a) do nº2 do referido art. 640º, estatui que “Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente,sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Têm sido suscitadas dúvidas sobre se sobre se os requisitos do ónus impugnatório previsto neste art. 640º/1 devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também têm que integrar as próprias conclusões, sob pena do recurso ser rejeitado (cfr. art. 635º/2 e 639º/1 do C.P.Civil de 2013). Porém, têm vindo a constituir entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça que: 1) o Recorrente tem sempre que indicar os «concretos prontos de facto» que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; 2) o Recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, mas não sendo necessário que tal especificação também conste das conclusões; 3) relativamente aos «pontos de facto» cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em «prova gravada», para além da supra referida especificação dos meios de prova, o Recorrente está obrigado a indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos, mas não sendo necessário que tal indicação conste das conclusões; e 4) na motivação, o Recorrente tem expressar a decisão, no seu entendimento, que deve ser proferida sobre os «concretos prontos de facto» que impugnou, tendo em atenção a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se compreende em razão do reforço do ónus de alegação, com vista a evitar a interposição de recursos com conteúdo genérico ou inconsequente[19].
Com efeito, entre outros decidiu o Ac. do STJ de 29/10/2015[20], “1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário - tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas - indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC). 2. Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso” e entendeu-se no Ac. do STJ de 01/10/2015[21] que “I - No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe. II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação. IV – Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação”[22].
A análise do cumprimento destes ónus (exigências legais) deve ser realizada, como explica António Abrantes Geraldes[23], “à luz de um critério de rigor. Trata-se afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços que todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento da realização da justiça”.
É um dado objectivo que, nas alegações de recurso, existe uma forte tendência para “combinar” e “misturar” a impugnação de facto com a impugnação de direito, sendo que muitas vezes são invocadas meras “opiniões” sobre o que foi dado como provado e/ou não provado, afirmando-se um entendimento distinto mas, mesmo assim, há conformação com uma parte da decisão que foi tomada, havendo efectiva impugnação relativamente a outra parte. Logo, e como resulta da alínea a) do nº1 do referido art. 640º, impõe-se que o recorrente, nas respetivas conclusões, indique concretamente quais são os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser dado como «assente» e/ou como «não assente», relevando e apresentando a sua pretensão de uma forma inequívoca e que permita separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da pretensão fundamentada quanto à alteração da matéria de facto.
O incumprimento de qualquer dos ónus supra indicados conduz à imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto (rejeição que será total ou parcial, consoante o incumprimento seja relativo a todo o âmbito da impugnação ou seja relativo apenas a uma parte da impugnação), não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões. Como resulta do disposto na alínea a) do nº1 do art. 652º do C.P.Civil de 2013, os poderes do relator, em matéria de convite ao aperfeiçoamento, estão inequivocamente limitados às situações previstas no nº3 do art. 639º do mesmo diploma legal , que não incluem incumprimento dos referidos ónus. Entre outros, refere-se aqui o Ac. do STJ de 25/03/2021[24], no qual se decidiu que “III - Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na alínea a) e c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões”[25].
Perante este entendimento, que se acolhe e segue, dúvidas não existem de que as alegações do Autor/Recorrente cumprem os seguintes dois requisitos formais [constantes das alíneas a) e c) do referido art. 640º/1]: indicou os «concretos prontos de facto» que considera incorrectamente julgados - os factos não provados a) a g) -, como resulta da enunciação na motivação do recurso (cfr. parte final do ponto «IX» do corpo alegatório) e da síntese nas conclusões (cfr. conclusão L), sendo que, quer nessa motivação, quer até nas próprias conclusões, concretizou qual a decisão, que no seu entendimento, deve ser proferida sobre os «concretos prontos de facto» impugnados - os factos não provados a) a g) devem ser retirados da matéria de facto não provada e passar a integrar a matéria de facto provada. Não assiste, portanto, qualquer razão ao Réu Credor/Recorrido quando, em sede de contra-alegações, invoca que «o Recorrente não individualizou, separada e autonomamente os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados» (cfr. conclusão 6ª).
Quanto aos requisitos formais relativos à «especificação, na motivação, dos meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos» [constante da alínea b) do referido art. 640º1] e à «indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» [constante da alínea a) do nº2 do referido art. 640º], afigura-se-nos que assiste, parcialmente, razão ao Réu Credor/Recorrido quando, em sede de contra-alegações, invoca que «o Recorrente não individualizou, separada e autonomamente as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida para cada um dos pontos que considera incorrectamente julgados» (cfr. conclusão 6ª).
Concretizando.
Os pontos de facto concretamente impugnados (e relativamente aos quais se peticiona a alteração da decisão de facto) são os seguintes, e que integram a factualidade não provada:
a) No decorrer dos anos de 2005 a 2009, o Autor, a pedido de um amigo em comum, fez vários empréstimos, em dinheiro, ao ora Insolvente AA, que este dizia necessitar para aplicar em investimentos na sua atividade profissional de construção civil.
b) Por várias ordens de razões, que foi alegando relacionadas com a crise que se abateu especialmente na construção civil, o ora Insolvente passou a incumprir com os compromissos que assumira com o ora Autor.
c) Face aos incumprimentos reiterados do Insolvente, o Autor, no final de 2009, exigiu-lhe que emitisse uma declaração de dívida na qual aquele se assumisse devedor da quantia que, efetivamente, lhe devia, acrescida de um cheque que, também, titulasse a mesma.
d) Assim, em 05.11.2009, o Insolvente, através da declaração de dívida, por si subscrita, confessou-se devedor ao Autor da quantia de € 45.000,00, entregando, ainda, a este, o cheque n.º ...02, emitido com a data de 05.11.2009, sobre o Banco 1..., no valor de € 45.000,00, mais tendo declarado o Insolvente que o montante em dívida seria liquidado no prazo de 10 anos, sendo devidos juros à taxa de 5% ao ano e assumido que, caso não liquidasse o montante em dívida naquele prazo, se obrigava a liquidar a quantia de € 1.000,00, por cada mês de atraso, bem como todas as despesas com advogado e tribunal.
e) Durante os anos de 2010 até 2016, o Insolvente, tal como se tinha comprometido, foi pagando ao ora Autor os montantes correspondentes aos juros anuais que se foram vencendo, não o tendo feito dali em diante.
f) Na data do vencimento do empréstimo, 08.11.2019, o Insolvente não restituiu a quantia mutuada, como se comprometeu, nem liquidou os juros vencidos em 2017, 2018 e 2019, tudo no valor de € 51.750,00.
g) Interpelado para proceder ao pagamento daquele seu débito, o Insolvente não o fez.
Percorrendo este conjunto factual é inequivocamente claro que se reporta a realidades autónomas e distintas, não se tratando apenas de uma única realidade: a matéria da alínea a) reporta-se à (alegada) celebração de vários contratos de mútuos (empréstimos); a alínea b) reporta-se ao (alegado) incumprimento desses contratos de mútuo; as alíneas c) e d) reportam-se à (alegada) exigência de emissão de uma declaração de dívida e de um cheque no valor total da dívida, bem como à (alegada) efectivamente emissão desses declaração e cheque e a um (alegado) acordo sobre o prazo de pagamento, os juros remuneratórios e uma cláusula penal; a alínea e) reporta-se ao (alegado) cumprimento da obrigação de pagamento de juros; e as alíneas f) e g) aos (alegados) incumprimento da obrigação de restituição da quantia mutuada e incumprimento parcial da obrigação de pagamento de juros, mesmo após a respectiva interpelação. Aliás, que esta matéria integra realidades fácticas diversas é confirmado pelo próprio teor dos temas da prova enunciados pelo Tribunal a quo no despacho saneador (proferido em 19/01/2022), tendo sido enunciados 7 (sete) temas da prova, e não apenas um, sendo certo que o Autor/Recorrente não deduziu qualquer reclamação contra tal enunciação com temas distintos.
Analisando a motivação explanada no «corpo alegatório» (e as próprias conclusões formuladas, embora não seja legalmente exigível que tais requisitos constem do «corpo conclusivo»), é inquestionável que o Autor/Recorrente impugna os factos não provados a) a g) em bloco e como se configurassem a mesma realidade fática (ou seja, como se houvesse um único tema de prova), resumida (supostamente) à existência/inexistência de mútuos/empréstimos, e procedeu à indicação dos meios de prova (constantes do processo e nele registados) que, no seu entender, determinam uma decisão diversa.
Sucede que, atendendo aos meios de prova indicados e à valoração dos mesmos que consta das respectivas alegações (sendo que alguma dessa valoração é repetida nas conclusões), verifica-se que, com base nos mesmos, o Autor/Recorrente, em concreto, apenas extrai e defende uma «decisão diversa» no que respeita à matéria do facto não provado na alínea a), não apontando qualquer interpretação (caminho) diferente relativamente a qualquer das realidades que integram os restantes factos não provados. Com efeito, na motivação e nas conclusões está expressamente consignado: «… é, por si só, mais que bastante, para provar o contrato de mútuo…» (cfr. alegação VI); «… A prova documental trazida aos autos pelo Autor, cujo valor ou força probatório o ora Recorrido não logrou infirmar ou fazer cessar, é, por si só, bastante para se provar o contrato de mútuo…», «O depoimento do Insolvente, AA, é inequívoco quanto ao reconhecimento da existência do contrato de mútuo em causa, assim como quanto à confissão da dívida, cujo pagamento o Recorrente reclama em sede própria…» (cfr. alegação VIII); «O FUNDAMENTO USADO PELA SENTENÇA RECORRIDA QUANDO DIZ “O Autor alegou que o crédito reclamado emergia de múltiplos empréstimos, celebrados ao longo de dois anos, por meio dos quais havia emprestado ao insolvente a quantia reclamada. Todavia, esses alegados mútuos não foram juntos aos autos”, NÃO É FUNDAMENTO BASTANTE PARA CONCLUIR QUE INEXISTIU O MÚTUO, ISTO PORQUE: 1º - Havendo o Réu Insolvente entregue ao Autor uma declaração de dívida e um cheque, qualquer um deles bastante para comprovar o crédito…» (cfr. alegação IX); «…CONCLUI-SE QUE: “A prova documental trazida aos autos pelo Autor, cujo valor ou força probatória o ora Recorrido não logrou infirmar/fazer cessar, é, por si só, bastante para se provar o contrato de mútuo…» (cfr. conclusão A); «… 1. - Todas têm conhecimento directo dos factos relativos aos mútuos em causa… 4. - A testemunha DD declarou que foi ele quem pediu ao Autor/Recorrente emprestasse dinheiro ao Réu Insolvente, o mesmo declarando a testemunha EE. 5. - O Autor confirmou que quem lhe pediu emprestasse dinheiro ao Réu Insolvente, foi o DD…» (cfr. conclusão E); e «I. O FUNDAMENTO USADO PELA SENTENÇA RECORRIDA QUANDO REFERE… NÃO É FUNDAMENTO BASTANTE PARA CONCLUIR QUE INEXISTIU O MÚTUO» (cfr. conclusão I).
Acresce que, para além dos segmentos supra reproduzidos, no restante conteúdo das alegações (e também das conclusões), o Autor/Recorrente nada alega e nada concretiza no sentido de que algum dos meios de prova especificados, e/ou dos depoimentos gravados indicados/transcritos, impõem e justificam uma decisão diversa do Tribunal relativamente a qualquer dos factos não provados b) a g). Em bom rigor, a motivação («corpo alegatório») não contém uma “única palavra” que, de forma precisa e concreta, estabeleça uma mínima relação/conexão entre algum dos meios de prova elencados com a demonstração probatória de qualquer dos restantes factos não provados. Mais se frise que, nem mesmo sobre a alegada emissão da declaração de dívida e do cheque, o Autor/Recorrente logrou produzir uma simples alegação no sentido de que os identificados documentos nºs. ... e ... (juntos com a petição) devem conduzir à demonstração da realidade que integra os factos não provados c) e/ou d).
É manifesto que, no recurso que apresentou, o Autor/Recorrente preocupou-se exclusivamente em fundamentar a sua discordância com decisão do Tribunal a quo em considerar, como não provado, o facto relativo à existência de mútuos/empréstimos entre si e o Insolvente, sendo certo que todos os meios de prova indicados (incluindo os segmentos de prova gravada mencionados) são valorados em sede de recurso, pelo próprio, com a única finalidade de reclamar uma alteração da decisão no que respeita àquele facto, não havendo uma referência ou alusão mínima à valoração dos mesmos elementos probatórios para efeitos de alteração de decisão quanto aos restantes pontos de facto impugnados. No presente recurso, não se procedeu a qualquer individualização/especificação de meios de prova que possam justificar e fundar uma alteração da decisão de facto quanto a cada um dos factos que integram as alíneas b) a g) da matéria não provada, pelo que quer este Tribunal ad quem, quer o próprio Recorrido, desconhecem quais as concretas razões probatórias em que o Autor/Recorrente funda a pretensão recursiva de alteração de decisão de facto nesta parte.
Por isso, a conclusão L («EM CONSEQUÊNCIA DISSO, a matéria de facto deve ser alterada, no sentido de a matéria das alíneas a) a g) dos factos dados por não provados, ser daí retirada, passando a integrar a matéria de facto dada por provada»), com excepção do que diz respeito ao facto não provado a), não tem qualquer sustentação nos meios de prova especificados na motivação e, assim sendo, mostra-se infundada a pretensão impugnatória dos factos não provados b) a g).
Importa realçar que, como supra se explicou, a realidade que integra o facto não provado a) é distinta e diversa das realidades que integram os factos não provados b) a g). Logo, uma vez que, no caso em apreço, não está em causa apenas o apuramento da realidade relativa à celebração (existência) de um ou mais contratos de mútuo, mas sim e também o apuramento da existência de «incumprimento desses contratos», da «exigência de emissão de declaração de dívida e de cheque no valor total da dívida», da «efectiva emissão da declaração e do cheque», de «acordo sobre o prazo de pagamento, juros remuneratórios e cláusula penal», do «cumprimento da obrigação de pagamento de juros», e do «incumprimento da obrigação de restituição da quantia mutuada e incumprimento parcial da obrigação de pagamento de juros, mesmo após a respectiva interpelação», então recaía sobre o Autor/Recorrente o ónus de especificar os meios de prova por referência a cada um destes factos e ónus de indicar as “passagens” da prova gravada correspondente a cada um destes factos, identificando em ambos os casos o motivo concreto que, em seu entender, impõe um juízo probatório sem sentido diferente daquele que foi realizado pelo Tribunal a quo, ónus a que manifestamente o Autor/Recorrente. Esta “omissão” não pode ser suprida pela impugnação “em bloco” de decisão de facto, nem pelos meios de prova indicados e depoimentos transcritos para justificar um juízo probatório distinto apenas quanto à matéria do facto não provado a). Saliente-se que, como facilmente se percebe pelo seu teor, todas as transcrições de depoimentos que constam das alegações reportam-se, tão só, a declarações sobre a realidade da existência de empréstimos, não abordando quaisquer das outras realidades integrantes dos restantes factos impugnados. Portanto, nesta parte, no recurso, o Autor/Recorrente limita-se a discordar da decisão de facto mas sem concretizar o «porquê» (a razão) de eventual erro de julgamento do Tribunal a quo, não tendo, deste modo, delimitado correcta e concretamente o âmbito desta parte da impugnação.
Nestas circunstâncias, temos que concluir inequivocamente que:
- no que concerne à impugnação do facto não provado a) [e ao contrário do contra-alegado pelo Réu Credor/Recorrente] mostram-se integralmente cumpridos os requisitos formais exigidos pela alínea b) do nº1 e pela alínea a) do nº2, ambos do art. 640º;
- mas já no que concerne à impugnação dos factos não provados b) a g), o Autor/Recorrente não cumpriu (em termos mínimos) os requisitos formais exigidos pela alínea b) do nº1 e pela alínea a) do nº2, ambos do art. 640º.
Por conseguinte, porque não cumpre o mínimo legalmente exigível para a regular estruturação de uma impugnação da matéria de facto, mais se conclui que se deve rejeitar o recurso no que respeita à impugnação dos factos não provados b) a g), o que impede a reapreciação desta parte da matéria de facto que integra a decisão recorrida.
E, assim sendo, a reapreciação da decisão recorrida, quanto à matéria de facto, respeitará apenas à impugnação do facto não provado a).
Por força do disposto no nº1 do art. 662º do C.P.Civil de 2013, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes (ou os factos tidos como não provados, acrescentamos nós), a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Como refere Abrantes Geraldes[26], “Com a redacção do art. 662º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo de correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos, e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência… fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia… sem embargo, das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que circunscrevem o objecto de recurso”.
A decisão de facto consiste que na apreciação que o Tribunal faz, em função da prova produzida, sobre os factos alegados pelas partes (ou oportuna e licitamente adquiridos no decurso da instrução) e que se mostrem relevantes para a resolução do litígio, pelo que tal decisão tem por objeto os juízos probatórios parcelares, positivos ou negativos, sobre cada um desses factos relevantes, embora com o alcance da respetiva fundamentação ou motivação. Neste quadro, no âmbito do recurso, a apreciação do erro de julgamento da decisão de facto está circunscrita aos pontos impugnados, mas em termos de latitude da investigação probatória, o Tribunal da Relação tem um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, como decorre do estatuído no referido art. 662º/1 do C.P.Civil de 2013, incluindo os mecanismos de renovação ou de produção dos novos meios de prova, nos exatos termos das alíneas a) e b) do nº2 do mesmo preceito, sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido: “… como é hoje jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal, a reapreciação da decisão de facto impugnada pelo tribunal de 2.ª instância não se limita à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a quo, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”[27].
Em jeito de resumo e conclusão, traz-se aqui à colação o Ac. do STJ de 04/10/2018[28], que define bem o “quadro” em que funciona a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação: “I. A apreciação da decisão de facto impugnada pelo Tribunal da Relação não visa um novo julgamento da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal de 1ª Instância com vista a corrigir eventuais erros da decisão. II. No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em primeira instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [ cfr. nº 2, als. a) e b) do artigo 662º do CPC], à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. III. O Tribunal da Relação, tal como decorre do preceituado nos artigos 5º, nº 2, alínea a), 640º, nº 2, alínea b) e 662º, nº1, todos do Código de Processo Civil, tem um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa e não está adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes nem aos indicados pelo Tribunal de 1ª Instância, apenas relevando o fator da imediação prevalecente em 1ª Instância quando o mesmo se traduza em razões objetivas. IV. Em sede de reapreciação da decisão de facto é conferido ao Tribunal da Relação o poder de se socorrer, mesmo oficiosamente, de todos os meios de prova constantes do processo bem como do uso a presunções judiciais, nos termos permitidos pelos artigos 349º e 351º, ambos do Código Civil” (os sublinhados são nossos).
Estatui o art. 607º/5 do C.P.Civil de 2013, que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, sendo que esta previsão resulta do disposto nos arts. 389º, 391º e 396º do C.Civil, respectivamente para a prova pericial, para a prova por inspecção e para a prova testemunhal. Porém, desta livre apreciação pelo juiz estão legalmente excluídos os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes - cfr. 2ªparte do nº5 do referido art. 607º.
Toda a prova tem que ser apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica: “… segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas”[29].
A prova idónea (suficiente) alicerça-se num juízo de certeza (jurídica) e não um juízo de certeza material (absoluto): a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)… a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta,… A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”[30].
O juiz está vinculado a identificar quais os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção e a indicar as razões pelas quais, relativamente ao mesmo facto, concede maior credibilidade a um meio probatório em detrimento de outro de sinal oposto, sendo que este é caminho que evita que a «livre apreciação da prova» não se transforme numa «arbitrária apreciação da prova»: o “juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)”[31].
É inquestionável que, uma vez que é perante si que toda a prova é produzida, é o juiz da 1ªinstância quem se encontra na posição mais favorável e privilegiada para proceder à sua valoração, nomeadamente no que concerne especificamente à prova testemunhal: com efeito, atenta a respectiva imediação, o juiz da 1ªinstância está totalmente habilitado a dectetar no comportamento das testemunhas todos os elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos seus depoimentos, incluindo aqueles elementos frequentemente não transparecem da gravação (esta constitui apenas um registo «áudio», e não um registo «vídeo», pelo que não pode transmitir todo os comportamentos da testemunha que respeitam directamente às suas reacções que só observáveis através de imagem). Por conseguinte, a modificabilidade da matéria de facto só deverá ordenada quando, ao cumprir a supra referida incumbência de formar o seu próprio juízo probatório, o Tribunal da Relação conclua no sentido de que a prova produzida tem um sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida pelo Tribunal da 1ªInstância, ou seja, quando consiga alcançar um juízo certo e seguro de que existe erro de julgamento na matéria de facto[32]. Como explica Ana Luísa Geraldes[33], “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
Realizados estas considerações jurídicas, analisemos então o único ponto de facto validamente impugnado pelo Autor/Recorrente - facto não provado a).
Na decisão recorrida, o Tribunal a quo formou o respectivo juízo da falta de demonstração probatória deste ponto de facto com base nas seguintes razões: «… Em suma, dir-se-á que, da prova produzida, não resulta que o Autor tenha logrado provar, como lhe incumbia, os factos que sustentam o respectivo reconhecimento do crédito cuja verificação ora pretende, designadamente atendendo quer ao teor da documentação junta, impugnada pelo Réu contestante, quer dos depoimentos prestados por Autor e Insolvente quer ainda das declarações prestadas pelas testemunhas inquiridas. Efectivamente, pese embora Autor e Insolvente procurem confirmar os factos alegados pelo primeiro com vista a fundamentar o respectivo pedido, o certo é que, desde logo, contradizem-se quanto ao período em que os supostos empréstimos terão ocorrido, o primeiro a afirmar que teria feito entregas ao longo de um a dois anos e o segundo a referir-se a um período de cerca de cinco anos; por outro lado, nenhum foi capaz de, sustentadamente, explicar em que circunstâncias e que montantes eram emprestados de cada vez, nem como chegaram ao montante que entretanto foi firmado no cheque id. nos autos, ou ao montante de juros entretanto calculado, não nos podendo in casu bastar com uma simples “confissão” por banda do réu insolvente. Por fim, nenhuma das diversas testemunhas inquiridas demonstrou ter efectivamente conhecimento directo do alegado mútuo, senão do que lhes era ouvido dizer, designadamente pelos próprios (Autor e Devedor)…».
Analisando os fundamentos invocados nas respectivas conclusões para a impugnação da matéria de facto e procedendo à reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal a quo sobre esta matéria, este Tribunal ad quem jamais poderá formar um juízo probatório que no sentido pugnado pelo Autor/Recorrente no presente recurso.
Concretizando. Em primeiro lugar, o Autor/Recorrente defende que «juntou aos autos: Doc. ... - Uma declaração de dívida, que só por si comprova a existência do crédito, titulando o contrato de mútuo. Doc. ... - Um cheque, identificado na referida Declaração da Dívida, como garantia do contrato de mútuo. Doc. ... - Cópia de sentença, transitada em julgado, proferida no âmbito dos autos de ação com processo comum, que com o nº 13/20...., correram termos pelo Juízo Local Cível do Tribunal Judicial ..., na qual o Insolvente foi condenado a pagar ao ora Recorrente, o valor reclamado por este na presente acção» e que «“A prova documental trazida aos autos pelo Autor, cujo valor ou força probatória o ora Recorrido não logrou infirmar/fazer cessar, é, por si só, bastante para se provar o contrato de mútuo. Ocorre caso julgado» (cfr. conclusão A).
No que concerne aos documentos nºs. ... e ... juntos com a petição inicial («declaração de dívida» e «cheque» respectivamente), mostra-se inequívoco que são meros documentos escritos particulares (cfr. arts. 362º e 363º/1 e 2 do C.Civil).
Nos termos do art. 376º do C.Civil, “o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento” (nº 1), sendo que “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante” (nº2).
Em face deste normativo, como se explica assertivamente no Ac. do STJ de 09/12/2018[34], “A força probatória do documento particular circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém de uma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito (…) Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos. É que a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do Código Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas. Na verdade, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondam à realidade dos respectivos factos materiais (…)” (os sublinhados nossos).
Daqui resulta que, embora naquele documento nº... esteja consignado que “declara… que não tendo conseguido pagar ao Sr. BB… a totalidade do dinheiro que lhe deve e que este lhe emprestou nos últimos 4 anos, se compromete a pagar-lhe a quantia de € 45.000,00…”, certo é que este documento particular, por si só, não tem eficácia probatória plena para comprovar a realidade dos respectivos factos materiais, ou seja, que o aqui Autor/Recorrente realizou mútuos/empréstimos em dinheiro ao Réu Insolvente naquele montante de € 45.000,00 e lhe deve tal quantia (aliás, frise-se que, no recurso, o Autor/Recorrente nem sequer alegou e esclareceu qual a concreta «força probatória» deste documento).
E o referido documento nº... (para além de constituir também um documento particular), constituindo um cheque emitido pelo Réu Insolvente a favor do Autor/Recorrente emitido em .../.../2009, por si só, revela-se óbvia e necessariamente insusceptível configurar um mútuo/empréstimo deste àquele, mais acrescendo que é absolutamente inidóneo para “corporizar/materializar” a realização de vários mútuos/empréstimos ao longo de anos.
E saliente-se que, como resulta do art. 14º da contestação do Réu Credor/Recorrido, os aludidos documentos nºs. ... e ... foram expressamente impugnados quanto ao seu conteúdo.
Deste modo, conclui-se que os documentos nºs. ... e ... juntos com a petição, por si só e desacompanhado de outros elementos probatórios, carecem de valor probatório para comprovarem a existência/celebração do contrato, ou contratos, de mútuo invocado pelo Autor/Recorrente, pelo que improcede este fundamento.
No que concerne ao documento nº... junto com a petição inicial, verifica-se que consubstancia uma cópia da sentença que foi proferida no processo judicial a que se reporta o facto provado nº3.1 e cujo decisório consta do facto provado nº3.2, ambos da decisão recorrida.
Pretende o Autor/Recorrente que (também) este documento tem força probatória para provar o contrato de mútuo por verificação do «caso julgado».
Como resulta de forma evidente da análise do teor da petição inicial, embora nos arts. 12º a 16º alegue a existência daquele processo judicial e daquela sentença, certo é que jamais o Autor/Recorrente invocou (suscitou a questão) que esta decisão judicial configura uma situação de caso julgado quanto à prova da celebração/existência do contrato (ou contratos) de mútuo com o Réu Insolvente [ou seja, quanto à prova da matéria que integra o facto não provado a)].
Igualmente perante o teor dos temas de prova enunciados no despacho saneador (proferido em 19/01/2022), entre os quais figura, logo como primeiro tema, a matéria que integra o facto não provado a), isto é, perante a circunstância do Tribunal a quo ter considerado que o documento nº... não tinha eficácia probatória bastante para demonstrar a existência da celebração do contrato (ou contratos) de mútuo, o Autor/Recorrente não produziu qualquer reclamação contra esse tema da prova, reclamando que o mesmo constituía matéria de facto assente por via do referido documento, isto é, continuou a não invocar o caso julgado, mais acrescendo que, em sede de audiência final, procurou, nomeadamente através das testemunhas que arrolou, produzir prova demonstrativa dessa realidade.
Daqui resulta que, até à interposição do presente recurso, esta questão do caso julgado em face da sentença a que se reporta o documento nº... jamais foi suscitada nos presentes autos, pelo que a conclusão formulada no sentido de estar provado a existência do contrato (ou contratos) de mútuo por força do caso julgado (cfr. conclusão A) configura, nítida e manifestamente, a dedução de uma questão nova.
No nosso sistema processual civil, os recursos constituem um mecanismo destinado a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, não sendo lícito invocar questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.
Como explica Luís Filipe Espírito Santo[35], “No conhecimento do objecto do recurso é basicamente apreciada a legalidade da decisão recorrida, em concreto o juízo de facto e de direito que incidiu sobre pretensão submetida ao veredicto judicial, naquele único e singular circunstancialismo, e não a tomada em consideração (pelo tribunal superior) de questões novas não suscitadas nem discutidas em 1ª instância. Está em causa a avaliação em segundo grau de uma decisão judicial pré-existente e não a possibilidade de iniciar uma nova e diversa discussão sobre temas não versados (que se viesse a reabrir originariamente). Trata-se de sindicar a valoração do juízo de facto e de direito emitidos pelo juiz de 1ª instância e não o conhecimento de novos factos ou de novas questões de direito que as partes - podendo fazê-lo - entenderam não apresentar, nem configurar ou esgrimir, no processo que decorreu na instância inferior. Com efeito, são as partes que definem, no âmbito da sua liberdade de actuação, predominante e decisiva no campo do direito privado, os termos enformadores da causa, por via da causa de pedido e pedido que nessa sede expõem, não fazendo sentido que, uma vez apreciadas em 1ªinstância as questões jurídicas que dividem os litigantes e obtida a decisão que sobre elas incide (esgotando-se nessa altura o poder jurisdicional do julgador, nos termos do artigo 613º, nº 1, do Código de Processo Civil), venham a suscitar-se, por via do recurso, questões que extravasam aquilo que constituiu o objecto da discussão travada perante o juiz a quo. A natureza da fase recursiva revela-se, assim, enquanto continuação da instância e não como configuração de uma nova instância, o que baliza, delimitando o objecto do recurso a conhecer pelo tribunal superior” (os sublinhados são nossos).
E tem sido este o entendimento unânime da jurisprudência do STJ: para além do já citado Ac. de 07/07/2016[36], refere-se também o Ac. de 29/09/2016[37], no qual se decidiu que “Os recursos não visam criar e emitir decisões novas sobre questões novas (salvo se estas forem de conhecimento oficioso), mas impugnar, reapreciar e, eventualmente modificar as decisões do tribunal recorrido sobre pontos questionados e «dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu»” e se concluiu que “não pode o tribunal de recurso “conhecer de questões que não tenham sido objeto da decisão recorrida ou que as partes não suscitaram perante o tribunal recorrido (arts. 627º, n.º 1 e 635º, n.º 2 e 4 do CPC)”. E mais se realça que no Ac. do STJ de 07/10/2021[38] decidiu-se que “Não é lícito que um recorrente invoque, em qualquer recurso, questões que não tenham sido objeto de apreciação pela decisão recorrida, pois os recursos são meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”.
Nestas circunstâncias, este concreto fundamento baseia-se na dedução de uma questão nova [a alegação de que está demonstrada a existência do contrato (ou contratos) de mútuo por força do caso julgado], pelo que não pode ser objecto de conhecimento e apreciação por este Tribunal ad quem.
É certo que o caso julgado, invocado na contestação pelo Réu a título de excepção dilatória, é do conhecimento oficioso do Tribunal (cfr. arts. 571º, 577º/i) e 578º do C.P.Civil de 2013). Sucede que, no caso em apreço, foi o Autor/Recorrente quem invocou o caso julgado em sede de recurso, apenas e tão só como fundamento da desmonstração probatória da celebração contrato (ou contratos) de mútuo/empréstimo, pelo que a sua presente arguição não configura a dedução de uma qualquer defesa a título de excepção dilatória. Nestas circunstâncias, porque no presente caso não tem essa natureza, entendemos que não consubstancia uma questão de conhecimento oficioso.
Ainda que assim não fosse, o que só se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre teríamos que concluir que a sentença a que se reporta o documento nº... não constitui caso julgado (em qualquer das suas vertentes) relativamente à presente acção de verificação ulterior de créditos, como se passará a explicar neste sede de impugnação da matéria de facto uma vez que este fundamento foi invocado apenas e tão só para este efeito.
O caso julgado é qualidade de imutabilidade da decisão judicial logo que não seja susceptível de recurso ou de reclamação (cfr. art. 628º do C.P.Civil de 2013): consubstancia-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário, tornando indiscutível o conteúdo da decisão[39].
A qualidade de imutabilidade da decisão judicial é uma garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, próprio do Estado de Direito (cfr. art. 2º da C.R.Portuguesa), à semelhança da regra do esgotamento do poder jurisdicional (cfr. art. 613º/1 do C.P.Civil de 2013).
O caso julgado apresenta-se como uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois se evita que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir, assumindo-se, por isso, como expressão de valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica[40].
Atingida essa qualidade, como decorre do art. 620º/1 do C.P.Civil de 2013, a decisão judicial passa a ter «força obrigatória» dentro do próprio processo (com excepção dos despachos que não admitem recurso - cfr. nº2 do mesmo art. 620º, que remete para o art. 630º do mesmo diploma legal), e, como decorre do art. 619º do C.P.Civil de 2013, a decisão judicial passa a ter «força obrigatória» fora do próprio processo quando julgue de mérito. Como se refere no Ac. desta RG de 06/05/2021[41], “O caso julgado aporta à decisão um segundo nível estabilidade (de continuidade na emissão dos seus efeitos jurídicos) - constitui uma técnica de estabilização dos resultados do processo, que se integra numa linha gradual de estabilização: do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613º do CPC), enquanto regra de proibição do livre arbítrio, resulta um primeiro nível de estabilidade da decisão judicial, ainda que interna ou restrita, relativa ao próprio autor da decisão; o trânsito em julgado permite à decisão alcançar um segundo nível de estabilidade alargada, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (caso julgado formal - art. 602º do CPC), ou mesmo fora dele, perante outros tribunais (caso julgado material - art. 619º do CPC)”.
A força obrigatória desdobra-se numa dupla eficácia, que corresponde ao efeito negativo do caso julgado e ao efeito positivo do caso julgado: “O efeito negativo do caso julgado consiste na proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão, por via da excepção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos arts. 577º al. i) segunda parte, 580º e 581º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem. O efeito positivo ou autoridade do caso consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior… Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veriate habetur. Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objecto processual, mediante a exclusão do poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objectos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão”[42]. Como se dá nota no Ac. da RL de 15/02/2018[43], “os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional - querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento)”.
Portanto, as duas funções (efeitos) atribuídas ao caso julgado são distintas mas complementam-se: a função positiva, que opera por via de “autoridade de caso julgado”, visa que a decisão de determinada questão (proferida em acção anterior mas que, quanto ao seu objecto, se inscreve na segunda) não volte a ser apreciada e julgada. Já a função negativa, que opera por via da excepção dilatória do caso julgado [art. 577º/i) do C.P.Civil de 2013], visa impedir a repetição de uma acção [art. 580º/1 do C.P.Civil de 2013], pressupondo o confronto entre duas acções (sendo que uma delas já contém decisão transitada em julgado) e uma tríplice identidade entre ambas consistente na coincidência de sujeitos (ocorre quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica), de pedido (ocorre quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico), e de causa de pedir (ocorre quando a pretensão deduzida procede do mesmo facto jurídico) - cfr. art. 581º do C.P.Civil de 2013.
Frise-se que
- o conceito de partes pode ser analisado na dupla perspectiva formal e material: em sentido formal, são partes as pessoas (físicas ou meramente jurídicas) que pedem em juízo ou contra quem é pedida a composição em litígio, mas em sentido material só são partes os sujeitos da relação material controvertida que é objecto do litígio; logo, a identidade subjectiva prende-se com a posição das partes na relação jurídica material controvertida que é objecto do processo e não com que nele ocupam, pelo que a «identidade de partes» afere-se da identidade de litigantes titulares na relação jurídica material controvertida ajuizada;
- o pedido, segundo o ensinamento de Alberto do Reis[44], consiste “no efeito jurídico que o autor se propõe obter com a acção. O pedido equivale, assim, ao objecto da acção. E como o efeito jurídico há-de obter-se através de um acto do juiz - o acto jurisdicional característico que é a decisão - segue-se que o pedido se concretiza na espécie de providência que o autor quer receber do juiz”;
- e a causa de pedir, como também ensinava Alberto dos Reis[45], é “o acto ou o facto jurídico de que procede a pretensão do autor. Mais rigorosamente: o acto ou o facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido”, e a mesma linha de entendimento, afirmava Antunes Varela[46] que “a causa de pedir é o facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge, por força do Direito, a pretensão deduzida pelo Autor. No plano funcional ou operacional, a causa de pedir é o elemento que, com o pedido, identifica a pretensão da parte e que, por isso, ajuda a decidir da procedência desta”, pelo que, como se decidiu no Ac. do STJ de 26/10/89[47], “Para a identidade de causa de pedir, a pretensão, há que procurá-la, não relativamente às demandas formuladas, mas na questão levantada nas duas acções”.
Estatuindo o art. 621º do C.P.Civil de 2013 que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”, verifica-se que o caso julgado está sujeito a limites que serão os que decorrem da própria decisão.
Em razão da sua «força obrigatória» externa (ou seja, fora do próprio processo), o caso julgado (material) está sujeito a limites objetivos e subjetivos.
Quanto aos limites (âmbito) objetivos do caso julgado, releva-se importante o entendimento explanado no Ac. do STJ de 05/12/2017[48]: “no que respeita à determinação do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal e que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado, durante algum tempo foi dominante o entendimento de que a eficácia do caso julgado apenas abrangia a decisão contida na parte final da sentença, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na pretensão reconvencional e limitada através da respetiva causa de pedir ("conceção restrita do caso julgado"). Atualmente, a posição jurisprudencial predominante reconhece, na esteira da doutrina defendida por VAZ SERRA… - embora sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença / a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão ("tese ampla") -, que, apesar da eficácia do caso julgado material incidir nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, a mesma alcança também a decisão daquelas questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado (isto é, os fundamentos e as questões incidentais ou de defesa que entronquem na decisão do pleito enquanto limites objetivos dessa decisão), em homenagem à economia processual e à estabilidade e certeza das relações jurídicas ("tese eclética"). E, quanto à assinalada extensão do caso julgado aos fundamentos de facto, sublinha ainda TEIXEIRA DE SOUSA que «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão»…” (os sublinhados são nossos).
Quanto aos limites subjetivos do caso julgado, ou seja, referentes aos sujeitos, tem-se verificado alguma divergência jurisprudencial e doutrinal.
Como se dá nota no referido Ac. do STJ de 05/12/2017[49], e citando os ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa, podem existir casos em que não é de exigir a identidade de sujeitos: “em regra, o caso julgado tem eficácia restrita às partes processuais que o provocaram. Esta regra da "eficácia relativa" do caso julgado sofre, todavia, restrições e desvios, derivados da possibilidade de a sentença se projetar na esfera jurídica de terceiros: - Quer pela "vinculação direta desses sujeitos" ("extensão do caso julgado a terceiros"), que se justifica «quando (…) importa abranger pelo caso julgado os terceiros para os quais ele implica a constituição, modificação ou extinção de uma situação jurídica» e que se fundamenta, designadamente, na identidade da qualidade jurídica entre a parte processual e o terceiro (por sucessão "inter vivos" ou "mortis causa"); na hipótese de substituição processual; na situação de titularidade pelo terceiro de uma situação jurídica dependente do objeto apreciado e na oponibilidade resultante do registo da ação; - Quer através da "eficácia reflexa do caso julgado", que se verifica «quando a ação decorreu entre todos os interessados diretos (quer ativos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores (…) deve ser aceite por qualquer terceiro»…”. Também em aresto mais recente, se admitiu não ser de exigir tal identidade de sujeitos: no Ac. do STJ de 09/03/2022[50] decidiu-se que “Enquanto na exceção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as ações em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto necessário da sua atuação”.
Apesar do sentido destes arestos, afigura-se-nos que o STJ se tem pronunciado, de forma maioritária no sentido da não admissibilidade da invocação da autoridade do caso julgado quando não esteja verificada a existência da identidade de sujeitos, citando-se aqui apenas os erestos mais recentes:
- Ac. do STJ de 17/02/2022[51] - “V - Não podendo a autoridade do caso julgado formado noutros processos impor-se aos presentes autos, uma vez que nesses processos não interveio a aqui ré recorrida, sempre seria inútil a junção dos acórdãos ali proferidos, com o objectivo de se terem como provados factos neles referidos. VI - O princípio do contraditório tem um fundamento material e implica que a autoridade de caso julgado formado por uma decisão judicial não prejudique quem não foi parte na causa e, portanto, não teve a oportunidade de controlar os termos em que decorreu a acção e, consequentemente, de influenciar a decisão”;
- Ac. do STJ de 21/06/2022[52] - “A autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, não dispensando a identidade subjectiva (sendo as mesmas as partes em ambas as accões, desde logo por exigência do princípio do contraditório – art. 3.º do CPC), o que significa que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira, ainda que parcial” (os sublinhados são nossos);
- e Ac. do STJ de 29/09/2022[53] - “II - A autoridade de caso julgado não prescinde da identidade de partes, pressupondo que as partes no processo em que foi proferida a decisão a impor sejam as mesmas do processo em que se pretende que seja imposta aquela decisão. III - O efeito reflexo do caso julgado produz-se quando a acção tenha decorrido entre todos os interessados directos (activos e passivos) na tutela jurisdicional de determinada situação. Assim, sempre que se puder dizer que se esgotou o universo de sujeitos com legitimidade para discutir a questão, a respectiva decisão tem autoridade de caso julgado, impondo-se em qualquer outro processo em que tal questão seja pressuposto ou fundamento da decisão. IV - O caso julgado estende-se por esta via aos chamados “terceiros juridicamente indiferentes”, ou seja, todos os sujeitos a quem a sentença não causa prejuízo jurídico, causando ou não prejuízo (ou benefício) de facto” (o sublinhado é nosso).
Resumindo, e acompanhando-se o entendimento de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[54]: “Naturalmente que nenhum efeito de caso julgado (ou mesmo de autoridade de caso julgado) pode ser extraído de uma decisão relativamente a sujeitos que não tiveram qualquer intervenção na ação em que foi proferida nem se integram na esfera da identidade subjetiva definida pelo art. 581º, n° 2 (STJ 30-11-21, 697/10, STJ 26-11-20, 7597/15)… Enfim, respeitada a identidade dos sujeitos (STJ 16-12-21, 5837/19, STJ 19-10-21, 34666/15, STJ 25-3-21, 12191/18, STJ 18-6-14, 209/09), a autoridade de caso julgado decorrente de decisão proferida em anterior ação pode funcionar independentemente da verificação do restante condicionalismo de que depende a exceção de caso julgado (art. 581º), em situações em que a questão anteriormente decidida não possa voltar a ser discutida entre os mesmos sujeitos (STJ 11-11-21, 1360/20, STJ 17-6-21, 472/15, STJ 26-2-19, 4043/10, STJ 23-11-11, 644/08, STJ 6-3-08, 08B402 e STJ 13-12-07, 07A3739), abarcando, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado (STJ 12-7-11, 129/07, RP 8-10-19, 2097/12, RG 9-7-20, 195/17, RP 8-9-20, 497/19). Seguro é que tal mecanismo, que visa evitar contradições decisórias entre os mesmos sujeitos, não poderá ser invocado em ação que corra entre sujeitos diversos na perspetiva da sua qualidade jurídica…”.
Importa ter presente que a autoridade de caso julgado não abrange os respectivos fundamentos de facto (factualidade provada e não provada) da decisão anterior, uma vez que a matéria de facto tem um caracter autónomo e instrumental, sendo que o caso julgado incide sobre as questões objecto da parte dispositiva da decisão e as questões que sejam antecedente lógico do respectivo dispositivo. Neste sentido, entre outros, referem-se:
- ensinam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[55] que “Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”;
- afirma Miguel Teixeira de Sousa[56] que “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”;
- no Ac. do STJ de 05/05/2005[57] decidiu-se que “1. O princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art. 522º, nº 1, do Código de Processo Civil, significa que a prova produzida (depoimentos e arbitramentos) num processo pode ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente, mas apoiada no mesmo facto. 2. Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. 3. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui”;
- no Ac. do STJ de 02/03/2010[58] defendeu-se que “A problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente”;
- no Ac. do STJ de 30/11/2021[59]sustentou-se que “A autoridade de caso julgado de uma decisão não abrange os seus fundamentos de facto, pelo que os mesmos não gozam dessa eficácia extraprocessualmente”;
- e no recente Ac. do STJ de 11/05/2022[60] decidiu-se que “II - Fora do processo em que foram fixados, os factos e a respetiva fundamentação que a eles conduziu, não gozam de autoridade e eficácia de caso julgado”, mais se explicando que “A sua eficácia de caso julgado, e consequentemente a sua ofensa, reporta-se, como princípio ou regra, à parte dispositiva da sentença, ou seja, à sua decisão final, e em determinadas circunstâncias às questões preliminares que constituem antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão dessa decisão, mas não aos fundamentos de facto que a tal conduziram. Extrai-se, assim, do exposto, que fora do processo em que foram fixados os factos não gozam de autoridade de caso julgado”.
Tecidas estas considerações e revertendo ao caso em apreço, constata-se que não está verificada a tríplice identidade legalmente exigida para que o caso jugado opere por via de excepção dilatória (função negativa) porque, desde logo, não há coincidência de partes: na acção declarativa de condenação em que foi proferida a sentença a que se reporta o documento nº..., são dois os sujeitos, o aqui Autor/Recorrente e o Réu Insolvente; e na presente acção de verificação (reclamação) ulterior de créditos são quatro os sujeitos, o Autor/Recorrente, o Réu Insolvente, a Ré Massa Insolvente e os Réus Credores da Insolvência. Está, portanto, afastada a verificação do caso julgado nesta vertente de excepção.
Mas, perante tal falta de identidade de sujeitos, fica também imediatamente afastada, pelas razões supra explanadas, a sua verificação na vertente de autoridade do caso julgado, que não dispensa a coincidência dos sujeitos.
Acresce que, como igualmente supra se explicou, os factos provados considerados provados na sentença a que se reporta o documento nº... não gozam de eficácia fora daquela acção declarativa em que foi proferida tal sentença, não estando, por isso, cobertos pela autoridade do caso julgado.
E esclareça-se que a vertente da autoridade do caso julgado, neste caso, sempre teria que ser afastada por força do regime específico de reclamação de créditos que o legislador consagrou no art. 128º do C.I.R.E.: “1 - Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem: a) A sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros; b) As condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas; c) A sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável; d) A existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes; e) A taxa de juros moratórios aplicável: f) O número de identificação bancária ou outro equivalente… 5 - A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”. Daqui resulta, de forma clara e inequívoca, todos os credores da insolvência, incluindo os que têm o seu crédito reconhecido por sentença já transitada em julgado, têm de reclamar o seu crédito no âmbito do processo de insolvência, pelo que aquela sentença anterior não tem qualquer valor nem eficácia para produzir como caso julgado, em qualquer das suas funções, no âmbito do processo de insolvência. Aliás, este entendimento já foi sufragado em acórdão proferido por esta RG na data de 20/01/2022[61], no apenso A destes mesmos autos: “… o trânsito em julgado de sentença que reconheça direitos de crédito e as respetivas garantias a determinado credor ou credores sobre o devedor/insolvente em ações intentadas fora do processo de insolvência, não opera caso julgado material quanto aos demais credores do devedor/insolvente, não ficando estes dispensados do ónus de reclamar os seus créditos, no âmbito do processo de insolvência, caso pretendam obter o pagamento, o que se compreende, dado que não tendo esses credores da devedora, entretanto declarada insolvente, sido partes na ação que culminou com a prolação da sentença, transitada em julgado, que reconheceu ao credor determinado crédito sobre o devedor/insolvente, sendo a insolvência uma execução universal, que tem por objetivo satisfazer os direitos de todos os credores da devedora/insolvente, de acordo com as regras enunciadas no CIRE, se esses restantes credores do insolvente que não foram partes nessa ação eram, em princípio, terceiros juridicamente indiferentes em relação ao discutido e decidido naquelas anteriores ações, uma vez declarada a insolvência do devedor, estes passam a ser terceiros juridicamente interessados em relação ao que nelas foi discutido e decidido, e daí que, o trânsito em julgado da decisão de mérito proferida no âmbito dessas anteriores ações, não lhes possa ser oponível (…) todos os credores da insolvência, incluindo aqueles que tenham visto o seu crédito reconhecido, por sentença já transitada em julgado, por razões de segurança e de equidade de todos os credores da insolvência, e por forma a possibilitar que o pagamento desses seus créditos seja efetuado de acordo com as regras estabelecidas o CIRE, não havendo favorecimento no pagamento de determinados credores em relação aos restantes, têm de reclamar o seu crédito no âmbito do processo de insolvência, dentro do prazo estabelecido para o efeito na sentença declaratória de insolvência, em que a sentença, transitada em julgado, que lhes reconheça esse seu crédito, antes proferida num outro processo, não opera caso julgado em relação aos demais credores da insolvente, e daí, que estes possam questionar, impugnando os créditos reclamados pelos respetivos credores, incluindo, reafirma-se, aqueles que já tinham sido reconhecidos, por sentença transitada em julgado, proferida antes da declaração da insolvência do devedor (…) todos os credores da insolvência, incluindo os que disponham de sentença, transitada em julgado, que lhes reconheça o crédito sobre aquela, têm de reclamar o seu crédito, onde terão de alegar (e em caso de impugnação, provar) os factos constitutivos do crédito reclamado, isto sem prejuízo de também, conforme infra se verá, independentemente dessa reclamação, em determinadas condições, o A.I. poder reconhecer créditos não reclamados pelos respetivos credores, os quais, contudo, em caso de impugnação desses créditos, não ficam dispensados do ónus da prova dos factos constitutivos dos mesmos (…)”. Este entendimento decorrente do regime consagrado para a reclamação de créditos no art. 128º do C.I.R.E. é obviamente extensível ao regime da verificação (reclamação) ulterior de créditos prevista no art. 146º também do C.I.R.E.
Aqui chegados e sem necessidade de outras considerações, uma vez que a sentença a que se reporta o documento nº... junto com a petição não produz qualquer efeito de caso julgado, mais se conclui que o mesmo não tem o necessário valor probatório para comprovar a existência/celebração do contrato, ou contratos, de mútuo invocado pelo Autor/Recorrente, tendo que improceder este fundamento. Em segundo lugar, o Autor/Recorrente defende que «O depoimento prestado pelo Réu Insolvente, foi requerido pelo Réu, ora Recorrido; o Réu Insolvente confessa - confissão irretratável - o crédito reclamado pelo Autor, confissão que é expressa, com força probatória plena contra o confitente - art. 358.º, n.º 1 do CC -, que ultrapassa a livre apreciação do Tribunal – dito artº 358º, nº 4» (cfr. conclusões B e C).
Não lhe assiste qualquer razão porque do depoimento de parte do Réu Insolvente não decorre uma efectiva e válida “confissão” da existência dos mútuos/empréstimos (do «crédito») para efeitos processuais.
Por um lado, na acta relativa à sessão da audiência final de 22/03/2022, não consta qualquer redução a escrito de uma declaração confessória do Réu Insolvente, tal como exige expressamente o nº1 do art. 463º do C.P.Civil de 2013 (“O depoimento é sempre reduzido a escrito, na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória”), o que comprova que o Tribunal a quo entendeu que nenhuma das declarações produzidas pelo mesmo, em sede de depoimento de parte, representou uma confissão, sendo certo que, como decorre do disposto no art. 358º/1 do C.Civil, só a confissão judicial escrita tem força probatória plena. Acresce que o Autor/Recorrente (nem qualquer outra parte) não deduziu reclamação nos termos do nº2 do referido art. 463º e muito menos arguiu tempestivamente (ou seja, naquela sessão da audiência) qualquer nulidade em razão da omissão da redução a escrito da declaração que (alegadamente) seria confessória. Logo, nos termos do nº4 do citado art. 358º, qualquer declaração produzida pelo Réu Insolvente, nesse depoimento de parte e que fosse susceptível de configurar confissão judicial, como não foi escrita, é livremente apreciada pelo Tribunal.
Como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[62], “1. É essencial que o depoimento de parte seja reduzido a escrito nos segmentos em que houver confissão do depoente, pois só assim produzirá prova plena contra o confitente (art. 358º, nº1, do CC). O simples facto de a audiência ser gravada não dispensa a redução a escrito a declaração confessória, uma vez que só deste modo se assegura que sejam retirados da mesma efeitos probatórios plenos, nos termos do art. 358º, nºs. 1 e 4, do CC. 2. A falta de redução a escrito do depoimento de parte, nos segmentos em que ocorra confissão, constitui nulidade que ficará sanada se não for oportunamente arguida (arts. 195º, nº1 e 199º, nº1), isto é, até ao momento em que termine o ato (sessão da audiência final ou da audiência prévia). Não sendo a nulidade tempestivamente arguida, o depoimento só pode ser livremente valorado pelo Tribunal (STJ 30-5-13, 2531/05)”.
Por outro lado, em conformidade com o estatuído no art. 146º/1 do C.I.R.E., findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor. Portanto, na presente acção de verificação ulterior de créditos, verifica-se, por força de lei, a existência de um litisconsórcio necessário do lado passivo, tendo sido efectivamente instaurada contra o Réu Insolvente (devedor), contra a Ré Massa Insolvente e contra os Réus Credores (há uma única acção com uma pluralidade de sujeitos do lado passivo). Ora, estatuindo o nº2 do art. 353º do C.Civil que “A confissão feita pelo litisconsorte é eficaz, se o litisconsórcio for voluntário, embora o seu efeito se restrinja ao interesse do confitente; mas não o é, se o litisconsórcio for necessário” (o sublinhado é nosso), e uma vez que na presente acção, como vimos, existe um litisconsórcio necessário passivo, mostra-se inequívoco que qualquer declaração produzida pelo Réu Insolvente, no seu depoimento de parte, jamais pode ser qualificada como uma confissão eficaz, isto é, jamais se lhe pode atribuir uma eficácia probatória plena[63], o que, aliás, está em consonância com o disposto no art. 288º/2 do C.P.Civil de 2013 (“No caso de litisconsórcio necessário, a confissão… de algum dos litisconsortes só produz efeitos quanto a custas…”). Seria completamente destituído de sentido que, em caso de litisconsórcio necessário, um dos litisconsortes pudesse “isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade de um facto que a todos é desfavorável”[64]. Deste modo, em caso de litisconsórcio necessário, a confissão só é eficaz (tem força probatória plena) se for feita por todos os litisconsortes[65], o que manifestamente não ocorreu no caso em apreço (aliás, nem o Autor/Recorrente o invoca).
Como explica Lebre de Freitas[66], “se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse de uma pluralidade de sujeitos e subjectivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará, em consequência, nessa pluralidade, não podendo um desses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade dum facto que a todos é desfavorável; mas se, embora o interesse seja comum a vários sujeitos, os efeitos do facto são subjectivamente cindíveis, por forma a poderem ser dados como verificados apenas relativamente a algum dos sujeitos, já a confissão isolada de um deles é admissível, visto que realizada a cisão, só o seu interesse resulta afectado em face de uma situação consequente ao facto confessado que, representado este, na sua parte relevante e ainda que por efeito da aplicação da norma sobre a redução dos actos jurídicos, como se o acto só a ele dissesse respeito, é amputada dos efeitos que o facto seria idóneo a produzir em outras direcções”.
Deste modo, e pelas razões supra explanadas, no caso em apreço, o depoimento de parte do Réu Insolvente não encerra uma «confissão irretratável com força probatória plena» da existência dos mútuos/empréstimos (do «crédito»), sendo tal depoimento livremente apreciado pelo Tribunal para efeitos probatórios, e, em face disto, igualmente improcede este fundamento. Em terceiro lugar, o Autor/Recorrente defende que «O Autor não confessa que não tem sobre o Insolvente o crédito por ele reclamado, que era o que o Recorrido pretendia provar, mas não fez», que «As partes, Autor e Insolvente não se contradizem», que «as testemunhas DD, EE e FF têm conhecimento directo dos factos relativos aos mútuos em causa» e que «o fundamento usado pela sentença recorrida não é bastante para concluir que inexistiu o mútuo» (cfr. conclusões, D, E, G, H e I).
Ora, tendo este Tribunal ad quem procedido à integral audição dos depoimentos de parte do Réu Insolvente e do Autor/Recorrente e dos depoimentos de todas as testemunhas inquiridas, e tendo analisado toda a prova documental apresentada nos autos, à luz do critério da livre apreciação e de prudente convicção, este Tribunal ad quem forma, necessariamente, um juízo probatório no sentido de que inexiste prova suficiente para demonstrar a verificação do facto aqui em causa, concordando-se genericamente com fundamentação invocada pelo Tribunal a quo para decidir no sentido da não demonstração probatória da matéria em causa.
Em primeiro lugar, e ao contrário do que o Autor/Recorrente pretende fazer crer com transcrições parciais do seu depoimento e do depoimento do Réu Insolvente (roçando até a litigância de má fé), detectam-se óbvias e inequívocas contradições entre os mesmos: uma consiste, como muito bem salienta a sentença recorrida, na duração do período em que teriam sido realizados os vários (alegados) empréstimos, já que, enquanto o Réu Insolvente declarou que os ocorreram ao longo de 4 ou 5 anos (de 2005 a 2009), o Autor/Recorrente afirmou que os mesmos ocorreram ao longo de 1 ou 2 anos (2005 a 2006). Outra consiste no número de empréstimos e nos respectivos valores parcelares, sendo que o Réu Insolvente declarou que o 1º foi de e 10.000,00, o 2º foi de 15.000,00, o 3º de € 10.000,00 e o 4º, e último, foi no valor de € 10.000,00, mas este afirmou que o 1º foi de € 7.500,00, o 2º não conseguiu precisar se foram € 5.000,00 ou € 1.000,00 (nunca referindo o valor de € 15.000,00), e, depois deste segundo, já não conseguiu precisar quanto mais empréstimos ainda realizou, mas indicando serem mais do que o total de 4, porque referiu «uma vez emprestei uma tranche de 10.000,00 e depois fui emprestando, houve um altura em que emprestei 5 mil e assim sucessivamente» (frise-se sentença recorrida também alude à falta de explicação dos montantes emprestados de cada vez). E uma terceira que se reporta à elaboração/assinatura de um “papel” (documento) aquando da realização de cada empréstimo, sendo que o Réu Insolvente começou por declarar que, desde o 1ºempréstimo, assinou um “papel” que foi elaborado pelo Autor/Recorrente e que sempre que havia novo empréstimo, assinava o mesmo papel (embora, em momento posterior do depoimento, sem qualquer explicação e sem qualquer concretização, começasse a falar em “papeis”), mas este afirmou que, sempre havia um empréstimo, aquele «assinava uma “declaração”, não sendo sempre o mesmo tipo de documentos, os papeis não eram iguais, havia vários papeis». Todas estas contradições apresentam-se como muito relevantes, abalando fortemente a credibilidade destes dois depoimentos, e fazem surgir fortes dúvidas insanáveis sobre a efectiva existência dos alegados mútuos/empréstimos (não são admissíveis este tipo de discrepâncias sobre os elementos fundamentais e as circunstâncias básicas de qualquer empréstimo).
Em segundo lugar, os depoimentos do Réu Insolvente e do Autor/Recorrente apresentam-se como pouco precisos, sem contextualização, falhos de explicações relevantes e carecidos de lógica, sendo certo que ambos preocuparam-se e procuraram, apenas e tão só, afirmar a existência dos empréstimos e o seu valor total.
Com efeito, o Réu Insolvente nunca explicou a razão porque precisava que o Autor/Recorrente lhe fizesse os alegados empréstimos e nos valores indicados (mesmo quanto ao 1º empréstimo, limitou-se a referir que tinha comprado uma grua e um tractor, cujos valores nem sequer indicou, jamais esclarecendo a justificação do valor de € 10.000,00). O Réu Insolvente também não concretizou a sua afirmação, desgarrada e sem qualquer lógica, de que, o “papel” que assinava, «não valia nada» (então para que efeitos a assinava?). O Réu Insolvente igualmente demonstrou total incapacidade em explicar várias questões relativas à “declaração de dívida”, correspondente ao doc. nº... junto com a petição (não soube precisar, de forma clara, se assinou, ou não, a declaração antes do seu contabilista escrever o respectivo texto; não soube explicar a razão porque nessa declaração está referida a sociedade do Autor/Recorrente - “M..., Lda” -, quando o empréstimo foi pessoal, isto é, do Autor e não da sociedade; não soube explicar porque razão essa sociedade surge, nessa declaração de 2009, com uma morada da sede que só foi efectivamente a morada da sua sede em 2020, como resulta do documento nº...3 da contestação, junto com o requerimento datado de 20/10/2021; e, principalmente, não soube explicar, de forma cabal e com coerência, porque razão o Autor/Recorrente lhe exigiu tal “declaração de dívida” e o cheque - doc. nº... da petição -, limitando-se a afirmar que «queria garantia», sem mais nada acrescentar, não confirmando sequer o teor dos arts. 2º e 3º da petição, onde se alude que existiram «incumprimentos de compromissos» e que foram esses «incumprimentos» que motivaram aquela exigência).
Por outro lado, quer o Réu Insolvente, quer o Autor/Recorrente nunca explicaram nem esclareceram o que é que acordaram quanto à restituição/devolução das quantias alegadamente emprestadas (limitaram-se a referir o pagamento dos juros anuais e a respectiva taxa, nunca por nunca concretizando qual era o prazo dos vários empréstimos, o que se revela como absolutamente inverosímil).
Por fim, o Autor/Recorrente nunca explicou, de forma cabal, porque razão foi emitida a “declaração de dívida” e entregue o cheque, sendo que nunca referiu sequer ter sido uma exigência sua (não confirmando, portanto, o teor do art. 3º da petição), e isto mesmo apesar de ter referido que «em 2008/2009, ele deixou de pagar os juros», mas concretizou, de forma clara, que esta falta de pagamento corresponde aos «incumprimentos de compromissos» alegados no art. 2º da petição (saliente-se que, a forma como depôs sobre esta matéria, até deu a entender que a emissão da declaração e a entrega do cheque foram da iniciativa do Réu Insolvente). O Autor/Recorrente também não explicou a razão pelo qual na “declaração de dívida” está consignado um prazo de 10 anos para a restituição/devolução da totalidade do valor alegadamente mutuado, o que ainda se torna mais ilógico quando, no seu depoimento, referiu ter dito ao Réu Insolvente «que ao fim desses 10 anos já cá não estava para receber o valor». O Autor/Recorrente igualmente não deu qualquer explicação para na “declaração de dívida” estar apenas consignado o valor total da quantia alegadamente mutuada, e não estar também referido o valor em dívida relativo aos juros alegadamente não pagos em «2008/2009». E o Autor/Recorrente produziu declarações carecidas de lógica quando tentou explicar porque razão não actuou judicialmente contra o Réu Insolvente em momento anterior a 2020 («ele dizia que a vida estava mal e eu sou humano»), e que não têm qualquer coerência com as regras da experiência (quem realiza empréstimos do tipo dos alegados nos autos, quer receber juros e quer a restituição da quantia mutuada, e não fica à espera que «um dia o devedor possa ou resolva cumprir»).
Neste “quadro”, também os pontos (“vícios”) supra indicados retiram, de forma muito significativa, a credibilidade destes dois depoimentos, e ainda fazem acumular mais dúvidas (inultrapassáveis) sobre a efectiva existência dos alegados mútuos/empréstimos.
Em terceiro lugar, como se refere na sentença recorrida, “nenhuma das diversas testemunhas inquiridas demonstrou ter efectivamente conhecimento directo do alegado mútuo, senão do que lhes era ouvido dizer, designadamente pelos próprios (Autor e Devedor)”. Com efeito, as testemunhas HH e GG demonstraram não saber rigorosamente nada sobre a matéria dos alegados empréstimos. E as testemunhas FF, DD e EE admitiram, de forma expressa e inequívoca, que nunca assistiram (presenciaram) a qualquer situação em que o Autor/Recorrente entregou ao Réu Insolvente uma quantia em dinheiro (fosse a que título fosse).
E, em quarto lugar, todos os documentos constantes dos autos, por si só e desacompanhados de outros elementos probatórios relevantes, são insusceptíveis de comprovarem a efectiva existência dos alegados mútuos/empréstimos (importa salientar que a “declaração de dívida” e o cheque - docs. nºs. ... e ... da petição -, para além de terem sido impugnados pelo Réu Credor/Recorrido, não foram devidamente contextualizados explicados pelo Autor/Recorrente e/ou pelo Réu Insolvente, nem por nenhuma das testemunhas, e, assim sendo, não podem merecer qualquer credibilidade por parte do Tribunal).
Nestas circunstâncias, inexistem quaisquer meios de prova relevantes e credíveis nos quais este Tribunal ad quem pudesse alicerçar a formação de uma convicção, minimamente certa e segura, no sentido da verificação da realidade contida no facto em apreciação
E, em quatro lugar, o Autor/Recorrente defende que «não tendo o recorrido provado que tal crédito era fictício, nenhum dos demais réus havendo contestado o pedido formulado pelo autor/recorrente, conclui-se que, a presente acção tem de ser julgada procedente por provada» (cfr. conclusão F).
Este fundamento mostra-se absolutamente ininteligível, já que o Autor/Recorrente não explica minimamente por que forma a falta de demonstração probatória da matéria que integra o facto não provado h) poderia conduzir, por si só e sem mais, à demonstração probatória da matéria que integra o facto não provado a) (ou seja, da existência dos vários mútuos/empréstimos invocados). Frise-se que a resposta negativa sobre a prova de um determinado facto (realidade) não implica nem determina que se tenha por demonstrado o facto (realidade) contrário.
Assim sendo, sem necessidade de outras considerações, este fundamento mostra-se totalmente insusceptível de comprovar a existência/celebração do contrato, ou contratos, de mútuo invocado pelo Autor/Recorrente, pelo que improcede.
Consequentemente, perante tudo o que ficou exposto, conclui-se que inexiste qualquer do erro de julgamento quanto ao único ponto de facto validamente impugnado no presente recurso e, por via disso, esta parte da pretensão recursória do Autor/Recorrente deverá improceder.
*
4.4. Do Crédito do Autor/Recorrente
Como resulta das conclusões de recurso formuladas (cfr. em especial, a conclusão L e o pedido final), o Autor/Recorrente peticiona a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue procedente a acção tendo como pressuposto/fundamento único e básico a efectiva procedência da impugnação da matéria de facto por si deduzida, designadamente a demonstração probatória da matéria que integra os factos não provados a) a g) [com especial enfase para o primeiro deles que respeita à alegada existência de vários mútuos/empréstimos por parte daquele ao Réu Insolvente], matéria que devia transitar para a factualidade não provada).
Logo, tendo-se respondido negativamente quanto à primeira questão, isto é, que não existe o erro de julgamento, no que concerne à decisão de facto, que foi invocado pelo Autor/Recorrente e que o recurso é totalmente improcedente quanto à impugnação da matéria de facto, então está absoluta e definitivamente prejudicada a apreciação desta terceira questão, inexistindo qualquer fundamento legal para que a sentença recorrida seja alterada quanto ao juízo de mérito do Tribunal a quo, quando entendeu que: “No caso em apreço, incumbia ao Autor fazer prova da existência do crédito por si reclamado, o que, efectivamente, não logrou alcançar, de acordo com a descrição da matéria de facto apurada e não apurada e respectiva motivação. O Autor alegou que o crédito reclamado emergia de múltiplos empréstimos, celebrados ao longo de dois anos, por meio dos quais havia emprestado ao insolvente a quantia reclamada. Todavia, esses alegados mútuos não foram juntos aos autos. Acresce que, para que exista a obrigação de restituir a cargo do mutuário, não basta celebração de qualquer mútuo; tem de existir efetiva entrega da quantia mutuada. Ora, não existe nos autos prova de que o valor reclamado tivesse efetivamente sido transferido do património do Autor para o do insolvente. Ora, o ónus de provar essa deslocação patrimonial, que vai gerar a obrigação de restituir e o correspondente direito de crédito, cabe a quem alega esse facto. Cabia, assim, ao Autor a prova de que entregou efetivamente as quantias alegadamente mutuadas, pois é dessa concretização do contrato de mútuo que resulta o direito de exigir a restituição”.
Perante a factualidade provada e principalmente perante a factualidade não provada, subscreve-se na íntegra a fundamentação de direito supra transcrita, uma vez que, incumbindo-lhe fazer prova dos factos constitutivos do direito de crédito cujo reconhecimento peticionou na presente acção (cfr. art. 342º/1 do C.Civil), o Autor/Recorrente não logrou cumprir tal ónus probatório.
E sempre cumpre fazer a seguinte nota: apesar estar demonstrada a matéria que integra os factos provados nºs. 3.1, 3.2 e 3.3, como supra se explicou e concluiu na apreciação e decisão da questão anterior, a sentença proferida na acção declarativa nº857/20.... não produza qualquer efeito de caso julgado nos presentes autos de verificação ulterior de créditos, pelo que tal factualidade é insusceptível de consubstanciar a existência do crédito reclamado pelo Autor/Recorrente.
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, conclui-se que a sentença recorrida deve ser mantida quanto a tal apreciação de mérito e, por via disso, também esta parte da pretensão recursória do Autor/Recorrente deverá improceder.
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4.5. Do Mérito do Recurso
Perante as respostas alcançadas quanto às questões que se impunham decidir, deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Autor/Recorrente.
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4.6. Da Responsabilidade quanto a Custas
Improcedendo o recurso, porque ficou vencido, deverá o Autor/Recorrente suportar as respectivas custas - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
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5. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Autor/Recorrente e, em consequência, confirmam e mantém na íntegra a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo Autor/Recorrente.
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Guimarães, 16 de Fevereiro de 2022.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício; 1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte; 2ºAdjunto - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.
[1]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139. [2]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [3]Juiz Desembargador José Moreira Dias, proc. nº1867/14.0TBBCL-F.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [4]In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, 1945, p. 172/173 [5]In Coimbra Editora, 2ªedição, 1985, p. 687. [6]In Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, p. 140. [7]In Notas ao Código de Processo Civil, III, p. 194. [8]In Estudos sobre o Processo Civil, p. 221. [9]In Da Sentença Cível, p. 39. [10]Juiz Conselheiro Ribeiro Cardoso, proc. nº835/15.0T8LRA.C3.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [11]Juíza Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, proc. nº3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [12]Juiz Desembargador Vieira e Cunha, proc. nº1887/04-1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [13]Juíza Desembargador Ana Cristina Duarte, proc. nº1/08.0TJVNF-EK.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [14]Ac. RG de 13/01/2022, Juiz Desembargador Afonso Cabral de Andrade, proc. nº1194/16.9T8VCT.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [15]In Código de Processo Civil Anotado, II vol., p. 670. [16]Ac. RL de 09/07/2014, Juiz Desembargador Pedro Brighton, proc. nº1021/09.3 T2AMD.L1-1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl. [17]Ac. RP de 02/05/2016, Juiz Desembargador Correia Pinto, proc. nº1556/14.6T8LOU-A.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp. [18]Juiz Conselheiro Ribeiro Cardoso, proc. nº2913/14.3TTLSB.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [19]Cfr. Abrantes Geraldes, in obra referida, p. 196 e 197. [20]Juiz Conselheiro Lopes do Rego, proc. nº233/09.4TBVNC.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [21]Juíza Conselheira Ana Luísa Geraldes, proc. nº824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [22]No mesmo sentido, entre outros, Acs. STJ de 31/05/2016, Juiz Conselheiro Garcia Calejo, proc. nº1572/12.2TBABT.E1.S1, de 19/02/2015, Juiz Conselheiro Tomé Gomes, proc. nº299/05.6TBMGD.P2.S1, e de 28/04/2016, Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, proc. nº1006/12.2TBPRD.P1.S1, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj. [23]In obra referida, p. 200. [24]Juiz Conselheiro Bernardo Domingos, proc. nº756/14.3TBPTM.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [25]Ver também o mais recente Ac. STJ 02/02/2022, Juiz Conselheiro Fernando Augusto Samões, proc. nº1786/17.9T8PVZ.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [26]In obra citada, p. 331, 332 e 338. [27]Ac. STJ de 22/10/2015, Juiz Conselheiro Tomé Gomes, proc. nº212/06.3TBSBG.C2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [28]Juíza Conselheira Rosa Tching, proc. nº588/12.3TBPVL.G2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [29]Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384. [30]Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ªEdição, Revista e Actualizada, p. 435 a 436. [31]P.J.Pimenta, in Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325. [32]Neste sentido, o Ac. RG de 13/07/2021, Juíza Desembargadora Raquel Baptista Tavares, proc. nº3625/20.4T8VCT.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [33]In Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, p. 609. [34]Juiz Conselheiro Urbano Dias, proc. nº08A3665, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [35]In Recursos Civis, Edição CEDIS, Set. 2020, p. 7 e 8. [36]Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1. [37]Juiz Conselheiro Ribeiro Cardoso, proc. nº291/12.4TTLRA.C1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [38]Juiz Conselheiro Jorge Dias, proc. nº235/14.9T8PVZ.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [39]Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2ª edição, 1997, p. 567. [40]Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in obra referida, p. 567. [41]Juiz Desembargador Ramos Lopes, proc. nº311/09.0TBBGC-B.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [42]Rui Pinto, in Código Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, Almedina, p. 185 e 186. [43]Juíza Desembargadora Cristina Neves, proc. nº8465/06.0TBMTS-C.L1-6, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl. [44]In Comentário ao C.P.Civil, Vol II, p. 362. [45]In Comentário ao C.P.Civil, Vol. II, p. 369. [46]In RLJ, 121º, p. 147 e ss. [47]Juiz Conselheiro José Domingues, proc. nº077796, disponível na INTERNET in http://www.dgsi.pt/jstj. [48]Juiz Conselheiro Pedro Lima Gonçalves, proc. nº1565/15.8T8VFR-A.P1.S1, disponível na INTERNET in http://www.dgsi.pt/jstj. [49]Juiz Conselheiro Pedro Lima Gonçalves, proc. nº1565/15.8T8VFR-A.P1.S1. [50]Juiz Conselheiro Isaías Pádua, proc. nº1383/19.4T8VFR.P1.S1, disponível na INTERNET in http://www.dgsi.pt/jstj. [51]Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, proc. nº4995/17.7T8LRA.C2.S1, cuja publicação se desconhece, mas sendo o seu sumário acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2023/02/sumarios_civel_2022.pdf. [52]Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves, proc. nº43/21.0YHLSB.L1-A.S1, disponível na INTERNET in http://www.dgsi.pt/jstj. [53]Juíza Conselheira Catarina Serra, proc. nº5138/05.5YXLSB-F.L1.S1, disponível na INTERNET in http://www.dgsi.pt/jstj. [54]In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ªedição, p. 568 e 569. [55]In Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 716 [56]In obra citada, p. 577. [57]Juiz Conselheiro Araújo Barros, proc. nº05B691, disponível na INTERNET in http://www.dgsi.pt/jstj. [58]Juiz Conselheiro Urbano Dias, proc. nº690/09.9.YFLSB, disponível na INTERNET in http://www.dgsi.pt/jstj. [59]Juiz Conselheiro Isaías Pádua, proc. nº 60/08.6TBADV.2.E1.S1, disponível na INTERNET in http://www.dgsi.pt/jstj. [60]Juiz Conselheiro Isaías Pádua, proc. nº557/17.7T8PTL.G1.S2, disponível na INTERNET in http://www.dgsi.pt/jstj. [61]Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, cuja publicação se desconhece. [62]In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ªedição, p. 568 e 569. [63]Cfr. Ac. STJ 16/05/2002, Juiz Conselheiro Oliveira Barros, proc. nº02B1129, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [64]Rita Barbosa Cruz, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCP, p. 829. [65]Cfr. Ac. RP 27/10/2020, Juiz Desembargador João Diogo Rodrigues, proc. nº2210/19.8T8PNF.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp. [66]In A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, p.109 e 110