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ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
NULIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
INSTRUÇÃO
ARGUIÇÃO DA NULIDADE
SANAÇÃO
Sumário
I – A nulidade da acusação pública não é de conhecimento oficioso, nem se trata de nulidade insanável, estando sujeita ao regime de arguição e de sanação legalmente previstos. II – No entanto, os fundamentos da nulidade da acusação previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 3, do artigo 283.º, do Código Processo Penal, são coincidentes com os fundamentos de rejeição da acusação, por manifestamente infundada, no âmbito do despacho judicial que inicia a fase do julgamento, nos termos consignados no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alíneas a), b) e c), do Código Processo Penal, sendo estas matérias de conhecimento oficioso do tribunal, motivo pelo qual tem sido considerado que está em causa uma invalidade atípica, dado que deve ser arguida, mas também pode ser conhecida “ex oficio”, no momento em que a acusação é recebida. III – Tal motivou o entendimento jurisprudencial que considera a nulidade da acusação, nomeadamente por falta de narração de factos, de conhecimento oficioso, e, em decorrência, que pode ser conhecida a todo o tempo, enquanto a decisão final não transitar em julgado, interpretação que o texto legal não consente, uma vez que a citada norma legal consagra regime especial de conhecimento de matérias que integram causa de nulidade de acusação, o qual não corresponde e não pode ser confundido com o regime das nulidades previsto no artigo 119.º do Código Processo Penal. IV – Assim, na fase da instrução o conhecimento de nulidade da acusação está dependente de arguição pelos interessados, estando vedado ao tribunal o seu conhecimento oficioso.
Texto Integral
Proc. n.º 192/20.2 T9MCN.P1
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I. RELATÓRIO:
Nos presentes autos realizou-se instrução, por requerimento do arguido AA, na sequência de acusação deduzida pelo Ministério Público, na qual lhe é imputada a prática de um crime de fraude contra a Segurança Social, previsto e punido, pelas disposições conjugadas dos artigos 103º, nº 1, 104º, nºs 1 e 2, al. b) e 106º, nº 1, todos da Lei 15/2001, de 05 de junho.
Finda a instrução foi proferido despacho de não pronuncia, que declarou nula a acusação pública deduzida contra o identificado arguido e determinou o arquivamento dos autos.
Inconformado com tal decisão o Ministério Público interpôs o presente recurso, rematando a motivação com as seguintes
CONCLUSÕES
1- O Ministério Público não se conforma com a decisão a decisão de considerar nula a acusação pública, por os factos nela descritos não constituírem o crime imputado ao arguido.
2- Em 31-01-2022, no âmbito do inquérito, do qual o signatário foi titular, foi proferido despacho de acusação contra AA.
3- Em 03-03-2022, o arguido AA apenas requereu a abertura da instrução, com dois fundamentos: não pronuncia, em relação a apenas dois meses, dezembro de 2019 e janeiro de 2020 e que fosse determinada a SPP. Nenhuma nulidade da acusação foi pedida.
4- Em 17-03-2022, o processo foi remetido para a Instrução Criminal de Penafiel, declarando nada ter a opor à suspensão provisória do processo agora requerida, desde que o arguido confessasse os factos de que é acusado e se comprometesse a pagar a dívida em causa à Segurança Social, acrescida de uma quantia ao Estado (artigo 281° do CPP), coisa que o arguido não fez, em sede de inquérito.
5- Em 23-03-2022, o M. Juiz 2 de instrução criminal admitiu o requerimento de abertura de instrução e declarou aberta a instrução, designou dia para interrogatório e, tendo em vista o decretamento da suspensão provisória do processo, solicitou CRC e ordenou para se obter, junto do MP, informação sobre eventuais suspensões provisórias de processo em relação ao arguido.
6- Nenhuma nulidade da acusação foi determinada.
7- Em 21-04-2022, o M. Juiz 2 da instrução criminal de Penafiel interrogou o arguido (que prestou declarações e nenhuma nulidade da acusação foi pedida ou determinada, vide gravação no Citius Media Studio) e pediu esclarecimentos à Segurança Social, referentes ao
pagamento de alguns meses e que poderiam diminuir o valor total da dívida, tal como pretendido pela defesa.
8- Em 04-05-2022, a Segurança Social respondeu, mantendo o seu entendimento, tal como constante do seu Parecer Fundamentado, junto no inquérito e seguido, por mim. no despacho de acusação, de que se verifica o crime de fraude contra a segurança social e pelo montante referido, sem correções ou reduções, tal como suscitado pela defesa.
9- Em 05-05-2022, foi dado conhecimento da resposta da segurança social ao MP e à defesa.
10- Antes de alegações, em debate instrutório, o Ministério Público aceitou a proposta a suspensão provisória do processo, requerida pela defesa, pelo período de 2 anos, mediante a entrega, à Segurança Social, da quantia em dívida (53.063,80€), mais 500€ a uma IPSS (e nenhuma nulidade da acusação foi pedida, contraditada ou determinada, vide gravação no Citius Media Studio).
11- Em alegações, no debate instrutório, o Ministério Público pediu a pronúncia do arguido, aceitando a suspensão provisória do processo, requerida pela defesa, pelo período de 2 anos, mediante a entrega, à Segurança Social, da quantia em dívida (53.060,80€, acrescida dos jutos legais), mais 500€ a uma IPSS (vide gravação no Citius Media Studio, em especial do min 6:40 a 7:35).
12- Mais, foi alegado, de forma expressa e clara, que: "...se verificam todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime".
13- E nenhuma nulidade da acusação foi peticionada!...
14- A defesa alegou (vide gravação no Citius Media Studio. em especial do min 6:40 a 7:35), pedindo justiça e reiterando o pedido de suspensão provisória do processo, requerida pela defesa, pelo período de 2 anos, mediante a entrega, à Segurança Social, da quantia em dívida (53.060,80€, acrescida dos jutos legais), mais 500€ a uma IPSS.
15- Mais a própria defesa declarou (vide gravação no Citius Media Studio, em especial do min 00:56 a 1:30) que "...Não está em causa o crime de fraude qualificado à segurança social..."
16- Nenhuma nulidade da acusação foi requerida pela defesa!!!...
17- Em 13-05-2022, o M. Juiz 2 da instrução criminal de Penafiel decidiu considerar nula a acusação pública, por os factos nela descritos não constituírem o crime imputado ao arguido (por faltarem, sobretudo, os elementos subjetivos exigidos pelo tipo legal em apreço).
18- Não posso concordar!!!
19- Na verdade, em primeiro lugar, não está em causa nenhuma nulidade insanável,
20- Esta nulidade estava dependente de arguição, pelo que o M. Juiz não podia conhecer dela, ex officio (artigos 118° e ss. do CPP).
21- Todavia, o M. Juiz considerou nula a acusação, sem que a defesa ou o arguido tivesse requerido o que quer que fosse, nesta matéria (artigo 121° do CPP).
22- Nem a defesa, nem ninguém levantou questões ou dúvidas sobre a validade ou nulidade da acusação, menos o M. Juiz que, após diversas diligências desnecessárias e inúteis, operou uma decisão final surpresa (vistos, com detalhe, os autos e ouvidas, com atenção, as gravações, através da aplicação do Citius Médio Studio).
23- Aliás, a própria defesa, aceitando a acusação, pediu apenas a SPP (e não a nulidade, que lhe seria mais favorável e sendo o seu único interessado e beneficiário).
24- Neste sentido, entre outos e por todos, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10-12-2009, in www.dgsi.pt: "Não se encontrando prevista no art. 119.° do CPP, a nulidade de acusação é sanável, pelo que se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior..."
25-E, ainda, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-12-2008 e do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18-02- 2008, ambos in www.dgsi.pt e no site da PGDL, em anotação ao artigo 283° do CPP.
26- Vide, também, Paulo Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código do Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem", pág. 744-5, notas 12 e 13.
27- E, ainda, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, in "Código do Processo Penal - Comentários e Notas Práticas", pág. 716, nota 7, que diz que: "a nulidade de acusação é sanável..."
28- Em segundo lugar, a decisão recorrida é que é nula, por violação do princípio do contraditório.
29- Nulidade esse que expressamente se invoca (artigos 307°, 308° e 379° do CPP).
30- Com o feito, os sujeitos processuais não foram ouvidos sobre a questão da nulidade da acusação, o que veio a ser decidido.
31- Tratando-se, pois, de uma decisão final surpresa e errada.
32- O M. Juiz do tribunal recorrido violou o princípio do contraditório, consagrado no artigo 32°, n° 5 da CRP e artigos 301°, 327° e 338°, estes do CPP, aplicável também à fase da instrução.
33- Em terceiro lugar, o processado de instrução criminal está cheio de contradições e ziguezagues.
34- Ou seja, várias diligências realizadas (interrogatórios, ofício à segurança social, etc.) e, afinal, decide-se, sem aviso prévio, pela nulidade da acusação, coisa que não pode fazer, ex officio.
35- Mesmo sem admitir esta decisão recorrida, sempre se diria que o M. Juiz a proferir esta decisão, deveria tê-lo feito, logo no despacho liminar da instrução criminal, sem se entender a necessidade e a utilidade de diligências de instrução realizadas, chegando, inclusive, a existir uma SPP pedida pela defesa e aceite pelo Ministério Público.
36- Em quarto lugar, a acusação contem todos os elementos, objetivos e subjetivos do tipo de crime de fraude contra a segurança social.
37- Incluindo, o dolo específico.
38- Sobre esta questão, vide:
Valentina da Silva Santos, "A Fraude Contra a Segurança Social e os Crimes Tributários, em Especial o Problema do Concurso de Crimes Social", Dissertação de Mestrado na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Criminais apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Orientador: Mestre Susana Aires de Sousa, Coimbra, 2017, publicitado sm https://eg.uc.pt/bitstream/10316/84154/1/TESE%20FINAL %207.pdf. página 39.
39- Na verdade, pode ler-se na acusação:
"Agiu deliberadamente e em obediência ao mesmo desígnio, com intenção de fazer sua e de integrar no respetivo património as quantias em dinheiro que não pagou de prestações de segurança social, com base em faltas inexistentes das trabalhadoras, por falsamente declaradas, não obstante saber que aquela quantia de 53.060,80€ não lhe pertencia e que atuava contra a vontade dos donos.
Bem sabia que tinha o dever de entregar nos cofres da Segurança Social Portuguesa as quantias em dinheiro relativas às cotizações que não pagou, com fundamento em faltas inexistentes das suas trabalhadoras, pelo arguido declaradas. Agiu ainda livre e lucidamente, em nome e no interesse da sociedade, já extinta, a coberto de uma única resolução criminosa e com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei."
40- A intenção de obter uma vantagem patrimonial ilegítima ou de se apropriar é exatamente o mesmo.
41- O dolo não tem de ser uma reprodução integral e literal da lei.
42- A intenção (conseguida) do arguido, in casu, foi a de não pagar à segurança social, as quantias devidas e apuradas pela investigação criminal (mais de 50.000€).
43- E, assim, tanto se pode dizer que o arguido teve a intenção de obter uma vantagem patrimonial ilegítima ou que teve a intenção de se apropriar da quantia de mais de 50.000€, pertença da segurança social.
44- Neste caso, é dizer rigorosamente o mesmo.
45- Introduzir qualquer diferença, aqui, é irrelevante e inócua.
46- Aliás, foi essa posição do Ministério Publico, em toda a fase de instrução, em particular, nas suas alegações, em sede de debate instrutório, declarando, de forma expressa e clara, que: "...se verificam todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime".
(vide gravação no Citius Media Studio, em especial do min 6:40 a 7:35).
47- E da própria defesa, declarando, em toda a fase de instrução, em particular, nas suas alegações, em sede de debate instrutório, que "...Não está em causa o crime de fraude qualificado à segurança social..."
(vide gravação no Citius Media Studio, em especial, do min 00:56 a 1:30)
48- Em quinto lugar, não havendo falta de dolo na acusação (pelo que não é aplicável o AUJ N° 1/2015), o M. Juiz de direito deveria ter procedido a uma alteração da qualificação jurídica, não tendo sido observado, pois, o disposto no artigo 3583 do CPP.
49- Em sexto lugar, no debate instrutório, o Ministério Público já havia peticionado a pronúncia do arguido para julgamento, pedido esse que se mantém, reitera e peticiona, de novo, agora, perante tribunal superior, aceitando-se a suspensão provisória do processo, requerida pela defesa, pelo período de 2 anos, mediante a entrega, à Segurança Social, da quantia em dívida (53.060,80€, acrescida dos jutos legais), mais 500 € a uma IPSS, por se verificarem os pressupostos legais, previstos no artigo 281° do CPP.
50- Em sétimo lugar, o M. Juiz, ao declarar nula a acusação, de forma errada, quer em termos substanciais (seja porque ela é válida), quer em termos formais e processuais (seja porque a nulidade é sanável, não a podendo conhecer oficiosamente ou, ainda, porque nem sequer foi respeitado o princípio do contraditório), violou o disposto nos artigos 32°, n° 5 e 219°, n° 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, artigos 2o e 3o e 4o, n° 1, al. d) do Estatuto do Ministério Público, artigo 14° do Código Penal e artigos 118° a 122°, 283°, n° 3, 301°, 337°, 308°, 327°, 338°, 358°, n°s 1 e 3 e 379°, estes do Código de Processo Penal e artigo 106°, n° 1 (com referencia ao 103°, n° 1 e 104°, n° 1 e 2, al. b) do RGIT, no sentido de que, como defendemos nós, existem indícios suficientes, da prática, pelo arguido AA, de um crime de fraude contra a segurança social (qualificado pelo valor superior a 50.000 €).
51- Em oitavo e último lugar, o presente recurso deve ser julgado procedente e, por via disso, revogar-se o despacho recorrido de considerar nula a acusação pública, por os factos nela descritos não constituírem o crime imputado ao arguido e arquivar os autos e ser proferida, em sua substituição, outra decisão que pronuncie o arguido, pelos factos e direito, constantes da acusação,
52- Ou seja, pronuncia do arguido AA, pela prática de um crime de fraude contra a segurança social (qualificado pelo valor superior a 50.000 €), p. e p. pelos artigos 106°, n° 1 (com referencia ao 103°, n° 1 e 104°, n° 1 e 2, al. b) do RGI7 ou
53- Ou outra, que determine (ou mande determinar) a suspensão provisória do processo, requerida pela defesa, pelo período de 2 anos, mediante a entrega, à Segurança Social, da quantia em dívida (53.060,80 €, acrescida dos jutos legais), mais 500 € a uma IPSS, por se verificarem os pressupostos legais previstos no artigo 281° do CPP.
Assim, Vossas Excelências, como sempre, farão
JUSTIÇA.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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II. FUNDAMENTAÇÃO: A. DESPACHO RECORRIDO: (…)
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O Tribunal é o competente, o processo é o próprio e válido nos termos prosseguidos. Os sujeitos processuais encontram-se dotados de capacidade e legitimidade processual.
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Findo o inquérito o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de fraude contra a Segurança Social, previsto e punido, pelas disposições conjugadas dos artigos 103º, nº 1, 104º, nºs 1 e 2, al. b) e 106º, nº 1, todos da Lei 15/2001, de 05 de junho (doravante RGIT).
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Inconformado com a acusação formulada, o identificado arguido requereu a abertura da instrução, com vista a infirmar os factos que indiciariamente lhe são imputados, designadamente aqueles respeitantes aos meses de dezembro de 2019 e janeiro de 2020, cuja realidade verificada não permite a subsunção à previsão típica do ilícito em causa. De outro modo, refere que, ao contrário do vertido pela acusação pública, o valor de €53.060,80 não provém dos descontos relativos às cotizações dos trabalhadores, nem foi apropriado pelo arguido. Pois, se tal assim ocorresse, certamente seria outro o crime que lhe era imputado. Por fim, independentemente da decisão a proferir quanto às questões enunciadas, pugna pela aplicação do instituto de suspensão provisória do processo.
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Realizaram-se as diligências instrutórias que se entenderam relevantes para a decisão da causa e procedeu-se a debate instrutório, com observância do legal formalismo.
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Questão prévia: Da nulidade da acusação pública: Conforme referenciado, em sede de requerimento de abertura da instrução, o arguido sustenta, em suma, que os factos que lhe são atribuídos pela acusação pública não têm correspondência com a previsão típica do crime imputado, nem incluem a intenção de obtenção de uma vantagem patrimonial ilegítima como elemento necessário à consumação do crime de fraude contra a Segurança Social. Está, assim, posta em causa a validade do libelo acusatório antecedente, no confronto entre a factualidade ali vertida e a previsão típica do citado ilícito criminal. De qualquer modo, face à alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, prosseguimos o entendimento consignado pela jurisprudência, considerando que os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º do Código de Processo Penal, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais (neste sentido, Ac. TRG de 06/02/2017, in www.dgsi.pt). Cumpre, pois, decidir a questão em apreciação. Neste sentido, é consabido que a acusação, sendo formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, constitui o pressuposto indispensável da fase de julgamento e, por inerência legal, da fase de instrução quando requerida, por ela se definindo e fixando o seu objeto. E, de acordo com o art.º 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, a acusação contém, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. Decorre da imposição do princípio do acusatório e como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa, em respeito pelo art.º 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa. In casu, o Ministério Público atribui ao arguido o cometimento de um crime de fraude contra a SS. com base na seguinte factualidade: De janeiro de 2019 a janeiro de 2020, o arguido AA foi o único e exclusivo gerente, de facto e de direito, da sociedade “A... Lda.”, que teve sede neste concelho de Marco de Canaveses, desta comarca, o seu objeto social era relacionado com os têxteis, e, entretanto, foi declarada insolvente, em 19-05-2020 e tem a matrícula cancelada, desde 01/01/2021. Após verificaram os respetivos extratos de segurança social, aperceberam-se as denunciantes/trabalhadoras que, apesar de trabalharem diariamente, o arguido AA participou, falsamente, faltas junto da Segurança Social e assim, pagou menos contribuições, bem como justificou o pagamento de salários inferiores ao salário mínimo nacional. Assim, em obediência a esse mesmo desígnio apropriativo e, no decurso daquele período de tempo de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, e sem qualquer causa justificativa, o arguido, no exercício do giro comercial da empresa, sediada neste município, desta comarca, apropriou-se da quantia global de 53.060,80€ (cinquenta e três mil e sessenta euros e oitenta cêntimos) provenientes dos descontos relativos às cotizações de salários pagos aos trabalhadores que tinha a seu cargo, tudo melhor descrito nos mapas de apuramento remunerações de fls. 244 a 255, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos. Com efeito, em vez de o arguido entregar tal quantia à Segurança Social Portuguesa, como podia e devia, fê-la sua e integrou-a no respetivo património, locupletando-se à custa do património daquela entidade, com base em declarações falsas de faltas das suas trabalhadoras. Até à presente data, o arguido não regularizou a sua situação com a previdência e nada pagou à Segurança Social Portuguesa e recusa-se a satisfazer as suas obrigações contributivas em divida, encontrando-se a Segurança Social e as trabalhadoras patrimonialmente lesadas no correspetivo montante. Agiu deliberadamente e em obediência ao mesmo desígnio, com intenção de fazer sua e de integrar no respetivo património as quantias em dinheiro que não pagou de prestações de segurança social, com base em faltas inexistentes das trabalhadoras, por falsamente declaradas, não obstante saber que aquela quantia de 53.060,80€ não lhe pertencia e que atuava contra a vontade dos donos. Bem sabia que tinha o dever de entregar nos cofres da Segurança Social Portuguesa as quantias em dinheiro relativas às cotizações que não pagou, com fundamento em faltas inexistentes das suas trabalhadoras, pelo arguido declaradas. Agiu ainda livre e lucidamente, em nome e no interesse da sociedade, já extinta, a coberto de uma única resolução criminosa e com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei”. Por seu turno, dispõe o art. 106º do RGIT, sob a epígrafe “Fraude contra a Segurança Social”, que: “1- Constituem fraude contra a segurança social as condutas das entidades empregadoras, dos trabalhadores independentes e dos beneficiários que visem a não liquidação, entrega ou pagamento, total ou parcial, ou o recebimento indevido, total ou parcial, de prestações de segurança social com intenção de obter para si ou para outrem vantagem ilegítima de valor superior a (euro) 7500. 2-É aplicável à fraude contra a segurança social a pena prevista no n.º 1 do artigo 103.º, bem como o disposto nas respetivas alíneas. 3-É igualmente aplicável às condutas previstas no n.º 1 deste artigo o disposto no artigo 104.º 4- Para efeito deste artigo também se consideram prestação da segurança social os benefícios previstos na legislação da segurança social”. Resulta, pois, do referido preceito legal que constitui fraude à Segurança Social a ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à SS, visando a não liquidação, não entrega ou pagamento, total ou parcial, ou a obtenção indevida de prestações de segurança social, com intenção de obter vantagem patrimonial ilegítima de valor superior a €7500. Deste modo, a ação típica consiste numa conduta da entidade empregadora visando a sonegação/alteração de informação devida à Segurança Social com o intuito de: não liquidação; não entrega ou pagamento parcial; recebimento indevido, de determinada prestação daquele organismo. Já no que concerne ao elemento subjetivo trata-se de um crime doloso em que se exige um dolo específico, condizente com a intenção de obtenção de vantagem patrimonial ilegítima. No presente caso, afigura-se-nos que efetivamente a acusação pública não integra factualmente todos os elementos objetivos e, sobretudo, subjetivos exigidos pelo tipo legal em apreço. Com efeito, do seu exame critico depreende-se uma aparente divergência de conceitos, na medida em que refere expressamente que o citado arguido “…em obediência a esse mesmo desígnio apropriativo e, no decurso daquele período de tempo de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, e sem qualquer causa justificativa, no exercício do giro comercial da empresa, sediada neste município, desta comarca, apropriou-se da quantia global de 53.060,80€ (cinquenta e três mil e sessenta euros e oitenta cêntimos)”, e continua referindo “provenientes dos descontos relativos às cotizações de salários pagos aos trabalhadores que tinha a seu cargo”. Ora, no caso em análise e em correspondência com o início do procedimento criminal, encontra-se em investigação o cumprimento das obrigações da sociedade, da qual o arguido é o principal responsável, perante a Segurança Social, nomeadamente, no que respeita à não entrega de declarações de remuneração relativas aos subsídios de férias e de natal, para todos os trabalhadores, bem como, no que respeita à declaração de remunerações com registo muito inferior a 30 dias de trabalho por mês, decorrente da falsa comunicação de faltas das trabalhadoras e, em alguns casos, abaixo do valor do salário mínimo nacional, e sem a respetiva atualização anual no mês de janeiro de 2020, com o intuito de pagar um valor inferior de contribuições. Ou seja, o valor em dívida à SS. não decorre de qualquer desconto relativo às cotizações de salários pagos, nem somente da falsa participação de faltas dos trabalhadores, mas da conjugação de todas as referidas condutas, visando obter uma vantagem patrimonial indevida. Contudo, se é certo que, neste ponto em concreto, entendemos que tais factos poderiam ser integrados com recurso à faculdade ínsita no art. 303º, nº 1, do CPP, já o mesmo não será de ponderar quanto ao dolo concernente à conduta imputada. Na verdade, a este respeito para além de não estar em causa qualquer desígnio apropriativo – pois a conduta do arguido alegadamente visava o pagamento de um valor inferior de cotizações -, o dolo correspondente estaria necessariamente interligado a um propósito de obtenção de uma vantagem patrimonial indevida, assente no engano/ocultação de determinados factos à SS, com vista a uma liquidação das cotizações inferior à realidade. Por conseguinte, no vertente caso, a acusação pública não descreve essa factualidade mínima para se considerar como preenchidos todos os elementos do tipo legal em causa, pois destaca um sentido apropriativo que não é exigido e olvida a indispensável verificação de uma intenção de obter uma vantagem patrimonial correspondente à não liquidação, não só pelas faltas inexistentes das trabalhadoras, como também pelas restantes omissões respeitantes à totalidade dos créditos salariais e atualizações do salário mínimo, que verdadeiramente poderão consubstanciar a prática do aludido crime. Por fim, cabe salientar que, se o atual regime processual, em caso de alteração substancial dos factos, não possibilita a comunicação ao Ministério Público para que ele crie novo procedimento pelos novos factos, quando estes não são autonomizáveis em relação ao objeto do processo, por maior e reforçada razão, está vedada uma tal via para a situação a que os autos se reportam, atenta a jurisprudência fixada pelo AUJ nº 1/2015 (DR I de 2015-01-27): «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.», aplicável à instrução por força do estatuído no art. 309º do CPP. Conclui-se, portanto, considerando nula a acusação pública que antecede, por os factos nela descritos não constituírem o crime imputado ao arguido.
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Decisão: Nestes termos, atento ao estatuído no artigo 308º, nº 3, do CPP, decide-se julgar nula a acusação pública deduzida contra o identificado arguido e, consequentemente, determina-se o arquivamento dos autos. Sem custas- artigo 515º a contrario sensu CPP.
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B. ACUSAÇÃO PÚBLICA: Em processo comum e perante tribunal singular, o Ministério Público acusa: AA Porquanto: De janeiro de 2019 a janeiro de 2020, o arguido AA foi o único e exclusivo gerente, de facto e de direito, da “A... Lda.”, que teve sede neste concelho de Marco de Canaveses, desta comarca, o seu objeto social era relacionado com os têxteis, e, entretanto, foi declarada insolvente, em 19-05-2020 e tem a matrícula cancelada, desde 01/01/2021. Após verificaram os respetivos extratos de segurança social, aperceberam-se as denunciantes/trabalhadoras que, apesar de trabalharem diariamente, o arguido AA participou, falsamente, faltas junto da Segurança Social e assim, pagou menos contribuições, bem como justificou o pagamento de salários inferiores ao salário mínimo nacional. Assim, em obediência a esse mesmo desígnio apropriativo e, no decurso daquele período de tempo de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, e sem qualquer causa justificativa, o arguido, no exercício do giro comercial da empresa, sediada neste município, desta comarca, apropriou-se da quantia global de 53.060,80 € (cinquenta e três mil e sessenta euros e oitenta cêntimos) provenientes dos descontos relativos às cotizações de salários pagos aos trabalhadores que tinha a seu cargo, tudo melhor descrito nos mapas de apuramento remunerações de fls. 244 a 255, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos e que, de seguida, se transcreve: (…) Com efeito, em vez de o arguido entregar tal quantia à Segurança Social Portuguesa, como podia e devia, fê-la sua e integrou-a no respetivo património, locupletando-se à custa do património daquela entidade, com base em declarações falsas de faltas das suas trabalhadoras. Até à presente data, o arguido não regularizou a sua situação com a previdência e nada pagou à Segurança Social Portuguesa e recusa-se a satisfazer as suas obrigações contributivas em dívida, encontrando-se a Segurança Social e as trabalhadoras patrimonialmente lesadas no correspetivo montante. Agiu deliberadamente e em obediência ao mesmo desígnio, com intenção de fazer sua e de integrar no respetivo património as quantias em dinheiro que não pagou de prestações de segurança social, com base em faltas inexistentes das trabalhadoras, por falsamente declaradas, não obstante saber que aquela quantia de 53.060,80€ não lhe pertencia e que atuava contra a vontade dos donos. Bem sabia que tinha o dever de entregar nos cofres da Segurança Social Portuguesa as quantias em dinheiro relativas às cotizações que não pagou, com fundamento em faltas inexistentes das suas trabalhadoras, pelo arguido declaradas. Agiu ainda livre e lucidamente, em nome e no interesse da sociedade, já extinta, a coberto de uma única resolução criminosa e com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei. Pelo exposto, o arguido AA cometeu um crime de fraude contra a segurança social (qualificado pelo valor superior a 50.000 €), previsto e punido nas normas dos artigos 103º, n.º 1, 104º, nº 1 e 2, al. b) e 106º, n.º 1, todos da Lei n.º 15/2001 de 5 de junho (RGIT).
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C. REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO: (…) I - INTRODUÇÃO 1. Foi imputado ao arguido a prática de um crime de fraude contra a Segurança Social (qualificado pelo valor superior a EUR 50.000,00), p. e p., respectivamente, pelas disposições conjugadas dos artigos 103.°, n.° 1, 104.°, n.° 1 e 2, alínea b) e 106.°, n.° 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT). 2. A douta acusação do Ministério Público (MP) sustenta que o arguido fez seu o montante de €53.060,80 (cinquenta e três mil e sessenta euros e oitenta cêntimos), locupletando-se à custa do património da Segurança Social, com base em declarações falsas de faltas das suas trabalhadoras - cfr. a título de exemplo as páginas 29 e 30 do libelo acusatório. 3. Como se verá com mais detalhe infra, os factos constantes da acusação respeitantes aos meses de Janeiro a Novembro de 2019 são substancialmente diferentes dos daqueles que se referem a Dezembro de 2019 e 2020. 4. Com efeito, os factos alegadamente praticados pelo arguido em Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020 não se subsumem à previsão do tipo legal do crime de fraude contra a Segurança Social, o que há-de determinar a não submissão do arguido a julgamento pelos aludidos factos. 5. Independentemente do teor do despacho que venha a ser proferido quanto às questões enunciadas supra, o presente requerimento de abertura de instrução tem ainda como propósito obter a suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 281.° do CPP. 6. São estas, em síntese, as razões que determinam a presente abertura de instrução II - DA INEXISTÊNCIA DE CRIME DE FRAUDE À SEGURANÇA SOCIAL QUANTO AOS FACTOS REFERENTES A DEZEMBRO DE 2019 E JANEIRO DE 2020 7. O douto despacho de acusação (fls. 5) alude ao período de Janeiro de 2019 a Janeiro de 2020, sem atender - com o devido respeito - às evidentes diferenças entre Janeiro de 2019 a Novembro desse mesmo ano e Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020. Com efeito 8. Consta do libelo acusatório o seguinte: "(...) Após verificarem os respectivos extratos de segurança social. Aperceberam-se as denunciadas /trabalhadoras que, apesar de trabalharem diariamente, o arguido AA participou, falsamente, faltas junto da Segurança Social e assim, pagou menos contribuições, bem como justificou o pagamento de salários inferiores ao salário mínimo nacional." (destacados nossos) 9. A douta acusação prossegue no parágrafo seguinte, afirmando que: "Assim, em obediência a esse mesmo desígnio apropriativo e, no decurso daquele período de tempo de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, e sem qualquer causa justificativa, o arguido, no exercício do giro comercial da empresa, sediada neste município, desta comarca, apropriou-se da quantia global de 53.060,80€ (cinquenta e três mil e sessenta euros e oitenta cêntimos) provenientes dos descontos relativos às cotizações de salários pagos aos trabalhadores que tinha a seu cargo (...) " - fls. 5 da acusação, destacado no original. 10. E, pouco antes da qualificação jurídico-criminal dos factos alegadamente praticados pelo arguido, a douta acusação refere ainda que: "Com efeito, em vez de o arguido entregar tal quantia [EUR 53.060,80], como podia e devia, fê-la sua e integrou-a no respectivo património, locupletando-se à custa do património daquela entidade, com base em declarações falsas de faltas das suas trabalhadoras. (...)" - fls. 29 da acusação, destacado nosso. 11. Concluindo, por fim: " [Que o arguido] Agiu deliberadamente e em obediência ao mesmo desígnio, com intenção de fazer sua e de integrar no respectivo património as quantias em dinheiro que não pagou de prestações de prestações de segurança social, com base em faltas inexistentes das trabalhadoras, por falsamente declaradas, não obstante saber que aquela quantia de 53.060,80 € não lhe pertencia e que atuava contra a vontade dos donos. (...)" - fls. 30 da acusação, sublinhados nossos, destacado no original. 12. Da leitura atenta do despacho de acusação, em conjugação com os demais elementos do processo, resulta claro para o MP que a) no período de tempo de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, o arguido, no exercício do giro comercial da empresa, apropriou-se da quantia global de EUR 53.060,80 (cinquenta e três mil e sessenta euros e oitenta cêntimos) provenientes dos descontos relativos às cotizações de salários pátios aos trabalhadores que tinha a seu cargo; b) que o arguido não entregou a aludida quantia [EUR 53.060,80], como podia e devia, fê-la sua e integrou-a no respectivo património, locupletando-se à custa do património daquela entidade, com base cm declarações falsas de faltas das suas trabalhadoras; c) que o arguido com intenção de fazer sua e de integrar no respectivo património as quantias em dinheiro que não pagou de prestações de segurança social, com base em faltas inexistentes das trabalhadoras, por falsamente declaradas, não obstante saber que aquela quantia de 53.060,80 € não lhe pertencia e que actuava contra a vontade dos donos. 13. E é justamente neste ponto que se impõe fazer a distinção entre o lapso de tempo que mediou entre Janeiro de 2019 e Novembro de 2019, e os meses de Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020. Vejamos. 14. O "Quadro 1" [doravante Ql] foi elaborado a partir dos mapas de apuramento referentes aos meses de 2019 e Janeiro de 2020, constantes de fls. 244 a 255 dos autos, e apresentam os totais de remunerações, contribuições e quotizações no período de Janeiro a Novembro de 2019, bem como a discriminação daquelas categorias nos meses de Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020. 15. O aludido mapa de apuramento, nos meses de Janeiro a Novembro de 2019, corrigiu as remunerações devidas aos trabalhadores e não pagas por alegadamente terem sido comunicadas à Segurança Social faltas que não correspondiam à realidade. 16. Além de que é ainda corrigido o valor do salário mínimo nacional para o ano de 2020. 17. Como aludido, a evocação desta situação - que não será objecto do presente requerimento de abertura de instrução - visa estabelecer a diferença entre aquele período e os meses de Dezembro de 2019 e o Janeiro seguinte. 18. O Q1 apresenta uma perspectiva agregada que serve essencialmente para evidenciar que do total de contribuições e quotizações no valor de EUR 53.060,62, EUR 37.173,12 respeitam aos meses de Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020. Quadro 1 (…) 19. Reitera-se: são estes meses e valores em especifico que o arguido entende dever serem excluídos do crime de fraude à Segurança Social. Vejamos. 20. Importa ter presente, que a sociedade A... encerrou efectivamente no dia 30 de Janeiro de 2020 - cfr. relatório final, a fls. 41 dos autos - e veio a ser declarada insolvente em 19-05-2020 (conforme consta, aliás, da própria acusação). 21. Em sede inspectiva - Relatório Final (fls. 36 a 50 dos autos) -, o arguido referiu a) em média os trabalhadores deste sector faltam 3 dias por mês, o que aliás foi corroborado pela equipa inspectiva do ACT presente; b) se prontificava a repor a carreira contributiva de todos os trabalhadores (em 27 dias de trabalho mensal), além de pretender também registar na Segurança Social todos os créditos salariais e subsídios de férias e de Natal que se encontrassem em falta; c) explicou, contudo, que o trabalhador do escritório responsável por tal tarefa - Sr. BB - se encontrava de baixa por doença, pelo que tal tarefa poderia prolongar-se por semanas ou meses. Tendo em conta as diligências necessárias à regularização, tal tarefa a ser executada pelo arguido, sem o auxílio do trabalhador responsável por essa área, além de ter de continuar a exercer as suas funções habituais, sempre se revelaria hercúlea (cfr. fls. 41 dos autos). 22. Deste modo, considerando as explicações do arguido e a evidente urgência da efectivação da correcção, a equipa inspetiva da Unidade de Fiscalização do Norte do Instituto da Segurança Social, I.P. ali presente explicou que colaboraria na realização da tarefa de análises dos históricos de salários de todos os trabalhadores, cruzando os mesmos com as informações registadas no Sistema de Informação da Segurança Social e, consequentemente, determinaria as remunerações por declarar à Segurança Social (fls. 41 dos autos) - destacados nossos. 23. Para que não restem dúvidas, em face da situação de evidente urgência, que veio a culminar com o encerramento das instalações da sociedade A... em 30 de Janeiro de 2020, a Unidade de Fiscalização do Norte do Instituto da Segurança Social: a) colaborou na realização das tarefas de análise dos históricos de salários de todos os trabalhadores, realizando os pertinentes cruzamento de dados registados no Sistema de Informação da Segurança Social; e, em consequência b) determinou as remunerações por declarar à Segurança Social. 24. Através desse contacto, por iniciativa do arguido, foi agendada reunião para se iniciar o procedimento administrativo de regularização contributiva de todos os trabalhadores - cfr. fls. 41 dos autos. 25. Já posteriormente, em 06-02-2020, o arguido informou, além do mais, já ter entregado a Declaração de Remunerações relativa ao mês de Janeiro de 2020, tendo considerado, na elaboração da mesma, as faltas reais registadas naquele mês. Dezembro de 2019 26. Analisado o mês de Dezembro de 2019, cujo apuramento de valores resultaram da colaboração com a Unidade de Fiscalização do Norte do Instituto da Segurança Social, verifica-se que esta unidade assinalou os números de dias de falta que ultrapassavam os 3 dias mensais, atribuindo o valor de remuneração correspondente ao dia ou dias. 27. Em termos aritméticos, temos então que tais dias correspondem a uma remuneração total de EUR 800,00 (oitocentos euros), 28. o que corresponde a um montante de contribuições e quotizações de EUR 278,00 (duzentos e setenta e oito euros). 29. A despeito de a Unidade de Fiscalização considerar a média de 3 dias de falta por mês, o certo é que as faltas constantes da declaração correspondem a efectivas ausências ao trabalhado por parte dos trabalhadores assinalados. 30. Importa não olvidar que uma média corresponde à divisão de um determinado resultado pelo número de eventos; sendo que os resultados podem ser maiores ou menores do que a média. 31. Por ser da responsabilidade do arguido, pois era este quem tinha os registos de presença dos trabalhadores, além de não ter beneficiado da colaboração da Unidade de Fiscalização do Norte do Instituto da Segurança Social, o valor de EUR 278,00 não será "impugnado" pelo arguido. 32. Haverá ainda que levar em conta os proporcionais do subsídio de Natal, subsídio de férias e compensação pela cessação do contrato de trabalho da trabalhadora CC, os quais perfazem EUR 156,38 (cento e cinquenta e seis euros e trinta e oito cêntimo) - cfr. fls 244 dos autos. Janeiro de 2020 33. Do mesmo modo, as quantias constantes do mapa de apuramento de resultados classificados com o código "6", dizem respeito às correcções referentes ao novo salário mínimo determinado para o ano de 2020. 34. Tais correcções ascendem a EUR 1.079,73 (mil e setenta e nove euros e setenta e três cêntimos), 35. o que perfaz um montante de contribuições e quotizações de EUR 371,21 (trezentos e setenta e cinco euros e vinte e um cêntimos). 36. Pelos mesmos motivos indicados supra este valor deverá ser considerado. 37. O "Quadro 2" [doravante Q2] elucida o que vem de ser exposto: (…) 38. Temos então que o valor EUR 15.731,33 (quinze mil, setecentos e trinta e um euros) respeita às correcções de faltas no período entre Janeiro e Novembro de 2019 - cfr. subtotal total de P e "6". 39. Àqueles valores acrescem outros - imputáveis ao arguido - que ascendem à quantia de EUR 809,59 (oitocentos e nove euros e cinquenta e nove cêntimos) - cfr. subtotal de N, F e 2 de Janeiro a Novembro de 2019; e subtotal P e 6 de Dez/19 e Jan/20. 40. Daqui resulta, pois, a admissão de que o valor de EUR 16.540,91 (dezasseis mil, quinhentos e quarenta euros e noventa e um cêntimos) [€ 15.731,33 + € 278,00 + € 375,00] seja imputado ao arguido a título de ilícito contra a Segurança Social. Contudo, 41. se, e como aqui admite o arguido, é admissível que a aludida quantia global lhe seja imputada, 42. já o mesmo não se verifica quanto aos montantes referentes a subsídios de Natal e férias e de cessação do contrato de trabalho de Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020 - que não constituem a prática do crime de fraude contra a Segurança Social. Vejamos. 43. Como se descreveu supra - e resulta, aliás, de fls. 36 a 50 dos autos - a Unidade de Fiscalização do Norte do Instituto da Segurança Social colaborou na realização das tarefas de análise dos históricos de salários de todos os trabalhadores, realizando os pertinentes cruzamento de dados registados no Sistema de Informação da Segurança Social; 44. e determinou, em consequência, as remunerações por declarar à Segurança Social. 45. A consumação do tipo legal do crime de fraude contra a Segurança Social, previsto no artigo 106.°, n.° 1, do RGIT implica cumulativamente: 1. °) uma conduta da entidade empregadora; 2. °) visando a: i) não liquidação; ii) não entrega ou pagamento parcial; iii) recebimento indevido; de prestações da segurança social. 3. com a intenção de obter para si ou para outrem vantagem ilegítima de valor superior a EUR 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros). 46. Ora, a sociedade A..., como explicou o arguido e consta do Relatório Final, encontrava-se numa situação de extrema dificuldade financeira. 47. E tanto assim era que havia decidido encerrar o seu estabelecimento comercial em Agosto de 2020. 48. Contudo, devido à falta de trabalhadores essenciais à manutenção da actividade da sociedade, teve de encerrar de imediato em 30 de Janeiro de 2020 - cfr fls 41 dos autos. 49. Por outro lado, e salvo o devido respeito, que é muito, não corresponde à verdade 50. a) no período de tempo de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, o arguido, no exercício do giro comercial da empresa, apropriou-se da quantia global de EUR 53.060,80 (cinquenta e três mil e sessenta euros e oitenta cêntimos) provenientes dos descontos relativos às quotizações de salários pagos aos trabalhadores que tinha a seu cargo - fls. 5 do douto despacho de acusação. 51. Como é bom de ver - e ainda que se aceitasse a tese do MP - o valor de EUR 53.060,80 não provem dos descontos relativos às quotizações dos trabalhos, nem foram os mesmos apropriados pelo arguido. 52. De resto, se tal assim fosse, então não seria este o crime imputado ao arguido... 53. Por outro lado, o mapa de apuramento de remunerações demonstra com clareza que no período mencionado o total de quotizações perfaz o montante de EUR 16.796,23 (dezasseis mil, setecentos e noventa e seis euros e vinte e três cêntimos) - cfr. Ql. 54. Valor muito inferior ao montante total assacado ao arguido. Adiante. De igual modo é falso 55. b) que o arguido não tenha entregado a quantia em mérito, como podia e devia, e ainda que a fez sua e integrou-a no respectivo património, locupletando-se à custa do património Segurança Social, com base em declarações falsas de faltas das suas trabalhadoras - cfr. fls. 29 do libelo acusatório. 56. Por uma questão de economia processual, dá-se aqui por integralmente reproduzido o que se afirmou acerca da alínea a). 57. Com efeito, o recurso ao mapa de apuramentos de remunerações revela que nos meses de Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020 se encontram incluídos subsídios de Natal e de Férias, bem como remunerações referentes a férias pagas e não gozadas por cessação do contrato de trabalho - cfr. Q2. 58. Donde, o que os dados revelam é que o somatório dos valores com os código "P" e "6" no período em mérito cifra-se em EUR 15.731,33 (quinze mil, setecentos e trinta e um euros e trinta e três cêntimos) - cfr. Q2. 59. Ao que se somam as quantias de EUR 156,38; EUR 278,00; e EUR 375,00, nos termos supra explicitados, mas que em todo o caso não correspondem a declarações falsas de faltas das trabalhadoras do arguido. E, por último, não corresponde à verdade 60. c) que o arguido com intenção de fazer sua e de integrar no respectivo património as quantias em dinheiro que alegadamente não pagou de prestações de segurança social, com base em faltas inexistentes das trabalhadoras, por falsamente declaradas, não obstante saber que aquela quantia de 53.060,80€ não lhe pertencia e que actuava contra a vontade dos donos. 61. Por uma questão de economia processual, dá-se aqui por integramente reproduzido supra, em particular os argumentos esgrimidos ao abordar a alínea b) - a referida quantia não se reduz a prestações contributivas em falta com base em faltas inexistentes das trabalhadoras (cfr. mapa de apuramento de resultados) Acresce que 62. o douto despacho de acusação não revela quaisquer indícios de que o arguido pretendesse fazer sua a quantia de EUR 53.060,80, ou seja, tivesse a intenção de se locupletar daquele montante. 63. Com efeito, e no que se refere aos montantes de subsídios de Natal e férias e valores de cessação de contratos atinentes a Dezembro de 2019, o total de contribuições e quotizações ascende a EUR 15.951,51 (quinze mil, novecentos e cinquenta e um euros e cinquenta e um cêntimos). 64. Note-se, aliás, que o apuramento das remunerações e das respectivas prestações sociais foram realizados com a colaboração com a Unidade de Fiscalização. 65. Embora as declarações de rendimento tenham sido entregues, a A... não dispunha de dinheiro para poder cumprir as suas obrigações. Pelo que não pagou. 66. O certo é que daqui não resulta a intenção de o arguido obter a correspondente vantagem patrimonial. Aliás, vale questionar: que vantagem patrimonial obteve o arguido? 67. A douta acusação, embora reproduza a letra da lei, não apresenta provas ou meros indícios dessa mesma intenção de obtenção de vantagem patrimonial. 68. O que se expôs vale mutatis mutandis no que tange aos montantes de subsídios de Natal e férias e valores de cessação de contratos atinentes a Janeiro de 2020. 69. O arguido comunicou directamente com à Unidade de Fiscalização do Norte, em 6 de Fevereiro de 2020, que já procedera à entrega da Declarações relativas ao mês de janeiro de 2020, tendo em consideração, na elaboração da mesma, as faltas reais registadas naquele mês - cfr. fls 42 dos autos. 70. Seria de todo em todo improvável - considerando a experiência de vida em sociedade e a normalidade do acontecer - que o arguido comunicasse as suas acções à Unidade de Fiscalização que se encontrava, justamente, a fiscalizar a sociedade comercial e, por inerência, o arguido, se cogitasse sequer estar a ocultar, alterar factos ou valores não declarados que deveriam ser comunicados à Segurança Social. 71. Afigura-se notório, desde logo pelo teor do Relatório Final, que o arguido manteve uma postura colaborativa e de comunicação, tomando a iniciativa de comunicar com a Unidade de Fiscalização e mantendo-a informada das ocorrências na empresa, sendo a mais importante o encerramento prematuro da empresa - cfr. fls 36 a 50 dos autos. 72. Certo é que, também quanto ao mês de Janeiro de 2020, o comportamento do arguido é incoerente com o crime de fraude contra a Segurança Social que lhe é imputado. 73. Pelo contrário, o arguido não visou a não liquidação, porquanto procedeu à respectiva entrega das declarações de Remuneração; nem a não entrega ou pagamento parcial ou total das prestações de segurança social. 74. No período de Dezembro 2019 e Janeiro de 2020 não há prova de uma efectiva postura fraudulenta do arguido. 75. O que a realidade demonstra é que a empresa A... se encontrava sem dinheiro para pagar as remunerações - o que acabou por levar à denúncia com justa causa de diversas trabalhadoras, assim precipitando o encerramento das instalações da sociedade. 76. E posteriormente à insolvência da sociedade; cuja liquidação do património se revelou manifestamente insuficiente para pagar as dívidas à Segurança Social. 77. Por outro lado, o arguido - ou a sociedade - nunca tiveram acesso aos valores de contribuições e quotizações, o que vale por dizer que o arguido não mostrou, revelou ou sequer existem indícios de que tivesse a intenção de obter qualquer vantagem patrimonial ilícita. 78. Assim, e por todas as razões supra expostas, as contribuições e quotizações respeitantes aos subsídios de Natal e férias, bem como às compensações pela cessação dos contratos de trabalho de Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020, no valor total de EUR 36. 519,91 (trinta e seis mil, quinhentos e dezanove euros e noventa e um cêntimos), não consubstanciam a prática de um crime de fraude contra a Segurança Social qualificado (em razão do valor), nos termos do artigo 103.°, n.° 1, 104.°, n.° 1 e 2, alínea b) e 106.°, n.° 1 do RGIT. 79. O arguido, no que se refere a estes específicos factos, não praticou o crime que lhe é imputado - o que desde já se invoca para todos os legais efeitos. Vejamos então um resumo dos valores em causa, tendo em conta o já expendido. 80. De acordo com o Q3, cujos dados resultam do mapa de apuramento de remunerações constantes dos autos, o montante de EUR 36 519,91 (trinta e seis mil, quinhentos e dezanove euros e noventa e um cêntimos) não se subsume à norma do artigo do crime de fraude contra a Segurança Social qualificado (em razão do valor), nos termos do artigo 103.°, n.° 1, 104.°, n.° 1 e 2, alínea b) e 106.°, n.° 1 do RGIT. 81. Pelo que deverá, quanto a esta quantia, ser o arguido não pronunciado. Sem prejuízo do alegado em II e cumulativamente III - DO PEDIDO DE SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO 82. O artigo 281.°, n.° 1 do CPP admite a suspensão provisória do processo, por crimes puníveis com pensa de prisão não superior a 5 anos, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os pressupostos inventariados nas alíneas a) a f) do mesmo número. Crime punível com pensa de prisão não superior a 5 anos 83. Considerando o tipo legal imputado ao arguido, decorre do artigo 104.°, n.° 1, proémio, e n.° 2, alínea b), ex vi artigo 106.° do RGIT, a fraude contra a Segurança Social qualificada, nos termos da acusação, é punível com pena de prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares. 84. Pelo que o primeiro pressuposto de que depende a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo se verifica. Concordância do arguido e do assistente 85. Nos presentes autos não houve constituição de assistente por quem tivesse interesse legítimo para o efeito. 86. Por outro lado, o arguido declara, desde já, expressamente a concordância na suspensão provisória do processo, 87. bem como manifesta, desde já, a sua concordância a quaisquer injunções ou regras de conduta que venham a ser determinadas no âmbito da suspensão provisória. 88. Além de que declara expressamente a sua concordância em pagar o montante de prestações devidas à Segurança Social, sem prejuízo do alegado em II. Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza 89. Do certificado de registo criminal do arguido junto aos autos (cfr. fls. 275 dos autos) constata-se que não consta dos mesmos quaisquer condenações anteriores por crimes da mesma natureza. Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza 90. Em nenhum momento beneficiou o arguido da suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza do que ora lhe é imputado. 91. Mais precisamente: o arguido nunca beneficiou da aplicação do aludido instituto. Não haver lugar a medida de segurança de internamento 92. O crime em questão não prevê a aplicação de medida de segurança de internamento, mas antes a pena de prisão. 93. Pelo que também se encontra verificado em concreto o pressuposto de aplicação da suspensão provisória do processo. Ausência de um grau de culpa elevado 94. Dos autos não resultam factos que permitam concluir pela existência de um grau de culpa elevada. 95. A respeito deste requisito, aliás, importa atentar nas considerações de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE: "(...) A ocorrência de qualquer causa de atenuação especial da pena prevista no artigo 72. ° [ do CP] deve ser considerada um indício seguro de uma culpa que não é elevada." - cfr. Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.a edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, página 761. 96. A colaboração demonstrada pelo arguido ao longo de todo o processo de fiscalização, bem como em sede de inquérito, ilustra justamente a ausência de grau de culpa elevado. Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir 97. Desde o ano de 2019 até à presente data não consta do certificado do registo criminal de qualquer do arguido quaisquer condenações, ou existindo sequer a informação nos autos de que foi constituído arguido noutros processos de idêntica (ou diferente) natureza. 98. O arguido AA fará 69 anos no dia posterior ao da submissão do presente requerimento de abertura de instrução, é pensionista e encontra-se plenamente inserido socialmente, beneficiando ainda de um forte apoio familiar dos seus 3 filhos e netos. 99. Não resulta dos autos, e em particular da conduta do arguido, ou dos demais elementos, especiais exigências de prevenção - geral ou especial. 100. Donde se impõe concluir que o cumprimento das injunções e regras de conduta que venham a ser determinadas - juntamente com o pagamento das prestações devidas à segurança social doutamente impostas pelo Tribunal de Instrução - responde suficientemente às exigências de prevenção reclamadas pelo presente caso. 101. O instituto da suspensão provisória do processo é uma manifestação da diversão, informalidade, cooperação, celeridade processual e da oportunidade, princípios estes que assumem uma importância crescente no processo penal. 102. Sempre que possível deve evitar-se o uso do processo penal, pois a própria sujeição do arguido a um julgamento pode ter efeitos socialmente estigmatizantes, não obstante a presunção de inocência de que beneficia durante o julgamento (cfr. artigo 32.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa). 103. Por outro lado, a eventual aplicação de uma pena ao arguido (que se encontra totalmente inserido do ponto de vista social e familiar) pode ainda ter efeitos criminógenos. 104. Há ainda que considerar a importância deste instituto pelo papel que desempenha na pacificação social, privilegiando soluções de consenso em detrimento de um aprofundamento da conflituosidade social, sem que simultaneamente a confiança da Comunidade nas normas jurídicas violadas seja abalada ou sem que os bens jurídico-penais deixem de ser totalmente tutelados. Por todo o exposto
105. estão assim verificados em concreto os pressupostos de que depende a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, o que se requer para todos os efeitos legais. TERMOS EM QUE, - requer seja admitida a abertura da instrução e em consequência: 1) deve o arguido ser não pronunciado pelo crime de fraude contra a Segurança Social respeitantes aos factos praticados em Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020, a que corresponde o montante total de prestações de segurança social de EUR 36.519,91 (trinta e seis mil, quinhentos e dezanove euros e noventa e um cêntimos); Sem prescindir e cumulativamente 2) deve ser determinada a suspensão provisória do processo. E em consequência, deverá ser imposto ao arguido as correspondentes injunções e regras de conduta. (…)
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D. APRECIAÇÃO DO RECURSO:
Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.
No caso presente, o recurso coloca as questões seguintes: conhecimento da nulidade da acusação; violação do princípio do contraditório; suficiência da acusação. De notar que as razões de discordância enumeradas nas conclusões do recurso não integram outras matérias que suscitem a apreciação deste tribunal.
1. O recorrente manifesta discordância relativamente ao entendimento de que a nulidade conhecida no despacho recorrido não está dependente de arguição e invoca que tal nulidade não foi arguida, por isso, não podia dela conhecer o tribunal oficiosamente.
No despacho recorrido considera o Mmo Juiz de Instrução Criminal que, em sede de requerimento de abertura de instrução, o arguido coloca em causa a validade do libelo acusatório, no confronto entre a factualidade ali vertida e a previsão típica do citado ilícito criminal; além disso, face à alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º do Código de Processo Penal e a integrar matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal.
Vejamos.
Em face das normas legais aplicáveis considera-se que a nulidade da acusação pública não é de conhecimento oficioso, pelo que não se acompanha o entendimento expresso na decisão recorrida.
De harmonia com o disposto no artigo 118.º do Código Processo Penal, as nulidades processuais estão taxativamente previstas nos artigos 119.º e 120.º do mesmo código, salvo cominação expressa de outros preceitos legais.
As nulidades insanáveis encontram-se previstas no artigo 119.º do Código Processo Penal, além das que se encontrem estabelecidas em normas especiais que expressamente cominem com nulidade insanável (de que são exemplo as normas dos artigos 321.º, n.º 1, e 330.º, n.º 1, do Código Processo Penal). Estas nulidades são oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento até ao seu termo, ou seja, até ao trânsito em julgado da decisão final.
As demais nulidades processuais encontram-se sujeitas ao regime geral de arguição e sanação, previsto nos artigos 120.º e 121.º do Código Processo Penal, com ressalva da nulidade da sentença que está sujeita ao regime especial de arguição e conhecimento estatuído no artigo 379.º do Código Processo Penal[1].
A nulidade da acusação pública é cominada no artigo 283.º, n.º 3, do Código Processo Penal, porém, não decorre de tal norma que se trata de nulidade insanável, isto é, não indica a disposição legal que a nulidade é insanável. Além disso, também não integra o elenco previsto no artigo 119.º do Código Processo Penal, por isso, o respetivo conhecimento está sujeito ao regime legal de arguição e sanação previstos nos artigos 120.º e 121.º do Código Processo Penal[2].
No entanto, os fundamentos da nulidade da acusação previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 3, do artigo 283.º, do Código Processo Penal, são coincidentes com os fundamentos de rejeição da acusação, por manifestamente infundada, no âmbito do despacho judicial que inicia a fase do julgamento, nos termos consignados no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alíneas a), b) e c), do Código Processo Penal, sendo estas matérias de conhecimento oficioso do tribunal, por tal motivo tem sido considerado que está em causa uma invalidade atípica, dado que deve ser arguida mas também pode ser conhecida ex officio, no momento em que a acusação é recebida[3].
A norma do n.º 3, do artigo 311.º, do Código Processo Penal foi aditada pela Lei n.º 59/98, de 25-08, tendo motivado o entendimento jurisprudencial invocado no despacho recorrido, que considera a nulidade da acusação, nomeadamente por falta de narração de factos, de conhecimento oficioso, e, em decorrência, que pode ser conhecida a todo o tempo, enquanto a decisão final não transitar em julgado[4]. Todavia, trata-se, a nosso ver, de interpretação que o texto legal não consente, uma vez que a citada norma legal consagra regime especial de conhecimento de matérias que integram causa de nulidade de acusação, o qual não corresponde e não pode ser confundido com o regime das nulidades previsto no artigo 119.º do Código Processo Penal[5].
Assim, na fase da instrução o conhecimento de nulidade da acusação está dependente de arguição pelos interessados, estando vedado ao tribunal o seu conhecimento oficioso[6].
No caso presente, o Mmo Juiz a quo declarou a nulidade da acusação pública, com fundamento no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código Processo Penal, que preceitua a acusação contém, sob pena de nulidade: b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (…) incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Conforme decorre das considerações antecedentes, a omissão da descrição factual nos termos estabelecidos na norma legal citada acarreta a nulidade da acusação pública, porém, trata-se de nulidade sanável, pelo que o seu conhecimento estava dependente de arguição pelos interessados.
No caso vertente não foi arguida a nulidade da acusação, sendo certo que, diferentemente do que entendeu o Mmo Juiz de Instrução Criminal, o requerimento de abertura de instrução não coloca em causa a validade do libelo acusatório mas antes questiona a existência de elementos típicos do crime de fraude à Segurança Social, nomeadamente na vertente subjetiva, e também quanto aos factos referentes ao período de dezembro de 2019 e janeiro de 2020, o que não corresponde a arguição da mencionada nulidade.
Nestas circunstâncias, ao Mmo Juiz de Instrução Criminal estava vedado apreciar a nulidade da acusação, atento o disposto no n.º 3, do artigo 308.º, do Código Processo Penal.
De todo o modo, considera-se pertinente esclarecer que, a nosso ver, a omissão de narração de factos somente integra causa de nulidade da acusação, nos previstos no citado artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código Processo Penal, quando se trata de omissão total, ou seja, quando a acusação omite qualquer narração dos factos imputados. Situação diversa é aquela em que a descrição factual contém deficiências que comprometem o enquadramento jurídico dos factos de acordo com a incriminação constante da peça acusatória, neste caso está em causa não a validade mas a procedência da acusação. Pelo que, a existência de deficiência da acusação notada na fase da instrução, quando a omissão/deficiência factual não puder ser suprida através do mecanismo legal do artigo 303.º do Código Processo Penal, deve conduzir a despacho de não pronúncia fundado na improcedência da acusação[7] .
Por conseguinte, não pode manter-se o despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por nova decisão que cumpra o preceituado no artigo 308.º, do Código Processo Penal.
Procede, pois, quanto a este aspeto o recurso, resultando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
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III. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam a prolação de nova decisão, nos termos indicados supra.
Sem custas.
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Porto, 19/10/2022
Maria do Prazeres Silva
José António Rodrigues da Cunha
William Themudo Gilman
___________________________ [1] Vd. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, pág. 285. [2] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Processo Penal, 2.ª edição, págs. 744, 745; Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, pág. 116, trata-se nulidade sanável que deve ser arguida nos termos do artigo 120.º do Código Processo Penal (…) Não sendo sanada, pode ser arguida na instrução, dado que o juiz de instrução deve conhecer das nulidades no despacho de pronúncia ou não pronuncia (artigo 308.º, n.º 3); Cfr. Também, João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, págs. 1226-1227, onde alerta que a consideração da nulidade da acusação, entre outras, como insanável, esbarra com o teor da própria lei, afrontando o princípio da taxatividade e da legalidade das nulidades processuais penais; em sentido oposto Henriques Gaspar, Código Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª ed., pág. 349. [3] Vd. Neste sentido Maia Costa, Código Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª ed., pág. 951; João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, págs. 1163. [4] Vd. Acórdãos da Relação de Coimbra de 22-05-2013, proc. 368/07.8TALRA.C1, e de 28-11-2018, proc. 6/17.0IDCTB.C1, nos quais se refere: A propósito ensina Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., p. 207 a 208, face ao aditamento do nº 3 do artigo 311º do CPP operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no art. 283.º, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do Tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais. Sendo de conhecimento oficioso, pode ser conhecida a todo o tempo, isto é em qualquer fase do procedimento, com a ressalva enquanto a decisão final não transitar em julgado; Acórdão da Relação de Guimarães de 06-02-2017, proc. 149/15.5PBCHC.G1 (citado no despacho recorrido), onde se refere: (…) gera a nulidade da acusação particular nos termos do aludido artigo 283º, nulidade de conhecimento oficioso, porquanto, face ao aditamento do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais. [5] Vd. Maia Costa, ob. citada, pág. 951, (…) não constituem nulidades absolutas, porque não seguem o regime das nulidades previstas no art. 119.º: não são cognoscíveis a todo o tempo, nem obstam à reparação do ato, podendo a acusação ser reelaborada pelo Ministério Público. Vd. Também Acórdão da Relação de Évora de 10-12-2009, proc. 17/07.4GBORQ.E1, disponível em www.dgsi.pt, onde se coloca a questão de saber se depois de proferido o despacho do artigo 311.º, do Código Processo Penal, antes da abertura da audiência pode ser rejeitada a acusação; ainda que se trate de acórdão proferido em data anterior ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015 e em certa medida não coincidente com o sentido da jurisprudência neste Acórdão fixada, mantém atualidade ao referir: Não se encontrando prevista no art. 119º do CPP, a nulidade de acusação é sanável, (…) a rejeição da acusação com algum dos fundamentos enunciados no nº 3 daquele mesmo art. 311º, é decidida oficiosamente pelo juiz a quem o processo é distribuído, apenas no caso de o processo ser remetido para julgamento sem ter havido Instrução, constituindo aquela rejeição consequência específica, sui generis, dos vícios das als a), b) e c) do nº 3 do art. 283º do CPP quando conhecidos no despacho de saneamento e recebimento dos autos. [6] Vd. João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, pág. 1296, Será esse o caso [de despacho de não pronúncia] (…) da decisão que conheça da arguida nulidade desta mesma [acusação] por lhe minguar um dos requisitos previstos no artigo 283.º, n.º 3. Vd. Também, pág. 1297, A apreciação de nulidades e outras questões prévias ou incidentais implica, como diz a norma, que o JI delas “possa conhecer” o que remete, em especial, para o regime das nulidades sanáveis (artigo 120.º). [7] Vd. Acórdão da Relação de Lisboa de 01-10-2008, proc. 7383/2008-3; Acórdão da Relação do Porto de 27-06-2012, proc. 581/10.0GDSTS.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.