CONTRATO DE ARRENDAMENTO
NÃO PAGAMENTO DA RENDA
RESOLUÇÃO
COMPENSAÇÃO
OBRAS NO LOCADO
Sumário

I–Deve improceder o pedido de resolução de contrato de arrendamento para habitação, por falta de pagamento de rendas, reconhecendo-se à arrendatária a faculdade de compensar o valor que despendeu em obras no locado com essas rendas, ao abrigo do disposto nos arts. 1036º nº1 e 1074º nº3 e 4 do Código Civil (na redacção anterior à da L 13/2019 de 12-2), se se provou que:
a)-(i) em Setembro de 2016, os móveis da cozinha da fracção arrendada se encontravam podres (motivo pelo qual a arrendatária ficou sem local para arrumar os utensílios de cozinha, arrumando-os no chão), (ii) a chaminé da cozinha, na qual estava colocado o fogão, se encontrava a ceder e a desprender-se da parede (em risco de cair em cima de quem daí se aproximasse), (iii) a arrendatária começou a aquecer leite ou sopa num fogareiro, que colocou no corredor, (iv) as zonas da parede da cozinha onde passava a canalização se encontravam encharcadas com água, (v) a banca não podia ser utilizada sem risco de partir ou ceder;
b)-em Setembro de 2016, a arrendatária comunicou à senhoria a necessidade de realização de reparações urgentes no locado e a senhoria ali se deslocou, mas as partes não chegaram a qualquer acordo;
c)-a arrendatária aguardou cerca de um ano para proceder às obras (sem que a senhoria as tivesse levado a cabo);
d)-em Dezembro de 2017, a arrendatária comunicou à senhoria que havia executado as obras, conforme facturas que enviou, declarando que, a partir dessa data, o valor despendido seria descontado mensalmente nas rendas, até perfazer a totalidade daquele valor.

II–Não existe abuso de direito nesse comportamento da arrendatária, além do mais, porque não se provou que: (i) as obras tenham sido efectuadas sem aviso prévio ou enquanto decorriam negociações entre as partes, (ii) a senhoria estivesse convicta de que a arrendatária só faria as obras a expensas próprias depois de pedir uma fiscalização à Câmara, (iii) a degradação verificada ao nível da cozinha e da canalização tenha advindo de qualquer falta de zelo no uso ou de qualquer actuação imprudente por parte da arrendatária ou que esta não tenha avisado a senhoria, (iv) o valor das obras efectuadas seja desproporcionado em relação à renda.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO:


M intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra N…, pedindo que seja “declarada a resolução do contrato de arrendamento urbano existente entre a Autora e a Ré”, que seja “a Ré condenada a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser entregue à Autora, livre de pessoas e bens”, e que seja “a Ré condenada ao pagamento das rendas vencidas e vincendas até à efectiva desocupação do locado, acrescidas de juros de mora até ao cumprimento efectivo”.

Para tanto, alega que é a actual proprietária de determinado imóvel que foi dado de arrendamento à R. (pelos anteriores proprietários), sendo certo que esta deixou de pagar as respectivas rendas desde Dezembro de 2017.

A R. contestou, alegando que foi obrigada a fazer obras urgentes no locado, facto que foi oportunamente comunicado à A., encontrando-se o valor das rendas a ser compensado com o montante por si despendido naquelas obras. Por outro lado, pretende que, tendo a A. conhecimento de tal facto desde 6 de Dezembro de 2017, sempre teria caducado o direito desta à resolução do contrato. Pretende, ainda, ocorrer abuso de direito da A. ao pretender obter a resolução de um contrato de arrendamento celebrado em 1/7/1970, quando a R. tem vindo, ao longo dos tempos, a fazer, a expensas próprias, diversas obras de conservação e manutenção do locado. Conclui pela improcedência da acção.

A A. veio defender a improcedência das excepções suscitadas pela R., alegando que a acção foi proposta antes de se ter iniciado a contagem do prazo de caducidade, que não reconhece a necessidade das obras invocadas pela R., e que esta não avisou a A. previamente à realização dessas obras. Conclui que é a R., e não a A., quem litiga em abuso de direito.

Convidada a aperfeiçoar a contestação, veio a R. apresentar novo articulado, concretizando o estado do locado que justificou a necessidade de realização de obras urgentes, bem como os factos em que baseia o invocado abuso de direito, esclarecendo que a A. se recusou a fazer as obras, deixando a R. sem poder utilizar a cozinha, com a intenção de que a R. abandonasse a habitação.

A A. manteve o já alegado, pugnando pela improcedência daquelas excepções.

Tendo sido dispensada a realização de audiência prévia, o processo foi saneado e foi julgada improcedente a excepção de caducidade invocada pela R., após o que foram fixados o objecto do litígio e os temas da prova.

Realizou-se audiência final, tendo então sido proferida sentença, que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. dos pedidos.

Não se conformando com a sentença, dela recorreu a A., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
A.–A Autora, ora Apelante, veio intentar e fazer seguir, contra a Ré, ora Apelada, a presente Acão de Despejo.
Alega a Apelante vigorar entre as partes um contrato de arrendamento para habitação, celebrado verbalmente no ano de 1970, sendo que a partir do mês de dezembro de 2017 e até dezembro de 2018, deixou a Ré, ora Apelada, de proceder ao pagamento do montante da renda devida.
Com fundamento na referida omissão de pagamento da renda mensal, pede a Autora, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 1083º do Código Civil, que seja declarada a extinção, por resolução, do contrato de arrendamento para habitação vigente entre as aqui partes, que a Ré/Apelada seja condenada na entrega do prédio locado, livre e devoluto de pessoas e bens, e bem assim no montante de rendas vencidas e não pagas e nas vincendas até efetiva entrega do locado,
B.–A Apelada, contestando por exceção, para justificar a omissão no pagamento pontual da renda, invocou ter efetuado a compensação da despesa com a realização de obras no locado com a obrigação do pagamento das rendas, nos termos do nº 3 do artigo 1074.º, e 1036.º do citado Código.
C.O Tribunal a quo proferiu sentença, ora recorrida, julgou extintas, por compensação, as rendas cuja omissão de pagamento sustentam os pedidos da Apelante, e nos termos dos artigos 847.º e seguintes e 1074.º nºs 3 e 4, todos do Código Civil, julgou a ação improcedente e absolveu a Apelada dos pedidos.
D.Inconformada com decisão, ora recorrida, considera a Apelante que as normas que constituem fundamento jurídico da decisão, nomeadamente os nºs 3 e 4 do Artigo 1074.º, o Artigo 847.º e seguintes e o Artigo. 1036.º, todos do Código Civil, foram incorretamente interpretadas e aplicadas, pelo Tribunal a quo, à matéria de facto que resultou provada nos autos.

E, por outro lado,
E.Considera, também, que para a decisão a proferir nos presentes autos, o Tribunal a quo desconsiderou normas jurídicas, nomeadamente os artigos 1043.º , nº 1, 762, nº2 e 334.º, todos do Código Civil que, no entendimento da Apelante, determinam a improcedência da matéria de exceção deduzida pela Apelada.

Isto porque:
F.Enquanto decorriam negociações, entre as aqui partes, a Ré/Apelada, em junho de 2017, sem aviso prévio, optou por fazer obras no arrendado, a “expensas próprias”.
G.A Apelante estava convicta de que a Apelada, antes de proceder à realização das obras, cumpriria o que havia prometido na carta que remeteu com data de 13.12.2016, cuja parte final transcrevemos:
“… fica. V.Exª notificada para, urgentemente, no prazo máximo de um mês, proceder ou mandar proceder à realização das obras necessárias. Findo aquele prazo, solicitaremos a devida fiscalização à Câmara Municipal, e em última solução, poderá a minha patrocinada à realização das ditas obras“ … (o sublinhado é nosso).
H.Tendo a Ré/Apelada efetuado as obras sub iudice, de surpresa e sem pré-aviso, e sem que a Câmara Municipal tenha intervindo para, de forma independente, determinar as obras necessárias, contrariando o que havia comunicado por carta, não poderá aquele comportamento ser avaliado sem recurso à intervenção do princípio da boa-fé e da verificação do abuso do direito (arts. 762.º, n.º 2, e 334.º do CC).

Na verdade, a conduta da Ré/Apelada constitui um claro “venire contra factum proprium” e,

Por outro lado:
I.Importa referir que nunca a Apelada havia solicitado à Senhoria, ora Apelante, a realização de quaisquer obras de conservação. O estado de degradação de uma habitação ocorre de forma gradual pelo que não é credível que a necessidade de efetuar as reparações sub iudice, tão diversificadas fosse de tal modo inadiável que impedisse a intervenção da Câmara Municipal, tanto mais que o estado de conservação do arrendado, jamais obrigou a Ré/Apelada a abandonar aquela habitação. Conforme dispõem as alíneas d) e h) o art. 1038.º, do Código Civil, os locatários estão obrigados a não fazer uma utilização imprudente do arrendado e a avisar imediatamente o locador sempre que tenham conhecimento de vícios na coisa. Cabia à Apelada zelar pelo bom estado de conservação do locado e avisar a senhoria logo que surgissem os primeiros sinais de degradação do locado que necessitassem da intervenção da senhoria.
J.Sendo evidente que as reparações não eram inadiáveis, muito menos com a extensão e dimensão daquelas em apreço nos presentes autos, não tinha a Ré/Apelada o direito, nem qualquer fundamento para, unilateralmente, impor à Apelada o prazo de trinta dias para efetuar obras no arrendado. Não sendo aquele prazo oponível à senhoria, não estava a Apelante em mora quando a Apelada decidiu, realizar as obras.
Face ao exposto é forçoso concluir que as obras realizadas pela Apelada são ilícitas porquanto não foram previamente autorizadas pela Senhoria/Apelante.

Sem prescindir,
K.Atento o disposto no nº 5 do art. 1074.º do Código Civil, mesmo que se admita como mera hipótese de raciocínio e sem conceder, qualificar as obras sub iudice como benfeitorias, certo é que, apenas no final do contrato, poderia ocorrer a respetiva compensação.

Ainda sem prescindir,
Quando assim não se entenda,
L.Admitindo como mera hipótese de raciocínio, que as reparações sub iudice eram inadiáveis, sempre a Apelada estaria obrigada a ter comunicado à Apelada que iria dar início às mesmas, conforme impõe o nº 2, do artigo 1036.º do Código Civil. Tendo ficado provado que a Apelada, incumprindo a referida imposição legal, apenas no final das obras deu conhecimento à Senhoria/Apelante de que as tinha realizado, (cfr.Transcrição da Matéria de Facto dada como provada pelo Tribunal a quo – ponto 16), não poderia o Tribunal deixar de considerar as obras sub iudice como ilícitas, nem poderia, ter reconhecido à Ré/Apelada o direito de efetuar a compensação do crédito pelas despesas com a realização da obra com a obrigação de pagamento da renda.
NESSES TERMOS,
SE REQUER A ESSE VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO QUE REVOGUE A SENTENÇA PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE DECLARE IMPROCEDENTE A MATÉRIA DE EXCEPÇÃO DEDUZIDA PELA APELADA, E EM CONSEQUÊNCIA, COM BASE NA OMISSÃO DE PAGAMENTO DE RENDA DURANTE TODO O ANO DE 2018, JULGUE PROCEDENTES OS PEDIDOS FORMULADOS PELA AUTORA/APELANTE, E DECRETE A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO AO ABRIGO DO DISPOSTO NO Nº 3 DO ARTIGO 1083º DO CÓDIGO CIVIL, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA E ESPERADA JUSTIÇA!”

A R. apresentou contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso.

QUESTÕES A DECIDIR

Conforme resulta dos arts. 635º nº4 e 639º nº1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões [de facto e de direito] formuladas pela recorrente nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3º nº3 e 5º nº3 do Código de Processo Civil). Note-se que “as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa”. Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2022 – 7ª ed., págs. 134 a 142].

São, assim, as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- a existência de fundamento para a resolução do contrato de arrendamento;
- a (i)licitude das obras efectuadas pela arrendatária;
- a faculdade de compensação do crédito por obras com as rendas devidas;
- a existência de abuso de direito.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A decisão sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
1.-Encontra-se descrito sob o n.º …. da Conservatória do Registo Predial de Mafra, freguesia da Ericeira, a fracção autónoma “A” correspondente ao rés-do-chão o prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Travessa ….., Ericeira;
2.-Pela Ap. …., encontra-se inscrita na descrição referida em A. relativa à fracção autónoma “A”, a aquisição da propriedade favor da A. por partilha por óbito de C…., casado com D….;
3.-Por acordo verbal havido entre a R. e os à data proprietários da fracção referida em 2., que ocorreu em Julho de 1970, estes cederam àquela a sua a utilização para sua habitação;
4.-A cedência teve como contrapartida o pagamento pelos RR. de um valor que mensal que à data da propositura da presente ascende a 270,00€;
5.-À data referida em 3., a cozinha da fracção estava mobilada com móveis de madeira cobertos com pedra mármore;
6.-Em Setembro de 2016, os móveis da cozinha da fracção dos autos encontravam-se podres, motivo pelo qual a R. ficou sem local para arrumar os utensílios de cozinha, arrumando-os no chão;
7.-A chaminé da cozinha, na qual estava colocado o fogão, encontrava-se a ceder e a desprender-se da parede, em risco de cair em cima de quem daí se aproximasse;
8.-Razão pela qual a R. usava o fogão com menos frequência, sendo por vezes as refeições fornecidas pelos filhos;
9.-E começou a aquecer leite ou sopa num fogareiro, que colocou no corredor;
10.-As zonas da parede da cozinha onde passava a canalização encontravam-se encharcadas com água;
11.-O que determinou que a R. fechasse a água durante os períodos do dia em que não precisava de a usar;
12.-O lava loiça não podia ser utilizado sem risco de partir ou ceder;
13.-A R. não procedeu a entrega das quantias referentes às rendas devidas de Dezembro de 2017 a Dezembro de 2018;
14.-Por carta datada de 13.09.2016, remetida pela advogada da R. à A., e por este recebida, foi comunicado o seguinte, entre o demais que consta a fls. 21 verso dos autos: … Acontece que, actualmente, a habitação em causa está num grau de degradação tal, (nomeadamente Cozinha – bancadas e armários, que aliás caíram de podres, a canalização bem como a chaminé), e sendo a minha constituinte pessoa já idosa poderá colocá-la em perigo de acidente grave ou de vida, conforme fotografias que se juntam.
Assim torna-se urgente a realização de obras, nomeadamente na cozinha e ao nível das janelas e canalização.

Nestes termos, fica. V.Exª notificada para, urgentemente, no prazo máximo de um mês, proceder ou mandar proceder à realização das obras necessárias.

15.-Após a recepção da carta acima referida, a A. foi à fracção autónoma mas as partes não chegaram a acordo quanto à necessidade, dimensão e custo das obras ali referidas, tendo aquela oferecido à R. 7.000,00€ para esta deixar a fracção;
16.-Por carta datada de 04.12.2017, remetida pela advogada da R. à A., e por este recebida, foi comunicado o seguinte, entre o demais que consta a fls. 19 dos autos: … Após comunicação por carta registada de 13 de Setembro de 2016, e várias diligências e contactos…, inclusive visita ao locado, com o intuito de proceder à realização de obras , nomeadamente a reparação do mobiliário de cozinha que caiu de podre, bem como a respectiva canalização, não procedeu V.Exa. à obrigação que lhe cabia de assegurar à locatária o gozo do locado para o fim a que se destina, que é a habitação.
Foi-lhe dado inclusive, um prazo para efectuar as obras necessárias. V.Ex.ª, nunca quis resolver o problema.
Não podia a minha constituinte, viver naquela situação sem ter cozinha onde cozinhar e arrumar os respectivos utensílios.
Pelo que, foi a minha constituinte obrigada a fazer as mencionadas obras, a expensas próprias, que importaram como se justifica pelas cópias faz facturas juntas, o valor de 3.377,56€ (…).
Nos termos da lei, tem a minha constituinte tem direito a ser reembolsada das despesas realizadas.
Assim, a partir da presente notificação, o valor das rendas devidas serão descontadas mensalmente àquela importância até perfazer a mesma.
17.-Junto à carta acima referida, seguiram as facturas aí mencionadas;
18.-A R. realizou e pagou as obras a que aludia na carta referida em 15.”.

Por se tratar de matéria assente, por acordo, com relevância para a decisão, adita-se ainda ao ponto 13 a seguinte matéria provada, adiante sublinhada[1]:
13.-A R. não procedeu à entrega das quantias referentes às rendas devidas de Dezembro de 2017 a Dezembro de 2018, com excepção da entrega, em 7/12/2018, da quantia de € 132,44, para pagamento parcial da renda devida nesse mês, referente a Janeiro de 2019”.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Reportam-se os autos às consequências que a A. pretende fazer extrair do alegado incumprimento, por parte da R., de determinado contrato de arrendamento para habitação.
Pede, assim, a A. que seja declarada a resolução daquele contrato, que a R. seja condenada a entregar-lhe o locado livre de pessoas e bens (despejo), e ainda que seja condenada no pagamento das rendas vencidas e vincendas, até à efectiva desocupação do locado, acrescidas de juros de mora.
Funda a sua pretensão no facto de a R. ter deixado, entre Dezembro de 2017 e Dezembro de 2018, de proceder ao pagamento das rendas devidas.
Nos termos do art. 14º nº1 do NRAU, “a acção de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo”.
Por outro lado, de acordo com os arts. 1079º e 1083º nº1 e 3 do Código Civil, o arrendamento urbano cessa por resolução, que pode ser declarada, por qualquer das partes, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento da outra parte. Nessa conformidade, é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda.
Teria, assim, a A. de provar os factos constitutivos do direito que invoca (art. 342º nº1 do C.C.), ou seja, a celebração do contrato e o vencimento da obrigação, bem como de invocar a falta de pagamento da renda por tempo igual ou superior a três meses.
E, como resulta da matéria de facto provada, os anteriores proprietários do imóvel (actualmente pertença da A.), cederam, em Julho de 1970, verbalmente, à R., a utilização do mesmo, para habitação, tendo como contrapartida o pagamento de um valor mensal que, à data da propositura da acção, havia sido actualizado para € 270,00.
Está, deste modo, configurada a celebração de um contrato de arrendamento para habitação, tal como este vem definido nas disposições conjugadas dos arts. 1022º, 1023º, 1064º e 1067º do C.C., tendo a A. sucedido na posição dos senhorios, nos termos do art. 1057º, do mesmo diploma (no que, aliás, as partes estão de acordo).
Por outro lado, sendo o pagamento da renda uma das obrigações do locatário [art. 1038º a) do Código Civil], provou-se que a R. deixou de pagar à A. as rendas devidas entre Dezembro de 2017 e Dezembro de 2018 (com excepção de parte da renda vencida neste mês, referente a Janeiro de 2019).
Encontram-se, assim, preenchidos todos os pressupostos da resolução, pela A., do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de renda, prevista no citado art. 1083º nº3 do Código Civil.
Veio, no entanto, a R. invocar matéria excepcional em relação ao direito da A., a saber, o seu crédito decorrente de ter efectuado obras necessárias e urgentes no locado, no valor de € 3.377,56, facto que alega ter-lhe conferido o direito de descontar, mensalmente, tal valor no das rendas, até perfazer a importância do seu invocado crédito.
O tribunal a quo julgou a acção improcedente, por ter considerado encontrarem-se preenchidos os pressupostos da compensação de créditos, nos termos dos arts. 847º e ss., 1036º e 1074º nº3 e 4 do Código Civil.

Vejamos se é assim.
De acordo com o art. 1074º do Código Civil [versão em vigor à data das obras em causa nos autos]:
1-Cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário.
2-O arrendatário apenas pode executar quaisquer obras quando o contrato o faculte ou quando seja autorizado, por escrito, pelo senhorio.
3-Exceptuam-se do disposto no número anterior as situações previstas no artigo 1036.º, caso em que o arrendatário pode efectuar a compensação do crédito pelas despesas com a realização da obra com a obrigação de pagamento da renda.
4-O arrendatário que pretenda exercer o direito à compensação previsto no número anterior comunica essa intenção aquando do aviso da execução da obra e junta os comprovativos das despesas até à data do vencimento da renda seguinte.
5-Salvo estipulação em contrário, o arrendatário tem direito, no final do contrato, a compensação pelas obras licitamente feitas, nos termos aplicáveis às benfeitorias realizadas por possuidor de boa fé”.

Por seu turno, prevê o art. 1036º, do mesmo diploma, que:
1.Se o locador estiver em mora quanto à obrigação de fazer reparações ou outras despesas, e umas ou outras, pela sua urgência, se não compadecerem com as delongas do procedimento judicial, tem o locatário a possibilidade de fazê-las extrajudicialmente, com direito ao seu reembolso.
2.Quando a urgência não consinta qualquer dilação, o locatário pode fazer as reparações ou despesas, também com direito a reembolso, independentemente de mora do locador, contanto que o avise ao mesmo tempo”.
Resulta destes preceitos que cabe ao senhorio efectuar as obras de conservação ordinárias e extraordinárias do locado. Como referem José António de França Pitão e Gustavo França Pitão[2]“deve entender-se por obras de conservação ordinária (…):
a)-A reparação e limpeza geral do prédio e suas dependências;
b)-As obras impostas pela Administração Pública, nos termos da lei geral ou local aplicável, e que visem conferir ao prédio as características apresentadas aquando da concessão da licença de utilização;
c)-Em geral, as obras destinadas a manter o prédio nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração”.

Por obras de conservação extraordinária, deve entender-se as “ocasionadas por defeito de construção do prédio ou por caso fortuito ou de força maior”.
Esta obrigação do senhorio de realização de obras decorre directamente do dever que lhe cabe de assegurar ao locatário o gozo da coisa para os fins a que esta se destina –  art. 1031º b), do Código Civil[3].

Apesar de, como se disse, a execução das obras caber ao senhorio, resulta das mesmas normas que, em certas situações, o locatário pode levá-las a cabo:
1-Quando o contrato lho faculte (art. 1074º nº2);
2-Quando seja autorizado, por escrito, pelo senhorio (art. 1074º nº2);
3-Quando o locador estiver em mora quanto à obrigação de fazer reparações e estas, pela sua urgência, não se compadeçam com as delongas do procedimento judicial (arts. 1074º nº3 e 1036º nº1);
4-Quando, mesmo não existindo mora do locador, a urgência não consinta qualquer dilação (arts. 1074º nº3 e 1036º nº2).
No caso dos autos, a locatária procedeu, a expensas suas, a obras no locado, sem que tenha fundamentado tal faculdade em previsão contratual ou em autorização escrita da locadora (cfr. o citado art. 1074º nº2).
Resta-nos, pois, verificar se tais obras foram lícitas, à luz do art. 1074º nº3, com referência ao art. 1036º, do Código Civil.
Com interesse para a decisão, provou-se que: aquando da celebração do contrato de arrendamento, a cozinha da fracção estava mobilada com móveis de madeira cobertos com pedra mármore; em Setembro de 2016, os móveis da cozinha da fracção dos autos encontravam-se podres, motivo pelo qual a R. ficou sem local para arrumar os utensílios de cozinha, arrumando-os no chão; a chaminé da cozinha, na qual estava colocado o fogão, encontrava-se a ceder e a desprender-se da parede, em risco de cair em cima de quem daí se aproximasse, pelo que a R. usava o fogão com menos frequência, sendo por vezes as refeições fornecidas pelos filhos, e começou a aquecer leite ou sopa num fogareiro, que colocou no corredor; as zonas da parede da cozinha onde passava a canalização encontravam-se encharcadas com água, o que determinou que a R. fechasse a água durante os períodos do dia em que não precisava de a usar; a banca não podia ser utilizada sem risco de partir ou ceder. Enviou, então, a R. à A., em 13/9/2016, uma carta em que lhe comunicava ser urgente a realização de obras e concedendo-lhe, para tanto, o prazo máximo de um mês. A A. foi à fracção autónoma, mas não houve acordo entre A. e R. sobre a necessidade, dimensão e custo das obras. Por carta datada de 4/12/2017, a A. comunicou à R. que, não podendo viver sem cozinha, procedeu às obras a expensas próprias, no que despendeu € 3.377,56, conforme facturas que junta, sendo que, a partir dessa data, o valor das rendas seria descontado mensalmente, até perfazer aquele montante despendido.
Ora, dos factos supra transcritos podemos concluir que o locado, a partir de Setembro de 2016, deixou de cumprir cabalmente o fim de habitação a que se destinava, uma vez que a cozinha se encontrava inutilizável – armários podres, chaminé a desprender-se da parede e em risco de cair, banca em risco de partir ou ceder e paredes encharcadas com água –, sendo consabido que uma das vertentes essenciais da habitação inclui a possibilidade de confeccionar refeições em condições de segurança e salubridade.
Necessitava, pois, indubitavelmente, o locado de reparações ao nível da cozinha e da canalização, as quais, cabendo no conceito de obras de conservação ordinária (destinando-se a repor as condições que permitem que o prédio cumpra o fim de habitação do contrato), caberiam à A.. Esta, no entanto, apesar de lhe ter sido remetida uma carta em que foi alertada para a necessidade de realização de obras, e de ter visitado o locado, não as levou a cabo no prazo que lhe foi concedido (30 dias), pelo que é forçoso considerar que entrou em mora, decorrido que foi aquele prazo (cfr. art. 805º nº2 do Código Civil).

Por outro lado, temos, também, de concluir que a urgência[4] de realização das obras (destinadas a permitir que a arrendatária usufruísse de uma divisão essencial da sua habitação) não se compadecia com a demora de um procedimento  judicial – basta verificar que a presente acção foi intentada em Dezembro de 2018 e, volvidos mais de quatro anos, ainda não existe decisão transitada em julgado, não sendo, manifestamente, exigível à R. que vivesse, por mais de quatro anos, numa casa sem poder utilizar a cozinha (ou utilizando-a de uma forma extremamente precária, limitada e insalubre, sendo até obrigada a aquecer sopa ou leite num fogareiro no corredor, com grave perigo de incêndio).
Encontram-se, pois, preenchidos os pressupostos do art. 1036º nº1 do Código Civil, para que a R. tenha efectuado as obras a expensas suas, independentemente da autorização da A. e sem necessidade de efectuar qualquer comunicação de início de obras [sendo certo ainda que não se provou que tais obras tenham excedido as estritamente necessárias a repor o imóvel nas condições necessárias ao fim de habitação a que se destina].
Deste modo, a R. tinha direito ao reembolso do valor que despendeu nas obras, podendo efectuar a compensação desse crédito com a obrigação de pagamento da renda – cfr. os citados arts. 1036º nº1 e 1074º nº3 do Código Civil.

Por outro lado, a R. respeitou as formalidades necessárias a efectivar aquela compensação, previstas no nº4 daquele art. 1074º, porquanto comunicou à A. que havia executado as obras, conforme facturas que juntou, declarando que, a partir dessa data, o valor despendido seria descontado mensalmente nas rendas, até perfazer a totalidade daquele valor.

Considerando que a renda mensal devida pela R. era de € 270,00 e que o valor das obras efectuadas ascendeu a € 3.377,56, podia a R., nos termos do mencionado art. 1074º nº3 e 4, deixar de pagar, como deixou, as rendas relativas a 12 meses (num total de € 3.240,00) e parte (€ 137,56) da renda relativa ao 13º mês.

Note-se que, ao contrário do que defende a A., não é aqui aplicável o disposto no nº5, do art. 1074º, do Código Civil, porquanto este se refere à compensação pelas obras relativamente às quais não tenha sido exercida, pelo arrendatário, a faculdade prevista nos nº3 e 4, da mesma norma (o que não acontece no caso sub judice).

Provou, pois, a R., como lhe incumbia, facto extintivo do direito da A. (art. 342º nº2 do Código Civil), o que implica a improcedência dos pedidos formulados na acção.

É certo que, conforme resulta dos arts. 1º nº1 b) e 2º nº1 e 2 do DL 157/2006 de 8-8 (Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados – RJOPA, na versão em vigor à data), cabe ao senhorio efectuar as obras necessárias à manutenção do estado de conservação do prédio arrendado, nos termos do art. 1074º do Código Civil e, caso não as efectue, o município ou a entidade gestora da operação de reabilitação urbana podem intimá-lo à sua realização, bem como proceder à sua realização coerciva. Por outro lado, conforme dispõem os arts. 30º e 31º, do mesmo diploma, nos contratos de arrendamento anteriores à vigência do RAU, quando ao locado tenha sido atribuído nível de conservação mau ou péssimo, nos termos definidos em diploma próprio, o arrendatário também pode intimar o senhorio à realização das obras necessárias à obtenção de um nível médio ou superior. Se o senhorio, sendo a tal intimado pelo arrendatário, não iniciar as obras no prazo de seis meses, o arrendatário pode solicitar ao município competente a realização de obras coercivas ou tomar a iniciativa da sua realização, iniciativa essa que igualmente pode tomar se o senhorio, a tal instado pelo município, a elas não proceder dentro do prazo estabelecido. Nesse caso, o início das obras pelo arrendatário depende de prévia comunicação da sua intenção ao senhorio, com o mínimo de antecedência de um mês face ao início das obras, podendo o arrendatário compensar o montante despendido nestas com o valor da renda, mas mantendo o senhorio o direito de receber o valor correspondente a 50% da renda vigente (arts. 32º e 33º, do DL 157/2006).

Porém, o regime estabelecido neste diploma, visando, como resulta do respectivo preâmbulo, obviar ao problema da degradação dos prédios objecto de arrendamentos antigos e criar os instrumentos legais que possibilitem a efectiva reabilitação, permitindo ao arrendatário intervir quando o proprietário não possa ou não queira reabilitar o seu património, para uma sã vivência de todos os habitantes, constitui uma alternativa ao regime de obras que resulta da aplicação do Código Civil e, portanto, o recurso aos seus mecanismos constitui uma faculdade do arrendatário. Ou seja, perante a necessidade de realização de obras, o arrendatário pode, livremente, optar por recorrer ao regime do DL 157/2006 ou, consoante assim o entenda, ao regime que resulta da aplicação das normas do Código Civil, desde que estejam preenchidos os pressupostos destas.

Por outro lado, não é, também, de considerar no caso dos autos a aplicação do disposto no art. 1040º nº1 do Código Civil [que dispõe que “se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta, sem prejuízo do disposto na secção anterior”], no sentido de à R. não ser lícito deixar de pagar a totalidade da renda (mas apenas uma parte dela, na proporção da redução do gozo sofrida), porquanto esta norma constitui, igualmente, uma faculdade alternativa em relação à dos arts. 1036º e 1074º, do mesmo diploma (tal como, aliás, resulta da parte final daquele art. 1040º nº1). Ou seja, “recusando-se o senhorio a efectuar as obras devidas, cabem ao inquilino duas vias de tutela jurídica da sua posição de arrendatário com carência de obras para fruição do locado: (i) ou arrogar-se o direito de reduzir a renda proporcionalmente ao tempo da privação ou à extensão desta (Artigo 1040º, nº1, do Código Civil) ou (ii) realizar ele próprio as obras, desde que urgentes, podendo efetuar posteriormente a compensação do seu crédito pelas despesas com a realização das obras com a obrigação de pagamento das rendas (art. 1074º do Código Civil). O Artigo 1040º do Código Civil equivale a uma manifestação especial da exceção do contrato não cumprido, prevista nos artigos 428º a 431º do Código Civil” [aplicando-se quando o  locador se encontra em mora na sua obrigação de realização de obras, mas o inquilino não as realizou a expensas próprias], enquanto “a norma especial do Artigo 1074º do Código Civil afasta a aplicação do regime geral da compensação, facultando ao inquilino o direito de extinguir a sua obrigação de pagamento das rendas caso se adiante (e substitua ao senhorio) com a realização das obras”[5].

Como vimos, a R., tendo optado por exercer a faculdade que lhe era atribuída pelo art. 1074º nº3 e 4 do Código Civil, provou o preenchimento da hipótese legal desta norma, pelo que, ao contrário do que defende a A., não tinha de efectuar qualquer comunicação ao Município, nem de esperar por qualquer resposta ou iniciativa deste, nem de efectuar uma redução meramente parcial da renda paga.

Isto posto, temos que a A. pretende que a R. agiu em abuso de direito ao proceder à compensação do crédito por obras com as rendas.

Nos termos do art. 334º do C.C., “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Trata-se de uma cláusula geral, que constitui um limite normativo imanente ou interno dos direitos subjectivos – age em abuso de direito aquele que ultrapassa os limites normativo-jurídicos do direito particular que invoca. Esses limites são as regras éticas elementares, de carácter suprapositivo, que enformam o Direito (cfr. Baptista Machado, C.J., 1984, t. II, pág. 17, citando Castanheira Neves; e ainda Baptista Machado, Tutela da Confiança e venire contra factum proprium, in R.L.J., nº3725, pág. 231).

O abuso de direito foi consagrado no Código Civil segundo uma concepção objectiva – para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito, sem se indagar da intenção do agente (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª ed., pág. 516, cit. pelo Ac. STJ de 5-3-96, CJ STJ, ano IV, t. I, págs. 115 e ss.). A boa fé funciona aqui como um princípio normativo, pelo qual todos devem actuar, num quadro de honestidade, correcção, probidade e lealdade, de forma a não defraudar as legítimas expectativas e a confiança gerada nos outros (cfr. Cunha de Sá, in Abuso do Direito, págs. 171 e ss.).

Acontece que, tendo-se provado que a R. comunicou à A. a necessidade de reparações urgentes no locado, que a A. ali se deslocou, mas nada fez, que a R.  aguardou cerca de um ano para proceder às obras (sem que a A. o tivesse feito) e que os problemas de que padecia o locado impediam a R. de utilizar a cozinha (ou, pelo menos, de a utilizar em condições ditas normais e salubres – já que tinha de guardar os utensílios de cozinha no chão, a banca e a chaminé estavam em risco de cair e tinha de aquecer alimentos no corredor), não se vê que o comportamento da R., ao proceder às obras necessárias e ao descontar o seu valor no das rendas devidas, tenha violado quaisquer regras éticas (muito menos, elementares).

Com efeito, ao invés do que alega a A., não se provou que as obras tenham sido efectuadas sem aviso prévio (já que a R., na carta de 13/9/2016, expressamente refere que, em última solução, procederia à realização das obras, compensando o valor das mesmas nas respectivas rendas), nem que tais obras tenham sido feitas enquanto decorriam negociações entre as partes (pelo contrário, provou-se que as partes não chegaram a acordo – cfr. ponto 15 da matéria provada). Também não se provou que a R. estivesse convicta de que a A. só faria as obras a expensas próprias depois de pedir uma fiscalização à Câmara (nem se vê que tal convicção implicasse que a R. não pudesse efectuar as obras e a subsequente compensação, até porque a A. já tinha tido oportunidade de verificar por si própria o estado do locado, não carecendo, para tanto, de qualquer intervenção do município – cfr. ponto 15 da matéria provada). Não se provou, igualmente, que a degradação verificada ao nível da cozinha e da canalização tenha advindo de qualquer falta de zelo no uso ou de qualquer actuação imprudente por parte da R., ou que esta não tenha avisado a A. logo que constatou os sinais de degradação, pelo que não está configurada qualquer violação das obrigações ínsitas nos arts. 1038º d) e h) e 1043º nº1 do Código Civil, ou qualquer violação do princípio da boa fé a que alude o art. 762º, do mesmo diploma. Finalmente, não resulta da matéria provada sequer que o valor das obras efectuadas seja desproporcionado em relação à renda (no sentido de esta não permitir à senhoria recuperar, em tempo razoável, o capital necessário à realização daquelas), uma vez que, vigorando já o contrato de arrendamento há 48 anos (em relação à data da realização das obras), foi necessário o valor de apenas doze meses e meio de renda para repor as condições de habitabilidade do locado.

Em suma, não resulta dos factos provados que o comportamento da R. seja ético-juridicamente censurável e, portanto, não estão preenchidos os pressupostos do abuso de direito, razão pela qual improcede esta excepção e, com isso, tendo em consideração que a R. provou a extinção (por compensação) da obrigação de pagamento das rendas, não existe fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, nem para a condenação da R. no pagamento de quaisquer rendas, assim improcedendo todas as conclusões do recurso.

DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante – arts. 527º do Código de Processo Civil e 6º nº2, com referência à Tabela I-B, do Regulamento das Custas Processuais.


LISBOA,14/2/2023
Alexandra de Castro Rocha
Maria Amélia Ribeiro
Isabel Salgado



[1]O que se faz nos termos do art. 662º nº1 do Código de Processo Civil.
[2]Arrendamento Urbano Anotado, 2ª ed., pág. 290.
[3]Cfr. Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 9ª ed., pág. 76.
[4]Entendida esta como impossibilidade de utilização total ou parcial do locado – cfr. Ac. RP de 8/5/2017, proc. 3542/15, disponível em http://www.dgsi.pt.
[5]Cfr. Ac. RL de 28/3/2017, proc. 122/15, disponível em http://www.dgsi.pt, bem como Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II,
3ª ed., pág. 390.