CARTA DE CONDUÇÃO
ESTRANGEIRO
CADUCIDADE
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
Sumário

A atual redação do n.º 5 do artigo 125.º do Código da Estrada, conjugado com o disposto no n.º 8 do mesmo artigo demonstra ter o legislador afastado a tipicidade da conduta praticada pela arguida com referência ao artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, antes a subsumindo à contraordenação prevista no nº 8 do referido normativo, integrando a conduta da mesma, dessa forma, não a prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.º, nº1, da Lei 2/98, de 3 de janeiro, mas antes, a contraordenação prevista no n.º 7, do artigo 130.º do Código da Estrada.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., foi a arguida AA submetida a julgamento em Processo Sumário, tendo o Tribunal, por sentença de 29 de agosto de 2022, decidido:

a) Condenar a arguida AA, pela prática, como autora material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, n.º 1, do Dec. Lei nº 2/98, de 03-01 (em convolação do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, n.º 1, do Dec. Lei nº 2/98, de 03-01 porque vinha acusada), na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz a multa de 300€ (trezentos euros);

a) Condenar a arguida AA no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s, bem como, dos demais encargos legais, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário - art.º 513.º e 514.º do CPP, art. 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais.


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Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem como objeto a Sentença proferida no âmbito dos presentes autos, nos termos da qual o Tribunal a quo condenou a Recorrente pela prática, como autora material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de €. 300,00 (Trezentos Euros) de multa, acrescida de taxa de justiça e das custas com o processo.

II. Em suma, o Tribunal a quo considera que a circunstância de a Recorrente ser titular de uma carta de condução, validamente emitida pela República ..., caducada desde 15/07/2013, é, no presente caso, inócua para afastar a tipicidade do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.

III. Por outro lado, aderindo a uma tese restritiva, decidiu o Tribunal a quo que o regime de caducidade e de cancelamento, previsto no artigo 130.º, n.os 1 a 5, do CE, só se aplica aos títulos de condução emitidos pelo Estado Português, pelo que a coima cominada no n.º 7 do mesmo artigo é, também, privativa dessa categoria de títulos.

IV. Entende a Recorrente que, em face do Direito aplicável e da prova concretamente produzida, o Tribunal a quo não só procedeu a uma errada interpretação e aplicação das normas jurídicas concretamente aplicáveis, ignorando o valor das convenções internacionais a que o Estado português se encontra vinculado, como a uma errada apreciação da prova.

V. De acordo com o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, a consumação de um crime de condução sem habilitação legal depende da verificação dos seguintes elementos: (i) a condução de um veículo; (ii) em via pública ou equiparada, e; (iii) que o agente não esteja legalmente habilitado para conduzir.

VI. Neste sentido, só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito e o documento que titula a habilitação legal para conduzir motociclos designa-se carta de condução – cfr. artigo 121.º, n.os 1 e 4, do CE.

VII. O crime de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 janeiro, depende, ainda, de o seu agente ter atuado com dolo – cfr. artigos 13.º, n.º 1, e 14.º, n.º 1, do CP.

VIII. No presente caso, resultou provado que, no dia 12 de agosto de 2022, pelas 21 horas e 40 minutos, a Recorrente conduziu o ciclomotor, de matrícula ..-JL-.., na via pública, sendo portadora de uma carta de condução, validamente emitida pelas entidades competentes da República ... – cfr.artigo 125.º, n.º 1, alínea c), do CE.

IX. Quer Portugal, quer a República ..., fazem parte da CPLP e ambos subscreveram as Convenções Internacionais a que alude a alínea d), do n.º 1, do artigo 125.º, do CE.

X. Pelo que, a Carteira Nacional de Habilitação de que a Recorrente é titular, integra os títulos de condução previstos nas alíneas c), d) e e), do n.º 1, do artigo 125.º, do CE, cuja validade é expressamente reconhecida, como tal, pelo Estado português – cfr. Despacho n.º 10942/2000, publicado em Diário da República, Série II, em 27/05/2000.

XI. Assim, impunha-se ao Tribunal a quo aplicar à Recorrente o regime de caducidade e de cancelamento, legalmente consagrado no artigo 130.º, n.os 1 a 5, do CE.

XII. Não obstante as alterações introduzidas, o referido artigo 130.º do CE continua a não fazer qualquer distinção entre as cartas de conduções nacionais e os diversos os títulos de condução referidos nas diversas alíneas do artigo 125.º, n.º 1, do mesmo Código.

XIII. Pelo que, não cabe ao intérprete proceder a tal distinção, sob pena de, ao fazê-lo, estar a criar um crime onde ele não só não existe, como, no presente caso, é afastado por norma expressa (cfr. artigo 130.º, n.º 7, do CE).

XIV. Assim, ao afastar a aplicação do artigo 130.º do CE, o Tribunal a quo incorre numa interpretação das supra citadas normas que a Recorrente entende ser contra legem, por violar o princípio da legalidade, inscrito no artigo 29.º, n.º 1, da CRP.

XV. Na verdade, o artigo 130.º, n.º 7, do CE, é extensível ao título de condução brasileiro, do qual a Recorrente é titular, aplicando-se a este nos mesmos termos em que se aplica aos títulos de condução portugueses, uma vez que o mesmo não se encontra cancelado, revogado ou apreendido, podendo ainda ser renovado.

XVI. Por outro lado, verificando-se que o título de condução ora em apreço se encontra caducado há menos de 10 anos – cfr. artigo 130.º, n.º 3, alínea d), a conduta da Recorrente poderia, quando muito, consubstanciar a prática uma contraordenação estradal, nomeadamente, aquela a que alude o artigo 130.º, n.º 7, do CE – e não de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.

XVII. Entendimento que, aliás, tem vindo a ser adotado pela nossa mais recente jurisprudência – cfr. Acórdão do TRE de 25/05/2021, Processo n.º 135/20.3GCABF.E1 (Relator: Gomes de Sousa), Acórdão do TRE de 17/10/2017, Processo n.º 316/14.9GTABF.E1 (Relator: António Condesso), e Acórdão TRC de 15/05/2013, Processo n.º 50/11.1GTGRD.C1 (Relator: Belmiro Andrade), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

XVIII. Em relação ao elemento subjetivo, a sua verificação fica prejudicada pelo não preenchimento do elemento objetivo do tipo de ilício ora em apreço.

XIX. Assim, ao condenar a Recorrente pelo crime ora em apreço, o Tribunal a quo procedeu a uma errada interpretação e aplicação do artigos 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, dos artigos 3.º, n.º 1, 121.º, n.os 1 e 4, 122.º, n.º 1, 125.º, n.os 1, 5 e 6, 130.º, todos do CE, dos artigos 13.º, n.º 1, e 14.º, n.º 1, do CP, e do artigo 29.º, n.º 1, da CRP.

XX. Por outro lado, o Tribunal a quo procedeu, também, a uma errada apreciação da prova – concretamente, nos Pontos 1) e 2) dos Factos Provados.

XXI. Tendo-se provado que a Recorrente é titular de uma carta de condução, validamente emitida pela República ... – e internacionalmente reconhecida pela ordem jurídica portuguesa –, o Tribunal a quo deveria ter julgado e levados aos factos não provados que a Recorrente conduziu o referido ciclomotor «sem para tanto ser titular de carta de condução ou possuir documento que a habilite a conduzir aquele tipo de veículo» - e não aos factos provados, como o veio a fazer.

XXII. Assim, impunha-se ao Tribunal a quo a absolvição da Recorrente pelo crime de que vinha acusada (condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º n.º 1, do CE).

XXIII. Sem conceder, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo padece de lapsos materiais/de escrita, que carecem de ser corrigidos.

XXIV. Resulta do contrato de trabalho junto aos autos, que a entidade empregadora da Requerente é a empresa “E...”, e não a empresa “E1...”, como é erradamente referido no Ponto 8), dos FACTOS PROVADOS.

XXV. E, não obstante a alteração não substancial dos factos quanto à categoria de veículo em causa, operada em sede de audiência de julgamento pelo Tribunal a quo, no parágrafo 12.º, da MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO continua a constar que «[…] a mesma não tenha ficado ciente de que necessitava de título de condução para conduzir o referido motociclo em Portugal» - negrito e sublinhado nossos.

XXVI. Pelo que, deverá a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser retificada, naqueles concretos segmentos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 380.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do CPP.

XXVII. Finalmente, considerando que a Recorrente não tem antecedentes criminais pela prática de outros crimes, se encontra familiar, laboral e socialmente bem inserida e, ainda, que está a terminar o seu processo de legalização em Portugal, a manter-se a Sentença proferida pelo Tribunal a quo – o que por mera cautela de patrocínio se equaciona, sem conceder – sempre se diga a Recorrente está em condições de beneficiar da não transcrição da mesma nos certificados do registo criminal, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 10.º, n.º 6, e 3.º, n.º 1, da Lei nº 37/2015, de 5 de maio.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, por provado, e em consequência ser proferido Acórdão que determine a revogação da Sentença proferida pelo Tribunal a quo e a substitua por outra que absolva a Arguida do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, de que veio a ser acusada, nos termos e com os fundamentos supra expostos.

Caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se equaciona, sem conceder, sempre que diga que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo carece de ser retificada, por padecer de erros materiais/lapsos de escrita, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 380.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do CPP.

Devendo, ainda, a Requerente beneficiar da não transcrição da mesma nos certificados de registo criminal, por se verificarem os pressupostos a que aludem os artigos 10.º, n.º 6, e 3.º, n.º 1, da Lei nº 37/2015, de 5 de maio.

Assim fazendo V. Exas. a v/ habitual e necessária JUSTIÇA!


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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pugnando pela procedência do mesmo e formulando as seguintes conclusões:

1- o Ministério Público deduziu acusação em processos especial sumário, contra AA, em virtude de ter conduzido um ciclomotor com 49cm/k de cilindrada, no dia, 12.08.2022, pelas 21h40m, sem ser titular de carta de condução ou documento que a habilitasse a conduzir tal veículo.

2- Efetuado o julgamento, foi proferida sentença condenatória em de 29.08.2022, pela prática, como autora material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, n.º 1, do Dec. Lei nº 2/98, de 03-01, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz a multa de 300€ (trezentos euros).

3- Inconformada com a sentença, veio a arguida interpor recurso da mesma, por considerar era que a sentença proferida viola o princípio da legalidade ao afastar a aplicação do artigo 130.º do Código da Estrada, aos títulos de condução estrangeiros, que na perspetiva da recorrente, não se encontra caducado, revogado ou apreendido, podendo ainda ser renovado porquanto se encontra caducado, há menos de 10 anos e defende que, a arguida atuou sem dolo, concluindo que o Tribunal fez uma aplicação errada da lei, designadamente, dos artigos 3.º, n.1 e 4, 122.º, n.1, 125.º e 130.º do CE e do 13.º e 14.º do CP e bem assim do artigo 29.º da CRP.

4- Efetuado o julgamento foi possível apurar que a recorrente está há um ano em Portugal – conforme acta de julgamento, de dia 29.08.2022, pelas 14h e declarações que se encontram gravadas, pelo sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:27:31 horas e o seu termo pelas 14:48:35 horas, ao minuto 04:35 a 04:42 da gravação, ou seja, há mais de 185 dias e que era titular de carta de condução [carteira nacional de habilitação] emitida pelas entidades competentes da República ..., Ministério das Cidades, em 12.07.2010 e válida até 15.07.2013.

5- Importa considerar a Lei n.º 102-B/2020 de 9 de Dezembro, que alterou o Código da Estrada e legislação complementar transpondo a Diretiva (UE) 2020/612, o artigo 125.º do Código da Estrada e a norma constante do artigo 130.º do Código da Estrada.

6- E da sua leitura conjugada, extrai-se que, a alteração legislativa operada pela Lei n.º 102-B/2020, de 24 de agosto, pôs termo às divergências existentes na interpretação do que era considerado título cancelado e título caducado. Tais noções foram, substituídas pela ideia de título caducado por ter atingido o seu termo de validade, em que ainda é possível a sua revalidação, e do título caducado que atingido o seu termo, já não permite a revalidação.

7- No caso dos autos, o título de que era portadora a recorrente, encontrava-se caducado. Porém, sobre a data do termo da sua validade, não tinham ainda, à data dos fatos, decorridos dez anos.

8- Pelo que, pelo menos em teoria, era possível a sua “renovação”, artigo 130.º, n.3 alínea d) [a contrario] do Código da Estrada.

9- Desta forma, a conduta da recorrente integraria, não a prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.º da Lei 2/98, de 3 de janeiro, mas antes, a contraordenação prevista no número 7, do artigo 130.º do Código da Estrada. – conforme Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.03.2022, proferido no processo n.º 533/21.5PCLRS.L1-5 que teve por relatora a senhora Desembargadora, Dra. Sandra Pinto, Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 13.09.2022, proferido no processo n.º 20/22.4GDPTM.E1, que teve por relatora a senhora Desembargadora, Dra. Beatriz Borges e o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15.05.2013, proferido no processo n.º 50/11.1GTGRD.C1, que teve como relator o Senhor Desembargador Belmiro de Andrade.

10- Importa agora saber, se o citado artigo 130.º do Código da Estrada, se aplica, ou não, aos títulos estrangeiros, como o dos autos, ou, como muitos defendem, apenas se aplica a títulos portugueses.

11- Para dar resposta à questão colocada há que pedir ajuda ao artigo 9.º do Código Civil.

12- Com efeito, a carteira nacional de habilitação de que a Recorrente é titular, integra os títulos de condução previstos nas Convenções de Trânsito Rodoviário de 1949 e assim, é um dos títulos previstos na alínea d) do n.º1 do artigo 125.º do Código da Estrada.

13- E consta com sendo um título de condução.

14- Certo é que, no caso concreto, a lei não distingue – o mesmo será dizer, o Código da Estrada, não distingue -, não afastando a aplicação do disposto no artigo 130º aos títulos estrangeiros – bastando para chegar a tal conclusão, ler e atentar na inserção sistemática dos artigos 125.º e 130.º do Código da Estrada.

15- Ora, onde a lei não distingue, não deve o intérprete distinguir.

16- A este propósito, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, datado de 25.05.2021, proferido no processo n. 135/20.3GCABF.E1, e onde se pode ler que “(…)3- O nº 7 do artigo 130.º do Código da Estrada, na versão em vigor à data dos factos, e sob a epígrafe «Caducidade e cancelamento dos títulos de condução», estatui que “quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600” ao contrário do que ocorre com os títulos cancelados, revogados ou cassados que não beneficiam deste regime. Tal regime é extensível aos títulos emitidos pelos países membros da União Europeia, por Estado estrangeiro subscritor de qualquer das Convenções sobre circulação rodoviária (Genebra e Viena) e por Estado estrangeiro que tenha com Portugal Acordo de reciprocidade ou ao qual seja reconhecido um regime de reciprocidade. (…)”

17- E, mesmo para eventualidade de assim não se entender, dizendo-se que não se sabiam a circunstâncias em que tal título ainda poderia ser revalidado, por se tratar de carta estrangeira, então sempre se diga que, deveria o Tribunal ter tido o cuidado de aquilatar se era ainda possível ou, não, a revalidação da carta de que era portadora a recorrente, para só depois, poder chegar à conclusão, que em virtude de, a carta se encontrar caducada e não sendo já possível a sua revalidação, a recorrente ter incorrido na prática de um crime de condução sem habilitação legal.

18- Quanto ao demais alegado em sede de recurso, pela Recorrente, e cuja apreciação será inútil e ficará prejudicada acaso o recurso mereça acolhimento, diga-se apenas, e à cautela que, tendo já a arguida beneficiado da aplicação da suspensão provisória do processo, pela prática de crime de idêntica natureza, nunca poderia invocar que não existia dolo, e que por via disso não estava preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime. Não existe qualquer violação dos artigos 13.,º e 14.º do Código Penal.

19- O Ministério Público defende que a conduta da recorrente não integra a prática de qualquer crime, mas sim de uma contraordenação, prevista no artigo 130.º, n.7 do CE e que, desta forma, deveria de ter sido proferida uma decisão absolutória, ou, caso assim não se entenda, deveria o Tribunal, oficiar às autoridades competentes, a fim de aquilatar se a carta que a recorrente tinha na sua posse era ainda passível de ser revalidada, e só na eventualidade de não o ser, é que se poderia concluir, com suficiente grau de certeza que, a recorrente incorreu na prática de crime de condução sem habilitação legal.

Termos em que, concedendo provimento ao recurso, farão Vossas Excelências, como sempre, JUSTIÇA.


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No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.

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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice o recorrente limita o recurso à questão de saber se o “ (..) Tribunal a quo não só procedeu a uma errada interpretação e aplicação das normas jurídicas concretamente aplicáveis, ignorando o valor das convenções internacionais a que o Estado português se encontra vinculado, como a uma errada apreciação da prova.”


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Apreciando

A República ... e a República Portuguesa subscreveram a Convenção de Viena de 8 de Novembro de 1968, sobre circulação rodoviária.

A Lei n.º 102-B/2020 de 9 de Dezembro, alterou o Código da Estrada e legislação complementar transpondo a Diretiva (UE) 2020/612.

No seu preâmbulo pode ler-se “É também alterado o regime de trocas de títulos de condução estrangeiros por forma a reforçar a qualidade da análise da equivalência das categorias de habilitação, estabelecendo -se um regime diferenciado para os condutores do Grupo 1 e do Grupo 2, com aumento das exigências de verificação de conhecimentos e aptidões para a condução relativamente aos condutores que vão exercer a condução enquanto profissão ou atividade de risco. Nessa sequência, e porque se pretende manter relações institucionais de reciprocidade, mantêm -se os acordos bilaterais de reconhecimento e troca de títulos de condução estrangeiros já celebrados. São introduzidas alterações ao regime de caducidade dos títulos de condução, não só quanto às regras que permitem que condutores que deixaram caducar os seus títulos possam reavê-los, ainda que condicionados à realização de provas de exame ou à frequência de ação de formação, como também a previsão da caducidade definitiva dos títulos de condução nas situações tipificadas na lei.”

O artigo 2º do DL n.º 46/2022, de 12/07, alterou o artigo 125º do Código de Estrada (aprovado pelo DL nº114/94 de 3 de Maio).

Determina agora o referido artigo 125º sob a epigrafe de “outros títulos” que:

1 - Além da carta de condução são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:

a) Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de ...;

b) Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;

c) Títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas:

i) O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português;

ii) Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título;

iii) O titular tenha menos de 60 anos de idade;

d) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;

e) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que em condições de reciprocidade;

f) [Revogada.]

g) Licenças internacionais de condução, desde que apresentadas com o título nacional que as suporta;

h) Licenças especiais de condução;

i) Autorizações especiais de condução;

j) Licença de aprendizagem.

2 - A emissão das licenças e das autorizações especiais de condução bem como as condições em que os títulos estrangeiros habilitam a conduzir em território nacional são fixadas no RHLC.

3 - Os titulares das licenças referidas nas alíneas d), e) e g) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.

4 - Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.

5 - Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação, encontrando-se válidos e não apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.

6 - [Revogado.]

7 - [Revogado.]

8 - Quem infringir o disposto nos nºs 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.

Compulsados autos e com interesse para a decisão da causa importa realçar que:

- no dia 12 de agosto de 2022, pelas 21 horas e 40 minutos, a Recorrente conduziu o ciclomotor, de matrícula ..-JL-.., na via pública.

- A arguida possuí uma carta de condução emitida pelo ... emitida em 12-07-2010, cujo prazo de validade expirou em 15-07-2013.

- Quer Portugal, quer a República ..., fazem parte da CPLP e ambos subscreveram as Convenções Internacionais a que alude a alínea d), do n.º 1, do artigo 125.º, do CE.

- A Carteira Nacional de Habilitação de que a Recorrente é titular, integra os títulos de condução previstos nas alíneas c), d) e e), do n.º 1, do artigo 125.º, do CE, cuja validade é expressamente reconhecida, como tal, pelo Estado português – cfr. Despacho n.º 10942/2000, publicado em Diário da República, Série II, em 27/05/2000.

- A arguida nasceu em .../.../1978.

- À data dos factos a recorrente estava há um ano em Portugal – conforme acta de julgamento, de dia 29.08.2022, pelas 14h e declarações que se encontram gravadas, pelo sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:27:31 horas e o seu termo pelas 14:48:35 horas, ao minuto 04:35 a 04:42 da gravação, ou seja, há mais de 185 dias e que era titular de carta de condução [carteira nacional de habilitação] emitida pelas entidades competentes da República ..., Ministério das Cidades, em 12.07.2010 e válida até 15.07.2013.

Assim, e como bem referido pelo Ministério Públicp na resposta ao recurso “ 5- Importa considerar a Lei n.º 102-B/2020 de 9 de Dezembro, que alterou o Código da Estrada e legislação complementar transpondo a Diretiva (UE) 2020/612, o artigo 125.º do Código da Estrada e a norma constante do artigo 130.º do Código da Estrada.

6- E da sua leitura conjugada, extrai-se que, a alteração legislativa operada pela Lei n.º 102-B/2020, de 24 de agosto, pôs termo às divergências existentes na interpretação do que era considerado título cancelado e título caducado. Tais noções foram, substituídas pela ideia de título caducado por ter atingido o seu termo de validade, em que ainda é possível a sua revalidação, e do título caducado que atingido o seu termo, já não permite a revalidação.

7- No caso dos autos, o título de que era portadora a recorrente, encontrava-se caducado. Porém, sobre a data do termo da sua validade, não tinham ainda, à data dos fatos, decorridos dez anos.

8- Pelo que, pelo menos em teoria, era possível a sua “renovação”, artigo 130.º, n.3 alínea d) [a contrario] do Código da Estrada.

(…)

10- Importa agora saber, se o citado artigo 130.º do Código da Estrada, se aplica, ou não, aos títulos estrangeiros, como o dos autos, ou, como muitos defendem, apenas se aplica a títulos portugueses.

11- Para dar resposta à questão colocada há que pedir ajuda ao artigo 9.º do Código Civil.

12- Com efeito, a carteira nacional de habilitação de que a Recorrente é titular, integra os títulos de condução previstos nas Convenções de Trânsito Rodoviário de 1949 e assim, é um dos títulos previstos na alínea d) do n.º1 do artigo 125.º do Código da Estrada.

13- E consta com sendo um título de condução.

14- Certo é que, no caso concreto, a lei não distingue – o mesmo será dizer, o Código da Estrada, não distingue -, não afastando a aplicação do disposto no artigo 130º aos títulos estrangeiros – bastando para chegar a tal conclusão, ler e atentar na inserção sistemática dos artigos 125.º e 130.º do Código da Estrada.

15- Ora, onde a lei não distingue, não deve o intérprete distinguir.

16- A este propósito, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, datado de 25.05.2021, proferido no processo n. 135/20.3GCABF.E1, e onde se pode ler que “(…)3- O nº 7 do artigo 130.º do Código da Estrada, na versão em vigor à data dos factos, e sob a epígrafe «Caducidade e cancelamento dos títulos de condução», estatui que “quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600” ao contrário do que ocorre com os títulos cancelados, revogados ou cassados que não beneficiam deste regime. Tal regime é extensível aos títulos emitidos pelos países membros da União Europeia, por Estado estrangeiro subscritor de qualquer das Convenções sobre circulação rodoviária (Genebra e Viena) e por Estado estrangeiro que tenha com Portugal Acordo de reciprocidade ou ao qual seja reconhecido um regime de reciprocidade. (…)”.

Impunha-se, assim, ao Tribunal a quo aplicar à Recorrente o regime de caducidade e de cancelamento, legalmente consagrado no artigo 130.º, nºs 1 a 5, do CE, caindo-se na previsão do nº 8 do referido artigo 125º, (na redacção DL n.º 46/2022, de 12/07).

Com efeito, a arguida é titular de um título de condução emitido pela República ..., válido, mas caducado, pelo que a sua conduta configura uma contraordenação. (cfr., neste sentido Acórdão TRE de 17-10-2017, proc. 316/14.9 GTABF.E1, in www.dgsi.pt “I- O legislador distingue, no artigo 130.º do Código da Estrada, a caducidade e o cancelamento do título de condução. (…) II – Por isso que o titular de título de condução caducado, mas não cancelado, não incorre no crime de condução sem habilitação legal, mas antes na contra-ordenação prevista no artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada.” e Acórdão TRC de 15-05-2013, proc. 50/11.1GTGRD.C1, in www.dgsi.pt “ «Face à nova redação dada ao artigo 130º do Código da Estrada pelo Dec. Lei º 138/2012 de 05.07, conduzindo o arguido um veículo automóvel e sendo portador de uma carta de condução emitida pela República ..., caducada há menos de 5 anos, comete a contraordenação a que alude o nº 7 do referido preceito».

Em suma, a actual redação do nº 5 do artigo 125º do Código da Estrada, conjugado com o disposto no nº 8 do mesmo artigo demonstra ter o legislador afastado a tipicidade da conduta praticada pela arguida com referência ao artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, antes a subsumindo à contraordenação prevista no nº 8 do referido normativo,, integrando a conduta da mesma, dessa forma, não a prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.º, nº1, da Lei 2/98, de 3 de janeiro, mas antes, a contraordenação prevista no número 7, do artigo 130.º do Código da Estrada.


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Quanto à requerida correção dir-se-á, face ao supra decidido, que apenas se impõe proceder à mesma no que concerne ao requerido na conclusão XXIV. Assim, resultando do contrato de trabalho junto aos autos, que a entidade empregadora da Requerente é a empresa “E...”, e não a empresa “E1...”, como é erradamente referido no Ponto 8), dos FACTOS PROVADOS, onde se lê “E1...” passará a ler-se “E...”.

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E, no que concerne à requerida não transcrição da sentença no Registo Criminal, a apreciação da questão mostra-se prejudicada face ao supra decidido.

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Decisão

Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo a arguida.

- Proceder à correção da sentença nos termos supra expostos.

- Sem custas


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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 7 de fevereiro de 2023


Laura Goulart Maurício

J.F. Moreira das Neves

Maria Clara Figueiredo