I. No crime de condução sob o efeito de substâncias estupefacientes, psicotrópicas ou de efeito análogo, previsto no n.º 2, do artigo 292.º do CP, é necessária a “demonstração” de que o consumo daquelas substâncias impedia o agente de conduzir com segurança.
II. Essa prova deve ser efetuada preferencialmente através de perícia a realizar pelo IML que interprete os valores da amostra de sangue colhida.
III. Por regra, o juízo técnico e científico constante da prova pericial (artigo 163.º do CP) está subtraído à livre apreciação do Tribunal, sendo uma exceção ao artigo 127.º do CPP.
IV. De acordo com o perito do IML a presença de benzoilecgonina (metabolito da cocaína), numa concentração de 21 ng/mL, e a influência desse produto no corpo do condutor tornava-o incapaz de conduzir veículo a motor na via pública em condições de segurança.
V. O Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP) ao preterir a prova pericial, sem apoio em qualquer argumento de natureza científica, sendo irrelevante, por não fazer parte do tipo do crime, saber qual o lapso temporal existente entre o momento do consumo do estupefaciente e o do despiste do veículo ou o de apurar se o arguido teve ou não “culpa” no despiste sofrido.
2.1. Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP), em virtude da violação de regra sobre o valor de prova vinculada com base em juízo arbitrário de apreciação das conclusões periciais (artigo 163.º, n.ºs 1 e 2 do CPP);
2.2. Impugnação da matéria de facto por violação do artigo 410., n.º 2, alíneas b) e c) do CPP;
2.3. Erro de julgamento quanto ao direito aplicável (artigo 412.º, n.º 2 do CPP).
3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.
3.1.1. Factos provados na 1.ª Instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“1 - No dia 06 de Agosto de 2019, pelas 19h00, o arguido conduzia o motociclo de duas rodas, de matrícula ....GZB, da marca ..., modelo Z...0, na E.M...7, em ... ..., ..., neste Juízo Local de Competência Genérica.
2 - Por ter sido interveniente em acidente de viação, foi submetido ao exame de confirmação da presença de substâncias estupefacientes e psicotrópicas no sangue, realizado pela Delegação do Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal, revelando a presença no sangue de uma concentração <25 (inferior a vinte cinco) nanogramas de BENZOILECGONINA (metabolito da cocaína) por mililitro de sangue (ng/ml), substância que integra o grupo da cocaína.
3 – O arguido conduzia o indicado veículo na via pública depois de ter consumido substâncias estupefacientes – cocaína – durante a madrugada desse mesmo dia, numa festa.
4 – O arguido consumiu na mesma ocasião, e em simultâneo, álcool.
Mais se provou que
5 – O arguido é solteiro e não tem filhos.
6 – Vive com os seus pais e em casa destes.
7 – Tem o 9º ano de escolaridade.
8 – Frequenta programa ocupacional ministrado pela Câmara Municipal ..., auferindo uma remuneração mensal de 330 Euros.
9 - O arguido já foi condenado, por sentença transitada em julgado em 09/12/2019, pela prática, em 17/10/2019, de crime de injúria agravada, p. e p. pelos artºs. 181º e 184º do CP, na pena de 70 dias de multa.”
3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou que não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a presente causa nomeadamente que:
“Factos não Provados
10- que o arguido não estivesse em condições de conduzir o referido veículo em segurança por se encontrar sob a influência dos respectivos efeitos, o que admitiu e aceitou.
11- que agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por Lei.”.
3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma:
“O arguido não esteve presente na primeira das sessões de audiência. Assim, nesta primeira sessão foi ouvida a testemunha BB, militar da GNR, Esta testemunha descreveu as circunstâncias de modo, tempo e lugar que enformaram a sua intervenção no apuramento dos factos, designadamente a ocorrência de acidente de viação e no qual o arguido foi interveniente, o subsequente encaminhamento para hospital, a recolha de amostra e posterior envio da recolha para laboratório.
O arguido esteve presente na segunda das sessões e admitiu que consumiu cocaína e álcool umas horas antes da condução e que foi interveniente em acidente de viação.
O depoimento da testemunha e as declarações do arguido foram devidamente compaginadas com a análise do teor do relatório de exame pericial de Toxicologia Forense do INMLCF, de fls.7 e 8, bem como o relatório de resposta a quesitos do INMLCF, de fls. 22 e 23, e, ainda, os documentos de fls. 13 a 17 e auto de fls. 12.
Na concatenação do depoimento referido, das declarações do arguido e sua conjugação com os relatórios e documentos referidos, foram dados como provados os factos constante da Acusação e supra-vertidos sob os nºs. 1 a 4.
No que respeita aos factos atinentes às apuradas condições pessoais, familiares e económicas do arguido, valeram, no essencial, as suas próprias declarações e que o Tribunal entendeu reputar como credíveis.
No que respeita aos factos supra sob os nºs. 10 e 11, por assentarem em extensas considerações de direito, dão-se aqui por reproduzidas as considerações que infra se expenderão nesta matéria.
Foi, ainda, tido em conta o CRC junto aos autos.”.
3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma:
“Enquadramento Juridico - Penal
No respigo do libelo acusatório constata-se que ao arguido é imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de CONDUÇÃO DE VEÍCULO SOB A INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES OU SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS, p. e p. pelos artºs. 292.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
Vejamos.
Prevê o art.º 292º, nº 2, do Código Penal, o crime de “condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”, dispondo que nele incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.
Assim, são elementos integradores do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas:
a) a condução de veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada;
b) que o condutor se encontre sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica;
c) que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução; e
d) que o agente tenha atuado pelo menos com negligência.
Ou seja, não basta a presença de estupefaciente, substância psicotrópica ou produto com efeito análogo no corpo, sendo necessário que a mesma influencie e torne o condutor incapaz de conduzir com segurança, sendo este um facto a apurar.
À semelhança do que acontece com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez (previsto no nº 1 do mesmo art.º 292º do Código Penal), também o crime aqui em causa é de qualificar como crime de perigo, ou seja, é valorado o mero perigo de lesão de bens jurídicos, e abstrato porquanto é a própria ação em si que é considerada perigosa, atendendo à experiência comum, independentemente de na situação concreta se ter criado um perigo de violação de determinados bens jurídicos, como seja a vida, a integridade física ou os interesses patrimoniais de outrem.
Todavia, o crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas associa, de forma inelutável, a influência pelo consumo de estupefacientes à perturbação da aptidão para conduzir, pois a integração da conduta no tipo legal pressupõe que o agente não esteja “em condições de o fazer com segurança”.
Sendo assim, terá sempre que se demonstrar, em concreto, que a substância teve efeitos perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica. Tal está claro na «exposição de motivos» da Proposta de Lei nº 69/VIII (que levou à Lei nº 77/2001, de 13 de julho, que alterou o Código Penal, entre o mais o art.º 292º acrescentando o nº 2), onde é referido a propósito do crime agora em causa :
E… criminaliza-se a condução sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, por via do aditamento de um n.º 2 ao artigo 292.º do Código Penal. A fundamentação da iniciativa incriminadora é idêntica à subjacente ao crime de condução em estado de embriaguez previsto no n.º 1 do referido artigo, dado que em ambas as situações se pode presumir perigo para a segurança da circulação rodoviária. Este crime não se confunde com a contra ordenação prevista no Código da Estrada (alínea j) do artigo 147.º), nem com o crime de condução perigosa já previsto no artigo 291.º no Código Penal. Ao contrário do que sucede no âmbito do ilícito de mera ordenação social, ter-se-á de provar nesta nova incriminação que o agente não estava em condições de conduzir com segurança. Mas não será necessário provar a criação de um perigo concreto para bens jurídicos como a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado, assim se distinguindo tal incriminação do crime previsto no artigo 291.º, que é mais grave”. Em resumo, impõe-se que se demonstre que o agente se encontrava a conduzir veículo na via pública ou equiparada, influenciado pelo consumo de produtos estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo perturbador da aptidão física, mental ou psicológica, e se constate que o agente não estava em condições de exercer a condução com segurança. Por isso, se diz que este é também um tipo de crime de perigo abstracto-concreto.
Dissequemos, mais um pouco, as diferenças entre os nºs. 1 e 2 do artº. 292º do CP.
É indubitável que as substâncias estupefacientes, psicotrópicas ou análogas atuam sobre o cérebro e podem afetar a perceção, a cognição, a atenção, o equilíbrio, a coordenação e outras faculdades necessárias a uma condução segura. A propósito da influência do consumo de drogas na segurança da condução rodoviária, diz-nos o SICAD que todo e qualquer produto estupefaciente, independentemente do seu principio activo, afetam as áreas do cérebro que controlam os movimentos do corpo, o equilíbrio, a coordenação, a memória e o discernimento, assim como as emoções sensações e os sentimentos. Refira-se que a verificação da influência de estupefacientes, em termos de comprometer o exercício da condução, se faz de modo diverso do que está legalmente estabelecido para a condução sob influência do álcool. Nestes casos, a lei fixa uma dada taxa de álcool no sangue (TAS), que é de 1,2 g/l, com base na qual se infere objetivamente a influência dessa substância no comprometimento das capacidades motoras e intelectuais exigidas para uma condução segura. Mas o mesmo não sucede com as substâncias estupefacientes, psicotrópicas ou produtos de efeito análogo. E por boas razões, visto tratarem-se de substâncias com características diversas (veja-se o modo diferenciado como são tratadas na Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, que contém o Regulamento de Fiscalização da Condução sob influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas). Efetivamente, a ciência demonstra que a taxa de álcool do sangue, após algumas horas contadas da sua ingestão, decresce e logo se desvanece. Mas relativamente a uma boa parte das substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, os seus efeitos (perniciosos para a condução) duram algumas horas após o consumo; mas a sua presença no organismo mantém-se por vários dias, sendo detetável no sangue durante largo período de tempo (em certos casos mais de 20 dias).
Diz, por exemplo, o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, que “a quantidade de THC no sangue ou na saliva não está tão fortemente relacionada com a diminuição da capacidade de condução quanto a TAS está associada à diminuição da capacidade de condução devido ao efeito do álcool”. Conduzir um veículo na via pública com vestígios (mais ou menos elevados) de substâncias estupefacientes no sangue, apurados nos termos regulamentares, não é, pois, suficiente para o preenchimento do elemento objetivo do tipo de ilícito, pois torna-se necessário que aquela circunstância impeça o exercício da condução em segurança.
Conforme dispõe o § 5.º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio), “só pode ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação” (exame ao sangue). Estabelecendo-se depois na Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Agosto, a regulamentação do tipo de material a utilizar na determinação quer da TAS, quer da presença de substâncias psicotrópicas no sangue. E ali se refere, a propósito destas substâncias, que se “considera que o exame de confirmação é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas (…) capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor em segurança”. Donde, contrariamente ao que sucede com a Taxa de Álcool no Sangue, o exame toxicológico relativo às substâncias estupefacientes não pode servir para mais do que aquilo a que a lei o destina: indicar a presença dessas substâncias no sangue do examinado (rectius: a presença de vestígios dessas substâncias no sangue). Só ao juiz caberá, adicionalmente, aferir se o condutor não estava em condições de fazer uma condução segura. Para tanto devendo servir-se dos sinais colhidos no local e momento próprios (se o condutor cambaleava, se tinha as pupilas dilatadas, a respiração afogueada, se dava sinais de desnorte ou descontrolo, se fazia uma condução bizarra, grosseiramente imprudente, etc.). E só com o juízo positivo deste facto se julgará provado o facto correspetivo.
Nesta esteira, escreve-se no acórdão do TRE de 24.05.2016, que a prova de que o condutor se encontrava em estado de influenciado por substâncias psicotrópicas terá de ser feita por algum dos meios médico-periciais respetivamente previstos nos arts. 12.º e 13.º do Regulamento anexo à Lei n.º 18/2007 de 17/5, sendo admissível lançar mão do segundo apenas quando a produção do primeiro se mostrar inviável, mas a demonstração de que o mesmo não está em condições de conduzir com segurança operar-se-á mediante a consideração de todo acervo probatório, pericial ou não.
Assim, e por oposição ao seu nº 1 (relativo à condução sob o efeito de álcool) não basta, para o preenchimento do crime, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança. O exame médico / pericia visa assegurar que o condutor conduzia influenciado pelo consumo de estupefacientes, mas a valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.
No caso concreto, apelando ao acervo probatório supra, não há dúvida alguma que, por assente em prova pericial, o arguido conduzia apresentando substâncias psicotrópicas no sangue. A questão que se coloca, com deflui do até agora dito, é saber se esse consumo o impedia de exercer a condução de veículo em segurança.
Como já vimos, a insegurança na condução dependerá, além do mais, do circunstancialismo do caso concreto, não se podendo olvidar o comum conhecimento dos efeitos do produto estupefaciente ou substância psicotrópica sobre o organismo humano e a noção, consabida, da diminuição que o seu consumo significativamente provoca em determinadas funções e aptidões humanas, nomeadamente, as necessárias para o exercício da atividade da condução. Estamos, como se disse, perante um crime de perigo comum, contra a segurança das comunicações rodoviárias, que visa punir condutas que violem determinados bens jurídicos que necessitam de ser tutelados, face à dinâmica evolutiva da sociedade atual, nomeadamente, no que concerne aos avanços tecnológicos, suscetíveis de fazerem perigar o bem estar e segurança da comunidade em geral. Sendo as características de tais substâncias sobejamente conhecidas pela comunidade em geral, o agente que exerce a condução sob o efeito do consumo de estupefaciente ou substância psicotrópica, sabe que tal consumo lhe diminuirá tais aptidões, e que, por via disso, poderá potenciar a criação de resultados anómalos e danosos, nomeadamente a ocorrência de acidentes de viação, colocando em causa a segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, outros bens jurídicos penalmente tutelados, como a vida, a integridade física e o património de terceiros. Ora, se assim é, não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução. Essa exigência, de demonstração cirúrgica, de que o condutor tinha esta ou aquela função diminuída, em função do consumo daquele tipo de produto ou substância, só assim se podendo concluir que não podia conduzir com segurança, seria, na prática, quase irrealizável, ou pelo menos, faria recair a demonstração do crime naquilo a que comummente se denomina por prova diabólica. Não se fala aqui de estabelecer um qualquer nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de drogas no sangue e o acidente ocorrido, mas apenas de se consignar uma verdade que parece ser pouco discutível: a de que quem conduz influenciado sob o efeito de tais substâncias está a colocar em perigo, não só a sua vida e integridade física, mas também, a vida e a integridade física de todos aqueles com quem se cruza na estrada. Se assim não fosse seria incompreensível a inserção sistemática efetuada pelo legislador no que respeita ao crime em referência. Ora, se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar de perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve, ser logrado, com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a atividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.
Assim, assentamos que a prova da perturbação da condução por estar o agente sob a influência de estupefacientes, pode ser alcançada por outros meios que não a prova pericial, como seja pela prova testemunhal ou, ainda, pelas próprias declarações do arguido.
O arguido confirma, e a testemunha também, a ocorrência de acidente de viação. Porém, o arguido afirmou, ainda, que o consumo de produto estupefaciente, bem como álcool, se deu durante a madrugada e numa festa. E o acidente produziu-se pelas 19 horas. Logo, recordando tudo o que acima se disse, incluindo a dilação de tempo em que perdura a detecção da presença de produto estupefaciente no sangue, como lograr a prova de que o arguido não estava em condições de conduzir em segurança ?
Quid iuris quando a prova testemunhal não teve a percepção directa de que determinado arguido não estava em condições de exercer a condução com segurança ?
Terá que se recorrer à prova indireta. Isto é, com base em factos de que as testemunhas tiveram perceção e que têm uma ligação direta e precisa, segundo as regras da experiência comum, com esse facto (que se pretende demonstrar).
Na verdade, como é consabido, é possível em processo penal o recurso à denominada “prova indiciária”, a qual está ligada a factos que, não sendo representações dos factos a provar, permitem contudo afirmar, isoladamente ou em conjugação com outros meios de prova, com maior ou menor probabilidade, que os factos a provar existiram ou, ao invés, não existiram. Como se escreveu no Acórdão do STJ de 06.02.2014, na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica do juiz. A prova indiciária realizar-se-á, para tanto, através de três operações: em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento; a prova indiciária parte de um facto certo, conhecido, para por presunção se concluir outro, desconhecido, mas em relação causal com o indiciante. A lógica tratará de explicar o correto da inferência e será a mesma a outorgar à prova capacidade de convicção.
Assim, os indícios devem ser sujeitos a uma constante verificação que incida não só sobre a sua demonstração como também sobre a capacidade de fundamentar uma lógica dedutiva; devem ser independentes, firmes e concordantes entre si.
Requisito de ordem material é estarem os indícios completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência .
Discorrendo sobre este aspecto, ainda, o Ac. do STJ de 07.04.2011 refere que a avaliação dos indícios pelo juiz implica uma especial atenção que devem merecer os factos que concorrem em sentido oposto, os contraindícios também eles valorados livremente pois é da sua superação que podem impor-se como tal; o funcionamento do contra indício, ou do indício de teor negativo, tem como pressuposto básico a afirmação de uma regra de experiência que permita, perante um determinado facto, a afirmação de que está empobrecida a presunção de culpabilidade à luz das regras de experiência, concebidas como critérios generalizantes de inferência lógica e que permitem, de acordo com o que é usual ocorrer em casos semelhantes e extrair uma conclusão segura de que também assim deverá ser. Parte-se, pois, do pressuposto de que “em casos semelhantes existe um idêntico comportamento humano” (id quod plerumque accidit), e este relacionamento permite afirmar um facto histórico não com plena certeza mas, como uma possibilidade mais ou menos ampla.
A máxima da experiência é uma regra e, assim, não pertence ao mundo dos factos. Consequentemente, origina um juízo de probabilidade e não de certeza. Os indícios devem ser valorados conjuntamente com as demais provas e não isoladamente, desconexos; hão de ser graves, resistentes às objeções; e ter uma elevada carga de persuasividade, como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno, o indício é preciso quando não é suscetível de outras interpretações; o facto indiciante deve estar amplamente provado e, por fim devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão do facto indiciante, assim se convertendo o conhecimento provável, encoberto, em conhecimento límpido e firme à luz do dia.
Ora, a testemunha ouvida não conseguiu trazer elementos ou indícios que, por si só ou na sua conjugação, pudessem afirmar qual o tipo de condução exercida pelo arguido. Caso tivesse sido possível recolher tais dados, indícios, provavelmente seria de construir um quadro logico-factual a partir do qual se pudesse concluir, com a necessária segurança, pela falta de segurança na condução do arguido. E, assim sendo, até em homenagem ao principio “in dúbio pro reo”, nada se vislumbra que desaconselhe a credibilização das declarações do arguido relativamente ao momento e forma de consumo de produto estupefaciente.
Logo, os dados objectivos que temos são o consumo durante a madrugada e a produção de acidente pelas 19 horas.
Sabemos, e ainda durante a audiência foram pedidos esclarecimentos à perícia efectuada, que a consumo de produto estupefaciente é causal da diminuição de condução em condições de segurança. Mas o que tais esclarecimentos não permitem é concluir que o acidente se deu devida à diminuição de tais condições, mormente considerando o lapso temporal entre o momento do consumo e o momento de produção de acidente.
Não é, assim, possível concluir / demonstrar, ainda que com recurso a prova indiciária, que a condução do arguido, no momento em que se produziu o acidente, se fazia em condições de segurança diminuídas em função de consumo de produto estupefaciente. De outro modo, não resultam preenchidos todos os elementos constitutivos do tipo de ilícito em causa, pelo que o arguido deve ser absolvido da imputada prática criminal. (…)”.
3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público
O arguido AA foi absolvido em 1.ª instância da prática de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 2 e 69.º, alínea a) do CP.
O MP inconformado com a decisão interpôs recurso e pugnou pela anulação do julgamento e pela prolação de nova decisão na qual fosse reconhecido o valor dos juízos científicos plasmados nos dois relatórios periciais, que na sua ótica se encontram subtraídos à livre apreciação do julgador. Em consequência requereu fossem dados como provados os factos descritos na sentença recorrida conduzidos aos não provados sob os pontos 10. e 11.. Termina pedindo seja o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, alínea a) do CP, de que vinha acusado.
Cumpre, agora, conhecer as questões suscitadas pelo MP e também anteriormente assinaladas em II. ponto 2. deste Acórdão, começando, todavia, por enquadrar legalmente o regime aplicável ao crime imputado ao arguido.
3.2.1. Enquadramento legal do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas
Estabelece o artigo 292.º do CP sob a epígrafe “Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”:
“1 - Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.”.
Este crime é de perigo comum abstrato, embora Silva Dias[2] assinale, desde logo, uma diferença entre os seus n.ºs 1 e 2. No n.º 1 o crime de perigo é presumido e não admite a prova em contrário, enquanto no n.º 2 admite essa prova em contrário
Por outras palavras: Na condução em estado de embriaguez a lei no seu n.º 1 fixa a concreta taxa de álcool no sangue (TAS) a partir da qual se infere objetivamente quando a influência dessa substância compromete de tal forma as capacidades motoras e intelectuais de uma condução segura ao ponto de ser punida criminalmente[3], ou seja, a TAS de 1,2 gramas de álcool por litro no sangue.
Já na condução sob o efeito de substâncias estupefacientes, psicotrópicas ou de efeito análogo, prevista no n.º 2, o legislador penal optou por não indicar a taxa a partir da qual a condução deve ser sancionada criminalmente. Sem prejuízo, do referido, cumpre salientar que a nível contraordenacional basta a deteção no sangue de psicotrópicos, independentemente da prova do comprometimento de uma condução segura[4] [5].
Esta opção legislativa de não determinar concretamente a taxa comprometedora das capacidades motoras e intelectuais de uma condução segura encontra fundamento na diversidade de características de cada uma das substâncias psicotrópicas[6] (ex: canabinóides, cocaína e seus metabolitos, opiáceos, anfetaminas e derivados) – cf. artigo 8.º da Lei 18/2007 de 17 de maio.
Acresce que a taxa de álcool no sangue, após algumas horas contadas da sua ingestão, decresce e dissipa-se de seguida, enquanto várias das substâncias psicotrópicas mantém-se algumas horas após o consumo permanecendo no organismo por vários dias.
Assim, em relação à ingestão de álcool o cometimento do crime depende tão só do facto de o condutor conduzir com uma taxa igual ou superior a 1,2 g/l, enquanto na toma de estupefacientes para além de o condutor ter de acusar o consumo através de um exame ao sangue tem de ser alegado e provado que aquele tinha a sua capacidade de exercício de condução diminuída devido ao consumo de psicotrópicos.
Tal como alguém que conduza com uma taxa de álcool no sangue de 0,3 g/l, não é punido contraordenacionalmente ou penalmente, pode acontecer um automobilista acusar uma presença mínima no sangue de uma substância psicotrópica (por exemplo por ter estado junto de um fumador de haxixe), mas essa quantidade não ter influência negativa na condução que reclame punição penal.
Face aos inúmeros tipos de substâncias psicotrópicas o julgador terá de apreciar caso a caso se essa taxa de psicotrópicos no sangue é ou não suscetível de criar um risco acrescido de uma condução censurável criminalmente.
Como deve, então, ser realizada essa prova de que o condutor, em consequência da ingestão dos produtos estupefacientes ou das substâncias psicotrópicas, não estava em condições de conduzir com segurança?
Alguma Jurisprudência[7] salientou ser imprescindível a realização do “exame médico” aludido no anexo VII da Portaria 902-B/07 de 13.8..
Não se deve, todavia, confundir o resultado obtido através do “exame médico” (observação do condutor por um médico, por não te sido possível colher sangue) com o “exame de rastreio” (amostras de saliva, suor, urina ou sangue) ou com o “exame de confirmação” (sangue), exames esses previstos na Lei 18/2007 e na Portaria 902-B/2007, para onde remete o artigo 81.º, n.º 5 do Código da Estrada[8].
Conforme estabelece o artigo 10.º da Lei 18/2007 a deteção de substâncias psicotrópicas pode incluir um “exame prévio de rastreio” (despistagem), que serve apenas para indiciar a presença de substâncias psicotrópicas (artigo 11.º, n.º 1). Se o resultado deste teste rápido for positivo o IML realiza em seguida um “exame de confirmação”, com base numa amostra de sangue, como definido na Portaria de Regulamentação n.º 902-B/2007.
Como se assinala no Acórdão desta RE de 10.11.2020[9]:
“A realização do teste de despistagem tem a ver com a economia de meios (porque seria impraticável a realização do teste quantitativo em todas as pessoa fiscalizadas) sendo ceto que o resultado positivo não serve de prova para a acusação em processo penal. Porém, a realização directa de análises sanguíneas (…) não representa nenhuma nulidade de prova (…) apenas significando que se salta a fase da despistagem passando-se diretamente ao exame pericial, que identificará o estupefaciente em concreto e o seu nível de concentração.”.
Pode, assim, acontecer que o condutor não seja submetido a “exame de rastreio” (este é facultativo), muitas vezes porque tendo sido interveniente em acidente de viação não estará em condições de o ser, sendo conduzido diretamente ao hospital onde é sujeito a “exame de confirmação” com colheita de sangue. Sendo positivo o resultado deste último exame quanto à presença de qualquer substância psicotrópica, prevista no quadro 1 do anexo V da Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto, servirá para efeitos de prova em processo penal. Exigiu o legislador este exame com colheita de sangue, mesmo quando tenha sido realizado exame positivo de despiste (“exame de rastreio”) devido naturalmente à fiabilidade e objetividade conferida pela análise sanguínea, por oposição às demais (teste rápido ao sangue, à urina, à saliva e ao suor).
Para efeitos criminais a prova da influência do consumo de estupefacientes tem, pois, de resultar do “exame de confirmação” (recolha de sangue) ou, quando não seja possível realizar esse teste (caso de frustração da tentativa de colheita de uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do “exame de confirmação”) de um “exame médico” (cf. artigo 12.º, n.º 5 e 13.º da Lei 18/2007). Este “exame médico” naturalmente, só é realizado depois de o condutor se sujeitar a um teste rápido de rastreio positivo (sangue, suor, urina, saliva – cf. artigo 11.º da Lei 18/2007 de 17.5) e é por força do nº 3 do artigo 13.º da Lei 18/2007 equiparado, para todos os efeitos legais, à obtenção de resultado positivo no “exame de confirmação” (sangue).
Depois, ainda, para os fins penais, é necessária a demonstração de que o consumo impedia o agente de conduzir com segurança. Essa prova deve ser realizada preferencialmente com base numa perícia que interprete os valores da amostra de sangue colhida.
A demonstração dessa falta de condições para o condutor conduzir também pode ser realizada através do apontado “exame médico” (artigo 13.º da Lei 18/2007) ponderado com o resultado do teste rápido, em articulação com a quantidade e tipo de estupefaciente.
Já saber se as imagens captadas por câmaras de vigilância ou de depoimentos de testemunhas atestando ter ocorrido uma condução imprudente (ex: ziguezaguear do veículo, etc) serão suficientes para demonstrar, em face da experiência comum, da razoabilidade da vida e da normalidade das coisas, que o condutor não se encontrava em condições de efetuar uma condução segura, poderá ser mais controversa, mas não cabe no âmbito da análise deste recurso.
Em todo o caso, caberá ao julgador, atento o disposto no artigo 127.º do CPP, com base numa avaliação global dos resultados obtidos através dos testes rápidos, “exame de confirmação” ou “exame médico”, perícia e declarações testemunhais valorar se aquela quantidade concreta de um determinado tipo de estupefaciente no sangue impedia ou não o automobilista de exercer a condução em segurança.
Tecidas estas considerações de ordem geral, debrucemo-nos, agora, sobre o caso em apreciação, tendo, em consideração que o MP suscitou o erro de julgamento quanto aos factos não provados e os vícios da sentença do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP.
3.2.2. Do erro de julgamento quanto aos factos não provados (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 e dos vícios da sentença (artigo 410.º, n.º 2 alíneas b) e c) do CPP)
No processo em análise o arguido foi interveniente num acidente de viação ocorrido em 6 de agosto de 2019, pelas 19:00 horas enquanto pilotava o motociclo de duas rodas na Estrada Municipal ...7. Transportado para o hospital foi submetido a “exame de confirmação” realizado pelo IML revelando a presença no sangue de uma concentração <25 (menor 25, pois = a 21) nanogramas de benzoilecgonina (metabolito da cocaína) por mililitro de sangue (ng/mL), substância que integra o grupo de cocaína.
O MP em sede de inquérito por consideração ao entendimento defendido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, que assinala[10], relativamente à prova do estado de influenciado na condução de veículos pelo consumo de estupefacientes, remeteu ao IML certidão de fls. 7, 8, 3, 4 e 13 a 17, solicitando a resposta a dois quesitos, a saber:
- 1.º Quesito: Qual o nível de interferência na condução de um veículo ciclomotor de duas rodas da presença de < 25 nanogramas por mililitro de benzoilecgonina no sangue?
- 2.º Quesito: Pode afirmar-se que a presença no sangue de tal substância nessa quantidade influenciou ou perturbou o condutor de tal veículo e tornou-o incapaz de conduzir com segurança?
Em resposta o IML respondeu pela seguinte forma aos quesitos colocados:
“a) A presença no sangue das substâncias psicotrópicas previstas na Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto são suscetíveis de provocar efeitos perturbadores da aptidão física e mental para uma condução em segurança.
b) As substancias com efeito psicoativo detetadas na amostra de sangue recebida neste serviço em 14/08/2019 (…) forma a Benzoilecgonina (metabolito da cocaína) numa concentração de <25 ng/mL e Etanol numa concentração de 1,34 +/- 0,17 g/L.
c) A Cocaína, atua sobre o SNC e cujos efeitos com impacto negativo na capacidade para conduzir são, entre outros, a exagerada autoestima, o aumento da disponibilidade para correr riscos, a redução do sentido crítico e da realidade, e a incorreta avaliação das situações, traduzindo-se numa procura de sensações diferentes normalmente através de uma condução inadequada e perigosa.
d) Os efeitos provocados pela cocaína ocorrem em 3 fase. A primeira fase, durante a qual é possível, em geral, detetar a presença de cocaína e benzoilecgonina (metabolito), caracteriza-se por um estado de euforia (high) perda de sentido crítico, diminuição da sensação de fadiga, aumento da autoconfiança, etc. Na segunda fase surge dificuldade de concentração, ansiedade e alterações na perceção sensorial. Na terceira fase, depressiva, durante a qual se deteta apenas presença de benzoilecgonina, surge exaustão, agressividade, irritabilidade e outras alterações psicofisiológicas. Todos os efeitos em qualquer das fases, comportam fatores de risco incompatíveis com uma condução segura, isto decorre do facto de alguns dos efeitos negativos para a condução não diminuírem de forma diretamente proporcional à diminuição da concentração das substâncias, no caso a cocaína, permanecendo por isso os efeitos incapacitantes mesmo quando a substância (cocaína) já não é detetável.
e) De acordo com a literatura científica e os valores de concentração limite das substâncias no sangue previstos na legislação de vários países relativamente à segurança rodoviária variam para a Cocaína/benzoilecgonina entre 10 e 50 ng/mL. Importa referir que esta concentração limite refere-se à presença das substâncias isoladamente, uma vez que a associação de substancias psicotrópicas, nomeadamente com álcool, potencia os efeitos negativos para a condução que seriam provocados por cada substância isoladamente.
f) Considerando a concentração estimada de 21 ng/mL de benzoilecgonina detetada (< 25 ng/mL) e o elevado risco de acidente e de impairment associado aos efeitos do consumo de cocaína em associação com etanol (1,34 g/L +- 0,17 g/L, consideramos que o condutor não estaria em condições de conduzir um veículo automóvel na via pública em condições de segurança.”.
Apesar da existência deste relatório e, ainda, de um outro que complementou o primeiro o Tribunal a quo conduziu, ao abrigo da sua livre convicção (artigo 127.º do CPP) a materialidade constante dos artigos 10. e 11. aos factos não provados (“10- que o arguido não estivesse em condições de conduzir o referido veículo em segurança por se encontrar sob a influência dos respectivos efeitos, o que admitiu e aceitou; 11- que agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por Lei.”).
No artigo 127.º do CPP consagra-se, efetivamente, um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova por parte do Julgador, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante, pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos colhidos da experiência comum. Essa livre apreciação, todavia, encontra-se limitada pelas exceções decorrentes da “prova vinculada”, designadamente como a prevista no artigo 163.º do CPP que, sob a epígrafe “valor da prova pericial”[11], estabelece:
“1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”.
Ou seja: o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador (n.º 1 do preceito).
Essa presunção embora seja elidível, porquanto pode ser afastada quando a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, tem de ser devidamente fundamentada (n.º 2 do preceito em causa) o que significa que a discordância do julgador, quanto ao juízo científico constante da perícia, tem também de ser científica.
Assim, por regra, o juízo técnico e científico constante da prova pericial está subtraído à livre apreciação do Tribunal - salvo casos inequívocos de erro, mas nos quais o Juiz terá, então, de modo seguro e sustentado, de motivar a sua divergência. É que a perícia supõe a necessidade de especiais conhecimentos para percecionar (compreender) e apreciar (valorar) factos e daí o valor da prova pericial ser acrescido em relação aos outros meios de prova.
Na situação em apreciação existe um “exame de confirmação” e uma perícia, datada de 8.1.20 realizada por um assessor principal de medicina legal do serviço de química e toxicologia forenses do IML, complementada com um esclarecimento solicitado pelo tribunal em 12.4.2022.
Qualquer divergência relevante do juízo inerente à prova pericial não se basta com uma apreciação genérica e inconsistente, sob pena de se incorrer numa inadmissível valoração subjetiva ou na falta de fundamentação.
O Julgador na primeira instância, todavia, não aplicou corretamente a norma sobre o valor probatório específico da prova pericial (artigo 163.º do CP), pois a sua divergência tinha de ter por fundamento uma crítica material da mesma natureza da constante da perícia, isto é, uma crítica de natureza científica ou técnica (o juízo pericial - médico/científico, no caso em apreço - impõe-se ao Tribunal, a menos que este o afaste com apoio em argumentos científicos da mesma natureza).
No processo a questão residia em saber se existia (ou não) um nexo causal entre o consumo da substância estupefaciente e a falta de condições de condução com segurança (elemento objetivo do tipo legal de crime do artigo 292.º, n.º 2, do CP.
O exame de sangue do arguido (“exame de confirmação”) realizado no dia 6.8.2019, pelas 21:55 horas, após o despiste sofrido pelo arguido nesse dia, pelas 19h00, quando conduzia um motociclo) revela que o arguido tinha no sangue Benzoilecgonina (metabolito da cocaína), numa concentração de <25 ng/mL de sangue.
O perito do IML, questionado, sobre a interpretação a dar àquele exame afirmou que a presença de tal substância estupefaciente, naquela concentração, no sangue do arguido, no momento da condução, teve como consequência que não estivesse em condições de conduzir veículo a motor na via pública em condições de segurança.
Acresceria ter arguido também consumido álcool, mas, apesar disso, o perito afirmou (cf. relatório complementar) que independentemente dessa etilização continuaria a manter-se válida e verdadeira a anterior conclusão (a presença de benzoilecgonina no sangue do arguido teve como consequência que não estivesse em condições de conduzir veículo a motor na via pública em condições de segurança). Ou seja, mesmo que não tivesse bebido álcool, com aquela quantidade de benzoilecgonina no organismo, o arguido não estava em condições de conduzir com segurança, no momento em que se despistou, por se encontrar sob a influência de estupefacientes.
Isso mesmo sem se saber qual o lapso temporal existente entre o momento do consumo do estupefaciente em causa e o momento do despiste do veículo conduzido pelo arguido. Ou de se saber se o arguido teve ou não “culpa” no despiste sofrido (o nexo de causalidade não é entre o consumo de estupefacientes e o acidente de viação, mas sim entre tal consumo e a falta de condições para conduzir o veículo na via pública em condições de segurança).
Por outras palavras, e apenas quanto à essência da questão colocada: a presença do produto estupefaciente e a influência desse produto no corpo do arguido, face ao teor da prova pericial, tornava o arguido incapaz de conduzir em condições de segurança.
Cumpridos os ónus legais do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP pelo recorrente MP e verificando-se ter efetivamente ocorrido um erro de julgamento quanto aos factos não provados, caberá a esta Relação retirar daí as legais consequências.
Assim, com base na prova pericial, deve dar-se como provado que o arguido não estava capaz de conduzir o veículo em condições de segurança, por se encontrar sob a influência de substância estupefaciente (factos que integram um dos elementos objetivos do tipo legal de crime em causa - o elemento questionado in casu), e, além disso, a prova do dolo (prova por presunção judicial), devem, também, dar-se como provados os factos integrantes dos elementos subjetivos do crime em questão.
Determina-se, assim, sejam eliminados dos factos não provados os pontos 10. e 11. que devem passar a considerar-se como provados.
Por fim, face à alegada contradição entre os factos e a motivação suscitada pelo MP no recurso, dir-se-á ser irrelevante ter-se dado como provado que o arguido consumiu durante a madrugada e simultaneamente ter-se referenciado tê-lo feito horas antes do “exame de confirmação”.
Saber se o consumo foi realizado há muito ou há pouco tempo, não tem significado quanto estamos perante o consumo de estupefacientes, concretamente cocaína, pois esse elemento (dilação temporal entre o consumo e o exame) não faz parte do tipo legal do crime. O importante é verificar a percentagem encontrada do princípio ativo do estupefaciente no sangue do condutor após o ato de conduzir. Não tendo sido alegado ou provado que entre o momento do acidente e a realização do “exame de confirmação” tivesse ocorrido qualquer contaminação do sangue do arguido a dilação temporal é despicienda face à quantidade de estupefaciente detetada no seu sangue.
Sedimentada que fica a matéria dada como provada, por força da impugnação apresentada por via do recurso interposto pelo MP, cumpre, agora, apurar quais os reflexos quanto ao direito aplicável ao caso em apreciação.
3.2.3. Da escolha da espécie e da medida da pena principal
Atenta a factualidade provada cumpre escolher a espécie e a medida da pena principal, porquanto os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime se encontram preenchidos.
Sendo a moldura penal do crime punível com uma pena de prisão até 1 ano ou uma pena de multa de 10 a 120 dias e tendo em conta o disposto nos artigos 70.º e 40.º, n.º 1 do CP opta-se pela aplicação da pena de multa, por se considerar adequada e suficiente para promover a recuperação social do arguido e para satisfazer as exigências de reprovação e de prevenção do crime.
O artigo 71.º, n.º 2 do CP estabelece que na determinação concreta da medida da pena se devem atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados na execução do crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando destinada a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta licita.
Na situação em apreciação verifica-se que, atendendo sobretudo à qualidade (cocaína) e à quantidade da taxa de psicotrópico detetada no sangue do arguido (21 ng/mL), a ilicitude, revelada na prática dos factos que consubstanciam o crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes, se situa acima de um nível médio.
No concernente à modalidade do dolo impõe-se concluir ser a mais elevada, face aos factos provados em 11., pois o arguido atuou com dolo direto, pois sabia que não podia conduzir veículo automóvel depois de ter consumido cocaína, tendo, ainda, ingerido, em simultâneo, bebidas alcoólicas (ponto 4. dos factos provados).
Por outro lado, foi interveniente em acidente de viação tendo-se despistado enquanto conduzia um motociclo de duas rodas numa estrada municipal.
Como se colhe do facto dado como provado sob o ponto 9 o arguido, cerca de dois meses depois de ter praticado os factos em análise neste recurso cometeu em 17.10.2019 um crime de injúria pelo qual foi condenado em 70 dias de multa, por sentença transitada em julgado em 9.12.2019.
Quanto às suas condições pessoais o arguido vive em casa dos pais, com estes, tem o 9.º ano de escolaridade, é solteiro, não tem filhos e frequenta um programa ocupacional ministrado por uma CM auferindo uma remuneração mensal de 330 €.
Em face da factualidade considerada provada e embora o arguido frequente programa ocupacional e viva com os pais, tendo em consideração o tipo de droga consumida (cocaína) a quantidade de benzoilecgonina detetada no sangue (21 ng/mL), o ter sido interveniente em acidente de viação e o ter consumido simultaneamente álcool (TAS 1,17 g/l) julga-se adequado fixar a pena concreta em 90 dias de multa, acima, por isso, do ponto médio da moldura abstrata (65 dias).
Considerando, ainda, encontrar-se o arguido à data do julgamento a frequentar curso ocupacional onde auferia 330 €, mas vivendo em casa dos pais e tendo o 9.º ano de escolaridade, julga-se adequado fixar a taxa diária da multa em 6,50 €, atento o limite mínimo e máximo estabelecido na lei (5 € a 500 € estabelecida no artigo 47.º, n.º 2 do CP), perfazendo o montante global de 585 € (mesmo assim em valor inferior a dois rendimentos mensais por si auferidos), de forma a que o arguido sinta a gravidade do ato cometido.
3.2.4. Da medida da pena acessória
Tendo em consideração o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2013, DR n.º 5, Série I de 2013-01-08 que estabeleceu que:
“Em caso de condenação, pelo crime de condução em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, do art. 292.º do CP, e aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69.º, n.º 1, al. a), do CP, a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei (art. 69.º, n.º 3 do CP e art. 500.º, n.º 2 do CPP), deverá ser reforçada, na sentença, com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo legal previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do art. 348.º, n.º 1, al. b), do CP.”.
Assim, condena-se o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis por um período de 7 meses de entre uma moldura que vai de 3 meses a 3 anos (artigo 69.º, n.º 1 do CP), atentos os fundamentos já utilizados para a fundamentação da pena principal, mas, ainda, atenta a circunstância de na “cocaína o risco de acidente grave em condutores que a consumiram é 3 vezes superior comparativamente a condutores que não consumiram”, como salientado pelo perito do IML no esclarecimento complementar prestado a pedido do Tribunal a quo.
III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos concede-se total provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência decide-se:
1. Eliminar dos factos não provados os pontos 10. e 11. que deverão ser conduzidos aos provados.
2. Condenar o arguido pela prática de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, alínea a) do CP, na pena de multa de 90 dias de multa, à taxa diária de 6,50 €, perfazendo a quantia global de 585 €.
3. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 7 meses, ao abrigo do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do CP, devendo o arguido entregar o título de condução, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, na secretaria do tribunal de 1.ª instância ou em qualquer posto policial, sob pena de a mesma ser apreendida, nos termos do artigo 500.º do CPP, e com a advertência de, se o não fizer incorrerá na prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º do CP (Acórdão Fixador de Jurisprudência n.º 2/2013, publicado no Diário da República em 8.1.2013).
4. Sem custas.
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 7 de fevereiro de 2023.
João Carrola
Maria Leonor Esteves
[1] Nascido em .../.../1984, natural da Freguesia e Concelho ..., filho de CC e de DD, solteiro, titular do Cartão de Cidadão n.º ..., residente na Av.ª ..., ....
[2] Cf. “Uma Análise das Descontinuidades do Ilícito Penal Moderno à Luz da Reconstrução de Uma Distinção Clássica”, 2008, Coimbra Editora, páginas 254, 255, 499 e 798, citado na Acórdão da RE de 10.11.2020, proferido no P. 253/18.8GBSLV.E1 e relatado por Renato Barroso.
[3] Se abaixo deste valor de 1,2 g/l também o condutor alcoolizado é punido contraordenacionalmente conforme resulta do artigo 81.º do CE que estabelece o seguinte: “Artigo 81.º Condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas: 1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas. 2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico. 3 - Considera-se sob influência de álcool o condutor em regime probatório e o condutor de veículo de socorro ou de serviço urgente, de transporte coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxi, de TVDE, de automóvel pesado de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,2 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico. 4 - A conversão dos valores do teor de álcool no ar expirado (TAE) em teor de álcool no sangue (TAS) é baseada no princípio de que 1 mg de álcool por litro de ar expirado é equivalente a 2,3 g de álcool por litro de sangue.”.
[4] Cf. Ac. da RP de 9.4.2014 onde se refere que “I. A contra-ordenação muito grave «condução sob a influência de substâncias psicotrópicas» distingue-se do crime doloso ou negligente de «condução sob a influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas» pelo elemento objectivo constitutivo deste, que se consubstancia no facto de o agente não se encontrar «em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de ... produtos ... perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica».
[5] Neste artigo estabelece-se designadamente o seguinte: “1 - É proibido conduzir sob influência (…) de substâncias psicotrópicas. (…) 5 - Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial. 6 - Quem infringir o disposto no n.º 1 é sancionado com coima de: (…) b) 500 a (euro) 2500, (…) se conduzir sob influência de substâncias psicotrópicas.”.
[6] Cf. neste sentido Acórdão da RE de 8.2.2022, proferido no processo 245/20.7GASSB.E1, relatado por Moreira das Neves e disponível para consulta em www.dgsi.jtre.
[7] Acórdão RC 6.4.2011 relatado por Jorge Dias e Acórdão RP de 7.7.2011 relatado por Coelho Vieira disponível para consulta em www.dgsi.
[8] Artigo 81.º, n.º 5 do CE prescreve “Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.”.
[9] Cf. P. n.º 253/18.8GBSLV.E1 relatado por Renato Barroso e disponível para consulta em www.dgsi/jtre.
[10] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 20.2.2019, proferido no processo 540/17.2GBILH.P1 e relatado por António Luís Carvalhão, disponível para consulta em www.dgsi.jtrp.
[11] Outras exceções decorrentes da prova vinculada resultam dos artigos 84.º (caso julgado), 169.º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344.º (confissão) do CPP.