I - Destinando-se a transferir determinado valor de um património para outro (de uma conta bancária para outra) a operação bancária de transferência produzirá o seu efeito no momento em que é creditada a conta do beneficiário.
II - E é assim, pois até ao momento em que é creditada a conta do beneficiário, quem transfere pode revogar a ordem de transferência.
III - Assim, o empossamento do beneficiário só ocorre no momento em que a sua conta é creditada; a partir desse momento, o objeto da transferência só poderá deixar de lhe ser creditado com o seu consentimento.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
1. O Ministério Público, em representação do Estado – Autoridade Tributária/Fazenda Pública, instaurou a presente ação de processo comum contra AA, BB, CC e DD, pedindo:
- que seja declarada a ineficácia, em relação a si, atenta a sua qualidade de credor, dos atos que consubstanciaram as transferências financeiras e, consequentemente, que lhe seja reconhecida a possibilidade de executar tais valores no património dos réus CC e DD;
Subsidiariamente:
- que se declare a nulidade por simulação dos negócios jurídicos (doações) que consubstanciaram as transferências dos valores financeiros em causa, declarando-se que tais bens/ativos financeiros são propriedade dos réus AA e BB.
Para tanto, alegou, em síntese:
- os Réus CC e DD são pais do Réu AA e sogros da ré BB;
- no decurso de uma ação inspetiva levada a cabo pela Direção de Finanças ..., foi verificada uma divergência significativa entre os rendimentos declarados pelos contribuintes (aqui Réus AA e BB) e os acréscimos patrimoniais revelados nas respetivas contas bancárias, nos anos de ...7/...8, o que deu origem à liquidação do IRS correspondente;
- visando eximir-se à responsabilidade pelo pagamento de tais impostos, o Réu AA efetuou a transferência de vários ativos financeiros em favor dos Réus CC e DD, seus pais;
- no momento atual, os Réus AA e BB não dispõem de património suficiente para garantir o pagamento dos impostos de IRS apurados, o que resultou das transferências bancárias que ordenaram e que determinaram a dissipação de todo o seu património financeiro de forma gratuita para os Réus CC e DD, o que fizeram depois de conhecerem as implicações e consequências fiscais que iriam ocorrer na sua esfera pessoal;
- todos os Réus agiram de forma concertada, visando prejudicar o credor tributário, tendo consciência do prejuízo que causariam ao Estado, já que com as aludidas transferências gratuitas impossibilitaram, ou pelo menos agravaram em elevado grau, a possibilidade de cobrança coerciva desse crédito que se havia constituído anteriormente;
- tais transferências reconduzem-se a atos ineficazes relativamente ao autor, por se verificarem rodos os requisitos da impugnação pauliana;
- se se concluir que o património financeiro em causa não foi doado, sempre se deverá concluir que as transferências ocorreram com o propósito de subtrair os respetivos valores da esfera jurídica dos Réus AA e BB, para evitar o pagamento da dívida do Estado, reconduzindo-se a ato simulado e, consequentemente, nulo.
2. Citados, os Réus vieram contestar, alegando, em suma, a ilegitimidade substancial do Autor, porquanto à data em que a ação foi intentada apenas existia a possibilidade de vir a ser credor dos Réus AA e BB, negando ter atuado de má fé e arguindo a caducidade do direito invocado pelo Autor, por decurso do prazo de cinco anos estabelecido no artigo 618.º do Código Civil, dado que a presente ação foi intentada em 31 de janeiro de 2017 e todas as transferências sido ordenadas em data anterior a 31 de janeiro de 2012; por fim, alegam que as doações em questão não constituem negócios simulados, por corresponderem a uma restituição de património efetuada pelo Réu AA a seus pais, em conformidade com o que com eles foi acordado há uns anos atrás, quando deles recebeu o património e o negócio relativo à exploração da “M...”, numa época em que atravessavam graves dificuldades financeiras.
3. O Tribunal de 1.ª instância veio a proferir sentença, tendo o dispositivo o seguinte teor:
“Por tudo o atrás exposto, decido julgar procedente a presente ação e, em consequência, declaro a ineficácia relativamente ao autor Estado-Autoridade Tributária/Fazenda Pública das transferências de ativos financeiros mencionadas no facto enunciado sob o nº 5.24 da presente decisão.”
4. Inconformados com esta decisão, os Réus interpuseram recurso de revista per saltum, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª O presente recurso versa apenas matéria de direito e por isso os recorrentes requerem que suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça.
2.ª - Apurado que alguém quis dar dinheiro a outrem (no caso dos autos um filho ao pai) e assinou uma ordem de transferência para uma conta do donatário, que identificou na própria ordem, estamos perante uma doação manual, em que ocorreu a tradição.
3.ª - A vontade de doar (que nos autos se demonstrou) está exteriorizada e expressa na assinatura da ordem de transferência,
4.ª - E a vontade de a aceitar não resulta apenas da tradição efetiva e posterior, mas está exteriorizada e resulta de nela ser indicada uma conta de destino do donatário.
5.ª - A tradição a que alude a 1ª parte do nº 2 do art. 947º do C Civil não tem que ser simultânea, nem tem que ser material, mas é antes uma tradição jurídica, uma tradição simbólica consubstanciada numa entrega reveladora da vontade de doar; entrega essa que ocorre com a prática de atos que possam pôr a coisa na disponibilidade do donatário.
6.ª -É esse o caso de uma ordem de transferência escrita que tem justamente esse efeito: o de operar a tradição simbólica do dinheiro.
7.ª - O facto de essa transferência não ocorrer de imediato já não se prende com a vontade das partes mas com as regras do funcionamento dos bancos.
8.ª - Não se considerar que com a emissão da ordem de transferência se dá logo a transmissão dos valores, significaria cair numa espécie de limbo em que, com a assinatura das ordem de transferências, ocorreria um abandono dos valores pelo doador – uma vez que a sua vontade de deles abrir mão é inequívoca - ficando eles pertença do banco até que este executasse a ordem de transferência, o que é um absurdo.
9.ª - Por isso se pode dizer quer quando alguém doa a outrem dinheiro depositado num banco, essa doação considera-se feita pela emissão da ordem escrita dirigida ao banco para que o transfira para uma conta do donatário.
10.ª - E que todos os atos que o banco a seguir pratica – conferência de assinaturas e transferência de fundos – destinam-se apenas a dar execução à sua intenção mas já não são atos do doador nem do donatário.
11.ª - Tendo decido no caso dos autos que a doação ocorreu apenas no momento em que os valores foram transferidos violou o Tribunal recorrido, 10 na interpretação e aplicação que deles fez o disposto nos arts. 947º/2 e 618º do C. Civil.
E concluem: “Deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência revogada a decisão recorrida, proferindo-se Acórdão que julgue que a doação do dinheiro depositado se considera feita na data em que o doador emitiu a ordem de transferência junto do banco, e retire daí a consequência de que caducou o direito à impugnação dos autos no que respeita às seis transferências bancárias emitidas em 30 de janeiro de 2012.”
5. O Réu contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - A questão de direito que os RR. pretendem ver apreciada pela Instância Superior é a de saber em que momento ocorre a doação do dinheiro depositado nas contas do Réu AA para a conta titulada pelos seus pais os RR. CC e DD.
2.ª - Os Réus recorrentes entendem que a doação ocorreu no momento em que o Réu AA assinou as ordens de transferência, ou seja, em 30/01/2012, e não no momento em que os valores foram transferidos para as contas dos pais/RR. CC e DD.
3.ª - O Ministério Público não perfilha tal entendimento.
4.ª - Nos termos do disposto no art. 947.º, n.º 2, do Código Civil, “a doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada da tradição da coisa doada; não sendo acompanhada da coisa, só pode ser feita por escrito”.
5.ª - Acresce que, nos termos do disposto no art. 940.º, n.º 1, do Código Civil, “a doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente”.
6.ª - Assim, são três os requisitos exigidos para que exista uma doação: atribuição patrimonial sem correspetivo; diminuição do património do doador; espírito da liberalidade.
7.ª - Acresce ainda que o disposto no art. 940.º do Código Cível, tem que ser interpretado em conjugação com o art. 945.º (Aceitação da doação) e seu n.º 2, do Código Civil, que dispõe que “a tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou seu título representativo, é havida como aceitação”.
8.ª - Em face do supra, exposto, a tradição da coisa apenas ocorreu no dia 01/02/2012 e não no dia 30/01/2012 (data em ocorreu a ordem de transferência).
9.ª - Por último, diga-se ainda, que a não ser assim entendido e se pretendesse dar alguma relevância apenas a uma ordem de transferência, esta, não obstante aparecer datada de 30/01/2012, tão-só foi conferida pelo funcionário do banco a 01/02/2012, data esta a partir da qual a ordem deve considerar-se formalizada e produtora de efeitos.
10.ª - Pelo que, aquando da entrada da ação ainda não tinha decorrido o prazo de caducidade de cinco anos.
11.ª Assim, tendo a sentença proferida nos autos entendido que a doação ocorreu apenas no momento em que os valores foram transferidos paras a conta dos RR. CC e DD, o Tribunal recorrido não violou a interpretação e a aplicação do disposto no as arts. 947.º, n.º 2 e 618.º do Código Civil.
E conclui pela improcedência do recurso.
6. Cumpre apreciar e decidir.
II. Delimitação do objeto do recurso
Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelos Réus / ora Recorrentes decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se o direito de impugnação invocado pelo Autor está extinto por caducidade.
III. Fundamentação
1. O Tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1.1. Os réus CC e DD são pais do réu AA e sogros da ré BB (artigo 1º da petição inicial);
1.2. Foi realizado um procedimento de inspeção, levado a cabo pela Divisão de Inspeção Tributária II da Direção de Finanças de ..., aos sujeitos passivos AA, NIF ...19, e BB, NIF ...06, o qual teve origem nas ordens de serviço números ...54 e ...55, de 28.11.2011 e 29.12.2011 (artigo 2º da petição inicial);
1.3. No decurso de tal procedimento, foi apurado que AA e sua mulher BB são sócios da sociedade comercial denominada “M... S.A.”, sendo que o primeiro detém ainda o controlo da J..., entidade registada numa região off-shore (com sede em ...) (artigo 3º da petição inicial);
1.4. No decorrer da referida ação inspetiva resultaram correções da matéria tributável, com recurso a métodos indiretos, nos termos do artigo 89º-A da Lei Geral Tributária, que ascenderam a €962.246,64 e €1.199.92,20, respetivamente para os anos de 2007 e 2008 (artigo 4º da petição inicial);
1.5. No âmbito desse procedimento inspetivo ficou apurado que AA e mulher, BB, nos exercícios em análise (2007 e 2008), evidenciavam um acréscimo de património superior a um terço dos rendimentos por si declarados no mesmo período de tributação (artigos 5º e 8º da petição inicial);
1.6. No exercício de 2007 evidenciavam um acréscimo de património no valor de €962.246,64, enquanto que, para tributação em IRS nesse mesmo ano, declararam conjuntamente um rendimento coletável de € 11.994,16 (artigo 6º da petição inicial);
1.7. E, no exercício de 2008, evidenciavam um acréscimo do património no valor de €1.100.892,20, enquanto que, para tributação de IRS nesse mesmo ano, declararam conjuntamente um rendimento coletável de € 9.700,72 (artigo 7º da petição inicial);
1.8. Em 29/09/2011 foi solicitada autorização aos contribuintes supra identificados para consulta/acesso a todos os documentos, documentos e registos bancários de que eram titulares, relativamente aos exercícios de 2007 e 2008, não tendo os sujeitos passivos respondido à notificação (artigo 12º da petição inicial);
1.9. Na falta dessa resposta e questionado verbalmente sobre o assunto visado na sua notificação, o contribuinte e aqui réu AA recusou fornecer essa autorização (artigo 13º da petição inicial);
1.10. Pelo que, em 19/10/2011, foi solicitado ao Senhor Diretor ... o pedido de derrogação do sigilo bancário, o qual veio a ser autorizado nos termos do disposto no artigo 63º B da LGT, por decisão de 26/10/2011 (artigo 14º da petição inicial);
1.11. Na sequência de tal autorização, foram solicitados às entidades financeiras extratos de todas as contas bancárias em que AA era titular autorizado, bem como dos documentos de suporte aos lançamentos de crédito e a débito (artigo 15º da petição inicial);
1.12. Em resultado da análise efetuada às contas bancárias, apurou-se como rendimento obtido pelos sujeitos passivos os depósitos efetuados nas contas bancárias expurgados das transferências bancárias efetuadas nas diversas contas de AA, juros, cheques de montante igual ao valor das transferências de ordenados, transferências para a M..., transferências da segurança social, cheques emitidos para a J..., cheques emitidos para AA, estamos e resgastes de aplicações financeiras, os montantes de €974.240,80 e de €1.100.592,92 para 2007 e 2008 (artigo 16º da petição inicial);
1.13. A análise efetuada foi, através de ofício datado de 2/2/2012, notificada a AA e mulher, BB, nos termos do disposto no nº 3 do art. 89º-A da LGT e 60°, nº 1, alínea d) da LGT, para justificar e comprovar que os rendimentos declarados correspondem à realidade e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna ou do acréscimo de património ou da despesa efetuada, tendo sido aceites pela inspeção determinados montantes devidamente justificados pelos sujeitos passivos aquando do exercício do direito de audição (artigo 17º da petição inicial);
1.14. No dia 22/2/2012, deu entrada na Direção de Serviços de Finanças de ... o "direito de audição", composto por 44 pontos, em que os sujeitos passivos solicitam o arquivamento do processo (artigo 18º da petição inicial);
1.15. O procedimento inspetivo relativo aos exercícios de 2007 e 2008 decorreu entre datas que em concreto não foi possível apurar, situadas entre o último trimestre de 2011 e o primeiro trimestre de 2012 (artigo 19º da petição inicial);
1.16. Na sequência do exercício desse direito de audição, a Direção de Finanças ... apurou um rendimento tributável no montante de € 974.240,80, relativamente ao ano de 2007, e no valor de € 1.110.592,92, respeitante ao ano de 2008, o que comunicou aos réus AA e BB por ofício de 8/3/2012 (artigo 20º da petição inicial);
1.17. Foram aceites as quantias devidamente justificadas pelos sujeitos passivos e as quantias apuradas pela inspeção tributária com correspondência com saídas para as empresas M..., J..., ordenados, Segurança Social, entre outros, igualmente justificados, e considerado como acréscimo os depósitos não justificados (artigo 21º da petição inicial);
1.18. Tendo-se verificado que subsistia uma divergência muito superior a um terço entre os rendimentos declarados pelos contribuintes e os acréscimos patrimoniais revelados nas contas bancárias (2007 - rendimentos declarados €11.994,16 - acréscimos patrimoniais €962.246,64; 2008 - rendimentos declarados €9.700,72 - acréscimos patrimoniais €1.100.892,20), mostrando-se preenchidos os pressupostos para a avaliação indireta da matéria coletável, nos termos da alínea f) do artigo 87º e do artigo 89ºA, ambos da LGT (artigo 22º da petição inicial);
1.19. Em face do exposto, concluiu a Autoridade Tributária encontrarem-se reunidas as condições legais de acordo com o nº 5 do artigo 89ºA da LGT, para proceder à fixação do rendimento tributável nos exercícios de 2007 e 2008 nos montantes respetivos de €974.240,80 e de €1.100.592,92, a qual de acordo com o nº 3 do artigo 9.° do CIRS, foi considerado como rendimento da categoria G - Incrementos patrimoniais (artigo 24º da petição inicial);
1.20. Tal tributo encontrava-se em fase de liquidação na data da interposição da ação, tendo a Autoridade Tributária calculado o valor do IRS relativo ao ano de 2007 em €392.804,23 e ao ano de 2008 em €449.770,85 (artigos 25º e 27º da petição inicial);
1.21. Os sujeitos passivos AA e BB tinham conhecimento das ações inspetivas supra mencionadas, como também conheciam a existência, âmbito e alcance do procedimento de derrogação do sigilo bancário, cuja autorização lhes foi notificada por ofício enviado por carta registada em 27 de janeiro de 2012 (artigo 28º da petição inicial);
1.22. De igual modo, a notificação nos termos dos artigos 89º-A, nº3 e 60°, nº 1, alínea, ambos da LGT. foi concretizada aos referidos sujeitos passivos por ofício enviado em 2 de fevereiro de 2012, tendo tomado conhecimento, após o seu recebimento, dos concretos valores do rendimento coletável apurados pela inspeção tributária, e no qual foram instados a justificar a divergência entre o rendimento declarado (2007 e 2008) e o apurado com base na análise às suas contas bancárias (artigo 29º da petição inicial);
1.23. Logo que os réus AA e BB foram notificados do procedimento de derrogação do sigilo bancário, mediante ofício que lhes foi enviado em 27 de janeiro de 2012, bem como da notificação que lhes foi enviada nos termos do artigo 89ºA e 60º, nº 1, alínea d) da LGT, mediante ofício que lhes foi enviado em 2/2/2012, data em que tomaram conhecimentos dos concretos valores do rendimento coletável apurados pela inspeção tributária e em que foram instados a justificar a divergência entre o rendimento declarado nos anos de 2007 e 2008 e o apurado, com base na análise às suas contas bancárias, formularam o propósito de não procederem ao pagamento do IRS devido, relativamente a esses dois anos, resolvendo desfazer-se do respetivo património, constituído por depósitos bancários e ativos financeiros (artigos 30º, 31º, 48º da petição inicial);
1.24. Ao longo do mês de fevereiro de 2012 (sobretudo nesse mês, mas também nos subsequentes, e até dezembro de 2012, inclusive) verificaram-se várias transferências de ativos financeiros (saldos bancários e aplicações financeiras), por ordem de AA em favor dos seus pais CC e DD, transferências, essas que, globalmente, ascendem a um valor na ordem dos €3.700.000,00 (três milhões e setecentos mil euros), designadamente:
a) Valores creditados em contas bancárias cujo titular é o requerido CC:
a.1) Transferências no Banco Espírito Santo - conta n.º ...81
.6/2/2012 - TRF ...HL-AA - €119.000,00;
.7/2/2012 - TRF ...HN-AA - €10.965,00;
a.2) Transferências no Banco Santander Totta
.8/2/2012 - TRF ...HL-AA - €119.000,00;
.8/2/2012 - TRF ...HN-AA - €3.307,83;
.8/2/2012 - TRF ...HR-AA - €34.485,42;
.8/2/2012 - TRF ...JB -AA - €500.000,000;
.8/2/2012 - TRF ...Je-AA - €105.255,88;
.27/2/2012 - TRF ...OO-AA - €395.263,65;
.28/2/2012 - TRF ...SO-AA - €21.049,65;
.9/3/2012 - TRF ...KJ- AA - €31,41;
.A3) Pagamentos de rendimentos e reembolsos de aplicações no Banco Santander Totta creditadas nas contas bancárias cujo titular é CC, conta n.º ...20
.15/2/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €3.941,25;
.27/2/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,33;
.6/3/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC -€1.956,15;
.16/3/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €2.460,00;
.21/3/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €7.165,50;
.26/3/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,33;
.28/3/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €4.243,35;
.28/3/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €424,33;
.28/3/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €1.082,16;
.26/4/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €636,17;
.26/4/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,33;
.15/6/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €3.941,25;
.28/5/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,33 €;
.6/6/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €1.956,15;
.15/6/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €119.404,17;
.18/6/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €2.460,00;
.21/6/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €7.165,50;
.26/6/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,33;
.27/6/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €599.114,73;
.28/6/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €3.528,75;
.28/6/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €352,87;
.26/7/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €530,83;
.26/7/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,33;
.16/8/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €3.941,25;
.27/8/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,33;
.6/9/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €1.956,15;
.17/9/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €2.460,00;
.26/9/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9.33;
.28/9/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €3.343,50;
.28/9/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €334,35;
.26/10/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €461,39;
.26/10/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,33;
.15/11/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €3.862,50;
.26/11/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,27;
.6/12/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €1.916,78;
.7/12/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €2.411,25;
.26/12/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €9,27;
.28/12/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €2.769,90;
.28/12/2012 - TR-TRANSF SANTANDER TOTTA SC - €276,99.
A4) Transferências dos salários do Sr. AA, pagos pela M..., para a conta bancária cujo titular é CC;
b) Transmissões de apólices de seguros do S... S.A. a favor de AA:
.1/2/2012 - Plano Rend Setembro - €550.000,00;
. 1/2/2012 - Plano Rend Private Abril - €315.000,00;
.1/2/2012 - Plano Rend Private Set. 2013 - €96.000,00;
.1/2/2012 - Plano Rend Private Março de 2016 - €300.000,00;
.8/2/2012 - Rend Mensal Jan 2011 - €3.500,00;
.1/2/2012 - Plano Private Fev 2014 - €250.000,00 (artigo 32º da petição inicial);
1.25. Apurados tais factos, foi CC, ao abrigo do disposto nos artigos 128º do CIRS, 59º, nº 4, da LGT e 28º e 29º do RCPITA, notificado, em 11 de Março de 2016, para informar a origem das duas entradas realizadas na conta do BES em 6 e 7 de fevereiro de 2012, nos montantes de €119.000 e €10.965, respetivamente, bem como relativamente à conta do Banco Santander Totta para justificar, comprovadamente a origem do depósito múltiplo efetuado em 20/04/2012, no valor de € 750,000, bem como de todas as outras referidas no artigo anterior, bem como para comprovar o património financeiro à data de 01/01/2012 respeitante a todas as aplicações financeiras, nomeadamente os produtos de seguros, existentes junto ao Banco Santander Torta, justificar de forma documentada, da data da constituição e da origem das aplicações financeiras existentes em 31/12/2012 indicados no extrato que foi anexado, e ainda a justificar, comprovadamente os valores registados a crédito na conta bancária com a denominação "..." (artigo 33º da petição inicial);
1.26. Em 24 de março de 2016, CC e DD informaram o Sr. Diretor de Finanças ..., que:
- relativamente à conta bancária no BES nº ...81, a origem das duas entradas realizadas na conta em 6 e 7 de fevereiro de 2012, foram transferências efetuadas pelo seu filho AA, nos montantes de €119.000,00 e de €10.965,00 respetivamente;
-relativamente à conta bancária no Banco Santander Totta - ...20, a origem do múltiplo depósito efetuado no dia 20/4/2012, no valor de € 750.000, justifica-se pela saída dos Cofres Sociais da M... e que regularizou uma entrada nos mesmos cofres da sociedade no dia 24/2/2012 no mesmo montante, que saiu da mesma conta;
- quanto às transferências foram efetuadas pelo seu filho AA;
- quanto à data de constituição e da origem das aplicações financeiras existentes em 31/12/2012, são referente a apólices referentes a prémios de seguros constituídos por AA, cfr. quadro que anexaram;
- os valores registados a crédito na conta bancária, com a denominação "...", dizem respeito a salários do seu filho AA (artigo 34º da petição inicial);
1.27. Acresce que, atendendo ao fundado receio da diminuição da garantia de cobrança dos créditos tributáveis, no âmbito da ação inspetiva desencadeada a AA e BB, foi requerido nos termos do artigo 136º do CPPT e decretado o arresto (em 10/05/2012 no processo que correu sob o nº190/12.... no Tribunal Administrativo e Fiscal ...), dos saldos das contas bancárias (conhecidas) e de nove imóveis de que os sujeitos passivos eram titulares, até ao valor de €842.575,08 (artigo 36º da petição inicial);
1.28. Ocorre, porém, que aquando da execução desse arresto, as contas bancárias não apresentavam qualquer saldo, e os imóveis tinham sido objeto de uma penhora no processo nº...2..., em que era exequente EE, sobrinho de AA (artigo 37º da petição inicial);
1.29. Na referida ação executiva os bens imóveis vieram a ser adjudicados à sociedade I... Unipessoal, Lda., a qual foi constituída no dia 16/5/2012, data em que foi também registada a penhora dos imóveis (artigo 38º da petição inicial);
1.30. Entre as contas bancárias objeto do arresto constam contas do Banco Santander Totta, das quais foram retirados os valores transferidos para as contas dos pais de AA e apurados na ação inspetiva (artigo 39º da petição inicial);
1.31. Relativamente aos resultados inspetivos apurados em sede de IRS aos exercícios de 2007 e 2008, AA e BB apresentaram Recurso Judicial nos termos do artigo 89º A, nº 7, da LGT, da decisão do Diretor de Finanças ... de tributação por avaliação indireta, contencioso que correu termos no TAF ... sob o nº 168/12...., que veio a ser julgado improcedente, por decisão que foi confirmada pelo Tribunal Central Administrativo ..., transitada em julgado no dia 3 de maio de 2018, data após a qual foi liquidado o IRS devido e foi instaurada execução fiscal, com vista ao seu pagamento, na qual os referidos contribuintes deduziram oposição (artigo 41º da petição inicial, certidões de fls 605 e ss, requerimento de fls 670 - referência ...95 – e documentação com o mesmo junta);
1.32. AA e BB, já em fevereiro de 2012, tinham perfeito conhecimento das ações inspetivas em curso (quer no plano individual, quer relativamente à Sociedade M..., S.A.), bem como das correções propostas, dos impostos em falta e ainda do procedimento de derrogação do sigilo bancário na sua esfera individual, sendo que não obstante e após esse conhecimento, AA, com o conhecimento e consentimento da sua mulher, a ré BB, transferiu de forma gratuita todo o seu património financeiro para os seus pais (artigo 42º da petição inicial);
1.33. Neste momento, AA e BB não dispõem de quaisquer imóveis inscritos em seu nome, bem como veículos automóveis, além de que não obtêm rendimento de capitais, apenas auferindo rendimento da categoria A de IRS derivados do trabalho dependente exercido na M..., S.A. (artigo 43º da petição inicial);
1.34. Todos os réus atuaram concertados com intenção de prejudicar o credor tributário, visando impedir qualquer possibilidade de êxito num eventual arresto, o que veio a suceder, bem como o sucesso numa ação executiva fiscal para pagamento do IRS relativo aos anos de 2007 a 2008 que viesse a ser liquidado da responsabilidade dos réus AA e BB, admitindo a possibilidade de vir a ser declarada a existência dessa dívida (artigos 50º, 51º, 52º, 53º, da petição inicial);
1.35. Através das ordens de transferência dos depósitos e ativos financeiros mencionadas em 5.24 visaram os réus subtrair todo o património financeiro dos réus AA e BB com a exclusiva finalidade de evitar a satisfação integral dos créditos do Estado relativos ao IRS de 2007 e 2008 que viesse a ser liquidado (artigos 54º, 67º da petição inicial);
1.36. A ré BB é casada com o réu AA no regime de comunhão geral de bens (artigo 65º da petição inicial);
1.37. A presente ação deu entrada em juízo em 31 de janeiro de 2017 e em 23 de janeiro de 2017 foi instaurado o procedimento cautelar de arresto apenso pelo autor (requerente) contra os réus (requeridos) (artigos 17º da petição inicial e 19º do articulado de resposta às exceções);
1.38. As primeiras seis transferências mencionadas em 5.24 foram ordenadas pelo réu AA mediante escritos datados de 30 de janeiro de 2012, que foram objeto de conferência pelo funcionário bancário em, respetivamente, 3/2/2012, 1/2/2012, 3/2/2012, 3/2/2012, 3/2/2012 e 3/2/2012, tendo os montantes respetivos sido transferidos e creditados nas contas dos réus CC e DD nas datas mencionadas em 5.24 (artigos 17º, 19º, 20º, 21º, 27º, 28º da contestação);
1.39. O réu AA deu continuidade à exploração do negócio da “M...” inicialmente explorado pelo seu pai, o réu CC, e que este lhe transmitiu, temendo que o seu património pudesse ser executado (artigos 31º e 33º da contestação).
2. E foram julgados como não provados os seguintes factos:
2.1. os alegados nos artigos 29º (parcialmente), 48º (parcialmente), 51º (parcialmente), 52º (parcialmente), 53º (parcialmente), 56º, 57º, 67º, 69º, 70º, 71º da petição inicial;
2.2. 9º, 17º (parcialmente), 19º (parcialmente), 23º, 24º, 25º, 26º, 27º (parcialmente), 28º (parcialmente), 31º (parcialmente), 33º, 34º, da contestação.
3. Apreciação do recurso
O Autor intentou a presente ação contra os Réus alegando que; os Réus AA e BB eram devedores de impostos; e visando eximir-se à responsabilidade pelo pagamento dos impostos, o Réu AA efetuou a transferência de vários ativos financeiros em favor dos Réus CC e DD, seus pais; os Réus AA e BB não dispõem de património suficiente pra garantir o pagamento dos impostos, o que resultou das transferências bancárias que ordenaram e que determinaram a dissipação de todo o património financeiro de forma gratuita para os Réus CC e DD.
O Tribunal de 1.ª instância julgou a ação procedente “e, em consequência, declaro a ineficácia relativamente ao autor Estado – Autoridade Tributária/Fazenda Nacional das transferências de ativos financeiros mencionadas no facto enunciado sob o n.º5.24 da presente decisão” (o facto n.º5.24 corresponde ao facto supra referido 1.24).
Na sua contestação, os Réus haviam colocado a questão do eventual direito do Autor ter caducado, nos termos do disposto no artigo 618.º do Código de Processo Civil, por haver decorrido o prazo de 5 anos desde que as transferências bancárias tinham sido ordenadas pelo Réu AA para a conta de Alberto Oliveira e enumeradas no ponto 1.24 (5.24 da sentença), o que ocorreu no dia 30 de janeiro de 2012 e a propositura da ação que ocorreu no dia 31 de janeiro de 2017.
O Tribunal de 1.ª instância considerou que o direito do Autor não havia caducado, por a ação ter sido intentada antes de decorrido o prazo de 5 anos desde que as transferências foram realizadas.
Os Recorrentes vieram suscitar novamente essa questão: em que momento ocorre a doação quando se reporta a transferências bancárias.
As partes não discutem a qualificação feita pela Tribunal de 1.ª instância de que houve uma doação.
A divergência consiste em saber se a mesma se considera feita quando o doador efetuou a transferência ou em momento posterior.
Nos termos do disposto no n.º1 do artigo 940.º do Código Civil, doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente.
A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito (n.º2 do artigo 947.º do Código Civil).
No caso presente, a doação (de coisas móveis) não foi feita por escrito, pelo que se tornava necessária a tradição da coisa.
A “tradição” é uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, o antigo possuidor demite-se da sua situação e entrega a coisa ao novo possuidor, ao adquirente, constituindo-o na situação de facto própria da posse. Desdobra-se, como tal, em dois momentos, na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro possuidor e no seu empossamento por parte do segundo (accipiens) (artigo 1263.º, alínea b), do Código Civil)
- cf. Acórdão do STJ, de 25/06/2015 (Revista n.º26118/10.3T2SNT.L1.S1 –
E, nestes autos, em que se determinam transferências bancárias, quando ocorre o momento da doação?
Ora, destinando-se a transferir determinado valor de um património para outro (de uma conta bancária para outra) a operação bancária de transferência produzirá o seu efeito no momento em que é creditada a conta do beneficiário.
E é assim, pois até ao momento em que é creditada a conta do beneficiário, quem transfere pode revogar a ordem de transferência.
Assim, o empossamento do beneficiário só ocorre no momento em que a sua conta é creditada; a partir desse momento, o objeto da transferência só poderá deixar de lhe ser creditado com o seu consentimento.
No caso presente, não basta que o Réu Alberto Oliveira tenha dado a ordem de transferência para que se considere que se concretizou a doação, mas era necessário que a conta do beneficiário tivesse sido creditada - só nesse momento, se pode falar em doação (de coisa móvel em que ocorreu a “tradição”).
Ora, prescreve o artigo 618.º do Código Civil que o direito de impugnação caduca ao fim de cinco anos, contados da data do ato impugnável.
Em face do que se vem referindo, a decisão recorrida não merece censura quando afirma que quando a ação instaurada ainda não havia decorrido o prazo de cinco anos, porquanto as transferências foram efetivadas em 1 de fevereiro de 2012 (ponto 1.24 – A4 – correspondente ao ponto 5.24 – A4 da sentença), sendo as demais posteriores e até ao mês de dezembro de 2012.
A ação foi instaurada em 31 de janeiro de 2017 e em 23 de janeiro de 2017 foi instaurado o procedimento cautelar apenso (ponto 1.37 – correspondente ao ponto n.º5.37 da sentença).
Pelo exposto, não se verifica a caducidade do direito do Autor.
Deste modo, o recurso tem de improceder
IV. Decisão
Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Lisboa, 31 de janeiro de 2023
Pedro de Lima Gonçalves (Relator)
Maria João Vaz Tomé (vencida nos termos da declaração de voto que segue:
Salvo o devido respeito:
- parece-me desadequada a aplicação de conceitos dos direitos reais como a propriedade, a posse e a tradição ao dinheiro escritural. Esses conceitos apenas se podem aplicar às notas e moedas de euro enquanto suporte monetário;
- sendo o dinheiro, muito frequentemente, meramente escritural – numa sociedade cada vez mais cashless –, correspondente a uma inscrição em conta, desprovido de materialidade física (em papel ou metal), o que releva é apenas a titularidade da posição obrigacional correspondente;
- a transferência bancária é um dos mecanismos mediante os quais o titular de uma conta bancária dirige ao respetivo banco instruções de utilização do seu dinheiro bancário, determinando a sua “transferência” para outra conta bancária. Surge como o mecanismo (desmaterializado) vocacionado para a transmissão do dinheiro escritural;
- a ordem de transferência como que se consubstancia num ato de disposição abstrato; num ato jurídico em sentido estrito de natureza declarativa, que, de certo modo, apresenta alguma semelhança com a instrução no âmbito do contrato de mandato;
- a ordem de transferência produz efeitos independentemente da validade da relação de valuta;
- o ordenante como que perde o “poder de disposição” quando a ordem é recebida pelo seu prestador de serviços pagamento, porquanto este, de acordo com os usos bancários, procede imediatamente ao débito da respetiva conta;
- por conseguinte, a diminuição da garantia patrimonial do crédito (art. 610.º do CC) ocorre no momento em que a ordem de transferência chega ao conhecimento do prestador de serviços de pagamento do ordenante e não do beneficiário;
- questão diferente é aquela de saber se ao ordenante é permitido readquirir aquele “poder de disposição” mediante a revogação da respetiva ordem de transferência (o art. 121.º do DL n.º 91/2018, de 12 de novembro - Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica -, estabelece o caráter tendencialmente irrevogável das ordens de pagamento);
- nos atos abstratos, a ausência de causa gera a obrigação de restituir do beneficiário ao abrigo do enriquecimento sem causa;
- uma transferência não é prejudicada por cumprir um ato nulo - mormente uma doação de execução indireta ferida de nulidade por inobservância da forma legalmente prescrita. A restituição a que haja lugar ocorre nas relações entre o ordenante e o beneficiário, à margem do banco;
Por isso, teria revogado a decisão recorrida, considerando que o direito de impugnação caducou por não haver sido exercido no período de cinco anos contados da data do ato impugnável (art. 618.º do CC) – i.e., a ordem de transferência).
António Magalhães