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JUNTA MÉDICA
FUNDAMENTAÇÃO
PREDISPOSIÇÃO PATOLÓGICA
Sumário
O laudo pericial deve ser fundamentado de modo a que, percebendo-se as razões que levaram os peritos a considerar o grau de incapacidade que atribuem, o tribunal fique habilitado a tomar uma decisão justa. O grau de exigência da fundamentação pode variar caso a caso, sendo especialmente relevante em determinadas situações, como por exemplo se estiver em causa uma predisposição patológica, e tendo em vista a aplicação do regime do artigo 11º da LAT.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.
O autor AA, intentou a presente ação declarativa com processo especial para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho contra a ré F... - COMPANHIA DE SEGUROS, SA., pedindo a sua condenação:
a. A pagar a pensão anual e vitalícia no valor de € 358,57 (trezentos e cinquenta e oito euros e cinquenta e sete cêntimos) devida pela incapacidade permanente para o trabalho de que ficou a padecer;
b. A pagar a quantia de € 9.895,63 (novecentos e noventa e cinco euros e sessenta e três cêntimos) a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho;
c. A pagar a quantia de € 380,01 (trezentos e oitenta euros e um cêntimo) a título despesas médicas e medicamentos e despesas em deslocações para os tratamentos;
d. A pagar a quantia de € 25,00 (vinte cinco euros) que despendeu em deslocações obrigatórias no âmbito dos presentes autos;
e. A pagar os juros de mora a calcular à taxa legal supletiva.
*
O autor alegou que sofreu um acidente de trabalho e pretende ser ressarcido pela incapacidade permanente para o trabalho de que ficou a padecer, pelos períodos em que esteve com incapacidade temporária para o trabalho e pelas demais prestações a que tem direito.
*
A ré seguradora contestou alegando que não está obrigada ao pagamento de qualquer quantia porque as lesões que o autor apresentava eram consequência de uma doença anterior ao acidente.
- A seguradora formulou os seguintes quesitos:
1 – O quadro clínico atual é consequência do evento dos autos ou de patologia prévia e/ou alterações degenerativas? Fundamentem.
2 - Se o quadro clínico atual for consequência do evento dos autos, estabeleçam, fundamentadamente, o nexo de causalidade clínico, atentos os pressupostos científicos seguintes:
- Natureza adequada do ato ou evento para produzir as lesões ou sequelas evidenciadas;
- Natureza adequada das lesões à etiologia traumática em causa;
- Adequação entre a sede do traumatismo e a sede da lesão;
- Encadeamento anátomo-clínico;
- Adequação temporal, e
- Exclusão de causa estranha ao traumatismo.
3 - Na situação em apreço cumprem-se os referidos pressupostos científicos?
4 – Quais as lesões sofridas no acidente dos autos?
5 – Resultaram sequelas de tais lesões? Fundamentem.
6 – Em caso afirmativo, fundamentem, estabeleçam o respetivo nexo de causalidade clínico, enquadrem-nas na TNI e, fundamentadamente, indiquem a IPP a fixar.
7 – Qual a data da alta?
8 – Qual o período de incapacidade temporária a considerar?
9 – Os Senhores Peritos consideraram necessária uma avaliação de especialidade? Em caso afirmativo, qual?
- Na junta médica respondeu-se nos seguintes termos: - Realizado o julgamento foi proferida sentença julgando a ação nos seguintes termos:
“Pelo exposto, decido julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:
1. Condeno a ré seguradora a pagar ao autor a quantia de € 25,00 (vinte cinco euros), acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a data da tentativa de conciliação até integral pagamento;
2. No mais, absolvo a ré seguradora dos pedidos contra si formulados…”
Inconformado o autor apresentou recurso com as seguintes conclusões:
I- DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DO AUTO DE JUNTA MÉDICA
2. Salvo o devido e merecido respeito, enferma o auto de exame por junta médica de obscuridades, deficiências e até mesmo de contradições, bem como as conclusões apresentadas pelos Senhores Peritos Médicos não se mostram devidamente fundamentadas.
3. Na verdade, nem os esclarecimentos prestados pelos Senhores Peritos Médicos em audiência permitiram sanar essas obscuridades, deficiências, contradições, e mantiveram a falta de fundamentação das suas conclusões.
…
7. E, não se esqueça, que o nº 8 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Dec. Lei nº 352/2007, e 23 de outubro, afirma que devem “os peritos fundamentar todas as suas conclusões”
8. Dúvidas não restam que o auto de exame por junta médica enferma de falta de fundamentação, uma vez que os Senhores Peritos se limitam a dar respostas curtas e sintéticas, não por isso possível compreender como chegaram a tais conclusões.
9. Certo é que, o Tribunal a quo sustentou a decisão no auto de exame por junta médica e limitou-se a invocar o argumento da unanimidade de opinião dos Senhores Peritos Médicos, com o qual não podemos concordar por este argumento não se afigurar suficiente.
…
11. Importa ainda realçar que a insuficiência ou falta de fundamentação também se verifica pela existência de outros meios probatórios, pela existência de relatórios periciais contraditórios e pelo grau de complexidade da questão.
12. Sucede que, existem nos autos prova que que contraria o entendimento vertido no auto de exame por junta médica, como é o caso dos relatórios da perícia singular realizada no Gabinete Médico Legal e Forense do Cávado que discordam em absoluto do entendimento dos Senhores Peritos Médicos que realizaram o auto de exame por junta médica.
13. E, sublinhe-se que esses relatórios se encontram bem fundamentados e as suas conclusões são claras, pormenorizadas, rigorosas e tiveram por base o processo clínico e o exame objetivo ao Recorrente.
14. Mas, e mais importante, dos depoimentos das testemunhas Dr. BB e Dr. CC, resulta evidente que foi cometido um erro de interpretação pelos Senhores Peritos Médicos que realizaram o exame por junta médica.
15. Ora, de acordo com o douto aresto do Ac. TRL de 26-05-202110: “…No caso da coexistência de relatórios periciais contraditórios, o juiz deve recorrer aos critérios ora enunciados para graduar o valor dos laudos e escolher o que será mais convincente. Com efeito, o juiz não poderá formular essa graduação com base em conhecimentos científicos. Devera proceder a análise de cada um dos laudos de acordo com os critérios objetivos enunciados de modo que o laudo prevalecente será o que obtiver melhor resultado nessa análise individual, feito critério a critério…”
...
17. Destarte, e tendo por base toda a análise de toda a prova produzida nos autos, deveria o Tribunal a quo proferido decisão de acordo com as conclusões da perícia singular.
…
19. E mais, também a restante prova que foi produzida, quer documental (relatórios clínicos) como testemunhal foi nesse sentido.
…
20. Posto isto, preceitua o art. 662º, nº2, alínea c) do CPC, aplicável, por força do nº 1 do art. 87º do CPT que decisão proferida na 1ª instância deve ser anulada sempre que repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto.
…
II- IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
22. Salvo o devido e merecido respeito, existem razões para que se alterem as respostas dadas à matéria de facto provada sob os nºs 3 e 6.
23. Apesar de não se compreender, a verdade é que o Tribunal a quo apenas teve em consideração respostas que os Senhores Peritos Médicos apresentaram ao quesito primeiro e terceiro, formulados nos factos controvertidos e aos esclarecimentos por estes prestados em audiência.
24. Os Senhores Peritos Médicos afirmam que o Recorrente apenas padeceu de incapacidade temporária absoluta para o trabalho durante o período de 20 de fevereiro de 2018 a 29 de março de 2018 e que a alta clínica ocorreu a 29 de março de 2013.
25. Ora, depois desta afirmação só podemos concluir os Senhores Peritos Médicos se bastaram com uma leitura rápida e até mesmo descuidada do processo clínico do Recorrente, ou, porventura não tiveram acesso a toda documentação clínica deste.
26. E, assim sendo, ignoraram todo o resto e apenas se centraram no facto dos serviços médicos da Ré terem dada alta ao Recorrente a 29 de março de 2018
27. Não se pode aceitar que os Senhores Peritos Médicos tenham ignorado a documentação junta aos autos que comprova que após a referida alta médica por parte da Ré, o Recorrente:
- Continuou a ser acompanhado no Hospital ..., dada a persistência da dor que o incapacitava quer a nível profissional, quer pessoal;
- Teve de ser submetido a cirurgia (sutura da coifa por via artroscópica) em 02 de agosto de 2018;
- Teve de realizar cerca de 44 sessões de fisioterapia em contexto hospitalar e cerca de 40 sessões em contexto ambulatório, que se prolongaram até 29 de março de 2019;
- Só retomou a sua atividade profissional a 18 de dezembro de 2018 – data teve autorização médica para retomar a sua atividade profissional –, e ainda, com algumas limitações.
28. Aliás, o Recorrente produziu prova no sentido oposto ao que se deu por provado, quer por força das declarações de parte do Recorrente e dos depoimentos das testemunhas DD … e Dr. BB … quer da prova documental junta aos autos, bem como dos relatórios realizados pela perícia singular.
29. Importa salientar que declarações de parte do Recorrente…, são claras, no sentido de esclarecer que esteve incapacitado para o trabalho desde 20 de fevereiro de 2020 – data em que sofreu o acidente – até ao momento em que regressou ao trabalho, em dezembro 2018 e demonstra que realizou mais de 40 sessões de fisioterapia e foi sujeito a tratamento fisiátrico.
30. Mas e mais importante, dessas declarações, dúvidas não restam, que aquando da alta dada pela Ré, o Recorrente não se encontrava curado, como ficou patente na sua descrição das dores que sentiu e da limitação de mobilidade no braço esquerdo durante o período em que esteve incapacitado para trabalhar, motivo pelo qual se encontrava totalmente dependente da prestação de cuidados da esposa para se alimentar, vestir, tomar banho e para se deslocar.
31. Do depoimento da testemunha Dr. BB, médico que se encontra no 4º ano de formação para a especialidade de ortopedia, podemos colher que o período em que o Recorrente esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho é compatível com o tempo de recuperação necessário para a lesão que sofreu.
32. E não se olvide que, uma vez mais, o Tribunal a quo ignorou o que é afirmado pelo perito singular no Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito do Trabalho: que o Recorrente esteve com “incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua atividade profissional), desde 20/02/2018 até 17/12/2018, fixável num período total de 301 dias”, bem como, ainda afirma que “A data de consolidação médico-legal das lesões é fixável em 17/12/2018, tendo em conta os seguintes aspetos: a data da alta clínica”.
…
36. Assim, foram incorretamente julgados os factos provados nº 3 e 6, devendo
ser alterados nos seguintes termos:
“3. Como consequência direta e necessária do acidente, o autor ficou a padecer de incapacidade temporária absoluta para o trabalho pelo período de trezentos e um dias. “
“6. O autor teve alta clínica no dia 17 de dezembro de 2018”
37. Ora, ao alterar o facto provado nº 3 nos termos supra descritos, deverá a Ré ser condenada a pagar ao Recorrente a quantia de € 9.895,63 (nove mil e oitocentos e noventa e cinco euros e sessenta e três cêntimos), a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta, o que, desde já, se requer.
38. Outrossim, a respeito da factualidade provada sob o n.º 4 e da factualidade não provada sob o nº 1, constata-se que a prova foi incorretamente apreciada pelo Tribunal a quo.
39. Uma vez mais, o Tribunal a quo formou a sua convicção, apenas na resposta que os Senhores Peritos Médicos, no auto de junta médica, apresentaram ao quesito segundo, formulados nos factos controvertidos, e nos esclarecimentos prestados em audiência, ignorando a restante prova produzida.
40. E aqui não se pode deixar de sublinhar o facto que os Senhores Peritos Médicos responderam ao quesito segundo, formulado nos factos controvertidos, no qual se questionava, se “como consequência direta e necessária do acidente, o autor ficou a padecer de incapacidade permanente parcial para o trabalho de 3,00%”, com um simples “Não”.
41. Todavia, certo é que se produziu prova no sentido oposto ao que se deu por provado no facto descrito sob nº 4 e ao que se deu por não provado no facto descrito sob nº 1, o que decorre das declarações de parte do Recorrente e dos depoimentos das testemunhas EE…, e Dr. BB …, como também decorre dos relatórios subscritos pelo perito singular que realizou exame pericial no Gabinete Médico Legal e Forense do Cávado.
…
43. O que vai de encontro ao entendimento do perito singular que no seu Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito do Trabalho, fixou a incapacidade permanente parcial resultante do acidente em 3,0000%, tendo por base as sequelas descritas no relatório, bem como a consulta da Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (Anexo I do Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de outubro).
44. Assim, foi incorretamente julgado o facto provado descrito sob o nº ... devendo considerar-se não provado
45. Por seu turno, o facto não provado descrito sob o nº ... foi incorretamente julgado devendo considerar-se provado, e por via disso deverá ser revogada a sentença proferida no processo nº 176/18.... (fixação da incapacidade para o trabalho).
…
47. A respeito da factualidade provada sob o n.º 5 constata-se que também a prova foi incorretamente julgada, existindo fundamentos para que se altere a resposta dada à matéria de facto em apreço.
48. O Tribunal a quo formou a sua convicção, em nada mais do que, nas respostas que os Senhores Peritos Médicos, no auto de junta médica, apresentaram aos quesitos primeiro, segundo, terceiro e quinto, formulados pela Ré, ignorando, uma vez mais, a restante prova produzida.
49. Contudo, não pode o Tribunal a quo ignorar que foi produzida prova no sentido oposto ao que se deu por provado no facto descrito sob nº 5., o que podemos comprovar pelo relatório realizado pela perícia singular que afirma que:
- “Não refere antecedentes patológicos e/ou traumáticos relevantes para a situação em apreço”;
“Os elementos disponíveis permitem admitir o anexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões e se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo.”;
- “No relatório da Dr.ª FF, de 27-07-2018, refere-se que o examinado nunca apresentou quaisquer queixas ao nível dos ombros prévios ao evento em apreço.”
50. Note-se que esses relatórios tiveram por base o teor do relatório da ressonância magnética.
51. Estranho é que a decisão recorrida apresente contradições ao afirmar que “O depoimento das testemunhas ouvidas não contrariou minimamente o entendimento dos senhores peritos médicos. (…). Estas testemunhas manifestaram um entendimento contrário ao da junta médica, mas justificaram a sua divergência apenas com o argumento de que os senhores peritos médicos, pese embora fossem pessoas com experiência e competência técnica reconhecida, não estavam familiarizados com as lesões do ombro e tinham cometido um lapso.”
52. Na verdade, o Recorrente fez prova no sentido contrário ao que se deu por provado no facto descrito sob nº 5 - para além dos relatórios da perícia singular e de outros relatórios juntos aos autos - conforme decorre das declarações de parte do Recorrente e dos depoimentos das testemunhas EE …, DD …, Dr. BB … e Dr. CC…
…
54. Mas e mais importante, dos depoimentos das testemunhas Dr. BB e Dr. CC, resulta evidente que lesão sofrida pelo Recorrente era uma rutura aguda, ou seja, uma rutura recente, mais explicitaram que os Senhores Peritos Médicos que realizaram o exame por junta médica cometeram o erro de interpretação porque o que consta do relatório da ressonância magnética é que a articulação acromioclavicular tem alterações degenerativas, o que nada tem que ver com a articulação glenoumeral, onde o Recorrente sofreu a lesão e veio a necessitar de intervenção cirúrgica.
55. E a verdade é que é isso mesmo que está vertido no relatório de ressonância magnética: “Proeminentes alterações artrósicas degenerativas na articulação acromioclavicular….”
56. Pela testemunha Dr. CC, que é perito em dano corporal, foi afirmado ocasionalmente ocorrem erros de interpretação por parte dos senhores peritos médicos no exame por junta médica porque o processo é rápido.
57. Ora, não se vislumbram razões para que o Tribunal a quo ignore os depoimentos das testemunhas Dr. BB e Dr. CC, sendo que o primeiro é médico em formação para a especialidade em Ortopedia e Traumatologia e o segundo é médico com especialidade em Ortopedia e Traumatologia, e que dentro desta especialidade tem uma subespecialidade em cirurgia de ombros e é Perito em avaliação de dano e valore as respostas dadas no auto de exame por junta médica e nos esclarecimentos dos senhores peritos médicos em audiência de julgamento em que apenas um dos Senhores Peritos Médicos tinha a especialidade de Ortopedia e Traumatologia.
58. Verifica-se, por tudo quanto foi dito, que o Recorrente nunca padeceu de patologia degenerativa no local onde sofreu a lesão, tendo esta sido provocada como consequência direta e necessária do acidente de trabalho, e ainda, que ocorreu um erro de interpretação por parte dos Senhores Peritos Médicos que realizaram o exame por junta médica.
59. Assim, foi incorretamente julgado o facto provado descrito sob o nº ... devendo ser alterado nos seguintes termos:
“5. Como consequência direta e necessária do acidente, o Recorrente sofreu luxação glenoumeral do ombro esquerdo.”
III- DO DIREITO
60. Ainda que permaneça inalterada toda a factualidade provada e não provada – o que não se concede – e salvo o devido respeito por opinião contrária, de acordo com o disposto no art. 11º do regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, sempre teria o Recorrente direito a uma reparação integral.
…
62. Mais, se Recorrente fosse portador de predisposição patologica – o que não se concede - sempre teríamos de concluir que acidente de trabalho funcionou como agente ou causa desencadeadora da doença ou lesão.
63. E isto também pode ser concluído pela resposta dada pelos Senhores Peritos Médicos, ao quesito primeiro, formulado pela Ré que “a prévia rutura neste segmento é fator de risco para a ocorrência de luxação” ´
…
64. De relevar que mesmo que o Recorrente fosse portador de patologia degenerativa pré-existente ao acidente, sempre terá ocorrido agravamento da sua situação clínica.
65. Devendo deste modo ser atribuída Incapacidade Permanente Parcial de 3,00%, tal como fixado pela perícia singular.
66. Assim, tendo o Tribunal a quo dado por provado o facto descrito sob o nº ..., sempre teria de decidir no sentido da reparação integral o Recorrente, nos termos do disposto no art. 11º do regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais.
Em contra-alegações sustenta-se o julgado.
Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
***
A factualidade relevante, além da que resulta do precedente relatório, é a seguinte:
1. O autor exercia a atividade profissional de motorista de pesados, auferindo a retribuição anual de € 17.074,84;
2. No dia 19 de fevereiro de 2018, o autor desequilibrou-se e caiu quando se deslocava de bicicleta da sua residência para o local de trabalho;
3. Como consequência direta e necessária do acidente, o autor ficou a padecer de incapacidade temporária absoluta para o trabalho pelo período de trinta e sete dias;
4. Como consequência direta e necessária do acidente, o autor não ficou a padecer de incapacidade permanente para o trabalho;
5. O autor apresentava luxação glenoumeral do ombro esquerdo que resultou de patologia degenerativa de que era portador;
6. O autor teve alta clínica no dia 29 de março de 2018;
7. O autor despendeu a quantia de € 380,01 em deslocações para tratamentos, consultas, medicamentos e ajudas médicas;
8. O autor despendeu a quantia de € 25,00 em deslocações obrigatórias no âmbito dos presentes autos;
9. A responsabilidade por acidentes de trabalho com o autor estava transferida para a ré por contrato de seguro titulado pela apólice ...01, o qual era válido e eficaz na data do acidente;
10. A ré entregou ao autor a quantia de € 1.313,80 pelos períodos em que esteve com incapacidade temporária para o trabalho;
11. O autor nasceu no dia .../.../1964.
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Questões colocadas:
- Falta de fundamentação do auto de junta médica, por obscuridades, deficiências e contradições, e por falta de fundamentação das conclusões, desconsiderando-se meios probatórios.
- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto, no que respeitar aos pontos:
- Respostas dadas à matéria de facto provada sob os nºs 3 e 6, devendo ser alterados nos seguintes termos:
“3. Como consequência direta e necessária do acidente, o autor ficou a padecer de incapacidade temporária absoluta para o trabalho pelo período de trezentos e um dias. “
“6. O autor teve alta clínica no dia 17 de dezembro de 2018”
- factualidade provada sob o n.º 4, a considerar não provada, e factualidade não provada sob o nº 1 a considerar provada.
- Questão da predisposição patológica e indemnizações devidas.
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- Falta de fundamentação do auto de junta médica, por obscuridades, deficiências e contradições, e por falta de fundamentação das conclusões, desconsiderando-se meios probatórios.; e modificação da matéria de facto.
Tratar-se-á em conjunto as duas matérias dada a sua interligação no caso.
A junta médica constitui prova pericial, que, nos presentes autos, havendo desacordo, é obrigatória, conforme artigo 138º e 140º do CPT. Conquanto sujeita à livre apreciação do juiz (art. 389º do CC), este, em qualquer peritagem (mas com especial relevo nos casos em que esta é obrigatória, o que implica de si uma especial ponderação do legislador no sentido da sua utilidade e pertinência), dada a falta das habilitações técnicas que demanda a peritagem, em caso de discordância, deverá fundamentar devidamente a mesma, designadamente com base em elementos de igual valia técnico/científica.
Refere o nº 8 das Instruções Gerais da TNI:
“O resultado dos exames é expresso em ficha elaborada nos termos do modelo anexo, devendo os peritos fundamentar todas as suas conclusões”.
Resulta daqui que a posição tomada pelos peritos, o seu entendimento quanto às várias questões médicas sobre que se solicitou o laudo, devem encontrar justificação na fundamentação a constar do parecer, podendo embora esta resultar das respostas dadas aos quesitos formulados pelas partes.
Tal obrigação de fundamentação assume particular relevo, no enquadramento das lesões, na concretização do grau de incapacidade dentro do range previsto nas alíneas, na aplicação ou não de fatores de bonificação ou correção, nos casos de disfunções ou sequelas não previstas na tabela, comtemplando os aspetos profissionais, do posto de trabalho do sinistrado e outros que relevem ao caso. Relativamente ao enquadramento e fixação da incapacidade, estando em jogo uma situação clinica pré-existente, os peritos devem fundamentadamente esclarecer qual ou quais os reflexos da predisposição patológica no grau de incapacidade, tendo em conta o comando do artigo 11º da LAT, no qual se refere que “ quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo dele resultasse, a não ser que pela lesão ou doença anterior o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da presente lei” (nº 2).
No caso presente, os Srs. Peritos em resposta referem que consideram que no sinistrado era portador de patologia degenerativa a nível do ombro esquerdo (como confirmado pela ressonância magnética), que justifica em absoluto as queixas apresentadas. Efetivamente a prévia rotura neste segmento é fator de risco para a ocorrência de luxação”. Referem que o quadro clínico atual não é consequência do evento dos autos, “atendendo aos pressupostos elencados”.
No acidente, referem, o sinistrado sofreu “luxação glenoumeral do ombro esquerdo”. A pergunta sobre se resultaram sequelas de tais lesões, responderam negativamente, referindo, “visto que as sequelas que o sinistrado apresenta decorrem de patologia pré-existente, tal como explicado no ponto 1 evidenciado na ressonância magnética.
Decorre ainda que consideraram como data da alta a de 29-3-2018, correspondente à data da alta dada pela seguradora. A seguradora deu alta, referindo para tratamento no SNS e referindo alterações degenerativas. Refere ainda o boletim de alta, “ RMN – Rutura completa dos T do supraespinhoso e infraespinhoso. O T supraespinhoso tem infiltração gorda e atrofia muscular Goutalier 2”
Na ressonância magnética de 20/3/2018 consta:
“observamos rutura completa dos tendões supra e infraespinhoso, apresentando o supraespinhoso retração ao nível da glenoide, com discreta atrofia do ventre muscular e estrias adiposas dispersas Goutallier 2…
Cabeça Umeral não centrada na glenoide por subluxação lateral e superior, apresentando alterações degenerativas acentuadas na região da grande tuberosidade, não sendo aparentes sinais de fratura.
Proeminentes alterações artrósicas degenerativas na articulação acromioclavicular, com hipertrofia da cápsula e osteofitose marginal interior condicionando impingement, associando alterações erosivas nas duas extremidades, assim como edema medular ósseo, traduzindo um quadro misto de osteoartrite. Acrómio de morfologia tipo I…”
Dos elementos do Hospital ... resulta que no dia do sinistro o autor deu entrada com “luxação gleno-umeral”, sujeita da redução. Pedido RX, não se confirma fratura, referindo–se presença de calcificação com estigmas de cronicidade.
Da tac articular, refere-se, visualização de fratura da vertente inferior da glenoide referindo-se ainda alterações de natureza degenerativa.
Não resulta dos autos, designadamente dos elementos médicos, que anteriormente tivesse havido queixas ou sequer deteção da patologia. Veja-se informação do ACES ... de 31/8/2018.
Refere ainda alterações degenerativas na região da grande tuberosidade.
Como referido, dos elementos do hospital resulta que o sinistrado entrou no dia do sinistro com luxação glenoumeral”. E se, como referem os Srs. peritos, a patologia degenerativa “justifica em absoluto as queixas apresentadas” e que “a prévia rotura neste segmento é fator de risco para a ocorrência de luxação”, daí não parece poder concluir-se que a luxação não tenha resultado da queda, conquanto houvesse um risco presente em virtude da patologia. O laudo reveste alguma ambiguidade, já que partindo do “evento dos autos”, não referem qualquer lesão decorrente deste – queda da bicicleta, parecendo partirem do principio de que da queda nada resultou. Esta questão deve ser esclarecida. Importa referir que relativamente a factualidade alheia às questões médicas, e fora do quadro da peritagem, não compete aos peritos pronuncia sobre elas. Necessário é esclarecer se partem ou não de algum pressuposto relativo à existência da queda.
Pressupondo que resulte demostrado que ocorreu uma queda e como consequência desta uma luxação, não resulta, nesta hipótese, devidamente fundamentada a influência da pré-existente doença na luxação resultante do sinistro, ou desta na pré-existente patologia.
Importa ainda ver esclarecido qual a causa da rutura completa dos tendões supraespinhoso e infraespinhoso e demais lesões referidas na ressonância magnética. São anteriores ou posteriores à luxação? Foram devidas em termos imediatos à luxação ocorrida no sinistro? pré-existiam? ocorreram posteriormente devido à patologia? Ocorreu influência para ocorrência de tais lesões, da luxação ocorrida com a queda da bicicleta, ou pode dizer-se tendo em conta a ciência e a experiencia médica que as mesmas teriam ocorrido como consequência única da patologia, nas mesmas circunstancias de tempo e modo?
*
Quanto ao ponto 5 dos factos, a fundamentação dos mesmos baseia-se exclusivamente no laudo, sendo que os Srs. Peritos não presenciaram a ocorrência, nem intervieram na prestação dos primeiros cuidados médicos. Outras provas apontam no sentido da ocorrência de uma luxação após e por causa da queda. Confrontem-se os dados do Hospital ..., do dia do sinistro, referindo a luxação, conjugados com a informação do ACES ... de 31/8/2018, que alude à inexistência de queixas anteriores e os depoimentos de EE e GG. Existe fundada dúvida sobre esta prova no que tange especificamente a este facto.
Importa que os Srs. Peritos esclareçam a razão do seu entendimento (se é esse) no sentido de que da queda não resultou a luxação referida nos elementos clínicos do Hospital ..., relativos ao próprio dia do sinistro. O facto – ocorrência da luxação com a queda (e cadeia de ocorrências clinicas em ligação) - em si deve ser esclarecido, com produção de outras provas, além das já produzidas, designadamente se se entender necessário, ouvindo o(s) clínico(s) que prestou(aram) os primeiros cuidados, que melhor que outros podem referir se a luxação decorre da queda (embora esteja presente uma patologia pré-existente), ou se efetivamente não é imputável a esta, nem esta contribuiu para a ocorrência.
Assim, quanto à peritagem, deve ser esclarecido, tendo em conta o atrás referido:
1- Tendo em conta o referido no sentido de que a patologia “justifica em absoluto as queixas apresentadas… a prévia rotura neste segmento é fator de risco para a ocorrência de luxação”, é entendimento ou pressuposto do entendimento dos srs. peritos que a luxação não ocorreu devido a queda da bicicleta?
Com que fundamento? Existem indícios (quais) no sentido de a luxação ser anterior à queda?
A queda é em abstrato causa capaz de provocar a luxação tal como detetada no Hospital ..., ainda que a ocorrência possa ter-se por facilitada em virtude da pré-existente patologia?
Independentemente da resposta a este ponto 1:
2- Pressupondo-se como certo que a luxação apresentada foi determinada, em termos imediatos, pela queda da bicicleta, pode concluir-se que em resultado da queda e da lesão por esta provocada, ocorreu agravamento da anterior patologia?
- Ou a lesão provocada pela queda foi agravada pela anterior patologia?
- Qual a causa da rutura completa dos tendões supraespinhoso e infraespinhoso e demais lesões referidas na ressonância magnética? A luxação decorrente da queda teve alguma influência na ocorrência, ou aquelas foram anteriores a esta?
Tal rutura pode ocorrer sem apresentar sintomatologia?
- Qual a atual situação em termos de sequelas? – (palpação dolorosa do ombro esquerdo e limitação conjugada da mobilidade de grau I.?) –
Estas sequelas surgirem ou não, da cadeia de acontecimentos determinada pela luxação decorrente da queda?
Estas sequelas, sendo decorrência da patologia, foram ou não agravadas pela luxação decorrente da queda e de outras eventuais lesões que sejam consequência desta.
- O agravamento determinado pelas lesões decorrentes do sinistro é permanente, ou foi temporário?
- Se temporário, e tendo em conta a ciência e experiencia médica, qual o tempo necessário para completa cura das sequelas que decorram do sinistro ou tenham sofrido agravamento em virtude deste?
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O laudo não satisfaz as exigências para um correto julgamento por parte do tribunal. Tenha-se em conta que uma coisa é dizer ao julgador qual o grau que os peritos entendem, logrado mediante um método e por aplicação dos conhecimentos que possuem, mas sem reflexo no laudo, outra é fornecer ao julgador os elementos essências ao método tendente à aquisição daquela conclusão, daquele conhecimento, expondo o seu próprio itinerário cognitivo, de forma compreensível para um não técnico.
O grau de exigência varia naturalmente de acordo com a factualidade em causa, implicando naturalmente um grau acrescido em determinados casos. O nível de esclarecimentos médicos deve ser o necessário, tendo em conta as questões colocadas na perícia, para a formação da convicção do julgador, de forma a poderem sustentar a bondade da decisão face aos seus destinatários. Tal nível de esclarecimento varia pois caso a caso. Circunstancias há em que pouco mais é possível que a opinião do perito, baseada em toda uma experiencia profissional. Mas sendo tecnicamente possível trazer aos autos a informação e factualidade apreensível pelo julgador, que sustenta a própria opinião do perito, tal deve constar da fundamentação do laudo.
No caso dos autos, existe naturalmente um grau acrescido de fundamentação, já que está em causa a aplicação das regras relativas à predisposição patológica, constantes do artigo 11º da Lei LAT.
Não cumprindo o seu objetivo, o laudo não permite afinal, quer a sã formação do juiz decisor em primeira instância, quer a reapreciação da prova em sede de segunda instância, nos termos do artigo 662º do CPC., importando anular o julgamento, quer do apenso quer destes autos, nos termos do art. 662º, nº 2, al. c) do Código de Processo Civil, tendo em vista a ampliação da matéria de facto, designadamente, o esclarecimento/apuramento das questões acima elencadas, devendo ser solicitado aos peritos médicos que integraram a junta médica as respostas e esclarecimentos referenciados, e ainda eventualmente, outras diligências que se mostrem necessárias, tais como uma junta da especialidade, dada a complexidade (especialidade) das questões, e ainda se se entender necessário, para correto esclarecimento do ponto 5 dos factos, reapreciando-se após as diligências os factos 3 a 6.
Decisão:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, anulando-se a sentença recorrida, devendo o tribunal de 1ª instância ordenar e levar a cabo as diligências suprarreferidas e outras que se mostrem necessárias, tendo em vista os esclarecimentos referidos.
Custas pela parte vencida a final.