CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONSUMIDOR
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
FACTOS CONCLUSIVOS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


I. Para que, num caso de compra e venda de um veículo automóvel, se beneficie do estatuto de consumidor, previsto no Dec-Lei nº 67/2003, de 08-04, é necessário demonstrar que tal veículo não se destina, ainda que em parte, a uso profissional ou que a utilização na actividade profissional seja tão ténue que se possa considerar marginal ou despicienda.
II. A vinculação de alguém a um contrato deve se aferida pelas suas declarações, expressas ou tácitas, que, claramente, a tanto conduzam.
III. A mera referência a meios de prova não chega para se provarem factos, sendo estes que relevam na decisão da causa.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I


AA instaurou contra Sodicentro – Comércio de Veículos, Ldª, e Mercedes Benz Portugal, S.A., todos com os sinais dos autos, acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que sejam as Rés solidariamente condenadas a pagarem-lhe a quantia de 35.184,74 €, correspondente aos serviços de reparação efectuados no âmbito e prazo de garantia, juros moratórios, privação do uso da viatura e danos morais sofridos, com o acréscimo de juros vincendos.

Alegou que:

No dia 18.12.2013, adquiriu à 1ª Ré o veículo ligeiro de passageiros de marca Mercedes-Benz, modelo E-300 Blue Tec Hybrid, com a matrícula ..-OF-.., pelo valor de €56.800,00.

Para além da garantia legal de dois anos, nos termos do art. 5º, n.º 1 do D.L. n.º 67/2003 de 08/04, o Autor era titular de uma extensão da garantia por dois anos.

No dia 17.12.2017, o referido veículo avariou e foi rebocado para as oficinas da 1ª Ré, onde foi entregue no dia 18.12.2017.

A avaria implicava a necessidade de substituição do compressor híbrido do ar condicionado, abrangido pela garantia.

As Rés declinaram a sua responsabilidade, invocando a 2ª Ré que se encontra ultrapassado quer o prazo de garantia quer da extensão da garantia, que teria terminado no dia 16.12.2017.

Anteriormente, o referido veículo sofreu duas avarias: a primeira em 05.02.2014, em que o veículo ficou imobilizado durante sete dias, a fim de ser reparado pela 1ª R., e a segunda ocorreu no dia 14.09.2015, tendo o veículo ficado imobilizado durante 5 dias, para o diagnóstico da avaria e sua reparação, pelo que o prazo de garantia foi suspenso durante esses períodos.

A avaria que ocorreu no dia 17.12.2017 (substituição do compressor do ar condicionado) é abrangida pela garantia.

Atendendo ao silêncio das Rés, o autor recorreu a uma notificação judicial avulsa, a fim de que elas procedessem, entre o mais, à reparação da viatura no âmbito da garantia e à entrega da mesma no prazo de 8 dias a contar da recepção da notificação, bem como ao pagamento de 126,00€ por cada dia de imobilização da viatura e respectiva privação.

O Autor acabou por pagar o valor apresentado pela 1ª Ré (€ 1.951,37), no dia   21.06.2018, para poder recuperar a sua viatura, que já se encontrava imobilizada desde o dia 17 de Dezembro de 2017, apesar de nunca ter concordado em pagar.

A viatura foi entregue reparada no dia 21.06.2018, decorridos 186 dias sobre a data em que avariou, mas o Autor não recepcionou o veículo, deixando-o nas instalações da 1ª Ré para que procedesse à revisão.

No dia 28.06.2018, a viatura avariou.

Voltou o Autor a accionar o seguro de assistência em viagem, que rebocou a viatura para a oficina da 1ª Ré, em ....

A avaria, desta vez, era no chicote e cablagem eléctricos, o que a impedia de circular e estaria coberta pela garantia.

A 1ª Ré não assumiu a reparação, alegando estar fora do período de garantia.

Deu ordem de reparação, a fim de evitar mais delongas.

A viatura foi entregue, reparada, ao Autor em 23.07.2018.

Teve de pagar o valor apresentado pela 1ª Ré relativo à reparação, € 1.521,60.

O A. usava a referida viatura, quer para uso pessoal, quer para uso profissional, sendo gerente de uma empresa que comercializa madeiras.

Uma viatura com características semelhantes custa, pelo menos, € 126,00 por dia.

O Autor ficou privado da sua viatura desde o dia 17.12.2017 até ao dia 21.06.2018 e do dia 28.06.2018 até ao dia 23.07.2018, por culpa das Rés, que não diligenciaram atempadamente pela reparação da viatura, por, numa primeira fase, não assumirem, erroneamente, a avaria dentro da garantia e, numa segunda fase, não procederem a tal reparação conforme as instruções do Autor.

Tem o direito de ser indemnizado pelo facto de estar privado do seu automóvel, no montante de 26.586,00€.

O silêncio das Rés e o atraso nas respostas provocaram-lhe angústia e ansiedade, tendo deixado de conciliar o sono e passado a ser uma pessoa quezilenta, sentindo irritabilidade e tendo de tomar medicação para se tranquilizar e dormir.

Reclama o Autor, a título de danos morais, a quantia de € 5.000,00.


Contestaram as Rés.

A Ré Sodicentro – Comércio de Veículos, Ldª. impugnou diversa factualidade e negou que qualquer das avarias invocadas esteja abrangida por qualquer garantia legal ou voluntária.

Acrescentou que:

O uso que o Autor dá à viatura, tal como confessa na petição inicial, é no exercício da sua atividade profissional, pelo que ao presente litígio não é aplicável o Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril.

Mesmo que assim se não entenda, a responsabilidade da 1ª Ré para com o Autor estaria circunscrita ao período de dois anos a contar da entrega do bem, ou seja, a garantia legal terminaria a 18.12.2015.

É a R. alheia à extensão de garantia a que alude o Autor e que adquiriu no dia 31.12.2013 à 2ª Ré.

Esse contrato, de garantia voluntária, tinha expressamente como data de validade o dia 16.12.2017 e o Autor estava perfeitamente ciente dessa data.

Ora, tendo a avaria ocorrido no dia 17.12.2017, já não se encontrava abrangida nem pela garantia legal, nem pela garantia voluntária.

Não é responsável pelos montantes peticionados pelo Autor, pois responderia apenas em termos da garantia legal e vista a data em que esta terminou.

É falso que o A. tenha dado, com a sua comunicação de 2 de Março de 2018, autorização expressa para que a R. procedesse à reparação da avaria sofrida pelo veículo em 17 de Dezembro de 2017. Na verdade, a dita comunicação do A. de 2 de Março de 2018, autorizava e instava a ora R. a proceder à reparação ao abrigo da pretensa garantia a que o A. entendia ter direito.

Essa “autorização” pressupunha que a 1ª Ré aceitasse reparar o veículo ao abrigo de uma pretensa garantia, entendendo o Autor que os custos de tal reparação deveriam ser integralmente suportados pela 1ª Ré e/ou pela 2ª Ré.

As Rés já tinham informado o Autor no que respeita ao facto de a reparação não estar abrangida por qualquer garantia.

O Autor estava perfeitamente ciente desse facto, pois, aquando da sua presença nas instalações da 1ª Ré, em ..., em Janeiro de 2018, foi-lhe expressamente transmitido que a reparação não se encontrava abrangida por qualquer garantia.

Foi o Autor quem, por sempre ter exigido que a Ré suportasse o custo da reparação ao abrigo de garantias que se encontravam caducadas, contribuiu para que o veículo tivesse ficado imobilizado desde 17.12.2017 até 21.06.2018 nas suas instalações.

Ainda assim, a 1ª e a 2ª Rés comparticiparam em cerca de 50% do custo da reparação.

Considerou absurdo o valor peticionado pelo A. relativamente à privação do uso do veículo, bem como defendeu não haver razão para uma indemnização por danos morais.

Concluiu pela improcedência da acção.


Na sua contestação, a Ré Mercedes Benz S.A. alegou que:

Contratou com o Autor, através da “Sodicentro”, a extensão da garantia cujos termos e condições constam do documento que junta como nº 1.

Essa extensão da garantia contratada não prolonga a garantia legal mas, sim, a garantia voluntária concedida pelo fabricante e cujos termos constam do manual do condutor que junta como documento nº 2.

O fabricante concede uma garantia voluntária de bom funcionamento, com o âmbito e as condições ali descritas, sendo que esta tem início na data do primeiro registo ou na data da entrega do veículo.

Como consta do documento junto como nº 1 com a sua contestação e do cartão entregue ao Autor pela “Sodicentro”, relativo à extensão da garantia, esta terminou no dia 16 de Dezembro de 2017.

Transmitiu ao Autor que a avaria ocorrida não estava no âmbito da extensão da garantia, uma vez que esta havia terminado nessa data.

Tratando-se de uma garantia voluntária, ela não se interrompe nem se suspende.

Em Junho de 2018, o veículo do Autor também não beneficiava de qualquer garantia, legal ou voluntária.

Concluiu pela improcedência da acção.


Foi, em audiência prévia, proferido saneador tabelar, definiu-se o objecto do litígio e seleccionaram-se os temas de prova.

Prosseguindo os autos, teve lugar a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Inconformado, o Autor recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, onde foi proferido acórdão, no qual se que julgou o recurso parcialmente procedente e se condenaram as Rés, solidariamente, a pagar ao Autor a quantia de € 1.951,37, bem como o valor decorrente da privação do uso do veículo entre 17.12.2017 e 21.06.2018, a liquidar, acrescidos dos juros vencidos, à taxa legal, desde esta data, e dos vincendos até integral pagamento.


Irresignada, a R. MERCEDES-BENZ PORTUGAL, S.A. (MBP), interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«A) Ao decidir como decidiu, revogando a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, o Tribunal da Relação de Coimbra fez uma incorrecta aplicação da lei substantiva.

B) Não sendo, o autor recorrido, qualificável como consumidor – como se provou – não beneficiou, o veículo dos autos, de garantia legal de dois anos.

C) A garantia legal de dois anos resulta do regime constante do Decreto-Lei 67/2003, de 8 de Abril, aplicável a relações de consumo.

D) O veículo dos autos beneficiou de uma garantia legal de seis meses, nos termos do disposto no artigo 921.º do Código Civil.

E) O veículo dos autos beneficiou de uma garantia voluntária de bom funcionamento, nos termos previstos no manual do condutor do veículo.

F) O autor contratou uma extensão de garantia, subsequente ao termo da garantia voluntária de bom funcionamento, cujo termo, conforme indicado no cartão que a titulava, para efeitos de cobertura nas oficinas autorizadas Mercedes-Benz ocorreu em 16 de Dezembro de 2017.

G) Nos termos do disposto no artigo 405 do Código Civil, “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”.

H) O contrato de extensão de garantia foi celebrado ao abrigo do princípio da liberdade contratual, não contendo disposição ilegal ou censurável.

I) É, pois, manifesto o erro na aplicação de lei, plasmado no acórdão de que se recorre, por um lado, pela conclusão de que o veículo beneficiou de uma garantia legal de dois anos – incorrecta aplicação do regime constante do Decreto-Lei 67/2003, de 8 de Abril, a uma situação que não se enquadra no seu âmbito de aplicação, por não se tratar de uma relação de consumo;

J) E, por outro, por desconsideração do princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405.º do Código Civil.

K) Uma correcta interpretação da lei teria conduzido à confirmação da decisão proferida em primeira instância, no sentido de que a garantia legal do veículo foi de seis meses e de que a data aposta no cartão relativo à validade da garantia voluntária é eficaz.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas. deve ser concedido provimento ao presente recurso de revista e, consequentemente, deverá proceder-se à revogação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, confirmando-se a sentença proferida em primeira instância, com o que se fará Justiça!»


Contra-alegou o A, concluindo o seguinte:

«1º) A interpretação da lei levado a cabo, nesta fase, carece de fundamento factual e legal.

2º) Não existiu um prazo de garantia de 6 meses (regime previsto no artigo 921º do C.C.), acrescido do prazo de garantia contratual de 2 anos.

3º) O automóvel em causa avariou a primeira vez em 05/02/2014 e a segunda em 14/09/2015.

4º) Estas avarias foram abrangidas pela garantia e assumidas pelas rés como tal.

5º) Ficou provado que a recorrente concede ao comprador uma garantia voluntária de 2 anos de bom funcionamento, a contar da entrega do veículo ou da data da primeira matrícula, sendo válida a mais antiga.

6º) O recorrido beneficiou de uma garantia inicial de 2 anos, acrescida de uma garantia contratual de dois anos.

7º) Atendendo o estipulado no artigo 279º, al. b) do C.P.C., o términus do prazo dos 4 anos de garantia terminaria em 18/12/2017 ou em 19/12/2017, conforme supra alegado.

8º) O artigo 405º do CC. tem aplicação no que diz respeito à garantia convencional acordada entre as partes, nada tendo a ver com a garantia inicial dos 2 anos,

9º) que no entender do recorrido, correspondia a garantia dos 2 anos prevista no regime do consumidor.

10º) No entanto, foi a própria recorrente que invocou a garantia voluntária de 2 anos por si concedida e juntou aos autos o doc. n.º 2 com a contestação.

11º) Pelo que, face ao supra exposto, não houve incorrecta interpretação da lei pelo Tribunal da Relação de Coimbra, atendendo a que o recorrido beneficiava de 4 anos de garantia, conforme as várias comunicações transmitidas pelas Rés ao recorrido ( cfr. doc. 4, 6, 7 e 10 juntos com a petição inicial).

Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, com o douto suprimento, devem as presentes conclusões proceder e, por via disso, deve o douto Acórdão proferido manter-se, considerando improcedente o recurso interposto pela recorrente.»



*


Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, assume-se, in casu, como questão central, a de saber se a extensão de garantia em causa nestes autos, tendo em conta os factos provados, cessou em 16-03-2017, com as consequências daí decorrentes.



II


No Acórdão recorrido, deram-se por provados os seguintes factos (figurando a negrito as alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação):

«1. A 1ª Ré dedica-se ao comércio de automóveis da marca MERCEDES-BENZ, de forma habitual e com carácter lucrativo;

2. A 2ª Ré é representante da marca alemã MERCEDES-BENZ em Portugal;

3. Em 18.12.2013, o Autor celebrou com a 1ª Ré um contrato de compra e venda do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca Mercedes-Benz, modelo E300 BlueTEC HYBRID, com a matrícula ..-OF-.., pelo valor de € 56.800,00;

4. O Autor adquiriu o veículo à 1ª Ré;

5. O Autor é o proprietário e possuidor da identificada viatura;

6. O automóvel foi entregue ao Autor no dia 18.12.2013;

7. Para além da garantia legal, o Autor era titular de uma extensão de garantia de dois anos;

8. Em 17.12.2017, o referido veículo automóvel avariou quando circulava na Autoestrada A1, no sentido Norte-Sul, na área de serviço de A..., E..., e foi rebocado (assistência em viagem) para as oficinas da 1ª Ré, onde foi entregue no dia 18.12.2017;

9. A avaria implicava a necessidade de substituição do compressor híbrido do ar condicionado;

10. As rés declinaram a sua responsabilidade no âmbito da garantia com os fundamentos expostos nas comunicações de 31.01.2018 e 02.02.2018;

11. Invoca a 2ª Ré, na primeira comunicação, que “se encontra ultrapassado quer o prazo de garantia, quer da extensão da garantia, tendo esta última terminado a 16 de dezembro de 2017”;

12. E, na segunda comunicação, invoca que “salientamos que a extensão de garantia contratada termina dois anos após o terminus da garantia que a viatura usufruiu, pelo que, no caso em apreço, a extensão da garantia afecta à viatura acima identificada terminou em 16 de dezembro de 2017”;

13. Por comunicação de 05.02.2018 e 15.02.2018, o Autor voltou a interpelar as Rés a fim de assumirem a responsabilidade da reparação, no âmbito da garantia;

14. A 2ª Ré respondeu, por comunicação datada de 01.03.2018, nos termos que constam do documento nº 10 junto com a petição inicial, referindo que “a referida extensão da garantia voluntária teve o seu terminus em 16/12/2017”;

15. No dia 2 de Março de 2018, foi remetida a comunicação que consta do documento nº 11 junta com a petição inicial;

16. Através dessa comunicação, foi solicitada a reparação da viatura;

17. Na referida comunicação, o Autor, através da sua mandatária, requereu que as Rés informassem do prazo previsto para a reparação da viatura até ao dia 05.03.2018, pelas 12 horas;

18. O Autor, através da sua mandatária, solicitou resposta à sua carta de 02.03.2018, por comunicação enviada em 07.03.2018 e solicitou que informassem se já tinham iniciado a reparação da viatura;

19. O Autor remeteu às Rés uma notificação judicial avulsa,

20. A 1ª e a 2ª Rés foram notificadas, respectivamente, em 25.05.2018 e em 24.05.2018;

21. Anteriormente, o veículo automóvel do Autor sofreu duas avarias;

22. A primeira foi em 05.02.2014;

23. Aquando da avaria de 05.02.2014, o veículo do Autor ficou imobilizado durante sete dias;

24. A segunda avaria ocorreu em 14.09.2015, tendo o veículo sido entregue ao Autor em 18.09.2015, tendo o mesmo ficado imobilizado durante os 5 dias que foram necessários para o diagnóstico da avaria e sua reparação;

25. O Autor recorreu à notificação judicial avulsa das Rés, a fim de estas procederem, entre outros, à reparação da sua viatura no âmbito da garantia, à entrega da viatura no prazo de 8 dias a contar da recepção da notificação e ao pagamento da quantia de € 126,00 por cada dia de imobilização da viatura e respectiva privação até à entrega da viatura reparada;

26. Na sequência da notificação judicial avulsa, a 1ª Ré enviou a carta datada de 19.06.2018 que foi junta com a petição inicial sob o documento nº 19;

27. Por carta datada de 20.06.2018, o Autor manifestou à 1ª Ré a sua discordância quanto ao pagamento da reparação do veículo, por entender que a mesma se enquadrava na garantia;

28. No dia 21.06.2018, o Autor procedeu ao pagamento do valor solicitado pela 1ª Ré: € 1.951,37 (cfr. factura nº ...78, de 21.06.2018);

29. A viatura foi entregue reparada no dia 21.06.2018, mas o autor só a recepcionou no dia 22.06.2018, após a revisão ter sido efectuada;

30. No dia 28.06.2018, a viatura do Autor avariou;

31. O Autor acionou o seguro de assistência em viagem que rebocou a viatura para a 1ª Ré, nas suas instalações de oficina, em ...;

32. O veículo apresentava avaria no chicote e cablagem eléctricos, que impediam a viatura de circular;

33. A 1ª Ré não assumiu a reparação, alegando estar fora do período de garantia;

34. Em 11.07.2018, foi enviado ao Autor o orçamento nº ...61, no valor de €1555,40;

35. No mesmo dia, o Autor enviou uma comunicação, por correio electrónico, para as Rés, dando conta do seu descontentamento, atendendo ao sucedido, e deu ordem de reparação;

36. A viatura foi entregue ao Autor em 23.07.2018 reparada;

37. O Autor pagou o valor apresentado pela 1ª Ré, cfr. factura nº ...95, de 23.07.2018, no valor de € 1.521,60;

38. O Autor usava a referida viatura, quer para uso pessoal, quer para uso profissional;

39. O Autor é gerente de uma empresa que comercializa madeiras em todo o território nacional e também exporta;

40. O Autor necessita deslocar-se para divulgar e promover a sua actividade e os bens que comercializa;

41. Necessita de reunir-se regulamente com os seus clientes para formalizar as encomendas, as vendas e promover novas madeiras;

42. É com a identificada viatura que o Autor habitualmente se desloca;

43. O Autor também usa a referida viatura para as deslocações à sede da sua empresa, para ir às compras, para ir ao médico e para tratar de todo o tipo de assuntos;

44- O Autor, no momento da aquisição e entrega do veículo, ou seja em 18/12/2013, contratou com a ré Sodicentro o produto denominado “extensão de garantia Mercedes Benz”;

45- Tal extensão de garantia foi depois, em 31/12/2013, adquirida e formalizada pela Sodicentro de Coimbra à Mercedes Benz Portugal SA,.

46. Eliminado.

47. Na carta junta pelo Autor como documento nº 4 com a petição inicial, consta expressamente que, juntamente com a mesma, a 1ª Ré lhe remeteu o “cartão de Extensão de Garantia associado à viatura de matrícula ..-OF-..”;

48. O dito cartão corresponde ao documento nº 2 junto com a contestação da 1ª Ré;

49. Consta expressamente do dito cartão – que foi enviado ao Autor com a carta pelo mesmo junta como documento nº 4 com a petição inicial – que a dita extensão da garantia seria válida até 16.12.2017 ou até que o veículo atingisse 350.000 kms;

50. A comunicação do Autor de 2 de Março de 2018 autorizava e instava a 1ª Ré a proceder à reparação ao abrigo da pretensa garantia a que o Autor entendia ter direito;

51. A “autorização” dada pelo Autor na dita comunicação pressupunha que a 1ª Ré aceitasse reparar o veículo ao abrigo de uma pretensa garantia, entendendo o Autor que os custos de tal reparação deveriam ser integralmente suportados pela 1ª Ré ou pela Mercedes Benz Portugal, S.A.;

52. A 1ª Ré e a Mercedes Benz Portugal, S.A. já tinham informado o Autor no que respeita ao facto de a reparação não estar abrangida por qualquer garantia;

53. Aquando da presença do Autor nas instalações da 1ª Ré, em ..., no mês de Janeiro de 2018, foi-lhe expressamente transmitido que a reparação não se encontraria abrangida por qualquer garantia, tendo também o Autor sido informado que a 1ª Ré poderia, quando muito, tentar que a Mercedes Benz Portugal, S.A. aceitasse comparticipar parte do valor da reparação, a título de mera cortesia comercial;

54. O Autor manteve-se irredutível e sempre exigiu a reparação do veículo ao abrigo da garantia;

55. Tendo a 1ª Ré recebido a notificação judicial avulsa do Autor, e atento o facto de necessitar do espaço de oficina ocupado pelo veículo do Autor, entendeu escrever ao Autor a carta junta como documento nº 19 com a petição inicial;

56. A 1ª Ré diligenciou obter, em primeiro lugar, a competente autorização por parte da Mercedes Benz Portugal, S.A. para a comparticipação da reparação e, de seguida, levou a efeito a mesma, que ficou concluída em 19.06.2018;

57. Na sequência da dita carta, o Autor respondeu à 1ª Ré, em 20.06.2018, reiterando o seu entendimento de que o custo da reparação deveria ser suportado pela 1ª Ré e pela Mercedes Benz Portugal, S.A. ao abrigo da garantia;

58. Tanto a 1ª Ré, na pessoa dos seus funcionários, como a Mercedes Benz Portugal, S.A. transmitiram ao Autor, desde o início, que a reparação não se encontrava abrangida por qualquer garantia;

59. Foi o Autor que sempre insistiu e exigiu que a 1ª Ré procedesse à reparação do veículo ao abrigo da garantia;

60. Quanto à avaria sofrida pelo veículo em Junho de 2018, os serviços da 1ª Ré explicaram ao Autor o motivo pelo qual a dita reparação não se encontraria também abrangida por qualquer garantia, tendo o custo da dita reparação sido em parte comparticipado pela 1ª Ré e pela Mercedes Benz Portugal, S.A., a título de cortesia comercial;

61. A 1ª Ré e a Mercedes Benz Portugal, S.A. comparticiparam em cerca de 50% o custo da reparação;

62. A Mercedes Benz Portugal, S.A é uma sociedade comercial anónima que tem como objecto:

a) A importação e/ou comercialização de veículos automóveis, respectivos motores, peças, acessórios e produtos com os mesmos relacionados;

b) A indústria de reparação de veículos automóveis e serviços conexos e a comercialização de produtos relacionados com essa indústria e serviços;

c) Qualquer actividade relacionada com ou de apoio ao comércio de veículos automóveis;

63. No exercício da sua actividade comercial, a Mercedes Benz Portugal, S.A. importa para Portugal produtos das marcas Mercedes-Benz e smart, produzidas pela sociedade de direito alemão Daimler AG, com sede em Estugarda, na Alemanha;

64. Os veículos importados pela Mercedes Benz Portugal, S.A. são, posteriormente, distribuídos pela rede de concessionários autorizados Mercedes-Benz e smart, em que se integra a 1ª Ré – Sodicentro – Comércio de Veículos, Ldª;

65. A Mercedes Benz Portugal, S.A. não celebra contratos de compra e venda com os clientes finais;

66. A Mercedes Benz Portugal, S.A. não presta assistência após venda de forma directa, sendo esta actividade desenvolvida pelas oficinas autorizadas da rede Mercedes Benz em que se integra a 1ª Ré;

67. Os termos e condições da extensão da garantia que o Autor contratou com a Mercedes Benz Portugal, S.A., através da Sodicentro, constam do documento junto como documento nº 1 da contestação da 2ª Ré;

68. Os termos da garantia voluntária concedida pelo fabricante constam do manual do condutor;

69. O fabricante concede uma garantia voluntária de bom funcionamento, com o âmbito e as condições descritas no documento nº 2 junto com a contestação da 2ª Ré, tendo início na data do primeiro registo ou na data da entrega do veículo;

70. Do cartão entregue ao Autor, pela Sodicentro, relativo à extensão da garantia, consta que esta terminou em 16 de Dezembro de 2017;

71. A Mercedes Benz Portugal, S.A. transmitiu ao Autor que a avaria ocorrida não estava no âmbito da extensão da garantia;

72. Na sequência de contactos com a Sodicentro, a Mercedes Benz Portugal, S.A., como medida de fidelização do cliente, decidiu comparticipar, a título de cortesia comercial, nos custos da reparação do veículo do Autor.»



III


Começa a Recorrente por dizer, nas suas conclusões, que, não sendo o Recorrido qualificável como consumidor – como se provou –, não beneficiou o veículo dos autos de garantia legal de dois anos, sendo que essa garantia resulta do regime constante do Decreto-Lei 67/2003, de 8 de Abril, aplicável a relações de consumo.

Acrescenta que:

- O veículo dos autos beneficiou apenas de uma garantia legal de seis meses, nos termos do disposto no artigo 921.º do Código Civil, e beneficiou de uma garantia voluntária de bom funcionamento, nos termos previstos no manual do condutor do veículo;

- O Autor contratou uma extensão de garantia, subsequente ao termo da garantia voluntária de bom funcionamento, cujo termo, conforme indicado no cartão que a titulava, para efeitos de cobertura nas oficinas autorizadas Mercedes-Benz ocorreu em 16 de Dezembro de 2017;

- O Tribunal da Relação de Coimbra atentou contra o princípio da liberdade contratual e uma correcta interpretação da lei teria conduzido à confirmação da decisão proferida em primeira instância, no sentido de que a garantia legal do veículo foi de seis meses e de que a data aposta no cartão relativo à validade da garantia voluntária é eficaz.


Alude a Recorrente ao prazo de 6 meses previsto no art. 921º do C. Civil, em cujos nºs 1 e 2 se prescreve:

«1. Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.

2. No silêncio do contrato, o prazo da garantia expira seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabelecerem prazo maior


Cumpre apreciar.

Na sentença proferida na 1ª Instância, considerou-se, a dado passo, o seguinte:

«Numa primeira análise, verifica-se concorrerem dois regimes jurídicos de aplicação concorrente: o regime jurídico plasmado nos artigos 913.º e ss do Código Civil, atinente à compra e venda de coisas defeituosas e o regime jurídico instituído pelo Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, (Regime Jurídico da Venda de Bens de Consumo - RJVBC) que transpôs para o ordenamento jurídico nacional a Directiva n.º 1999/44/CE.

Nos termos prescritos no artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, secundada pelo artigo 1.º-B. al. a) do RJVBC, considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens ou serviços, destinados ao seu uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica, verificando-se encontrar prevista uma noção de consumidor em sentido estrito e de carácter funcional, inderrogavelmente ligada à atribuição de finalidade alheia ao prosseguimento de qualquer actividade profissional (João Calvão da Silva, in “Venda de Bens de Consumo”, 2010, Almedina, p. 56).

No caso concreto, resulta dos factos provados que o Autor usava a referida viatura quer para uso pessoal, quer para uso profissional.

Deste modo, no caso concreto não é de aplicar a Lei de Defesa do Consumidor – Lei nº 24/96, de 31 de Julho, nem o Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril.»


O Tribunal da Relação corroborou a posição assumida pela 1ª Instância, no que concerne à alegada qualidade de consumidor do A., «pois que o recorrente usava, ou também usava, o carro para uso profissional e comercial».

Provou-se, na verdade, que

«38. O Autor usava a referida viatura, quer para uso pessoal, quer para uso profissional;

39. O Autor é gerente de uma empresa que comercializa madeiras em todo o território nacional e também exporta;

40. O Autor necessita deslocar-se para divulgar e promover a sua actividade e os bens que comercializa;

41. Necessita de reunir-se regulamente com os seus clientes para formalizar as encomendas, as vendas e promover novas madeiras;

42. É com a identificada viatura que o Autor habitualmente se desloca;

43. O Autor também usa a referida viatura para as deslocações à sede da sua empresa, para ir às compras, para ir ao médico e para tratar de todo o tipo de assuntos.»


Não se provou a aquisição para uso pessoal ou familiar exclusivo, nem sequer predominante, do veículo, o que afasta a aplicação do DL 63/2007, de 08-04.

Neste  sentido, pode ver-se o Ac. do STJ de 20-10-2011, Rel. Moreira Alves, Proc. 1097/04.0TBLLE.E1.S1, publicado em www.dgsi.pt (com destaque nosso):

«I - O conceito de consumidor, constante da Lei n.º 29/81, de 22-08, da Lei n.º 24/96, de 31-07, do DL n.º 359/91, de 21-09, da Directiva 1999/44/CE, de 25-05, e do DL n.º 67/2003, de 08-04 (entretanto reformulado pelo DL n.º 84/2008, de 21-05) tem um sentido restrito, mas coincidente, em todos esse diplomas: consumidor é a pessoa singular a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados exclusivamente a uso não profissional, por pessoa (singular ou colectiva) que exerça com carácter profissional um actividade económica que vise a obtenção de benefícios.

II - É a finalidade do acto de consumo que determina, essencialmente, a qualificação do consumidor como sujeito do regime de benefício que aqueles diplomas legais regulamentam, partindo da presunção de que se trata da parte mais fraca, menos preparada tecnicamente, em confronto com um contratante profissional, necessariamente conhecedor dos meandros do negócio que exercita.»


Vejam-se, ainda, os Acs. da Rel. de Lisboa de 18-06-2013, Rel. Ana Resende, Proc. 2154/12.4TBALM-A.L1-7 («Os negócios abrangidos pelo regime de compra e venda de bens de consumo são os que se estabelecem entre profissionais actuando no âmbito da sua actividade e pessoas que actuem fora do seu âmbito de actividade profissional, dos quais resulte a aquisição de bens destinados a uso não profissional, afastada ficando qualquer aplicação profissional do bem, mesmo que não exclusiva.») e de 21-12-2021, Rel. Isabel Salgado, Proc. 6365/20.0T8LSB.L1-7, ambos publicados em www.dgsi.pt, neste último se aludindo ao Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 25-01-2018 (processo C-498/16), anotando-se que dele se extrai «que a pessoa que celebra um contrato para um fim parcialmente relacionado com a sua actividade profissional só poderá beneficiar das disposições de tutela do consumidor, caso o nexo do contrato com a actividade profissional do interessado seja tão ténue que se torna marginal e, por isso, só tem um papel despiciendo no contexto da operação a propósito da qual o contrato foi celebrado, considerada globalmente». Na verdade, é o que se retira do ponto 32 desse Acórdão (que faz referência a outro nesse sentido), consultável em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62016CJ0498.

 Certo é que, in casu, não está demonstrado um nexo ténue com a actividade profissional, emanando tão-só dos factos provados uma repartição entre o uso pessoal e o profissional.

Apesar disso, o Tribunal a quo considerou que o veículo ainda beneficiava da garantia à data do evento em causa.

Importa ter em consideração que o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto.

Assim, os pontos 44, 45 e 46 da matéria de facto constante da sentença eram do seguinte teor:

«44. Na sequência da celebração do contrato de compra e venda do veículo do Autor, este solicitou à 1ª Ré que esta adquirisse à Mercedes Benz Portugal, S.A. um produto denominado “Extensão da Garantia Mercedes Benz”;

45. O Autor adquiriu, em 31.12.2013, o dito produto junto da Mercedes Benz Portugal, S.A.;

46. O dito contrato tinha expressamente como data de validade o dia 16.12.2017»


No Acórdão recorrido foi dada aos pontos 44 e 45 esta redacção (como resulta do elenco factual supra alinhado):

«44- O Autor, no momento da aquisição e entrega do veículo, ou seja em 18/12/2013, contratou com a ré Sodicentro o produto denominado “extensão de garantia Mercedes Benz”;

45- Tal extensão de garantia foi depois, em 31/12/2013, adquirida e formalizada pela Sodicentro de Coimbra à Mercedes Benz Portugal SA


O ponto 46 foi eliminado.


Será interessante recordar aqui o que se exarou, em sede de fundamentação, relativamente a esta matéria (com destaque nosso):

«Resulta também de tal prova pessoal que a garantia de origem era de dois anos – aliás, a legal -, e que a garantia adicional outrossim ascendia a dois anos.

Aquele primeiro prazo é ainda confirmado pelo doc. de fls. 89, e este último prazo é ainda confirmado pelo documento de fls. 13: carta enviada pela Mercedes ao autor em 12.02.2014.

Destarte, temos um prazo de garantia global de 4 anos: 2+2.

E a iniciar-se em 17.12.2013, data da matrícula do primeiro registo, em conformidade com o 2º parágrafo do documento de fls. 89.

O documento de fls. 76, que parece apontar para um prazo global de 47 meses e 17 dias com início em 31.12.2013 e terminus em 16.12.2017, tem de ceder perante a restante prova já mencionada e que convence ter o contrato com a garantia global de 4 anos ter-se iniciado em 17.12.2013.

Efetivamente, este documento é datado de 31.12.2013 mas não se sabe, porque não se fez prova, se e quando foi comunicado ao autor.

E a referida carta de 12-02.2014 é posterior, sendo suposto que corresponde a uma definição mais atual e real da situação negocial anuída.

Por conseguinte, e quanto ao ponto 46, estando provado que a garantia se iniciou em 17.12.2013 e que a garantia global era de 4 anos – 2+2 - esta não terminava em 16.12.2017, mas antes em 18.12.2017 – artº 279º al. c) do CC.

Assim sendo, não apenas se não provou, porque inexistiu qualquer prova, de preferência documental, que as partes anuíssem o fim da garantia para 16.12.2017, como, pelo que se referiu, esta data não podia, face ao mais dimanante dos autos, e pelo que se disse, ser considerada como válida e vinculativa

Por conseguinte, este facto não pode ser dado como provado, pelo menos com o sentido que dele pode retirar-se, ou seja, que o autor teve conhecimento e anuiu a garantia terminava em 16.12.2017


Embora se refira, sem citar norma atinente, que o prazo também era o legal, não se deixa de dizer que a garantia de origem era de dois anos.

A Recorrente afirmou, na contestação, que a extensão da garantia com ela contratada prolongava a garantia, igualmente voluntária, concedida pelo fabricante e cujos termos constam do manual do condutor.

A garantia do bom funcionamento, como referiu a própria R./Recorrente nas contra-alegações da apelação, era pelo prazo de 2 anos a contar da data da matrícula (17-12-2013 – cf. doc. nº 2 junto com a petição inicial), ou da entrega, relevando a data mais antiga (ficou provado no ponto  69 que o fabricante concede uma garantia voluntária de bom funcionamento, com o âmbito e as condições descritas no documento nº 2 junto com a contestação da 2ª Ré, tendo início na data do primeiro registo ou na data da entrega do veículo), não oferecendo dúvidas as regras de contagem enunciadas pelo Tribunal a quo, por referência ao art. 279º, al. c), do C. Civil.

Está em causa saber quanto terminou a extensão de garantia.

Na 1ª Instância, fez-se menção ao Ac. do STJ de 02-03-2010, Rel. Urbano Dias, 323/05.2TBTBU.C1.S1, em www.dgsi.pt, no qual se referiu, entre o mais, que

«A par [da] garantia legal (de cumprimento), a lei permite que a parte vendedora se comprometa, no próprio programa contratual, com o bom funcionamento da coisa, durante um determinado período.

A consagração desta garantia de bom funcionamento dada pelo vendedor ao comprador no programa contratual concreto é algo que surge como reforço da posição do comprador, como um quid plus que se junta à tutela legal, consagrada no artigo 913º e seguintes.

Na verificação desta hipótese, o vendedor assegura, por certo período de tempo, um determinado resultado, a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento da coisa.»


Considerou-se, em seguida, que:

«No caso concreto, resulta dos factos provados que o Autor adquiriu o veículo à 1ª Ré no dia 18.12.2013.

Porém, resulta, também dos factos provados que o Autor, na sequência da celebração do contrato de compra e venda do veículo, solicitou à 1ª Ré que esta adquirisse à Mercedes Benz Portugal, S.A. um produto denominado “Extensão da Garantia Mercedes Benz”, tendo o Autor adquirido, em 31.12.2013, o dito produto junto da Mercedes Benz Portugal, S.A..

Sucede que o dito contrato tinha expressamente como data de validade o dia 16.12.2017 (…)».

Concluiu-se:

«Provado ficou (…) que o veículo do autor avariou no dia 17.12.2017.

Todavia, não logrou o Autor provar, como lhe competia, que o seu veículo avariou durante o período da extensão da garantia.

Pelo contrário, o que resulta dos factos provados é que a extensão da garantia contratada pelo Autor terminou precisamente no dia 16.12.2017, um dia antes do veículo avariar.»


Esta conclusão está em consonância com o que se provou naquela instância. Mas, na Relação, como se viu, alterou-se a matéria de facto, eliminando-se o ponto 46, do qual constava que o contrato de extensão de garantia tinha expressamente como data de validade o dia 16.12.2017.

No acórdão recorrido, em sede de direito, sobre esta questão, essencial para a sorte do litígio, escreveu-se:

«Curial, em tese, a decisão[1], atenta, vg., a alteração dos factos apurados, não pode, no caso sub judice, subsistir.

O que se provou foi que o autor contratou com a 1ª ré uma extensão de garantia por mais dois anos a cumular com a garantia legal de dois anos, ou seja, estamos perante um prazo global de garantia de 04 anos.

Tal contrato foi firmado em 18.12.2013 e teve início e efeito retroativo a partir de 17.12.2013.

Não se provou que o autor tivesse assinado as condições especiais do contrato nas qual constasse que a garantia cessava em 16.12.2017.

Este foi apenas o entendimento das rés e plasmado no cartão atinente à extensão de garantia enviado ao autor.

Mas este entendimento não vinculava o recorrente.

Até porque nem sequer se provou que este, por qualquer modo ou de qualquer maneira, tivesse aceitado ou se tivesse conformado com tal data de 16.12.2017.

O seu simples silêncio e inércia quanto à sua contestação não é suficiente para se clamar pelo contrário.

O silêncio apenas vale como declaração negocial quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção – artº 218º do CC - , o que não se verifica no caso presente.

Depois, e no atinente à possibilidade de relevância da declaração tácita prevista no artº 217º do CC, a melhor exegese deste preceito vai no sentido de se considerar que:

«Na determinação da concludência do comportamento em ordem a apurar o respectivo sentido, nomeadamente enquanto declaração negocial que dele deva deduzir-se com toda a probabilidade, é entendimento geralmente aceite que a inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade, devendo ser aferida por um “critério prático”»

Porém, certo é que tal concludência deve ser «baseada numa “conduta suficientemente significativa” e que não deixe “nenhum fundamento razoável para duvidar” do significado que dos factos se depreende.» - Ac. do STJ de 16.03.2010, p. 97/2000 in dgsi.pt.

(sublinhado nosso)

No caso dos autos não se provou, nem se vislumbra, qualquer facto do qual se possa, razoável e sensatamente, deduzir que o autor aceitou o prazo de 16.12.2017; antes se provaram factos, como sejam as reiteradas solicitações junto das rés para pagamento das reparações que apontam no sentido da não aceitação da mesma.

Aliás, se não nos enganamos, a data de 16.12. foi fixada pelas rés tendo elas como data do dies a quo do prazo a de 17.12.2013.

Só que, se assim foi, como parece, fizeram mal as contas, atenta a regra geral do cômputo do prazo fixada no artº 279º do CC.

Perante as als. b) e c) deste preceito, que estatui que para tal contagem não se inclui o dia em que ocorrer o evento em que o prazo começa a correr (b), e que o prazo termina às 24 horas do dia correspondente ao do dia do seu início(c), a garantia não cessou em 16.12., mas antes em 18.12.2017, pois que o prazo iniciou-se em 18.12.2013 e terminou no dia correspondente de 2017, ou seja em 18.12.

Assim sendo, e independentemente de o autor dever ser considerado, ou não, consumidor (e corroboramos a sentença neste último sentido, pois que o recorrente usava, ou também usava, o carro para uso profissional e comercial), certo é que tendo a avaria ocorrido em 17.12., ela ainda se verificou dentro do prazo de garantia.

É um caso curioso de quase coincidência de datas na data limite da garantia mas, formalmente, é assim: por um dia se ganha, por um dia se perde.»


Deu-se como provado que:

«7. Para além da garantia legal, o Autor era titular de uma extensão de garantia de dois anos».


O A., ao referir-se à garantia legal, na petição inicial, tinha em mente a previsão do art. 5º, nº1, do DL 67/2003, de 08-04.

As instâncias entenderam não ser aplicável esse normativo, por não ter o A. o estatuto de consumidor, visto o uso do veículo ser destinado também à sua actividade profissional, como já se viu.

A Recorrente vinca que a garantia legal era de seis meses, mas não deixa de referir que o fabricante concedeu ao A. uma garantia de dois anos, que se contava, no caso, a partir da data da matrícula (por ser anterior à da entrega) e era sobre essa garantia que assentava a extensão de garantia, que era de dois anos, como resulta do ponto da matéria de facto citado.

Este ponto da matéria de facto contém, no seu início, uma expressão conclusiva –  “garantia legal” –,  cujo preenchimento é, à partida, discutível, como ressalta do que ficou exposto, dependente, desde logo, de se apurar se o A. beneficiava ou não do estatuto de consumidor (como ele pressupunha). Não devia, por isso, com todo o respeito, figurar na matéria de facto. Mas, vejamos:

A própria R./Recorrente se refere a uma garantia de dois anos sobre a garantia, também de dois anos, do fabricante, mas observa que a extensão de garantia cessou em 16-12-2017.

O Tribunal a quo também se referiu à garantia legal sem densificar esse conceito, tendo concordado com a 1ª Instância quanto a não beneficiar o A. do estatuto de consumidor. Mas não deixou de considerar adquirido nos autos que (com destaque nosso):

«(…) a garantia de origem era de dois anos – aliás, a legal -, e que a garantia adicional outrossim ascendia a dois anos.

Aquele primeiro prazo é ainda confirmado pelo doc. de fls. 89, e este último prazo é ainda confirmado pelo documento de fls. 13: carta enviada pela Mercedes ao autor em 12.02.2014.»


Ou seja, teve-se em consideração (como já, acima, se deixou assinalado) a garantia de origem de dois anos. A referência “aliás, a legal”, não densificada, não põe de lado aquela primeira constatação.


No ponto 69, recorde-se, deu-se como provado que (com destaque nosso):

«69. O fabricante concede uma garantia voluntária de bom funcionamento, com o âmbito e as condições descritas no documento nº 2 junto com a contestação da 2ª Ré, tendo início na data do primeiro registo ou na data da entrega do veículo».

 

Tendo em conta a data da celebração do contrato de compra e venda, uma extensão de garantia de dois anos, com o respectivo termo a situar-se numa data como a invocada pela R. (16-12-2017), só poderia ter como base uma garantia inicial de dois anos, fosse legal ou convencional. Nunca poderia assentar numa base de seis meses.

Provando-se que o Autor era titular de uma extensão de garantia de dois anos e estando também provado que, antes dessa, houve uma garantia do fabricante de dois anos, a começar, no caso, na data da matrícula (17-12-2013), a conclusão será aquela a que chegou o Tribunal recorrido, lançando mão das regras de contagem expressas no art. 279º do C. Civil.

A isto não constitui obstáculo a referência, na matéria de facto, ao que consta de meios de prova, como a que surge no ponto 70, relativamente ao que figurava no cartão entregue ao Autor, pois o que importa é aquilo que efectivamente resulta demonstrado/provado, com sustentação neste ou naquele meio de prova (a tanto se destinando, como é sabido, os meios de prova).

Quanto a factos provados/não provados, haverá que recordar que o Tribunal a quo, no conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto, eliminou o ponto – decisivo na decisão da 1ª Instância – em que se dera como provado que a data final de validade do contrato de extensão de garantia era a de 16.12.2017.

Há que não olvidar os limites da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no que se refere à matéria de facto.

Dispõe o art. 674º, nº3, do CPC:

«O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.»

E preceitua o art. 682º do CPC:

«1 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

2 - A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º.

3 - O processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.»


Conforme se exarou no Ac. do STJ de 15-12-2022, Rel. Oliveira Abreu, Proc. 524/20.3T8BJA.E1.S1, em www.dgsi.pt:

«O Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação decide sobre a impugnação da decisão de facto, quando ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação, podendo apenas intervir nos casos em que seja invocado, e reconhecido, erro de direito, por violação de lei adjetiva civil ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova, ou que fixe a força de determinado meio de prova, com força probatória plena.»


Não está em causa alguma das situações aqui mencionadas.


Concorda-se com o exarado pelo Tribunal da Relação no que se refere à subsunção dos factos ao direito, designadamente quanto a não resultar provado que o Autor tivesse assinado as condições especiais do contrato nas quais constasse que a garantia cessava em 16.12.2017 e, ainda, que se possa extrair do seu silêncio ou inércia a anuência relativamente a uma tal data, de modo a configurar-se uma declaração tácita (arts. 217º e 218º do C. Civil), revelando as reclamações do A. uma conduta de sinal contrário a uma tal aceitação e secundando-se aqui o que se considerou no citado Ac. do STJ de 16-03-2010, Rel. Alves Velho, Proc. nº 97/2002.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt.

O princípio da liberdade contratual (art. 405º do C. Civil), invocado pela Recorrente, deve ser aferido pelas declarações efectivamente apuradas, que possam ser atribuídas a quem haja firmado, no seu interesse, um contrato e que, em consequência, claramente, o vinculem. Ora, in casu, a aplicação do direito aos factos, face ao que se provou,  não representa ofensa a esse princípio.


No recurso não se abordou a questão dos danos, razão por que não há que tratar dessa matéria.


Improcede a revista.



Sumário (da responsabilidade do relator)


1. Para que, num caso de compra e venda de um veículo automóvel, se beneficie do estatuto de consumidor, previsto no Dec-Lei nº 67/2003, de 08-04, é necessário demonstrar que tal veículo não se destina, ainda que em parte, a uso profissional ou que a utilização na actividade profissional seja tão ténue que se possa considerar marginal ou despicienda.

2. A vinculação de alguém a um contrato deve se aferida pelas suas declarações, expressas ou tácitas, que, claramente, a tanto conduzam.

3. A mera referência a meios de prova não chega para se provarem factos, sendo estes que relevam na decisão da causa.



IV


Pelo que se deixou exposto, nega-se provimento à revista.

- Custas pela Recorrente.



*


Lisboa, 02-02-2023


Tibério Nunes da Silva (Relator)

Nuno Ataíde das Neves

Sousa Pinto

_____

[1] Refere-se a Relação à decisão da 1ª Instância.