A declaração do requerente José numa escritura pública perante uma autoridade administrativa estrangeira não está abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1 do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada.
1. AA, residente na Rua ..., ..., Brasil, e BB, residente na Avenida ..., ..., ... – ..., Brasil, intentaram acção especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo que seja revista e confirmada a sentença de reconhecimento da paternidade.
2. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 982º nº 1 do C.P.C.
3. Foi realizado o saneamento do processo, declarando- se o tribunal competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia e que o processo não enferma de qualquer nulidade que cumpra conhecer, sendo as partes legítimas, com personalidade e capacidade judiciárias, inexistindo excepções ou questões que obstassem à decisão da causa.
4. Veio a ser proferida decisão singular, pelo Relator, junto do TR, no qual se elencaram os factos relevantes e se decidiu que a declaração do requerente BB numa escritura pública perante uma autoridade administrativa estrangeira não está, pois, abrangida pela previsão do artigo 978º, n.º 1 do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada (www.dgsi.pt Acórdãos do STJ proferidos a 10 de dezembro de 2019, processo 249/18.0YPRT.S2; a 9 de maio de 2019, processo 828/18.5YRLSB.S1; a 21 de março de 2019, processo 559/18.6YRLSB.S1; a 28 de fevereiro de 2019, processo 106/18.0YRCBR.S1), sendo julgada a acção improcedente e negada a revisão pretendida.
5. Não se conformando com a decisão os requerentes pediram que a mesma fosse objecto de acórdão do Tribunal, que veio a dar origem à decisão recorrida, e pelo qual o colectivo manteve a decisão de improcedência da acção.
6. Deste acórdão foi interposto recurso de revista, no qual constam as seguintes conclusões:
1. Os Recorrentes AA e BB, não se conformando com o teor do Acórdão que julgou indeferir a Reclamação para a conferencia, confirmando assim a decisão sumária que negou a revisão e confirmação da Escritura de Reconhecimento de Filho, outorgada em 27-12-1994, no 2º Serviço Notarial Comarca ..., ..., da República ... pelo Recorrente BB, vêm colocar em crise o mesmo, por considerarem que contempla uma violação na interpretação e aplicação da lei substantiva, assim como contraria outros acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e do próprio Tribunal da Relação, assim como da própria secção que o proferiu, que no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito e têm entendimentos diferentes.
2. A questão a dirimir é verificar se estão reunidos os requisitos do artigo 980º do CPC, designadamente:
a. Se a Escritura que os Recorrentes apresentaram configura uma “decisão” ou “sentença” que possa ou deva ser revista e confirmada;
b. Se a Escritura de Reconhecimento de Filho ou Paternidade a rever, conduz a um resultado manifestamente incompatível com o princípio da ordem pública internacional do Estado Português – colocando em causa o princípio da verdade biológica;
3. O Cartório, na pessoa do seu Tabelião, “agente público” que sob as normas do Estado Brasileiro, e por ele permanentemente fiscalizado, conferiu fé pública às declarações do outorgante, aqui Recorrente BB, que nos termos dos artigos 351º e seguintes do Código Civil Brasileiro vigente à data (Código Civil Brasileiro de 1916), escritura que, em face da vontade do outorgante e do respeito pelos “requisitos constitucionais e legais”, declarou reconhecido o vínculo biológico entre o outorgante BB e o seu filho AA.
4. Por economia processual, os Recorrentes remetem a sua posição para o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-07-2022, processo nº 2201/21.9YRLSB-A.S1, Relator Ferreira Lopes, disponível em www.dgsi.pt. A saber: (…) Se é certo que a autoridade administrativa (tabelião) não intervém para homologar ou decidir sobre o divórcio, não é menos certo que lhe compete controlar a verificação de todos os requisitos de que depende o divórcio consensual. (…)
Assim, dissentindo do acórdão recorrido, entendemos que o controlo feito pelo tabelião da verificação dos requisitos de que depende o divórcio consensual por escritura pública, consubstancia a intervenção de uma entidade administrativa que cauciona o acto de divórcio, ao qual são atribuídos efeitos pela ordem jurídica brasileira. A escritura controlável pelo notário deve ser equiparada, pois, à expressa decisão jurisdicional ou administrativa. Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça nos acórdãos de 12.07.2005, P. 05B1880, de 25.06.2013, e de 09.03.2021, P.241/20, citados pelos Recorrentes.
5. Sendo da competência do Tabelião a verificação de todos os requisitos necessários para que o reconhecimento de paternidade (ou reconhecimento de filho), prevista nos artigos 355º Código Civil Brasileiro de 1916 e agora previsto nos artigos 1609º e seguintes do Código Civil Brasileiro de 2002, o reconhecimento de paternidade proferido por aquela entidade legalmente competente para esse efeito, produza efeitos no registo civil brasileiro.
6. Deve, por conseguinte, a referida escritura deve ser considerada uma decisão no que concerne à expressão decisão jurisdicional ou administrativa.
7. Pelo supra exposto, e salvo melhor opinião, a resposta à primeira parte da questão deve ser afirmativa, ou seja, a Escritura que os Recorrentes apresentam configura uma “decisão” ou “sentença” que possa ou deva ser revista e confirmada.
8. Quanto à segunda parte da questão: saber se a Escritura de Reconhecimento de Filho ou Paternidade a rever, conduz a um resultado manifestamente incompatível com o princípio da ordem pública internacional do Estado Português há que referir que a resposta à mesma é negativa.
9. Vejamos: no seguimento do entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-07-2020, processo nº 2818/19.1YRLSB-8, Relator Teresa Sandiães, que:
- A verdade biológica é um dos princípios estruturantes da ordem pública internacional do direito da filiação do Estado Português, contudo, sem consagração constitucional.
- Trata-se de princípio que não é absoluto, mas antes meramente prevalente, maxime no que respeita o estabelecimento da paternidade, em que estão previstas diversas exceções ou compressões daquele princípio.
- A reserva de ordem pública internacional deve apenas actuar em face do caso concreto e perante o resultado da revisão da decisão estrangeira.
- O resultado da revisão e confirmação da decisão revidenda, homologatória de acordo entre a representante legal do requerente e o requerido pelo qual este, reconhecendo juridicamente o pedido, admitiu a paternidade que lhe era atribuída na petição inicial, não é manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português que, embora erigindo a verdade biológica como princípio estruturante no direito da filiação, admite compressões e excepções ao mesmo. O resultado daquela sentença consiste no estabelecimento da paternidade, resultado este que em nada contraria aquela O.P.I...
10. Refe ainda o mesmo Acórdão que: Esta exceção de ordem pública internacional ou reserva da ordem pública só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante, grosseiro atropelo ou intolerável ofensa dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica do foro e, assim, a conceção de justiça de direito material tal como o Estado a entende.” – Ac. STJ de 08/07/2003, disponível em www.dgsi.pt.
Da ordem pública internacional distingue-se a ordem pública interna, sendo esta enformada por “aquelas normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, sobre eles se alicerçando a ordem económico-social, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos. São, pois, aquelas normas e princípios que se aplicam imperativamente e independentemente da vontade das partes.” – Mariana Madeira da Silva Dias, artigo citado, p. 300.
“Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português (sublinhado nosso) – núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, e que opera em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira.” (Ac. STJ de 21.2.2006, in www.dgsi.pt).
11. No mesmo sentido, refere o Acórdão do STJ, processo 15/11.3YRCBR.S1, Relator Nuno Cameira, disponível www.dgsi.pt, que:
I - O controle de mérito autorizado pelo art. 1100.º, n.º 2, do CPC, está circunscrito à matéria de direito, encontrando-se o tribunal do país do reconhecimento impedido de sindicar (alterando-o), seja a que título for, o julgamento a respeito da matéria de facto efectuado pelo tribunal estrangeiro.
12. Ora, pelo exposto, a escritura de reconhecimento de paternidade revidenda não coloca em causa a Ordem Pública Internacional do Estado Português, porquanto o mérito da “sentença”/Escritura pública ora revidenda não contém em si mesma, nem nos seus fundamentos, conteúdo, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português, nem à ordem pública interna. Pelo contrário, o regime jurídico brasileiro é em tudo semelhante ao português.
13. Mais se refere que, salvo melhor opinião, estão assim, verificados os requisitos necessários para a confirmação da decisão, conforme estabelecido no art. 980º do Código de Processo Civil, devendo a mesma ser revista e confirmada. A saber:
a) A escritura pública deve ser considerada uma sentença/ decisão no que concerne à expressão decisão jurisdicional ou administrativa;
b) Pode e deve ser revista e confirmada;
c) Não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do instrumento notarial revidendo, nem sobre a inteligência do seu conteúdo;
d) O reconhecimento de paternidade foi proferido pela entidade brasileira legalmente competente para esse efeito e tal competência não foi provocada em fraude à lei;
e) Foi feito o respetivo averbamento na certidão de nascimento do Recorrente AA;
f) A decisão revidenda não versa sobre matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses.
g) Não lhe podem ser opostas as exceções de litispendência ou caso julgado, com fundamento em causa afeta a tribunal português.
h) A decisão revidenda foi proferida com observância dos princípios de igualdade das partes.
i) E o seu reconhecimento não é suscetível de conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
14. Assim, e salvo melhor opinião, o Acórdão que ora se coloca em crise contempla uma violação na interpretação e aplicação da lei substantiva e, como supra se enunciou contraria outros acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e do próprio Tribunal da Relação, assim como da própria secção que o proferiu, que no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito e têm entendimentos diferentes.
7. O recurso foi admitido com efeito devolutivo (embora tivesse sido pedido o suspensivo), decisão que é correcta.
Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
II. Fundamentação
De facto:
8. Com interesse para a decisão da causa, resultaram provados, pelo documento 3 junto com a petição inicial, os seguintes factos:
1 - Por escritura lavrada a 27 de dezembro de 1994, no 2º Serviço Notarial da Comarca ..., do ..., o requerente BB declarou reconhecer AA como seu filho.
De Direito
9. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
10. O objecto do recurso é assim:
i) saber se estão reunidos os requisitos do artigo 980º do CPC, designadamente, se a Escritura que os Recorrentes apresentaram configura uma “decisão” ou “sentença” que possa ou deva ser revista e confirmada;
ii) sendo a resposta à primeira questão afirmativa, se a referida escritura Reconhecimento de Filho ou Paternidade a rever, conduz a um resultado manifestamente incompatível com o princípio da ordem pública internacional do Estado Português – colocando em causa o princípio da verdade biológica.
11. Para a 1ª questão objecto do recurso, dizem os recorrentes que a escritura de reconhecimento de paternidade – doc. 1 da PI – é equivalente a sentença e deve ser admissível o seu reconhecimento e confirmação em Portugal.
Argumentos dos recorrentes:
- o Tabelião, “agente público” actua sob as normas do Estado Brasileiro, e por ele permanentemente fiscalizado, conferiu fé pública às declarações do outorgante, aqui Recorrente BB, que nos termos dos artigos 351º e seguintes do Código Civil Brasileiro vigente à data (Código Civil Brasileiro de 1916), escritura que, em face da vontade do outorgante e do respeito pelos “requisitos constitucionais e legais”, declarou reconhecido o vínculo biológico entre o outorgante BB e o seu filho AA;
- Se é certo que a autoridade administrativa (tabelião) não intervém para homologar ou decidir sobre o reconhecimento da paternidade, não é menos certo que lhe compete controlar a verificação de todos os requisitos de que depende aquele – por similitude com a situação de divórcio consensual por escritura pública – e que o STJ tem decidido serem decisões susceptíveis de equiparação a sentença, podendo ser revista e confirmadas, conforme acórdãos de 12.07.2005, P. 05B1880, de 25.06.2013, e de 09.03.2021, P.241/20 – e ainda Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-07-2022, processo nº 2201/21.9YRLSB-A.S1
- Sendo da competência do Tabelião a verificação de todos os requisitos necessários para que o reconhecimento de paternidade (ou reconhecimento de filho), prevista nos artigos 355º Código Civil Brasileiro de 1916 e agora previsto nos artigos 1609º e seguintes do Código Civil Brasileiro de 2002, o reconhecimento de paternidade proferido por aquela entidade legalmente competente para esse efeito, produza efeitos no registo civil brasileiro.
- Deve, por conseguinte, a referida escritura deve ser considerada uma decisão no que concerne à expressão decisão jurisdicional ou administrativa.
11.1. No acórdão recorrido o Tribunal disse:
“O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se basicamente no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal. O que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Ou seja, desde que o tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa” (www.dgsi.pt acórdão do STJ de 12 de julho de 2011, processo 987/10.5YRLSB.S1).
Nos termos do art. 978º nº 1 do C.P.C., “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”
No caso dos autos, não temos uma sentença, mas sim uma escritura pública. “… desde há muito que se sedimentou a interpretação jurisprudencial no sentido de que a decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 1094º, n.º 1 do Código de Processo Civil, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 25 de junho de 2013, processo 623/12.5YRLSB.S1).
Da escritura pública em questão nestes autos não consta qualquer decisão do tabelião, mas apenas declaração do outorgante.
A declaração do requerente BB numa escritura pública perante uma autoridade administrativa estrangeira não está, pois, abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1 do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada (www.dgsi.pt Acórdãos do STJ proferidos a 10 de dezembro de 2019, processo 249/18.0YPRT.S2; a 9 de maio de 2019, processo 828/18.5YRLSB.S1; a 21 de março de 2019, processo 559/18.6YRLSB.S1; a 28 de fevereiro de 2019, processo 106/18.0YRCBR.S1).
O entendimento plasmado na fundamentação da decisão sumária é aquele que este coletivo acolhe e que tem apoio na jurisprudência recente do STJ, conforme resulta dos acórdãos citados na decisão sumária, como também do acórdão proferido pelo STJ a 20 de janeiro de 2022, no processo 151/21.8YRPRT.S1.
Na fundamentação deste último acórdão, pode ler-se: «cotejada a “escritura pública”, cuja revisão e confirmação vem rogada nesta demanda, distinguimos que esta limita-se a confirmar as aludidas declarações dos Requerentes/AA e BB, sem que o Tabelião tenha sobre elas feito incidir qualquer juízo vinculativo, com força de caso julgado, e que, enquanto tal, tivesse competência para emitir, daí que, não reconheçamos que a invocada “escritura pública” esteja compreendida, enquanto “decisão”, pelo normativo adjetivo civil decorrente do citado art.º 978º n.º 1, do Código de Processo Civil, devendo apenas ser valorado como meio probatório, sujeito à livre apreciação do julgador (a “escritura pública” ajuizada prova que os Requerentes/AA e BB fizeram perante o tabelião a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação), não possuindo, por, isso, força de caso julgado, não tendo virtualidade para poder ser confirmada/ revista pelos Tribunais portugueses.»
No caso dos autos, temos uma escritura de reconhecimento de paternidade.
A verdade biológica “é o princípio alicerçante do regime da filiação”, sendo “os direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (onde se inclui o direito de conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), reconhecidos constitucionalmente enquanto direitos fundamentais” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 15 de fevereiro de 2018, processo 2344/15.8T8BCL.G1.S2; Acórdão do STJ de 21 de setembro de 2010, processo 495/04; cf. art. 26º nº 1 da C.R.P.).
Rever escritura de reconhecimento da paternidade conduz a um resultado manifestamente incompatível com princípio da ordem pública internacional do Estado Português - o princípio da verdade biológica -, pois o reconhecimento da paternidade por escritura pública é um reconhecimento voluntário (cf. art. 1853º al. c) do C.C.) e confirmar a escritura implicaria convertê-lo em reconhecimento judicial e, consequentemente, coartar a possibilidade de impugnação do reconhecimento quando o mesmo não corresponde à verdade biológica (cf. art. 1859º nº 1 do C.C.).”
12. No acórdão relativo ao processo n.º 151/21.8YRPRT.S1-A, em 19/10/2022, o STJ uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:
“A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.”
No referido processo estava em causa saber se uma escritura pública declaratória de união estável e sobre a questão de saber se seria possível o seu reconhecimento como sentença estrangeira haviam sido proferidas decisões opostas, uma afirmando essa possibilidade, outras negando-a.
Tendo vencido a orientação de que as escrituras públicas declaratórias de união estável não são susceptíveis de revisão e confirmação como sentença, valendo apenas como meio de prova, importa verificar se existem semelhanças entre a referida escritura de união estável e a escritura de reconhecimento da paternidade, à luz do direito brasileiro.
13. O teor da escritura consta dos documentos de instrução da PI e é o seguinte:
14. Conforme é orientação do STJ - Acórdãos do STJ proferidos a 10 de dezembro de 2019, processo 249/18.0YPRT.S2; a 9 de maio de 2019, processo 828/18.5YRLSB.S1; a 21 de março de 2019, processo 559/18.6YRLSB.S1; a 28 de fevereiro de 2019, processo 106/18.0YRCBR.S1 – o reconhecimento de decisão estrangeira (ou equiparada a sentença) pressupõe que no documento que se apresenta se demonstre que existiu uma decisão/sentença.
E para se definir o que é uma decisão, na esteira da referida orientação, tomando por exemplo o que se diz no acórdão do STJ de 10 de Dezembro de 2019 (processo 249/18.0YPRT.S2):
“Sobre a amplitude do conceito de decisão para efeitos deste processo especial, Luís de Lima Pinheiro[13] escreveu: “por “decisão” entende-se qualquer acto público que segundo a ordem jurídica do Estado de origem tenha força de caso julgado. Há que aferir perante o Direito do Estado de origem se a decisão foi proferida por um órgão público e se tem força de caso julgado”.
E também aí se traça a fronteira entre decisão e declaração, referindo a diferença entre as situações que ocorrem, através da referenciação seguinte:
“O acórdão do STJ de 25-06-2013[14] - a propósito da escritura pública prevista no artigo 1124º-A do Código de Processo Civil Brasileiro (Lei nº 5869, de 11-01-1973), através da qual se pode realizar a separação consensual dos cônjuges, e prevista no artº 1580º do Código Civil Brasileiro -, decidiu que “os outorgantes não declaram a dissolução do vínculo conjugal. Pedem-na e o tabelião (notário) não se limita a testar as suas declarações, declara (decide) a dissolução, depois de verificados e preenchidos os requisitos legais”. O caso dos presentes autos é diferente. Os requerentes não obtiveram na escritura uma decisão homologatória por parte da tabeliã que possa servir de base à presente revisão. Apenas declararam que “mantêm, sob o mesmo tecto, convivência pública, contínua e duradoura com o objectivo de constituição de família, desde o mês de Julho do ano de dois mil e treze (…)” – (docfls 12).”
Quer isto dizer que nem todas as escrituras notariais realizadas no Brasil podem ser vistas pelo mesmo prisma, havendo que distinguir aquelas em que há uma decisão e aquelas em que não há decisão alguma do tabelião, não podendo escamotear-se a diferença de regimes entre separação, divórcio e constituição de união estável por escritura notarial.
15. No caso dos autos a situação apresenta paralelismo com a escritura de constituição da união estável, como resulta da leitura do doc. apresentado pelos recorrentes e acima reproduzido.
A intervenção notarial não envolve uma decisão no sentido de afirmar que estão preenchidos os pressupostos legais que a lei prevê para a constituição da situação, havendo exclusivamente uma confirmação de que declaração foi prestada pelo declarante. Não há qualquer intervenção do suposto filho, reconhecido, nem forma de o mesmo contestar a declaração prestada se a mesma viesse a ser reconhecida e confirmada, como explicita o tribunal recorrido.
Há assim paralelismo com a escritura de constituição da união estável, em relação à qual o STJ proferiu Ac de UJ no sentido de não poder haver reconhecimento e confirmação ao abrigo do art.º 978.º e ss do CPC.
16. Não sendo possível a revisão e confirmação da referida escritura, fica prejudicada a análise da segunda questão, muito embora também aqui se avance no sentido de contraditar a alegação do recorrente quando vê similitude entre a situação dos autos e a que esteve na origem do processo 2818/19.1YRLSB-8 do TRL, decidido em 2020.
No processo citado pelo recorrente do TRL de 2020, processo 2818/19.1YRLSB-8, a situação em análise não se reportava a uma declaração de reconhecimento notarial de paternidade mas a uma decisão judicial que homologou um reconhecimento, como se deduz do relato onde se lê:
“C… intentou a presente ação especial de revisão de sentença estrangeira contra A…, pedindo que seja revista e confirmada a sentença de reconhecimento da paternidade.
Alegou, em síntese, que intentou ação de investigação de paternidade contra o requerido no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Comarca de São Paulo, Foro Regional II – ..., ... Vara da Família e Sucessões. Por sentença, que homologou o acordo celebrado pelas partes, decretada em 09 de abril de 2002, e já transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi reconhecida a paternidade do R. em relação ao A., que adotou o nome de C….”
Os factos provados relevantes eram os seguintes:
- No processo de investigação de paternidade, por sentença proferida a 9 de abril de 2002 pela ... Vara da Família e Sucessões do Foro Regional de ... e Ibirapuera da Comarca de São Paulo, transitada em julgado, foi homologado o acordo celebrado entre a representante legal do requerente e o requerido pelo qual este, reconhecendo juridicamente o pedido, admitiu a paternidade que lhe era atribuída na petição inicial.
Ademais, no referido aresto o colectivo não foi unânime no que respeita a considerar que a referida homologação seria possível, como se constata pela leitura do voto de vencida da adjunta, onde se lê:
“É o princípio da verdade biológica que está na base do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 16 de outubro de 1984, transcrito na fundamentação da decisão reclamada por mim elaborada.
A verdade biológica “é o princípio alicerçante do regime da filiação”, sendo “os direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (onde se inclui o direito de conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), reconhecidos constitucionalmente enquanto direitos fundamentais” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 15 de fevereiro de 2018, processo 2344/15.8T8BCL.G1.S2; Acórdão do STJ de 21 de setembro de 2010, processo 495/04; cf. art. 26º nº 1 da C.R.P.).
Resulta do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência atrás citado que homologar transação que contenha o reconhecimento da paternidade é coartar o direito de livre impugnação estabelecido no art. 1859º nº 1 do C.C., segundo o qual “a perfilhação que não corresponda à verdade é impugnável em juízo”.
No seguimento de tal posição, rever sentença estrangeira que homologa acordo que contem reconhecimento da paternidade conduz a um resultado manifestamente incompatível com princípio da ordem pública internacional do Estado Português - o princípio da verdade biológica -, pois o reconhecimento da paternidade por termo lavrado em juízo é um reconhecimento voluntário (cf. art. 1853º al. d) do C.C.) e confirmar sentença estrangeira que o homologa implica convertê-lo em reconhecimento judicial e, consequentemente, coartar a possibilidade de impugnação do reconhecimento quando o mesmo não corresponde à verdade biológica.”
III. Decisão
Pelos fundamentos indicados é negada a revista.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2023
Fátima Gomes (Relatora)
Oliveira Abreu
Nuno Pinto Oliveira