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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA - TJUE
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
REGULAMENTO BRUXELAS II-A
DECLARAÇÃO DE EXECUTORIEDADE
REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Sumário
I - Na interpretação do Tribunal de Justiça da União Europeia, o recurso da decisão de atribuição de executoriedade a sentença proferida pelos tribunais de outro Estado-Membro, previsto no artigo 33.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (Regulamento Bruxelas II-A), não deve ter efeito suspensivo. II - Não se verificam os casos de recusa da declaração de executoriedade previstos nas alíneas c) ou d) do artigo 23.º do Regulamento Bruxelas II-A se a progenitora, sabendo da existência de um processo de regulação das responsabilidades parentais em França, no qual foi ouvida pessoalmente, era representada por mandatário judicial e cujas anteriores decisões impugnou, se ausenta para Portugal com o menor sem dar conhecimento desse facto às autoridades francesas e em violação das medidas aprovadas pelo respectivo tribunal, levando a que o tribunal francês haja proferido nova decisão (objecto do pedido de declaração de executoriedade) convocando-a previamente apenas para a sua última morada conhecida em França e vindo a notificação a ser devolvida por ausência da progenitora. III - O Tribunal Constitucional declarou no Acórdão n.º 422/2020 que nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, «só pode apreciar e recusar aplicação a uma norma de DUE, caso a mesma seja incompatível com um princípio fundamental do Estado de direito democrático que, no âmbito próprio do DUE – incluindo, portanto, a jurisprudência do TJUE –, não goze de valor paramétrico materialmente equivalente ao que lhe é reconhecido na Constituição, já que um tal princípio se impõe necessariamente à própria convenção do “[…] exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da União Europeia”. IV - Uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado-Membro em matéria de responsabilidade parental pode ser executada noutro Estado-Membro assim que tenha sido declarada a sua executoriedade por um órgão jurisdicional deste Estado, desde que a decisão de declaração de executoriedade já tenha sido notificada aos progenitores e ainda que não tenha transitado em julgado. V - Tendo a executoriedade sido declarada no âmbito de um processo tutelar cível, era possível ao tribunal adoptar, após aquela declaração, medidas de execução da decisão; a circunstância de estas medidas não terem lugar num processo de execução distinto não constitui, do ponto de vista material, um vício essencial e/ou insuprível à luz das regras jurídicas internacionais a que Portugal se encontra vinculado, designadamente o Regulamento Bruxelas II-A e a Convenção Universal dos Direitos do Homem.
Texto Integral
Recurso de Apelação ECLI:PT:TRP:2023:881.22.7T8VCD.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
O Ministério Público, em representação do menor AA, e ao abrigo do disposto nos artigos 21 e 28 a 39 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, da Convenção de Haia de 1996, do artigo 67.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, dos artigos 3.º, n.º 1, al. a), e 5.º, n.º 1, al. c), do Estatuto do Ministério Público, instaurou acção tutelar comum com vista à declaração de força executória da sentença proferida em 04/01/2022, pelo Cour d’Appel de Bastia, Tribunal Pour Enfants, Ajaccio, França, no processo de assistência educativa n.º JE 121/0048.
Alegou para o efeito que o menor AA nasceu em .../.../2020, em Ajaccio, França, é filho de BB e de CC, encontra-se aos cuidados da progenitora e a residir actualmente com esta em ..., Póvoa de Varzim; porém, por decisão de 14/04/21, da jurisdição de família Francesa, foi fixado um direito de convívios do progenitor com o AA e, posteriormente, face ao incumprimento desse regime pela progenitora, foi aplicada pelos tribunais franceses uma medida judiciária de investigação educativa e determinada a proibição da progenitora de sair do território francês até 22/01/2022, tendo a progenitora recorrido desta decisão em 29/07/21, decisão que foi confirmada por decisão do tribunal superior de 24/1/22, altura em que a progenitora já se tinha deslocado para Portugal, na companhia do filho; por sentença proferida em 04/01/2022, pelo Cour d’Appel de Bastia, Tribunal Pour Enfants, Ajaccio, no processo de assistência educativa n.º JE 121/0048, foi o AA confiado à guarda do progenitor, fixado um regime de convívios com a progenitora e aplicada a favor do AA uma medida de assistência educativa em meio aberto entre 04/01/22 e 04/01/23, sendo que esta decisão tem força executória no Estado em que foi proferida e foi notificada à progenitora.
Conclusos os autos foi proferida sentença a declarar «reconhecida e exequível a sentença proferida em 4/01/2022, pelo Cour D`appel de Bastia, Tribunal Pour Enfants, Ajaccio, no processo de assistência educativa nº J2 121/0048»
Agendada pela segurança social a entrega do menor ao progenitor e a requerimento deste foi proferido com data de 02/12/2022, o seguinte despacho:
«Tendo em conta o teor da decisão proferida nos presentes autos, transitada em julgado, o teor do requerimento que antecede e todo os antecedentes conhecidos quanto à recusa da entrega da criança determino desde já que sejam passados os competentes mandados de condução da criança ao progenitor, a cumprir de imediato e em articulação com o ISS como promovido e solicitando a ajuda das forças policiais para integral cumprimento de tal entrega.»
Notificada da sentença e deste despacho, a progenitora interpôs recurso, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso versa sobre decisão proferida em 08/06/2022 pelo Juízo de Família e Menores de Vila do Conde - Juiz 1, que declarou reconhecida e exequível a sentença proferida em 04/01/2022, pelo Cour D’Appel de Bastia, Tribunal pour Enfants, no Processo de Assistência Educativa n.º J2 121/0048, que confiou a guarda do menor AA ao progenitor, fixando um regime de visitas e convívio semanal em favor da mãe e aplicou ainda ao menor uma medida de Assistência Educativa em Meio Aberto, destinando-se este regime a vigorar entre 04/01/2022 e 04/01/2023.
2. É ainda objecto de recurso o despacho proferido pelo mesmo Tribunal a quo em 02/12/2022 que determina a emissão de «mandados de condução da criança ao progenitor, a cumprir de imediato e em articulação com o ISS como promovido e solicitando a ajuda das forças policiais para integral cumprimento de tal entrega».
3. Não obstante ter sido proferida há quase seis meses e de ter sido notificada ao MP, às Conservatória de Registos Centrais, à DGRSP, ao CDPSS, à equipa ATT e à GNR (!), a referida sentença nunca foi regularmente notificada à ora recorrente, que não foi tão-pouco citada para a correspondente acção tutelar comum, nem nela foi ouvida ou considerada, não tendo podido exercer contraditório, designadamente no sentido de evidenciar a ocorrência de fundamentos de não-reconhecimento nos termos do artigo 23.º do Regulamento Bruxelas II bis.
4. A ora recorrente só teve conhecimento quer da sentença que atribui força executória à decisão de um tribunal francês, quer do despacho que ordenou a emissão dos correspondentes mandados de detenção e entrega, no passado dia 02/12/2022, pelas 18 horas, aquando da execução dos referidos mandados.
5. Ora, «o recurso contra a declaração de executoriedade é interposto no prazo de um mês a contar da sua notificação» (art. 33.º, n.º 5, do Regulamento Bruxelas II bis).
6. Pelo que, apesar da nota de trânsito em julgado indevidamente lavrada no processo, deve o presente recurso, por ter sido intentado em tempo e por quem tem legitimidade, ser admitido.
7. Por maioria de razão, deve ser admitido o recurso do despacho que ordena a emissão de mandados de detenção e entrega.
8. A sentença de cuja executoriedade se trata nestes autos - proferida em 04/01/2022, pelo Cour D’Appel de Bastia, Tribunal pour Enfants - ainda não foi notificada à aqui recorrente e, por isso, ainda não começou a contar o prazo para a interposição de recurso.
9. Compulsados os autos, verifica-se que a ora recorrente não esteve presente na audiência em que foi proferida tal decisão, nem nela esteve representada por advogado, razão pela qual não podia ter-se como notificada no próprio acto (cfr. fls. 1 e 2 da sentença revidenda, junta como Documento n.º 5 da PI).
10. A notificação da sentença foi remetida à aqui recorrente por carta registada com aviso de recepção remetida a 12/01/2022, para a morada que tivera em França em ... ..., Rue ... ..., mas tal correspondência foi devolvida ao Tribunal com a menção «destinataire inconnu à cette adresse» / destinatário desconhecido neste endereço (cfr. Documentos n.ºs 6 e 8 da PI).
11. Na própria sentença revidenda dá-se como provado que a recorrente havia saído «da Córsega e até da França para voltar para Portugal antes de 22/07/2021», não tendo sido sequer possível ao UEMO de Ajaccio contactá-la ou à sua família para recolher informações destinadas à instrução do processo (cfr. Exposição dos Factos e do Processo, a fls. 2 da sentença revidenda, junta como Documento n.º 5 da PI).
12. Note-se, ainda, que nos autos em que a decisão revidenda foi proferida (Processo n.º JE 121/0048), a aqui recorrente não estava representada por advogado (até porque nem sequer havia sido citada para os autos), tendo-se o Tribunal pour Enfants bastado com o facto de ter mandatado advogado no Processo n.º RG 21/00022, que correu termos perante o Tribunal Especial de Menores, e de nesses autos ter sido representada por advogado na audiência de 22/07/2021 e no recurso interposto em 29/07/2022 (cfr. fls. 2 da sentença revidenda, documento n.º 5 da PI).
13. E, embora a relação de mandato não possa estender-se a todos os processos em que determinada pessoa é parte a menos que haja convenção nesse sentido, considerou suficiente o envio de uma notificação por fax para o escritório do Dr. DD, mandatário naqueles outros autos, sem qualquer comprovativo de que o fax tenha sido efectivamente recebido e o seu conteúdo transmitido à pessoa da aqui recorrente (cfr. fls. 1 da sentença revidenda, documento n.º 5 da PI).
14. Posto que a decisão revidenda não foi, nem aquando da sua prolação, nem posteriormente, notificada à aqui recorrente, não começou ainda sequer a contar o prazo para a interposição do recurso junto dos Tribunais franceses.
15. Nessa medida, e tendo em conta a grave violação das formas legais e a manifesta verificação de fundamentos de não-reconhecimento, requer-se seja atribuída eficácia suspensiva ao presente recurso, nos termos do artigo 35.º do Regulamento Bruxelas II bis.
16. É, de resto, consensual na doutrina e na jurisprudência nacional o entendimento de acordo com o qual o recurso interposto da decisão relativa ao pedido de executoriedade tem, necessariamente, efeito suspensivo (cf., por todos, o Acórdão do TRL de 27/09/2010, citado supra).
17. Por outro lado, tendo em conta que foram já emitidos mandados de condução e entrega do menor ao progenitor e tendo em especial consideração o princípio do superior interesse da criança e a gravidade das consequências da execução da sentença na esfera do menor, requer-se seja atribuída natureza urgente ao presente recurso, nos termos e para os efeitos do artigo 13.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro).
18. Flui do requerimento de 02/12/2022 (ref. Citius 44044327) que o progenitor reside em França, tendo-se deslocado a Portugal para retirar o menor à mãe e levá-lo consigo país onde reside.
19. Sendo, como se viu, necessariamente suspensivo o efeito a atribuir ao presente recurso, temos que, enquanto não for o mesmo definitivamente julgado, apenas podem ser tomadas medidas cautelares, nos termos do artigo 20.º do Regulamento Bruxelas II bis (nesse sentido, também o Acórdão do TRL de 27/09/2010, citado).
20. Em virtude daquele efeito suspensivo, não pode é, seguramente, dar-se imediata execução à sentença relativamente à qual foi concedido o exequatur, enquanto estiver pendente o recurso oportunamente interposto da decisão que concedeu esse exequatur.
21. Tanto basta para justificar a atribuição de carácter urgente ao presente recurso, com imediata revogação do despacho que ordenou a emissão de mandados de condução e entrega da criança ao progenitor, com vista a que este possa levá-la consigo para França.
22. Ademais, importa sublinhar que o requerimento sobre o qual recaiu o despacho que ordena a emissão de mandados de condução e entrega ao progenitor não foi formulado no âmbito de nenhuma execução que porventura tivesse chegado a ser efectivamente instaurada, com base na decisão do tribunal a quo que concedeu executoriedade à sentença do Tribunal francês.
23. Ora, o processo tendente à obtenção da concessão do exequatur em Portugal duma decisão proferida pelo tribunal doutro Estado-Membro esgota-se com a concessão ou não do exequatur, podendo depois, com base nela, ser instaurada uma execução propriamente dita, tendente à efectivação do regime de responsabilidades parentais instituído na sentença estrangeira cuja execução em Portugal foi autorizada» - «o que, a acontecer, implicaria que o respectivo requerimento executivo tivesse de ser autuado e distribuído como um processo autónomo do da concessão do exequatur, iniciando-se então um iter processual inteiramente novo, no qual, desde logo, a ora Apelante teria o direito ao contraditório» (Acórdão do TRL de 27/09/2010, citado).
24. Para além do que antecede, resulta dos autos que: i) o menor AA não teve qualquer contacto com o pai até ao reconhecimento da paternidade e à decisão sobre o regime de responsabilidades parentais em 14/04/2021 (data em que o menor teria cerca de 10 meses de idade); ii) entre 14/04/2021 e 22/07/2021, os contactos foram pontuais por haver resistência da mãe a essas visitas (por razões que apenas a própria poderá explicar assim tenha a oportunidade efectiva de ser ouvida, mas que encontram justificação no contexto de violência doméstica de que se dá conta nos elementos dos autos); iii) desde 22/07/2021, o menor não teve qualquer tipo de contacto com o pai.
25. Sem entrar para já na discussão das razões pelas quais as visitas parentais não ocorreram e a mãe decidiu regressar a Portugal, sempre há de ter em consideração que o menor AA, com 29 meses, apenas terá privado pontualmente com o pai durante cerca de três meses, quando contava menos de um ano de idade e que desde então nunca mais o viu ou falou com ele.
26. Para a criança que está no centro deste processo, o pai é um absoluto estranho. É para ser entregue a esse estranho que o menor foi arrancado dos braços da mãe, em pranto e choro convulsivo, pelos técnicos da SS e pela GNR, ao final de uma sexta-feira, véspera de fim- de-semana.
27. Pelas razões que antecedem, requer-se seja atribuído efeito suspensivo e natureza urgente ao presente recurso (art. 35.º do Regulamento Bruxelas II bis e art. 13.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).
28. Sem prejuízo da serem reconhecidas de forma automática, as sentenças proferidas por uma autoridade judiciária de um Estado-Membro só são executadas no território de outro «depois de nele terem sido declaradas executórias a pedido de qualquer parte interessada» (art. 28.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas II bis).
29. No âmbito desse processo prévio, o Tribunal competente no Estado de execução ser chamado a proceder ao exame dos fundamentos de recusa de reconhecimento logo no primeiro estádio do processo (art. 31.º, n.º 2, do Regulamento Bruxelas II bis).
30. Em caso de verificação de algum dos fundamentos de não execução previstos nos artigos 22.º, 23.º e 24.º do Regulamento Bruxelas II bis o pedido deve ser indeferido, só o podendo ser nesses precisos casos (cfr. art. 31.º, n.º 2, do Regulamento Bruxelas II bis).
31. Como supra se evidenciou, estão preenchidas no caso em apreço as alíneas c) e d) do artigo 23.º do Regulamento Bruxelas II bis.
32. Com efeito, a ora recorrente não foi citada no âmbito do Processo n.º JE 121/0048, tendo sido notificada da data da audiência tendente à apreciação do pedido de alteração da regulação das responsabilidades parentais feito pelo progenitor na sua anterior morada em França, apesar de o Tribunal bem saber (e ter dado como provado) que a ora recorrente não residia nesse local há mais de seis meses, encontrando-se mesmo fora do país, em Portugal, desde, pelo menos, 22/07/2021.
33. Não foram, apesar disso, realizadas quaisquer diligências tendentes a apurar a residência da mãe em Portugal, tendo-se o Tribunal limitado a convocar por fax, para a audiência, o advogado que a havia representado em anterior e autónomo processo, sem qualquer prova de que tal notificação dirigida ao causídico tenha sido sequer por ele recebida e sem se certificar de que tal advogado ainda representava a mãe da criança ou a representava no processo em causa.
34. À luz das circunstâncias de facto sumariamente descritas, é forçoso concluir que a decisão de cuja executoriedade se trata foi proferida à revelia e que a parte revel não foi citada para a correspondente acção, nem notificada do acto introdutório da instância ou acto equivalente, em termos de nela poder exercer a sua defesa.
35. Está, assim, verificado o fundamento de não-reconhecimento da alínea c) do artigo 23.º do Regulamento Bruxelas II bis.
36. Por outro lado, a decisão proferida pelo tribunal francês obsta ao exercício das responsabilidades parentais pela mãe, deixando-as exclusivamente a cargo do progenitor, sem que a mãe tenha tido a oportunidade de ser ouvido no processo judicial em causa.
37. Considerando os factos já expostos, tudo parece ter-se deliberadamente processado de forma a evitar que a ora recorrente tomasse conhecimento efectivo da acção proposta pela requerente no tribunal francês e, assim, não pudesse ali exercer os seus direitos.
38. Proferida sentença de regulação das responsabilidades parentais num tribunal francês e tenda a mãe sido notificada para a audiência em morada na qual não residia, sem que tivesse tido, por isso, oportunidade de ser ouvida, verifica-se o fundamento de não reconhecimento dessa decisão previsto na alínea d) do artigo 23.º do Regulamento Bruxelas II bis.
39. Por conseguinte, num tal enquadramento fáctico e jurídico, deveria o tribunal a quo ter indeferido o pedido de declaração de força executória da aludida sentença estrangeira de regulação das responsabilidades parentais.
40. É, de resto, inconstitucional a interpretação das disposições conjugadas dos artigos 23.º, 30.º, 31.º e 32.º do Regulamento Bruxelas II bis no sentido de que pode ser reconhecida força executória a decisão proferida por Tribunal de um Estado-Membro da União Europeia que atribui a guarda de um menor a um progenitor sem que o outro tenha tido oportunidade de ser ouvido no processo, por ter sido notificado na morada que tinha nesse Estado- Membro e onde, ao tempo da instauração do processo, já não residia.
41. Enferma igualmente de inconstitucionalidade a interpretação das disposições conjugadas dos artigos 23.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º e 35.º do Regulamento Bruxelas II bis no sentido de que podem ser emitidos mandados de condução e entrega de menor ao progenitor a quem, por força da sentença revidenda proferida pelo tribunal de outro Estado-Membro foi atribuída a guarda, sem que o progenitor a quem essa sentença afecta tenha sido previamente notificado da decisão proferida pelos Tribunais portugueses que lhe reconhece executoriedade e sem que tenha sido apreciado e decidido o recurso interposto dessa decisão nacional.
42. Por último, cumpre sublinhar que todo o procedimento descrito nas conclusões antecedentes, quer junto das autoridades judiciais francesas, quer portuguesas, é incompatível, pela sua indignidade e desumanidade, com o respeito pelos direitos humanos mais elementares e contrários aos mais fundamentais princípios do Estado de Direito, justificando que corem de vergonha (alheia ou própria) todos os que pelo Direito e pela Justiça têm algum apreço.
Nestes termos, e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o recurso ora interposto ser admitido com efeito suspensivo e natureza urgente e, a final, ser julgado totalmente procedente revogando-se a sentença proferida em primeira instância que atribui força executória à decisão revidenda, assim o despacho que ordena a emissão dos correspondentes mandados de condução e entrega, como é da mais elementar e sã Justiça.
O Ministério Público e o progenitor responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
a)Se o recurso é tempestivo.
b) Qual o efeito do recurso.
c) Se existem razões para recusar declarar a excutoriedade da decisão dos tribunais de França.
d) Se o menor podia ter sido entregue ao pai em cumprimento do determinado naquela decisão.
III. Os factos:
Dos documentos juntos com a petição inicial resultam provados os seguintes factos:
1. AA nasceu em .../.../2020, em Ajaccio, Corse du Sud, República Francesa, e é filho de BB e de CC.
2. Os pais do AA estão separados.
3. Desde a separação o AA ficou aos cuidados da progenitora, então residente em Ajaccio, Corse du Sud, República Francesa.
4. Actualmente, o AA reside com a progenitora e com os avós maternos na Rua ..., ..., Póvoa de Varzim.
5. Por decisão de 14/04/21, do Tribunal de Menores de Ajaccio, Córsega, França, foi fixado um direito de convívios do progenitor com o AA.
6. Posteriormente, em 22/07/21, face ao incumprimento desse regime pela progenitora, após a audição dos progenitores foi aplicada pelo mesmo tribunal, a favor do AA, uma medida judiciária de investigação educativa, bem como foi determinada a proibição da progenitora de sair do território francês até 22/01/2022.
7. Por intermédio da mandatária judicial que a representava no processo de assistência educativa, a progenitora recorreu desta decisão em 29/07/21, a qual viria a ser confirmada por decisão do tribunal superior de 24/1/22 após audiência à qual faltou a progenitora e a respectiva mandatária judicial, tendo esta sido substituída por mandatário designado pelo tribunal.
8. Foi elaborado Relatório da Medida Judiciária de Investigação Educativa, no qual se assinala não ter sido possível contactar com a progenitora ou com a sua família, uma vez que aquela tinha saído da Córsega e de França para voltar para Portugal.
9. Por sentença proferida em 04/01/2022, pelo Tribunal de Menores de Ajaccio, Córsega, França, no Processo de Assistência Educativa n.º JE 121/0048, o AA foi confiado à guarda do progenitor, foi fixado um regime de convívios com a progenitora e foi ainda aplicada a favor do AA uma medida de Assistência Educativa em Meio Aberto entre o dia 04/01/22 e o dia 04/01/23.
10. Esta decisão tem força executória no Estado em que foi proferida.
11. A convocação da progenitora para a audiência na qual veio a ser proferida a decisão referida em 9 foi expedida por carta registada para o endereço que esta tinha em França.
12. A carta registada com a convocação foi devolvida com a indicação «destinatário desconhecido neste endereço», sendo que à data a progenitora estava a residir em Portugal com o menor.
13. A notificação da progenitora da decisão referida em 9 foi expedida por carta registada para o endereço que esta tinha em França.
14. A carta registada com a notificação foi devolvida com a indicação «destinatário desconhecido neste endereço», sendo que à data a progenitora estava a residir em Portugal com o menor.
15. No Processo de Assistência Educativa a progenitora era representada por mandatária judicial.
16. Para a audiência na qual veio a ser proferida a decisão referida em 9 o Tribunal de Menores de Ajaccio convocou ainda por fax a mandatária que representava a progenitora.
17. Na certidão referida no artigo 39.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativa a decisões em matéria de responsabilidade parental, o Estado-Membro de origem assinala que a decisão «não» foi «proferida à revelia», que «sim» «a decisão é executória nos termos da lei do Estado-Membro de origem», que «sim» «a parte contra quem a execução é requerida foi citada ou notificada da decisão», na «última morada conhecida em França» e na «data» de «12-01-2022».
IV. O mérito do recurso: A] da tempestividade do recurso:
A recorrente arguiu a nulidade processual decorrente da omissão de notificação da decisão recorrida e consequentemente a tempestividade do recurso uma vez que sem aquela notificação não se iniciou o prazo de recurso.
O tribunal a quo reconheceu ter sido cometida a nulidade arguida, por ter sido omitida a notificação das decisões recorridas, assinalando, no entanto que tendo a notificação sido feita entretanto, aquando da entrega do menor, e tendo a requerida apresentado já o seu recurso, não é necessário qualquer acto para sanação da nulidade, bastando reconhecer que o recurso foi apresentado tempestivamente.
Isto posto, sendo certo que efectivamente a notificação não foi feita quando deveria tê-lo sido e que sem essa notificação não se iniciou o prazo de recurso, este é tempestivo e como tal será considerado e apreciado.
B] do efeito do recurso:
A recorrente requereu que seja atribuída natureza urgente ao processo tutelar e efeito suspensivo ao recurso, sustentando ser «consensual na doutrina e na jurisprudência nacional o entendimento de acordo com o qual o recurso interposto da decisão relativa ao pedido de executoriedade tem, necessariamente, efeito suspensivo (cf., por todos, o Acórdão do TRL de 27/09/2010, citado supra)».
O tribunal recorrido atribuiu natureza urgente ao processo, mas recusou atribuir ao recurso efeito suspensivo.
Sobre esta questão já se pronunciou o Tribunal de Justiça da União Europeia de 26 de Abril de 2012 no processo C‑92/12PPU (ECLI:EU:C:2012:255) a propósito precisamente do artigo 33.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.
Esta norma do Regulamento estabelece, na parte que interessa, o seguinte:
«1. Qualquer das partes pode recorrer da decisão relativa ao pedido de declaração de executoriedade. […]
3. O recurso é tratado segundo as regras do processo contraditório.
[…]
5. O recurso contra a declaração de executoriedade é interposto no prazo de um mês a contar da sua notificação. […]. Este prazo não é susceptível de prorrogação em razão da distância».
Quanto à interpretação desta norma e em particular do seu n.º 5, o Tribunal de Justiça entendeu:
«123. O artigo 33.º do regulamento dispõe que qualquer das partes pode recorrer da decisão relativa ao pedido de declaração de executoriedade no prazo de um mês a contar da sua notificação. Se a parte contra a qual é pedida a execução tiver a sua residência habitual num Estado‑Membro diferente daquele onde foi proferida a declaração de executoriedade, o prazo de recurso é de dois meses a contar da data em que tiver sido feita a citação. O artigo 34.º do regulamento prevê que da decisão de um recurso só cabe um dos recursos previstos na lista comunicada por cada Estado‑Membro à Comissão nos termos do artigo 68.º do regulamento.
124. Foi sublinhado, na audiência, que a duração dos processos previstos nos artigos 33.º e 34.º do regulamento pode ser considerável e assim prejudicar a eficácia e efeito útil do referido regulamento.
125. A este respeito, para evitar que o efeito suspensivo de um recurso de uma decisão relativa à declaração de executoriedade possa comprometer o prazo curto previsto no artigo 31.º do regulamento, importa, como observou a advogada‑geral na sua tomada de posição, e como propôs a Comissão na audiência, interpretar o regulamento no sentido de que a decisão de colocação adquire executoriedade a partir do momento em que o órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido declarou a sua força executória, em conformidade com o referido artigo 31.º
126. A letra do regulamento não se opõe a tal interpretação. Com efeito, o seu artigo 28.º, n.º 1, dispõe que as decisões sobre o exercício da responsabilidade parental proferidas num Estado‑Membro são executadas noutro Estado‑Membro depois de nele terem sido declaradas executórias a pedido de qualquer parte interessada.
127. Para efeitos da interpretação e aplicação do regulamento, importa ter em conta o critério do superior interesse da criança, à luz do artigo 24.º da Carta. Ora, o superior interesse da criança pode exigir, em casos de colocação transfronteiriça de excepcional urgência, que se permita uma solução flexível para a duração do procedimento de exequatur, se, na falta dessa solução, a finalidade subjacente à decisão que ordena a colocação transfronteiriça for comprometida pelo decurso do tempo.
128. Por outro lado, o Tribunal de Justiça decidiu que, contrariamente ao procedimento previsto nos artigos 33.º a 35.º do regulamento para o pedido de declaração de executoriedade, as decisões proferidas em conformidade com o seu capítulo III, secção 4 (direito de visita e regresso do menor), podem ser declaradas executórias pelo tribunal de origem independentemente de qualquer possibilidade de recurso, quer no Estado‑Membro de origem quer no Estado‑Membro de execução (acórdão de 11 de Julho de 2008, Rinau, C‑195/08 PPU, Colet., p. I‑5271, n.º 84).
129. Resulta do exposto que, para não privar o regulamento do seu efeito útil, a decisão do órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido relativa ao pedido de declaração de executoriedade deve ser tomada com particular celeridade sem que os recursos dessa decisão do órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido possam ter efeito suspensivo.
[…] 133. Há que responder à terceira e quarta questões submetidas que o regulamento deve ser interpretado no sentido de que uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que ordenar a colocação forçada de uma criança numa instituição de prestação de cuidados em regime de internamento situada noutro Estado‑Membro deve, antes da sua execução no Estado‑Membro requerido, ser declarada executória nesse Estado‑Membro. Para não privar este regulamento do seu efeito útil, a decisão do órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido relativa ao pedido de declaração de executoriedade deve ser tomada com particular celeridade, sem que os recursos interpostos dessa decisão do órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido possam ter efeito suspensivo.»
Esta interpretação foi depois reiterada e acompanhada no ponto 65 da fundamentação do Acórdão do Tribunal de Justiça de 19 de Setembro de 2018, nos processos apensos C‑325/18 PPU e C‑375/18 PPU (ECLI:EU:C:2018:739).
Acresce que também no § 82 da fundamentação do Acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 2008, no processo C‑195/08 PPU (ECLI:EU:C:2008:406) se assinalou a propósito da interpretação deste Regulamento que «embora o regulamento não tenha por objectivo unificar as normas de direito substantivo e processual dos diferentes Estados‑Membros, a aplicação dessas normas nacionais não deve, porém, prejudicar o seu efeito útil (v., por analogia, relativamente à Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, acórdãos de 15 de Maio de 1990, Hagen, C‑365/88, Colect., p. I‑1845, n.ºs 19 e 20; de 7 de Março de 1995, Shevill e o., C‑68/93, Colect., p. I‑415, n.º 36; e de 27 de Abril de 2004, Turner, C‑159/02, Colect., p. I‑3565, n.º 29)».
Por conseguinte, mantém-se a decisão de não fixar efeito suspensivo ao presente recurso.
C] do mérito da oposição à declaração de executoriedade:
A recorrente defende que o pedido de declaração de executoriedade da decisão de 04/01/2022 do tribunal francês devia ter sido indeferido por se mostrarem verificadas, no caso, as circunstâncias previstas nas alíneas c) e d) do artigo 23.º do Regulamento n.º 2201/2003.
O Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (Bruxelas II-A), compreende o capítulo III que contém regras sobre reconhecimento e execução de decisões.
Nos termos do artigo 21.º, as decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos demais Estados-Membros sem que seja necessário recorrer a quaisquer formalidades. Segundo o Considerando 21 essa opção tem por base o princípio da confiança mútua, razão pela qual os fundamentos do não-reconhecimento serão reduzidos ao mínimo indispensável.
Os artigos 22.º e 23.º do Regulamento estabelecem um número limitado de motivos de não reconhecimento ou de não execução, que seguem o artigo 27.º da Convenção de 1968 e o artigo 34.º do Regulamento Bruxelas I, mas levam ainda em consideração as causas de não reconhecimento previstas na Convenção da Haia de 1996 sobre a protecção das crianças para assegurar uma aplicação harmoniosa dessa Convenção e do instrumento comunitário.
O artigo 22.º refere-se aos motivos de não reconhecimento das decisões proferidas em matéria de separação judicial, divórcio ou anulação do casamento; o artigo 23.º enumera as causas de não reconhecimento das decisões proferidas em matéria de responsabilidade parental.
Em relação às causas de não reconhecimento e execução das medidas relativas à responsabilidade parental, a que se refere o artigo 23.º, algumas delas são comuns, mas outras são particulares para este caso e, para mais, estão alinhadas pela Convenção da Haia de 1996.
Tal como nas decisões em matéria matrimonial, aplicam-se os artigos 24.º (proibição do controlo da competência do tribunal de origem), 25.º (diferenças entre as leis aplicáveis) e 26.º (proibição de revisão quanto ao mérito).
A epígrafe da secção 2 do capítulo III do Regulamento («pedido de uma declaração de executoriedade») clarifica que os objectos das respectivas disposições são medidas intermédias que permitem a execução de uma sentença estrangeira, ou seja, o exequatur, e não medidas de execução stricto sensu.
O pedido de declaração de executoriedade é apresentado perante um dos tribunais indicado na lista (artigo 29.º) e de acordo com a forma regulada pela lei do Estado-Membro de execução (artigo 30.º). Este tribunal deve proferir a sua decisão «no mais curto prazo» e sem que a pessoa contra a qual a execução é requerida possa formular observações (artigo 31.º). O pedido só pode ser indeferido por um dos motivos previstos nos artigos 23.º e 24.º. A decisão não pode em caso algum ser revista quanto ao mérito (artigo 31.º, n.º 3). Da decisão, cabe recurso perante os tribunais identificados na lista comunicada (artigo 33.º), recurso esse que será tratado segundo as normas que regem o processo contraditório (artigo 33.º, n.º 3), o qual já só poderá ser impugnado pelos procedimentos previstos no artigo 34.º.
Vejamos então se no caso se verifica o fundamento de não declaração de executoriedade da alínea c) e/ou da alínea d) do artigo 23.º do Regulamento.
A alínea c) prevê a seguinte situação: «se a parte revel não tiver sido citada ou notificada do acto introdutório da instância ou acto equivalente, em tempo útil e de forma a poder deduzir a sua defesa, excepto se estiver estabelecido que essa pessoa aceitou a decisão de forma inequívoca».
A situação em causa é pois aquela em que a decisão cuja declaração executoriedade é pretendida foi proferida estando a parte em situação de revelia, ou seja, sem intervenção no processo, e não lhe tenha sido dada oportunidade de intervir através da citação ou notificação do acto introdutório da instância ou acto equivalente que lhe permitiria deduzir a sua defesa em tempo útil, excepto se ela tiver aceite a decisão de forma inequívoca.
A alínea d) prevê a seguinte situação: «a pedido de qualquer pessoa que alegue que a decisão obsta ao exercício da sua responsabilidade parental, se a decisão tiver sido proferida sem que essa pessoa tenha tido a oportunidade de ser ouvida».
A situação em causa não se distingue com facilidade da anterior. A diferenças são que neste caso, a situação abrange não apenas as partes no processo no qual foi proferida a decisão, mas ainda qualquer pessoa que tenha o exercício de responsabilidades parentais em relação à criança, sendo necessário para o preenchimento da previsão que a decisão tenha sido proferida sem essa pessoa ter tido oportunidade de ser ouvida. Quando essa pessoa é parte no processo, as situações sobrepõem-se.
Para não ter tido oportunidade de ser ouvida é necessário que a pessoa não tenha intervindo no processo e não tenha sido citada ou notificada por forma a tomar conhecimento da sua existência ou então que tenha sido impedida de se pronunciar, designadamente por não lhe ter sido reconhecida legitimidade para o efeito.
Ao contrário do que sustenta a recorrente afigura-se-nos que nenhuma destas previsões se encontra preenchida.
Em primeiro lugar, porque a progenitora sabia da pendência do processo e foi mesmo ouvida pessoalmente pelo juiz aquando da tomada de uma anterior decisão, razão pela qual não só conhecia a pendência da instância como estava a par do respectivo objecto e finalidade, tendo inclusivamente obtido a nomeação de mandatário judicial que a representasse na instância e no recurso de decisões que nela viessem a ser proferidas.
Esse conhecimento impunha-lhe a obrigação estrita de informar o tribunal francês que à data era o tribunal competente e já havia tomado decisões sobre o exercício das responsabilidades parentais da intenção de se deslocar para Portugal e aqui passar a viver com o menor. A progenitora não apenas não o fez como se ausentou para Portugal numa atitude deliberada de má fé para se subtrair às decisões da justiça francesa de forma a impedir os contactos do progenitor com o menor.
Essa sua atitude não invalida que ela fosse conhecedora da existência do processo e das decisões neles proferidas e, como tal, devesse contar com a possibilidade de ser notificada para a sua última morada conhecida em França, sendo certo que o apuramento da sua localização em Portugal podia demorar bastante tempo e essa demora é claramente contrária aos superiores interesses da criança, designadamente ao nível do seu contacto com o outro progenitor que estava decidido pelo tribunal.
Acresce que a progenitora estava representava por mandatária judicial e esta foi convocada para a audiência na qual foi proferida a decisão cuja declaração de executoriedade é pedida. O argumento segundo o qual essa representação era só para o recurso de uma anterior decisão não procede, porquanto, tanto quanto resulta dos documentos juntos, o processo de assistência educativa onde foram tomadas as sucessivas decisões, designadamente aquela da qual foi interposto recurso julgado improcedente pelo Tribunal de recurso de Bastia e aquela cuja declaração de executoriedade é pedida, é o mesmo e único (o número que o documento da decisão do Tribunal de Recurso de Bastia ostenta refere-se ao registo do próprio recurso), nenhuma razão havendo para considerar o poder de representação da mandatária limitado a actos praticados ou decisões específicas proferidas ao longo do mesmo.
Nesse sentido, a certidão que acompanha o pedido assinala e, nesse contexto afigura-se-nos que bem, que a decisão «não» foi proferida à revelia, já que a progenitora foi regularmente convocada para a respectiva audiência, para além de estar representada por mandatária e esta ter sido convocada para a audiência, circunstâncias perante as quais há que entender que lhe foi dada a oportunidade de ser ouvida no processo, o que só não ocorreu por deliberada intenção sua de se furtar à acção da justiça francesa e ao cumprimento das decisões proferidas pelos respectivos tribunais.
Em suma, não se verificam os fundamentos de não declaração de executoriedade da decisão dos tribunais de França previstos nas alíneas c) ou d) do artigo 23.º, ex vi artigo 31.º, n.º 2, ambos do Regulamento (CE) 2201/2003.
A recorrente afirma, não obstante isso, que é «inconstitucional a interpretação das disposições conjugadas dos artigos 23.º, 30.º, 31.º e 32.º do Regulamento Bruxelas II bis no sentido de que pode ser reconhecida força executória a decisão proferida por Tribunal de um Estado-Membro da União Europeia que atribui a guarda de um menor a um progenitor sem que o outro tenha tido oportunidade de ser ouvido no processo por ter sido notificado na morada que tivera nesse Estado-Membro e onde, ao tempo da instauração do processo, já não residia, sendo tal circunstância do conhecimento das autoridades judiciárias».
Este argumento é manifestamente improcedente.
Desde logo, na medida em que não se trata de uma forma válida de suscitar o vício da inconstitucionalidade, já que essa suscitação necessita sempre de ser fundamentada, através da indicação concreta das disposições ou princípios constitucionais violados e no texto da recorrente não se refere ou indicia sequer qual dessas disposições ou princípios poderia estar em causa.
Não cabe ao tribunal a obrigação de perante uma referência avulsa e não específica à «inconstitucionalidade», averiguar se alguma norma ou princípio constitucional foram violados, apreciando em concreto todas e cada uma de tais normas ou princípios.
Como refere Carlos Lopes do Rego, in Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, Almedina, 2010, página 90, «carece ainda a questão de constitucionalidade de ser colocada à apreciação do tribunal recorrido de forma procedimentalmente adequada, cumprindo ao recorrente enunciá-la, de forma expressa, directa, clara e perceptível, em acto processual e segundo os requisitos de forma que – conforme as regras que regem a tramitação do processo-base – criam para o tribunal ‘a quo’ um dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta».
Nessa senda o Tribunal Constitucional tem afirmado, repetidamente, que para suscitar a questão da inconstitucionalidade de forma processualmente adequada a parte tem o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo dos preceitos que considera inconstitucional e, quando questiona uma certa interpretação de determinada norma legal, de indicar esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental.
Depois, porque esta afirmação faz por ignorar totalmente a relação entre a Constituição da República Portuguesa ou de qualquer outro Estado-Membro e o Direito da União Europeia.
O artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
Segundo Maria Lúcia Amaral, in A Forma da República, Coimbra, 2012, pág. 415, a “[…] natureza sui generis [do direito da união europeia] que, não sendo direito criado pelos órgãos do Estado português, vigora na ordem interna de acordo com os princípios do ‘efeito directo’ e do ‘primado’, é reconhecida pela Constituição nos n.ºs 3 e 4 do artigo 8.º. O n.º 3 reconhece expressamente o princípio do efeito directo; e o n.º 4 reconhece implicitamente o princípio do primado, pois que diz que ‘[a]s disposições dos tratados e das normas emanadas das (…) instituições (…) vigoram na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União (…)’. Ora, […] o Direito da União não ‘define’ apenas o ‘termo’ do efeito directo das suas próprias normas; determina ainda que tais normas gozem de supremacia sobre quaisquer normas internas que com elas conflituem. O princípio do primado está, pois, aqui, implicitamente reconhecido. Ao aceitar a primazia e o efeito directo do direito europeu no seu próprio ordenamento interno – e ao fazê-lo depois de ter deixado claro que o Direito Internacional só vigora em território português em virtude de um acto de reconhecimento estadual – a CRP está, portanto, a reconhecer e a aceitar as consequências jurídicas decorrentes do compromisso assumido no artigo 7.º, n.ºs 5 e 6. Por causa deste compromisso, vigora na ordem portuguesa um direito que não é estadual nem internacional: é sui generis».
Daquele normativo decorre uma limitação ao controlo jurisdicional nacional, significando que todo o direito da união europeia DUE se torna imune ao sistema nacional de fiscalização da constitucionalidade e, concretamente, à intervenção do Tribunal Constitucional no quadro do artigo 277.º, n.º 1, da Constituição. É o que defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, página 270, ao assinalarem que: “[…] o Direito da UE não pode ser declarado inconstitucional nem desaplicado por alegada inconstitucionalidade ou por qualquer tipo de desconformidade com normas de direito interno (leis orgânicas, etc.). Nem o Tribunal Constitucional nem os demais tribunais podem julgar sobre a conformidade das suas normas com a Constituição ou outro instrumento de direito interno. Sob esse ponto de vista, a primazia do direito da UE traduz-se na sua imunidade face ao sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade e da «legalidade reforçada». A norma do art. 8.º-4 implica, portanto, uma derrogação das normas constitucionais de garantia da Constituição em relação ao direito comunitário, não valendo para este a norma do art. 277.º-1 da CRP, segundo a qual «são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou nos princípios nela consignados». Também Rui Medeiros, in A Constituição Portuguesa Num Contexto Global, página 378, afirma que só essa conclusão confere sentido actuante à “[…] prevalência tendencial do Direito da União Europeia sobre as normas de direito interno, inclusivamente sobre as normas de direito constitucional, [que] representa justamente uma peça chave do compromisso europeu assumido pelo texto actual da Constituição.»
O Tribunal Constitucional pronunciou-se em plenário sob essa magna questão no Acórdão n.º 422/2020, afirmando o seguinte: «Nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o Tribunal Constitucional só pode apreciar e recusar aplicação a uma norma de DUE, caso a mesma seja incompatível com um princípio fundamental do Estado de direito democrático que, no âmbito próprio do DUE – incluindo, portanto, a jurisprudência do TJUE –, não goze de valor paramétrico materialmente equivalente ao que lhe é reconhecido na Constituição, já que um tal princípio se impõe necessariamente à própria convenção do “[…] exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da União Europeia”. Ao invés, sempre que esteja em causa a apreciação de uma norma de DUE à luz de um princípio (fundamental) do Estado de direito democrático que, no âmbito do DUE, goze de um valor paramétrico materialmente equivalente ao que lhe é reconhecido na Constituição portuguesa, funcionalmente assegurado pelo TJUE (segundo os meios contenciosos previstos no DUE), o Tribunal Constitucional abstém-se de apreciar a compatibilidade daquela norma com a Constituição».
Conforme assinalámos a recorrente na sua fundamentação não esclarece sequer qual a norma ou princípio constitucional que considera violado, razão pela qual de modo algum invoca que o Regulamento Bruxelas II-A seja incompatível com qualquer princípio fundamental do Estado de direito democrático.
Por fim, cabe referir que o próprio enunciado da questão pela recorrente se encontra errado. Com efeito, a decisão cuja executoriedade está em causa não foi tomada sem que a progenitora tenha tido oportunidade de ser ouvido no processo.
É verdade que ela foi notificada para a sua última morada conhecida nesse Estado-Membro, que ao tempo da notificação ela já não residia nessa morada por se ter ausentado para Portugal e que isso era conhecido das autoridades daquele Estado-Membro que a procuraram para elaborar relatório da execução da Medida Judiciária de Investigação Educativa. Porém, essa medida foi decretada no âmbito de um processo de cuja existência e finalidades ela tinha conhecimento, no qual tinha intervindo pessoalmente e no qual era representada por mandatária judicial, tendo esta sido notificada da decisão que impedia a progenitora de sair de França com o menor e por fax para participar na audiência onde veio a ser proferida a decisão objecto do presente processo.
Por conseguinte, o que poderia estar em causa não era se a progenitora teve oportunidade de ser ouvida sobre a decisão que foi tomada, porque a teve, mas sim, se, atenta a sua saída de França, se justificava procurá-la no local onde passou a encontrar-se para assegurar a sua notificação pessoal.
Esta questão, contudo, prende-se com o mérito da própria decisão tomada, entendendo-se por mérito tanto o acerto material do dispositivo como a correcção processual da tomada de decisão. Ora, conforme expressamente se assinala no artigo 26.º do Regulamento Bruxelas II-A, está totalmente vedado aos tribunais do Estado requerido rever a decisão quanto ao mérito.
Acresce que as disposições do Regulamento em causa se encontram ao serviço e têm por finalidade acautelar o superior interesse da criança. Ora não é compatível com o superior interesse da criança a atitude do progenitor que à revelia do tribunal onde pende um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais se desloca desse país para outro país, procurando escapar às decisões daquele tribunal, designadamente aos efeitos da regulação vigente e da qual tem conhecimento, sem sequer informar aquele tribunal do novo local onde fixou residência para efeitos de aí ser contactado e permitir o cumprimento das decisões judiciais adoptadas.
Em suma, inexistem razões para recusar a declaração de executoriedade pedida pelos tribunais franceses.
D] do mérito do despacho de 02-12-2022:
O despacho impugnado ordenou a passagem de mandados de condução para entrega do menor ao progenitor «a cumprir de imediato e em articulação» com a Segurança Social «como promovido e solicitando a ajuda das forças policiais para integral cumprimento de tal entrega».
A recorrente opõe a este despacho as seguintes objecções: a) que a decisão proferida pelo tribunal de França só pode ser executada depois de transitar em julgado a decisão nacional de declarar executória aquela decisão, o que não ocorreu ainda; b) a declaração de executoriedade é o único objecto do processo, pelo que uma vez ela proferida terá de ser instaurado o competente e distinto processo de execução, o que não sucedeu
Sobre a primeira questão pronunciou-se o já citado Acórdão do Tribunal de Justiça de 19 de Setembro de 2018, nos processos apensos C‑325/18 PPU e C‑375/18 PPU (ECLI:EU:C:2018:739), o qual decidiu que […]o artigo 33.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003, lido à luz do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, se opõe à execução de uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que ordena a colocação sob tutela e o regresso de crianças e que é declarada executória no Estado‑Membro requerido, antes de se proceder à notificação da declaração de executoriedade desta decisão aos progenitores em questão. […]».
Na fundamentação deste Acórdão o Tribunal de Justiça entendeu o seguinte:
«65. […] o Tribunal de Justiça declarou que, para evitar que o efeito suspensivo de um recurso de uma decisão relativa à declaração de executoriedade possa pôr em causa o prazo curto previsto no artigo 31.º do Regulamento n.º 2201/2003, uma decisão de colocação torna‑se executória a partir do momento em que o órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido declarou a força executória dessa decisão, em conformidade com o referido artigo 31.º (…). O Tribunal de Justiça considerou que, para não privar o Regulamento n.º 2201/2003 de efeito útil, a decisão do órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido relativa ao pedido de declaração de executoriedade deve ser tomada com particular celeridade sem que os recursos interpostos contra essa decisão do órgão jurisdicional do Estado‑Membro requerido possam ter efeito suspensivo (…).
66. Esta afirmação não prejudica, todavia, a questão, distinta, de saber se uma decisão declarada executória na fase processual ex parte pode ser executada antes de ser notificada.
67. A este respeito, importa observar que a redacção do artigo 33.º do Regulamento n.º 2201/2003 não permite, por si só, responder às questões colocadas.
68. Com efeito, embora esta disposição preveja que o prazo para recorrer de uma decisão de execução começa a correr a partir da notificação desta decisão, não precisa se a execução pode ter lugar antes dessa notificação.
69. A este respeito, importa recordar que a exigência de notificação da decisão de exequatur tem por função, por um lado, proteger os direitos da parte contra a qual a execução de uma decisão é promovida e, por outro, no plano probatório, permitir o cômputo exacto do prazo de recurso rigoroso e imperativo previsto no artigo 33.º do Regulamento n.º 2201/2003 (v., por analogia, Acórdão de 16 de Fevereiro de 2006, Verdoliva, C‑3/05, EU:C:2006:113, n.º 34).
70. Esta exigência de notificação, assim como a transmissão conjunta de informações relativas ao recurso, permite assegurar que a parte contra a qual a execução é promovida beneficia de um direito de recurso efectivo. Assim, para que se possa considerar que a parte em questão teve a possibilidade, na acepção do artigo 33.º do Regulamento n.º 2201/2003, de interpor recurso de uma decisão de exequatur, tem de ter tido conhecimento do conteúdo dessa decisão, o que pressupõe que a mesma lhe tenha sido comunicada ou notificada (v., por analogia, Acórdão de 14 de Dezembro de 2006, ASML, C‑283/05, EU:C:2006:787, n.º 40).
[…] 72. […] a possibilidade de, em conformidade com o direito nacional, requerer a suspensão da execução dessa decisão constitui uma garantia essencial do direito fundamental a um recurso efectivo e, de uma forma mais geral, dos direitos de defesa, que pode ser concedida, designadamente, se a execução de ma decisão puder provocar consequências manifestamente excessivas.
73. Nestas circunstâncias, como salientou a advogada‑geral no n.º 119 das suas conclusões, ainda que a pessoa contra a qual a execução é requerida deva ter a possibilidade de interpor recurso para poder suscitar, nomeadamente, um dos fundamentos de não reconhecimento previstos no artigo 23.º do regulamento, há que observar que a execução da ordem de regresso, antes mesmo de o despacho ter sido notificado aos progenitores em questão, os impediu de impugnar em tempo útil a «declaração de executoriedade», na acepção do artigo 33.º, n.º 5, do Regulamento n.º 2201/2003, e, em todo o caso, de requerer a suspensão da respectiva execução.
[…] 75. … a execução de uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que ordena a colocação sob tutela e o regresso de crianças e que é declarada executória no Estado‑Membro requerido antes de se proceder à notificação da declaração de executoriedade desta decisão aos progenitores em questão é contrária ao artigo 33.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003, lido à luz do artigo 47.o da Carta.
[…] 78. No processo principal, não é contestado que a decisão de exequatur foi efectivamente notificada aos progenitores em questão.
79. É certo que, uma vez que a notificação foi efectuada após a execução dessa decisão, os progenitores foram privados do seu direito de requerer a suspensão da execução da ordem de regresso. No entanto, esta violação dos seus direitos de defesa não tem incidência no prazo de recurso iniciado com a notificação desta decisão.
[…] 82. Assim, há que responder à segundas e terceira questões que o artigo 33.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003, lido à luz do artigo 47.º da Carta, deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, se opõe à execução de uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que ordena a colocação sob tutela e o regresso de crianças e que é declarada executória no Estado‑Membro requerido, antes de se proceder à notificação da declaração de executoriedade desta decisão aos progenitores em questão. O artigo 33.º, n.º 5, do Regulamento n.º 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que o prazo de recurso previsto nesta disposição não pode ser prorrogado pelo órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se.»
O entendimento do Tribunal de Justiça é assim o de que a interpretação do Regulamento Bruxelas II-A deve ser no sentido de que a decisão dos tribunais do Estado-Membro de origem pode ser executadadesde que tenha sido proferida a declaração de executoriedade, de que o recurso dessa decisão não tem efeitos suspensivos e por isso não impede que aquela execução tenha lugar estando o recurso pendente e de que para que essa execução possa ser desencadeada basta que o progenitor tenha sido notificado da decisão, a execução só não pode ter lugar enquanto a notificação da decisão não for realizada.
No caso, efectivamente houve uma falha do tribunal a quo, o qual não procedeu à notificação da sentença é progenitora.
Todavia, ordenado o cumprimento da decisão dos Tribunais de França (a entrega do menor) essa notificação acabou por ser feita, transmitindo-se à progenitora o conhecimento das decisões que estavam na base daquela entrega, conforme a mesma admite ao referir no corpo das alegações que «foi… na passada sexta-feira, dia 02/12/2022, que a ora recorrente foi notificada da sentença pelo cabo da GNR que acompanhou a diligência e lhe entregou em mãos cópia da notificação nesse mesmo dia dirigida àquela corporação policial», sendo certo que os autos revelam que de facto os mandados de entrega foram acompanhados de cópia de sentença que declarou a executoriedade.
A segunda questão prende-se com saber se a decisão declarada executória pode ser objecto de execução no próprio processo em que foi declarada aquela executoriedade.
O procedimento de reconhecimento e execução das decisões em matéria de responsabilidade parental abrangidas pelo âmbito do Regulamento Bruxelas II-A encontra-se regulado nos artigos 28.º a 39.º.
Nos termos dessas normas, qualquer parte interessada pode requerer que uma decisão sobre essa matéria proferida por um tribunal de um Estado-Membro seja declarada executória noutro Estado-Membro (procedimento, por vezes, referido como exequátur).
O pedido de declaração de executoriedade deve ser apresentado no tribunal competente do Estado-Membro no qual se pretende que a decisão seja reconhecida e executada. A forma de apresentação do pedido é regulada pela lei do Estado-Membro de execução.
O tribunal deve declarar, sem demora, que a decisão tem força executória nesse Estado-Membro. Nem a pessoa contra a qual a execução é requerida nem os menores podem apresentar quaisquer observações nesta fase.
As partes podem recorrer da decisão, sendo na fase de recurso que as partes podem apresentar observações. Quando a decisão se referir a vários aspectos do pedido e a execução não puder ser autorizada em relação a todos, o tribunal ordenará a execução relativamente a um ou vários desses aspectos. O requerente pode pedir uma execução parcial de uma decisão.
Como resulta deste regime, é a lei do Estado-Membro onde é requerida a declaração de executoriedade que define a forma de apresentação do pedido. No caso, a declaração de executoriedade foi requerida pelo Ministério Público, no âmbito dos seus poderes legais em matéria de direito dos menores e da família, tendo para o efeito lançado mão de uma forma de processo aplicável às providências tutelares cíveis e respectivos incidentes, mais concretamente a acção tutelar comum, tendo em mente, por certo, não propriamente o objecto da acção (o exequátur) mas antes o objecto da decisão cuja executoriedade se pretende.
Não foi até ao momento suscitado que essa forma de processo esteja errada ou devesse ser outra, sendo certo que o objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pela recorrente nas conclusões das alegações de recurso e que, de todo o modo, o erro na forma de processo só podia ser conhecido até à prolação da sentença (parte final do n.º 2 do artigo 200.º do Código de Processo Civil), ou seja, já não em fase de recurso.
Ora no âmbito dos processos tutelares cíveis o juiz pode, mesmo oficiosamente, em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efectiva da decisão (artigo 28.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro).
Acresce que muito embora haja providências tutelares cíveis que são decretadas de modo autónomo e providências tutelares que são decretadas em processos apensos a outros (v.g. p. ex. artigo 16.º), essa distinção é puramente formal na medida em que a autonomia processual apenas se justifica por razões ligadas à clareza e simplificação do processado, visando facilitar o trabalho dos operadores e não qualquer aspecto ligado à arquitectura processual a que deve obedecer a instrução, discussão e julgamento das questões submetidas à apreciação do tribunal.
Deve ainda citar-se o disposto no artigo 47.º do Regulamento, nos termos do qual o processo de execução da decisão declarada executória é regulado pela lei do Estado-Membro de execução, devendo a decisão ser executada no Estado-Membro de execução como se nele tivesse sido emitida. No entanto, os objectivos do Regulamento reclamam que as autoridades nacionais apliquem regras que assegurem uma execução eficiente e célere das decisões proferidas nos termos do Regulamento, para não comprometer o seu efeito útil.
A importância desta questão foi igualmente realçada em várias decisões proferidas pelo TJUE, bem como pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Entre estes últimos encontra-se o Acórdão de 26 de Junho de 2003, Caso Maire c. Portugal (queixa n.º 48206/99), em cujo ponto 74 da fundamentação, se assinala que «importa lembrar que num caso desta natureza, a adequação de uma medida é julgada pela rapidez da sua aplicação. Com efeito, os processos relativos à atribuição do poder paternal, incluindo a execução da decisão proferida a seu respeito, exigem um tratamento urgente, porque a passagem do tempo pode ter consequências irremediáveis entre o menor e os pais que não vivem com ele. A Convenção de Haia reconhece-o, além disso, prevendo um conjunto de medidas tendentes a garantir o regresso imediato dos menores deslocados ou retidos ilicitamente no Estado Contratante. Nos termos do artigo 11º. desta Convenção, as autoridades judiciárias ou administrativas com o processo a seu cargo [ou onde] foi intentado o processo devem por isso proceder com urgência com vista ao regresso do menor, sendo que toda a inércia que ultrapasse seis semanas pode dar lugar a um pedido fundamentado».
Nesses termos, tendo a execução da decisão declarada executória sido requerida por quem tinha legitimidade para o efeito (o progenitor ao qual aquela decisão confiou o menor e o Ministério Público), e tendo a executoriedade sido declarada no âmbito de um processo tutelar cível, somos a entender que a adopção de medidas de execução da decisão subsequentemente à declaração de executoriedade, era possível e, em respeito pelas regras jurídicas internacionais a que Portugal se encontra vinculado, do ponto de vista material nenhum vício essencial e/ou insuprível representa a sua adopção sem ser através de um novo e distinto processo de execução.
Em suma, improcedem os argumentos com base nos quais a recorrente se opõe ao despacho de 02/12/2022.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença que declarou a executoriedade da decisão proferida em 04/01/2022 pelo Cour d’Appel de Bastia, Tribunal Pour Enfants, Ajaccio, no processo de assistência educativa n.º JE 121/0048 e, bem assim, o despacho proferido nos autos com data de 02/12/2022.
Custas do recurso pela recorrente.
*
Porto, 26 de Janeiro de 2023.
* Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 729)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]