Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
HERANÇA
DÍVIDA
PENHORA
Sumário
I - Ainda que condenado, na ação declarativa, como sucessor do falecido devedor originário, o herdeiro só responde pelas dívidas do de cujus na medida do valor dos bens herdados (arts. 2068º e 2071º do Cód. Civil). II - Na execução movida contra o herdeiro por dívidas da herança só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança (art. 744º, n.º 1 do CPC). III - Em execução movida contra herdeiro, recaindo a penhora em bens por ele não recebidos do autor da herança, pode ele requerer o seu levantamento, indicando, simultaneamente, os bens que tenha em seu poder (n.º 2 do art. 744º do CPC). IV - Opondo-se o exequente ao levantamento da penhora, e tendo a herança sido aceite pura e simplesmente (e não a benefício de inventário), o executado só pode obtê-lo desde que prove, cumulativamente, que os bens penhorados não provieram da herança e que não recebeu da herança outros bens além dos que indicou (n.º 3 do art. 744º do CPC). V - Não logrando provar este último requisito (ou seja, que não recebeu da herança outros bens além dos indicados ou, se tendo recebido mais, que os outros foram todos aplicados em solver encargos dela, à luz do disposto no art. 2071º, nº 2, do CC), improcede a sua pretensão de levantamento da penhora.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório
Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que é movida pela exequente G... Seguros, S.A., que corre termos no Juízo de Execução ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., vieram os Executados/Opoentes, AA, BB e CC, na qualidade de sucessores de DD, deduzir oposição à penhora, peticionando o levantamento da penhora incidente sobre os prédios penhorados (ref.ª ...11).
Para tanto alegaram, em resumo, que todos os bens penhorados nos autos principais de execução não pertenciam já ao DD à data do seu óbito por terem sido objeto de doações registadas na Conservatória competente.
O executado BB e a esposa, AA, são possuidores de outros bens capazes de garantir o pagamento da quantia exequenda, nomeadamente uma quota no valor de 83.132,00€, na sociedade comercial T... - Transportes de ..., Lda.
O prédio urbano constante das verbas n.º 5 e 7 do auto de penhora tem um valor muito superior à quantia exequenda e custas prováveis.
*
Liminarmente admitido o incidente (ref.ª ...80), a exequente apresentou contestação, pugnando pela improcedência da oposição à penhora (ref.ª ...65).
Alegou para o efeito que o falecido DD era proprietário dos imóveis identificados nos autos, objeto de penhora nos presentes autos de execução, tendo transmitido os mesmos, por doação, aos seus filhos, aqui Oponentes, CC e BB, ficando para si e sua mulher AA, aqui Oponente, reservado o respetivo usufruto vitalício a extinguir à morte do último, sendo que esta doação ocorreu após o sinistro referido supra e quase em simultâneo à interposição da ação de regresso contra o falecido DD, após sucessivas interpelações da Exequente ao falecido DD para pagamento dos montantes assumidos por consequência da sua responsabilidade pelo referido sinistro, facilitando a dissipação do património do falecido DD.
No caso concreto, os imóveis doados aos Oponentes deverão necessariamente, nos termos legais, integrar a herança, sendo que, nos termos do art. 2068º do Código Civil “a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados", sendo que os Oponentes, nomeadamente os herdeiros que receberam a totalidade do património que respondia pela dívida, escudam-se no princípio da limitação da responsabilidade nos termos do art. 2071º do Código Civil.
A referida doação efetuada pelo entretanto falecido DD aos seus herdeiros, foi transmitida a propriedade dos imóveis como mero efeito desse contrato de disposição gratuita e desde que o mesmo ocorreu, tal como resulta dos arts. 940º, nº 1, 947º, nº 1 e 954º, al. a) do CC, todavia, essa transmissão não evita – como é o caso – que os donatários-descendentes do doador devam restituir à massa da herança deste, designadamente para igualação da partilha, os bens ou valores recebidos em doação, para, assim, poderem entrar na sucessão do ascendente1, tal como resulta dos arts. 2104º, nº 1; 2105º; 2106º e 2113º, todos do C. Civ..
Acrescenta que estamos perante o instituto da colação, que consiste no ato de restituição/conferência à massa da herança, das liberalidades (bens ou valores) recebidos por alguns direitos em vida do autor da herança e que se fundamenta no significado social que é atribuído às doações em vida feitas a presuntivos herdeiros legitimários do doador, considerando-as como meras antecipações da herança (a ocorrer necessariamente no futuro).
Mais alega que pressuposto da obrigação de conferir os bens doados é que os descendentes/donatários, na data da doação, sejam presuntivos herdeiros legitimários do doador e que os mesmos (descendentes) venham a entrar na sucessão do ascendente doador, como é a situação dos autos, em que os aqui Oponentes, filhos do falecido DD, eram presuntivos herdeiros legitimários deste, na data da doação em causa, assim, no presente caso, os prédios em referência estão sujeitos a colação, nos termos legais, pelo que deverá improceder a pretensa falta de título executivo alegada pelos Oponentes.
*
Findos os articulados foi realizada produção de prova (ref.ª ...48).
*
Posteriormente, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu sentença, nos termos da qual julgou improcedente a oposição à penhora (ref.ª ...59).
*
Inconformado com esta decisão dela recorrem os opoentes/executados (ref.ª ...73),formulando, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«a- A raiz ou nua propriedade dos bens doados e penhorados pertence aos oponentes EE e FF, desde as datas das doações, Janeiro e Março de 2014; b- O usufruto dos prédios doados e penhorados pertence à oponente AA, desde a data do falecimento de BB; c- Á data da penhora, os bens penhorados não pertenciam à massa da herança do falecido DD; d- Os donatários não estão sujeitos a colação e por isso obrigados a levar para a massa da herança do falecido DD os bens doados e penhorados, primeiro porque não há lugar à colação e, caso houvesse, dela estavam dispensados, artigo 2114º do Código Civil, segundo porque a aquisição da nua propriedade dos prédios ,doados e penhorados foi registada sem que qualquer ónus fosse registado, simultaneamente; e- A haver colação a penhora dos bens penhorados em si, sempre ofenderia a meação da oponente AA; f- A penhora ofende os direitos dos oponentes e é ilegal; g- A douta sentença viola o disposto nos artigos 2114º, 2117º e 2118º, do Código Civil e faz uma interpretação e aplicação errada do disposto no artigo 2104º do mesmo código. Termos em que e nos mais de direito julgados aplicáveis deve a presente apelação ser julgada procedente e, em consequência, proferir-se acórdão que' revogue a sentença recorrida e a substitua por outra que considere a penhora ilegal e ordene o levantamento da mesma. V. Exas., como sempre, farão INTEIRA E MERECIDA JUSTIÇA».
*
Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo(ref.ª. ...59).
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II. Delimitação do objeto do recurso
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em apreciar se são ilegais as penhoras dos imóveis concretizadas sob as verbas n.ºs 1 a 7 do auto de penhora de 18/06/2021.
*
III. Fundamentos
IV. Fundamentação de facto.
A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
A) No requerimento executivo a Exequente veio dar à execução como título executivo uma sentença condenatória que condenou os aqui Executados AA, CC e BB, na qualidade de sucessores de DD, a pagar à A., Companhia de Seguros T..., S.A., a quantia de €45.724,18 (quarenta e cinco mil, seiscentos e vinte e quatro euros e dezoito cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data dos respetivos pagamentos até à data de propositura da ação, no valor de €638,55, (seiscentos e trinta e oito euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescida de juros até efetivo e integral pagamento.
B) Por escritura de doação outorgada no Cartório Notarial ..., em V..., no dia 29/01/2014 e de 10/03/2014, BB e a esposa, a aqui Executada/Opoente AA, reservando para eles o usufruto vitalício a extinguir à morte do último, doaram por conta da quota disponível, os bens comuns do casal penhorados nos autos principais de execução aos Executados/Opoentes CC e BB, sendo que tais doações foram registadas na Conservatória do Registo Predial competente no dia 24/03/2014.
C) A sentença que foi dada como título executivo nos autos principais de execução foi proferida na sequência da interposição de uma ação de condenação emergente de acidente de viação ocorrido no dia 15/11/2011, no âmbito da qual a Exequente exerceu o seu direito de regresso sobre o entretanto falecido DD, então segurado daquela, por ação judicial intentada em 12/05/2014, de todos os prejuízos que teve de suportar em consequência do sinistro, em virtude da sua responsabilidade pela ocorrência do acidente.
D) O falecido DD era proprietário dos imóveis identificados nos autos, objeto de penhora nos presentes autos de execução, tendo transmitido os mesmos, por doação, aos seus filhos, aqui Oponentes, CC e BB, ficando para si e sua mulher AA, aqui Oponente, reservado o respetivo usufruto vitalício a extinguir à morte do último.
E) Esta doação ocorreu após o sinistro referido supra e quase em simultâneo à interposição da ação de regresso contra o falecido DD, após sucessivas interpelações da Exequente ao falecido DD para pagamento dos montantes assumidos por consequência da sua responsabilidade pelo referido sinistro.
F) Nos autos principais de execução, a AE juntou uma auto de penhora lavrado em 18/06/2021 no qual constam identificados bens como penhorados, aos quais foi atribuído pela AE o valor total de 100.483,93€.
*
V. Fundamentação de direito
1. – Da (i)legalidade das penhoras dos imóveis concretizadas sob as verbas n.ºs 1 a 7 do auto de penhora de 18/06/2021.
Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados no Código Civil e nas leis de processo (art. 817º do Código Civil - CC).
Segundo o princípio geral enunciado no art. 601º do CC, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios, se bem que, salvo quando se trate de matéria subtraída à disponibilidade das partes, é possível, por convenção entre elas, limitar a responsabilidade do devedor a alguns dos seus bens no caso de a obrigação não ser voluntariamente cumprida (art. 602º do mesmo Código).
“Esta sujeitabilidade (penhorabilidade) da generalidade dos bens do devedor à execução para satisfação do direito do credor a uma prestação pecuniária constitui a responsabilidade patrimonial, que, resultante do incumprimento, é o fundamento de toda a execução por equivalente, bem como da execução específica, anda quando por meio direto, das obrigações pecuniárias”[1].
Atendo-nos aos bens que podem ser penhorados, mais concretamente ao objeto da execução, prescreve o n.º 1 do art. 735º do CPC que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.
A penhora deve limitar-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução (n.º 3 do art. 735º do CPC).
Em processo executivo, o executado pode defender-se por dois meios: opondo-se à execução, atacando o direito que o exequente pretende efectivar, através de embargos de executado (art. 728º e ss. do CPC); ou opondo-se à penhora, quando entenda que os bens atingidos por esta diligência não o devem ser, quer porque não devem, em concreto, ser apreendidos, quer porque o foram para além do permitido pelo princípio da proporcionalidade (art. 784º e ss. do CPC)[2]. A oposição à execução por embargos constitui um incidente de natureza declarativa, enxertado no processo executivo e dele dependente, por meio do qual o executado se tenta libertar (total ou parcialmente) da execução contra si instaurada, seja com base em razões de natureza processual, seja aduzindo argumentos materiais (que contendam com a existência ou a subsistência da obrigação), seja pela verificação de um vício de natureza formal que obsta ao prosseguimento da execução[3].
A procedência dos embargos extingue a execução, no todo ou em parte, além de que a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda (art. 732.º, n.ºs 4 e 5 do CPC) Diferentemente, o incidente de oposição à penhora, previsto no art. 784º do CPC, cinge-se à impugnação do ato de penhora, constituindo o meio específico de oposição à penhora objetivamente ilegal[4] e baseando-se sempre num fundamento que releva da violação dos limites objetivos desse ato[5], entre os quais figuram os casos da penhora de bens que, sendo embora do executado, não deveriam ter sido apreendidos por inadmissibilidade ou por força da extensão com que ela tenha sido realizada (al. a) do n.º 1 do art. 784º do CPC)[6].
O incidente de oposição à penhora é, nas palavras de Rui Pinto[7], a «ação funcionalmente acessória da ação executiva, pela qual o executado se defende de um ato de penhora de um bem seu com fundamento em violação das regras sobre o objecto penhorável».
Constitui um incidente declarativo enxertado na execução, que corre por apenso (art. 732º, n.º 1, “ex vi” do art. 785º, n.º 2, ambos do CPC), cujo pretensão visa obter a declaração da ilegalidade da penhora e alcançar o seu levantamento (total ou parcial)[8] e o cancelamento de eventuais registos – cfr. art. 785º, n.º 6, do CPC.
É processado nos termos previstos no art. 785.º do CPC, seguindo os termos dos arts. 293.º a 295.º, aplicando-se ainda, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 1 e 3 do art. 732.º (n.º 2 do art. 785º do CPC).
Os fundamentos da oposição à penhora – meio de oposição privativo do executado – encontram-se tipificados no art. 784º do CPC.
Nos termos da alínea c) do n.º 1 do referido artigo, “[s]endo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos: (…) c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência”.
O citado normativo alude a casos de impenhorabilidade substancial de determinados bens, por não responderem pela dívida exequenda, não obstante responderem por outras do executado.
Neste concreto fundamento de oposição abrangem-se, entre outras situações, a penhora de bens do herdeiro do devedor que aquele não recebeu deste (art. 744º, n.º 1 do CPC)[9]. Como refere Fernando Amâncio Ferreira[10], atente-se na execução promovida contra o herdeiro para pagamento de dívidas do autor da herança, onde se penhorem bens próprios do herdeiro, ou seja, bens não herdados. O executado há-de servir-se do incidente da oposição à penhora para obter o levantamento da penhora.
Por conseguinte, a forma – adjectiva – de o herdeiro executado contrariar uma penhora que tenha incidido sobre bens que não recebeu do autor da herança, não os tendo herdado, é através do “incidente” do art. 744º do CPC[11].
O citado normativo, sob a epígrafe “Bens a penhorar na execução contra o herdeiro”, estipula: “1 - Na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança. 2 - Quando a penhora recaia sobre outros bens, o executado, indicando os bens da herança que tem em seu poder, pode requerer ao agente de execução o levantamento daquela, sendo o pedido atendido se, ouvido o exequente, este não se opuser. 3 - Opondo-se o exequente ao levantamento da penhora, o executado só pode obtê-lo, tendo a herança sido aceite pura e simplesmente, desde que alegue e prove perante o juiz: a) Que os bens penhorados não provieram da herança; b) Que não recebeu da herança mais bens do que aqueles que indicou ou, se recebeu mais, que os outros foram todos aplicados em solver encargos dela”.
O n.º 1 do normativo citado traduz a aplicação da limitação constante da segunda parte do art. 601º do CC ao princípio da responsabilidade de todo o património do devedor pelo cumprimento da obrigação.
De facto, a limitação da responsabilidade do herdeiro pelas dívidas da herança, nos termos do art. 2071º do CC, consequência da ideia de que o credor deve continuar, para além da morte do devedor, a contar com a garantia patrimonial comum do crédito, mas o património pessoal do herdeiro não deve responder por dívidas de que o de cujus não era o devedor, traduz-se em que, na execução contra ele movida, só se podem penhorar os bens recebidos do autor da herança[12].
Mostra-se, pois, estabelecido o princípio de que o executado habilitado por sucessão mortis causa apenas responde pelos bens que tiver recebido do autor da sucessão. Se nenhum bem tiver recebido, também nada terá de pagar. Se tiver recebido bens que entretanto foram por si alienados, deverá responder pelo valor equivalente[13].
Contudo, a garantia patrimonial comum do crédito não cessa com a morte do devedor – o credor continua a poder contar, para além da morte do devedor, com o património que antes daquele evento (decesso do devedor) garantia o cumprimento coercivo do seu direito, devendo ser pago pelos bens da herança antes dos credores pessoais dos herdeiros (art. 2070º, n.º 1, do CC).
Como prescrevem os arts. 2068.º e 2069.º do CC, a herança (que em sentido técnico-jurídico abrange «um conjunto de bens patrimoniais, activos e passivos, em geral, todos os pertences de certa pessoa falecido no momento da sua morte»[14]), responde pelos encargos da mesma, nos quais se incluem, entre outros, as dívidas do falecido.
O art. 2068.º do CC deve ser conjugado com o art. 2071.º do mesmo diploma, epigrafado «Responsabilidade da herança»: «1. Sendo a herança aceita a benefício de inventário, só respondem pelos encargos efectivos os bens inventariados, salvo se os credores ou legatários provarem a existência de outros bens. 2. Sendo a herança aceita pura e simplesmente, a responsabilidade pelos encargos também não excede o valor dos bens herdados, mas incumbe, neste caso, ao herdeiro provar que, na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos.»
Assim, e quer a herança seja aceite pura e simplesmente, quer o seja a benefício de inventário, a responsabilidade dos herdeiros está limitada às forças da herança (art. 2071º): os herdeiros apenas respondem pelas dívidas do “de cujus” na medida daquilo que tenham recebido em herança (intra vires hereditatis), e não para além delas (ultra vires hereditatis) com os seus bens próprios[15][16]. Por tais dívidas do autor da herança não responde um património que não é alheio, precisamente o património pessoal dos herdeiros.
Vigora, pois, entre nós, o princípio segundo o qual o herdeiro não responde perante os credores da herança, com mais do que o património que dela recebeu, por forma a que não seja obrigado a pagar mais, mas também, não logre fugir às suas responsabilidades pagando menos, através por exemplo da deturpação do valor real dos bens herdados[17].
Na esfera patrimonial do herdeiro podem, portanto, coexistir duas massas de bens: uma que suporta os encargos da herança e outra que, em regra, só responde pelas dívidas próprias do herdeiro[18].
A herança – diz-nos o art. 2052º, n.º 1, do CC – pode ser aceita pura e simplesmente ou a benefício de inventário.
A aceitação a benefício de inventário faz-se requerendo inventário, nos termos previstos em lei especial, ou intervindo em inventário pendente (art. 2053º do CC).
Neste caso tal significa que o herdeiro declara que aceita a herança mas reserva o direito de só receber o valor líquido da herança, depois de pagos os encargos, e com isso o herdeiro obtém, além da inventariação dos bens da herança e da liquidação e partilha, uma separação, face aos credores da herança, dos bens desta relativamente ao seu património pessoal. Tal é relevante para efeitos de liquidação e pagamento dos encargos da herança, do ponto de vista probatório. Isto porque, de acordo com o art. 2071º, n.º 1, do CC, sendo a herança aceita a benefício de inventário, só respondem pelos encargos respetivos os bens inventariados, cabendo aos credores ou legatários provarem, no processo de inventário ou numa acção autónoma, a existência de outros bens[19].
Havendo aceitação pura e simples – ou seja, sendo a herança aceite sem qualquer processo de inventário –, isso implica, dada a inversão do ónus da prova, que passa a caber ao herdeiro (e não aos credores como na aceitação a benefício de inventário) a prova de que não há na herança valores suficientes para o cumprimento dos encargos hereditários (art. 2071º, n.º 2 do CC). Ou seja, nesse caso a responsabilidade pelos encargos também não excede o valor dos bens herdados, mas incumbe ao herdeiro provar a insuficiência dos bens recebidos do “de cujus” para fazer face aos encargos da herança. Se não tiver êxito nessa prova, tem de satisfazer os encargos por inteiro, o que pode, na prática, implicar o sacrifício de bens pessoais[20].
Adaptado este esquema substantivo à acção executiva e tendo presente o estatuído no art. 744º, n.ºs 1, 2[21] e 3, do CPC, se em execução por dívida da herança (por dívida do falecido) a penhora recair sobre outros bens – isto é, sobre bens não provindos da herança –, mas tendo a herança sido aceite pura e simplesmente e opondo-se o exequente ao levantamento da penhora, compete ao executado alegar e provar que: a) os bens penhorados não provieram da herança; b) não recebeu da herança mais bens do que aqueles que indicou; b) ou, se recebeu mais bens, que foram aplicados em solver encargos da herança[22]. Ou seja, não basta ao herdeiro provar que os bens penhorados são seus, pois, mesmo quando o herdeiro demonstre que a penhora recaiu sobre bens da sua titularidade, esses bens responderão pelas dívidas da herança, a menos que ele demonstre não ter recebido da herança mais bens do que os indicados[23].
No caso dos autos, a apelada/exequente intentou acção executiva para pagamento de quantia certa dando como título executivo uma sentença condenatória que condenou os aqui executados, AA, CC e BB, na qualidade de sucessores de DD, a pagar à A., Companhia de Seguros T..., S.A., a quantia de €45.724,18, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data dos respetivos pagamentos até à data de propositura da ação, no valor de €638,55, acrescida de juros até efetivo e integral pagamento.
Inquestionável, pois, que estamos, no que ao objecto da acção executiva resultante do requerimento inicial concerne, perante acção executiva contra herdeiros ou sucessores do devedor DD – como, aliás, logo reconhecido no requerimento de oposição à penhora –, sujeita à limitação da responsabilidade dos executados (herdeiros) pelas dívidas da herança.
Penhorados os imóveis identificados sob as verbas n.ºs 1 a 7 do auto de penhora de 18/06/2021, vieram os executados deduzir o presente incidente de oposição à penhora, impetrando o levantamento da penhora, invocando que os bens penhorados não pertenciam já ao DD, à data do seu óbito, pretensão esta que mereceu oposição por parte da exequente[24].
Como já salientámos, considerando o regime estabelecido no art. 744º, n.º 3, do CPC – e sendo seguro que o incidente de oposição à penhora é o meio adequado para o herdeiro/executado reagir contra penhora efectuada sobre bens não recebidos do autor da herança, nos termos do disposto nos arts. 744º e 784º, n.º, 1, al. c), ambos do CPC – e tendo a herança sido aceite pura e simplesmente [o que tudo aponta ser o caso dos autos, tanto assim que os executados não alegaram e comprovaram – documentalmente – a existência de um qualquer inventário, indispensável para a aceitação a benefício de inventário], a penhora só pode ser levantada se se concluir ter os executados logrado provar não só que os bens penhorados não provieram da herança, mas também e ainda que não receberam da herança outros bens além dos que indicaram (ou se, tendo recebido outros, que estes foram aplicados para solver encargos dela).
No caso, temos como provado o primeiro requisito – que os bens imóveis penhorados não provieram da herança –, posto resultar dos autos que, por escritura de doação outorgada no Cartório Notarial ..., em V..., no dia 29/01/2014 e de 10/03/2014, BB e a esposa, a aqui Executada/Opoente AA, reservando para eles o usufruto vitalício a extinguir à morte do último, doaram por conta da quota disponível, os bens comuns do casal penhorados nos autos principais de execução aos Executados/Opoentes CC e BB, sendo que tais doações foram registadas na Conservatória do Registo Predial competente no dia 24/03/2014.
Convergem as partes no sentido de que, por força da referida doação efetuada pelo entretanto falecido DD e pela sua mulher aos Executados/Opoentes CC e BB (que seus herdeiros), foi transmitida a nua propriedade dos imóveis como mero efeito desse contrato de disposição gratuita e desde que o mesmo ocorreu, tal como resulta dos arts. 940º, n.º 1, 947º, n.º 1 e 954º, al. a), todos do CC[25].
Diga-se, no entanto, ser de rejeitar a fundamentação aduzida na decisão recorrida (e propugnada pela recorrida) que, com vista a improcedência do incidente de oposição à penhora, se alicerçou no instituto da colação. Para tanto referiu-se que a transmissão operada “não evita – como é o caso – que os donatários-descendentes do doador devam restituir à massa da herança deste, designadamente para igualação da partilha, os bens ou valores recebidos em doação, para, assim, poderem entrar na sucessão do ascendente, tal como resulta dos art.s 2104º, nº 1; 2105º; 2106º e 2113º, todos do C. Civ”, concluindo que, no presente caso, os prédios em referência estavam sujeitos a colação.
Como as doações dos imóveis beneficiaram os herdeiros legitimários dos doadores, vejamos se é (mesmo) de considerar o regime legal da colação.
A regra nesta matéria é a de que os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação (art. 2104º, nº 1, do CC).
Se doação for de bens comuns por ambos os cônjuges, como aconteceu no caso vertente, metade é conferida à morte de cada um deles e o valor de cada uma das metades é o que ela tiver ao tempo da abertura da sucessão respectiva (art. 2117º do CC).
A colação é, pois, a restituição, em regra pelo valor, pelos descendentes, dos bens ou valores que os ascendentes lhes doaram, condição de participação na sucessão destes, visando a igualação, na partilha, do descendente do donatário com os demais descendentes.
A ela estão sujeitos os descendentes que eram à data da doação presuntivos herdeiros legitimários do doador, e faz-se pela imputação do valor da doação, ou pela restituição dos próprios bens doados se houver acordo de todos os herdeiros (arts. 2105º e 2108º, nº 1, do CC).
Sucede que a colação é configurada como um instituto privativo da sucessão dos descendentes, sendo dirigida à igualação da partilha dos descendentes e não, como no caso em apreço, em que está em causa a cobrança coerciva de uma dívida do autor da herança, DD.
Prosseguindo na indagação dos pressupostos enunciados no n.º 3 do art. 744º do CPC evidencia-se, porém, que os executados não alegaram, nem lograram provar (e o ónus de prova dessa matéria sobre si impende, como expressamente resulta do corpo do citado normativo) não terem recebido bens da herança ou outros bens além dos indicados (reportamo-nos, por exemplo, à indicada quota na sociedade comercial T... - Transportes de ..., Lda, de que eram titulares o falecido BB e a co-executada AA, tendo os executados alegado que tal bem era suficiente para garantir o pagamento da quantia exequenda).
Efectivamente, tendo os executados indicado nos autos bens da herança, não lograram já provar que não tenham recebido do autor da herança outros bens para lá dos indicados (alínea b) do nº 3 do art. 744º do CPC).
Não logrando os executados provar não terem recebido nenhum bem da herança ou outros bens além dos que indicaram no seu requerimento, não pode a sua pretensão ser acolhida.
Como antes se disse, tendo os executados herdeiros aceite a herança pura e simplesmente, sem inventariação prévia dos bens que a compõem, incumbia-lhes provar que na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos (ou que não receberam da herança mais bens do que os indicados ou, se tendo recebido mais, que os outros foram todos aplicados em solver encargos dela, à luz do disposto no art. 2071º, nº 2, do CC), pelo que, não logrando êxito nessa prova, os bens da sua titularidade responderão pelas dívidas da herança.
O que vem de dizer-se é suficiente para confirmar a improcedência da apelação, embora com fundamentação distinta da que foi acolhida na decisão recorrida, pois que deve ser mantida a penhora dos imóveis.
*
As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade dos recorrentes, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
*
*
VI. - DECISÃO
Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando, embora com fundamentação distinta, a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo dos apelantes (art. 527º do CPC).
*
Guimarães, 9 de fevereiro de 2023
Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)
[1] Cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª ed., Gestlegal, pp. 235/236. [2] Cfr. Ac. da RL de 3/03/2020 (relatora Micaela Sousa), in www.dgsi.pt. [3] Cfr. José lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º (artigos 627º a 877º), 3ª ed., Almedina, 2022, pp. 449/450; José Lebre de Freitas, A Acção Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª ed., Gestlegal, pp. 195/196, J. P. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum À Face do Código Revisto, Almedina, pp. 149/150 e Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, p. 195. [4] O ato de penhora pode revelar-se objetiva ou subjetivamente excessivo.
A penhora é objetivamente excessiva quando atinge bens ou direitos que, embora pertencentes ao executado, não devam responder pela satisfação do crédito exequendo; a penhora é subjetivamente excessiva quando tiver por objeto bens ou direitos que não são do executado. No primeiro caso, a penhora é objetivamente ilegal; no segundo é-o apenas subjetivamente [cfr. Acs. da RC de 20/06/2012 (relator Henrique Antunes), de 16/04/2013 (relator Henrique Antunes) e da RL de 3/03/2020 (relatora Micaela Sousa), todos disponíveis in www.dgsi.pt.] [5] Cfr. J.P. Remédio Marques, A Penhora e Reforma do Processo Civil, em especial a penhora de depósitos bancários e do estabelecimento, Lex, 2000, p. 106 e José lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, Código de Processo (…), Vol. 3º (…), p. 670. [6] Cfr. Paulo Pimenta, Acções e Incidentes Declarativos na Pendência da Execução, Revista Themis, Ano V, n.º 9, 2004, p. 82, Rui Pinto, A Acção Executiva, AAFDL Editora, 2018, pp. 677/678 e Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva (…), p. 295. [7] Cfr. obra citada, p. 676. [8] Cfr. Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. II, 2.ª Ed., 2004, Almedina, p. 99 e o Ac. da RL de 25/06/2009 (Ondina Carmo Alves), in www.dgsi.pt.
Diversamente, Rui Pinto defende tratar-se de uma ação constitutiva extintiva de um ato processual (cfr. obra citada, p. 677). [9] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Almedina, p. 179 e Marco Carvalho Gonçalves, obra citada, p. 322, Joel Timóteo Ramos Pereira, Prontuário de Formulários e Trâmites, Vol. IV, Processo Executivo, 2ª ed., Quid Iuris, p. 922 (é admissível a dedução de oposição à penhora no caso da “penhora de bens próprios do herdeiro que tenha sido habilitado ou demandado por dívidas respeitantes ao de cujus”). [10] Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 1999, Almedina, p. 172. [11] Cfr. Ac. da RL de 13/07/2017 (relator António dos Santos), in www.dgsi.pt. [12] Cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva (…), p. 270. [13] Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva Anotada e Comentada, Almedina, 2015, p. 314. [14] Cfr. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Quid Juris, 1999, p. 308. [15] Não obstante a solução legal de limitar às forças da herança a responsabilidade do herdeiro, pode este solver os encargos da herança com os seus próprios bens, se assim o quiser - cfr. F.M. Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Lições ao Curso de 1973-1974, Coimbra - 1992, pp. 88/89. [16] A circunstância de a responsabilidade do herdeiro se circunscrever intra vires hereditatis revela uma das faces da autonomia patrimonial da herança: a herança é um património autónomo porque só os bens da herança (e não o património próprio do herdeiro) é que respondem pelos encargos hereditários. Mas a herança é um património autónomo ainda noutro sentido: no sentido de que os bens da herança só respondem pelos encargos hereditários (e não pelas dívidas próprias do herdeiro). - cfr. F.M. Pereira Coelho, obra citada, p. 89. [17] Cfr. Ac. da RP de 4/05/2022 (relator Paulo Duarte Teixeira), in www.dgsi.pt. [18] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo (…), Vol. II, p. 120. [19] Cfr. Cristina Araújo Dias, Código Civil Anotado, Livro V - Direito das Sucessões (Coord. de Cristina Araújo Dias), Almedina, 2018, p. 67. [20] Cfr. Carvalho Fernandes, obra citada, p. 299. [21] Esta norma visa processualizar ou adjetivar o princípio substantivo da limitação da responsabilidade do herdeiro pelas dívidas da herança que está consagrado nos arts. 2071º e ss. do CC. [22] Cfr. Ac. da RG de 31/10/2012 (relator Ramos Lopes), in www.dgsi.pt. [23] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo (…), Vol. II, p. 120. [24] No caso, os executados não seguiram estritamente o procedimento previsto no n.º 2 do art. 744º do CPC, posto que, na sequência da citação nos termos do disposto nos arts. 626º e 856º do CPC, ao invés de indicarem os bens da herança que tinham em seu poder e requererem ao agente de execução o levantamento daquela, optaram, sem mais, por deduzir o incidente de oposição à penhora. [25] A doação é definida, no art. 940º do CC, como “o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito”.
O primeiro requisito do contrato de doação é a existência de uma atribuição patrimonial geradora de enriquecimento, ou seja, um acto que atribua a outrem uma concreta vantagem patrimonial.
O segundo requisito é a diminuição do património do doador, inserta na expressão “à custa do seu património”. Este requisito, ao contrário do que sucede no enriquecimento sem causa, supõe uma efectiva diminuição patrimonial, sem o que não se estará perante uma doação.
Finalmente, o último requisito do contrato de doação é a existência de espírito de liberalidade, ou seja, que exista a intenção de atribuir o correspondente benefício a outrem por simples generosidade ou espontaneidade e não em qualquer outra intenção como, por exemplo, o cumprimento de um dever.
Assim, na doação, é essencial o espírito de liberalidade, o animus donandi, ou seja, a intenção de fazer uma atribuição patrimonial a favor de outrem, beneficiando-a, sem contrapartida, sem que o beneficiário suporte o correspondente sacrifício no seu património.