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ACIDENTE DE VIAÇÃO
RENDIMENTO DO TRABALHO
DECLARAÇÃO DE IRS
DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
Sumário
I - Está fora de causa, em face da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 7 do artigo 64.º do SORCA que ao autor, em acção tendente a exercer a responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, apenas seja permitido provar os rendimentos do trabalho com base na declaração de IRS. II - Sendo a prova documental, de natureza particular, constituída por recibos de vencimento e declarações de IRS - contraditória e não concordante entre si – não está dotada de força probatória plena contra a ré, seguradora. III - O conteúdo de tais declarações, quanto a ela está sujeito, quanto à força probatória, à regra da livre apreciação do tribunal. IV - Como está fora de causa o tribunal apreciar e decidir a matéria de facto, reportada à questão concreta do salário do autor, com base em recibos de vencimento, que em relação ao mesmo mês apresentam duas versões e que, invariavelmente, não têm reflexo nas declarações de IRS. V - Uma vez que se não logrou fazer a prova do salário do autor, a forma mais adequada de colmatar esta lacuna, a que melhor se adequa à justiça do caso concreto, será através do recurso ao salário mínimo da Bélgica, país onde exercia a sua actividade profissional, ao tempo do acidente, desde logo, porque o n.º 8 do artigo 64.º do Decreto Lei 291/07 na redacção introduzida pelo Decreto Lei 153/2008 acautelando um mínimo de proteção relativamente às pessoas mais vulneráveis, prevê que, nas eventualidades de omissão de apresentação declaração de rendimentos, ausência de profissão certa ou de rendimentos declarados muito baixos, o tribunal apure o rendimento mensal do lesado com base na retribuição mínima mensal garantida à data da ocorrência. VI - A expressão “dano biológico” abarca, em si mesmo, duas vertentes: - como dano evento – no que se deve entender qualquer lesão da integridade física-psíquica, à saúde da pessoa em si e por si considerada, independentemente das consequências de ordem patrimonial, que possa prejudicar quaisquer atividades, situações e relações da vida pessoal do sujeito, não sendo necessário que se refira apenas à sua esfera produtiva, abrangendo igualmente a espiritual, cultural, afetiva, social, desportiva e todas as demais nas quais o indivíduo procura desenvolver a sua personalidade; - como dano-consequência (de natureza patrimonial) - afectação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento de trabalho, porque é determinante de consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado e, especificamente da sua actividade laboral, diminuindo as alternativas que lhe seriam possíveis ou oferecendo menores possibilidades de trabalho, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho. VII - Assim, a afectação da integridade físico-psíquica do lesado - ainda que não acarrete uma diminuição dos concretos rendimentos - na medida em que implique um esforço acrescido/suplementar para a realização das actividades profissionais e pessoais - constitui um dano futuro indemnizável autonomamente. VIII - Se a ré indemnizou o autor pelo valor do motociclo, lhe adiantou os valores de € 4.000,00 por conta das perdas salariais e € 10.000,00, por conta da indemnização pela perda da capacidade de ganho, tal não significa que haja “assumido o sinistro”, donde não se verifica a previsão legal do artigo 40.º/2 do Decreto Lei 291/07, “no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte", a seguradora ter de apresentar ao sinistrado uma "proposta razoável de indemnização", como justificativo para o pagamento de taxa de juros em dobro e da quantia de € 200,00 por cada dia de atraso.
Texto Integral
Processo: 639/20.8T8PNF.P1
Apelação - Processo 639/20.8T8PNF – Acção de processo comum – do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 4
Relator - Ernesto Nascimento
Adjunto – Carlos Portela
Adjunto - António Paulo de Vasconcelos
Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
AA intentou a presente acção sob a forma de processo comum contra A... Companhia de Seguros, SA, alegando, ter sido interveniente num acidente de viação, que se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor segurado da ré, sendo, assim, esta a responsável pela indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia global de € 883.176,25, acrescida de juros, calculados ao dobro da taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento e ainda acrescidos da indemnização prevista no artigo 40.º do Decreto Lei 291/2007 de 21 de Agosto e a ressarcir o autor pelos danos patrimoniais e morais futuros, a apurar mediante incidente de liquidação de sentença.
Contestou a ré, por excepção, imputando a culpa do acidente ao autor, impugnando os danos alegados e invocando o carácter excessivo dos valores das indemnizações peticionadas.
Percorrida a normal e pertinente tramitação seguiu o processo para audiência de julgamento que teve lugar com a observância do formalismo legal e que culminou com a prolação de sentença a julgar a acção parcialmente procedente, e consequentemente,
- a condenar a ré a pagar ao autor:
a) a título de danos patrimoniais a quantia global de € 27.776,25 - valor obtido após a compensação que se efectua [pelos valores já recebidos] da condenação global em € 32.871,31 – acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
b) a título de dano pela perda da capacidade de ganho, a quantia global de € 140.000,00 - valor obtido após a compensação que se efectua [pelos valores já recebidos] da condenação em € 150.000,00 – acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
c) a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 40.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da presente sentença, até efectivo e integral pagamento;
d) a indemnização a liquidar em execução de sentença, relativamente às quantias que o autor vier a suportar, quanto a ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares e observação em consultas médicas, além da possibilidade de nova intervenção cirúrgica para extracção de material de osteossíntese;
- no mais, a absolver a ré. Inconformados, recorrem,
- o autor, rematando as alegações com as conclusões que se passam a transcrever:
1. O presente recurso versa sobre a matéria de facto e direito.
2. Quanto à matéria de facto, por não se ter dado como provado os factos sob as alíneas A), C), F) dos factos não provados e, bem assim, pela incorreta redação do facto 22 e do facto 43 dos factos provados.
3. Quanto à matéria de direito, a mesma tem por base os seguintes pontos:
- Quantificação do dano patrimonial futuro/perda da capacidade de ganho; - Quantificação dos danos não patrimoniais;
- Consequências jurídicas a extrair do facto 33, dado como provado (não condenação da Ré na adaptação da viatura automóvel (a liquidar no futuro);
- Consequências jurídicas a extrair do facto 33, dado como provado; - Consequências jurídicas a extrair do facto 39, dado como provado; - Não condenação da Ré no dobro da taxa de juro.
4. Existiam e existem elementos de prova junto aos autos que permitiam assentar como provados os factos acima elencados como não provados – a saber: depoimentos de testemunhas e prova documental oficial, junta aos autos.
5. Quanto ao Facto A), é importante analisar as queixas evidenciadas no relatório médico do INML do qual consta que o Autor se queixa de claudicação permanente – cfr. pág. 5 do relatório do INML.
6. Veja-se, também, o próprio relatório médico elaborado pelos serviços clínicos da Ré (junto com o requerimento com ref. 6953794) onde consta tal informação no “exame objetivo”.
7. Acrescer, veja-se também o que disse a testemunha BB (Cfr. passagem 08m:08s a 08m:14s). Assim, somos da opinião que o facto acima dado como não provado terá de ser alterado passando a ser considerado como provado.
8. Quanto ao facto C), o mesmo resulta provado através do depoimento da testemunha BB (Cfr. passagem 12m:17s a 12m:29s) e, bem assim, o relatório de avaliação especializado do CRPG.
9. Quanto ao facto D), deverá ser dado como provado nos seguintes termos:
O A. está impedido de exercer qualquer profissão da sua área de aptidão, podendo, contudo, beneficiar de plano de reabilitação e reintegração profissional, sendo o seu perfil funcional compatível com a ocupação de posto cujo conteúdo funcional envolva a atividade de membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja porteiro de edifícios, estafeta ou similar.
10. Do relatório do CRPG ficou patente que o A. está com incapacidade permanente absoluta para a profissão habitual. De facto, resulta que o autor poderá desempenhar outras profissões. Todavia, as profissões sugeridas não são, como é constatável pela leitura do dito relatório, na sua área de aptidão (construção civil) sendo, por isso, sugerido um plano de reabilitação e reintegração profissional.
11. Quanto ao facto F), certamente houve lapso da perita do INML ao não referir a necessidade de adaptação da viatura automóvel. Todavia, tendo em consideração as concretas lesões no membro superior direito (com o qual coloca as velocidades na viatura) e no membro inferior esquerdo (com o qual usa o pedal da embraiagem) parece-nos evidente a necessidade em adaptar a viatura automóvel de caixa de velocidades normal para caixa com velocidades automáticas.
12. É importante analisar o que disse a testemunha BB (cfr. passagem 14m:47 a 15m:13) e bem assim o que resulta provado no facto 33 dos factos provado
13. Quanto ao facto 22, este encontra-se incorretamente redigido. Dúvidas não restam que o A. está incapaz para a profissão habitual. A perita do INML sugeriu a intervenção do CRPG que elaborou relatório especializado onde se fez constar o tipo de tarefas que o A. executava antes e as que, em tese, consegue executar agora e concluiu que o A. padece de incapacidade permanente absoluta para a profissão habitual.
14. Dúvidas não restam que o Autor ficou altamente limitado nas suas funções, sendo que as profissões sugeridas não se enquadram na sua área de aptidão (área da construção civil) e, por esse motivo, o CRPG sugere que o Autor deverá beneficiar de um plano de reintegração profissional.
15. Assim, tendo por base o relatório do CRPG, o facto 22 deverá ser alterado, passando a ter a seguinte redação:
A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 31/12/2019, com défice funcional temporário total de 15 dias, parcial de 452 dias e com repercussão na actividade profissional total de 376 dias e de repercussão na actividade profissional parcial de 91 dias.
O quantum doloris é fixado em 4/7, tendo o A. dores que se mantêm; o dano estético é fixado em 2/7; e a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer em 3/7. O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 18 pontos, sendo as sequelas impeditivas da atividade profissional habitual (incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de carpinteiro de cofragens) podendo beneficiar de plano de reabilitação e reintegração profissional, sendo o seu perfil funcional compatível com a ocupação de posto cujo conteúdo funcional envolva a atividade de membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja porteiro de edifícios, estafeta ou similar.
16. Quanto ao facto 43, a Ré, apesar de ter assumido responsabilidade e ter indemnizado o A. quanto aos danos na mota (na totalidade!), nunca formalizou, nem efetuou qualquer proposta de indemnização (nem ao A. nem ao seu mandatário). Tal não consta dos autos porque de facto não aconteceu.
17. Tal foi assumido pela testemunha CC (cfr. concreta passagem 13m:03s a 15m:41s), assim, o facto 43 deverá ter a seguinte redação:
A Ré iniciou conversações extrajudiciais com o A., tendentes à resolução extrajudicial do litígio, mas nunca formalizou, por escrito, qualquer proposta de indemnização.
18. No que diz respeito à aplicação do Direito aos factos, somos da opinião de que o Tribunal andou mal – mesmo que não se efetuasse qualquer das alterações acima referidas à matéria de facto, é indiscutível que o Tribunal a quo andou mal.
19. No que diz respeito ao dano patrimonial futuro/ perda da capacidade de ganho, sem prejuízo das alterações à matéria de facto acima descritas, quanto a este concreto segmento decisório é importante ter em consideração os factos provados sob os números 22 a 29.
20. Resumidamente para arbitrar indemnização a este título é importante ter em consideração o seguinte:
9. O A. tinha 41 anos de idade à data do acidente;
10. Trabalhava na Bélgica, como carpinteiro de cofragens, e auferia um vencimento base bruto de 2.646,73€, ao qual acrescia o montante de 26,91€/dia de subsídio de alimentação (cfr. facto provado 24);
11. A entidade patronal disponibilizava casa, suportava todas as despesas com as deslocações internas e ainda pagava viagens a Portugal (de avião) de 03 em 03 meses para os trabalhadores visitarem a família.
12. Ficou com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) o que consubstancia um caso em que o Autor não é reconvertível em relação ao seu posto de trabalho (cfr. relatório do CRPG)
13. Do ponto de vista funcional poderá, em teoria, vir a desempenhar profissões como estafeta ou porteiro (mas sem grande exigência física!) - sendo aconselhado plano de reabilitação e reintegração profissional
14. Não voltou a trabalhar e, consequentemente, a auferir rendimentos do seu trabalho (A 21.09.2022 completam-se 4 anos desde a data do trágico acidente);
15. A data da consolidação médica das lesões é 31.12.2019. 16. Esperança de vida para os homens ronda os 78 anos.
21. Desde a data da consolidação médica das lesões (31.12.2019) até aos 78 anos do A. distam 36 anos. Se dividirmos o valor atribuído (150.000€) acima pelos 36 anos chegamos à quantia anual de 4.166€ o que perfaz a quantia mensal (dividindo por 12) de 347,22€. Se dividirmos a quantia por 14 (subsídios) ficamos com a módica quantia de 297,57€!
22. O Autor não teve qualquer responsabilidade no acidente mas por força do mesmo deixou de poder exercer a sua profissão habitual - na qual auferia o valor acima indicado, passando com a presente sentença a ter ao seu dispor uma quantia anual de 4.166€ (tendo em consideração a esperança média para os homens) a que corresponde a uma quantia mensal de 347,22€ ou 297,57€ (consoante se divida por 12 ou 14). Estamos perante um valor que é menos de metade do salário mínimo nacional!!!!
23. O presente acidente não consubstanciou acidente de trabalho. É consabido que o seguro obrigatório aqui em apreço tem uma cobertura mais abrangente do que o seguro de acidentes de trabalho.
24. É importante realçar (porque parece-nos que o Tribunal a quo não deu a devida atenção a esse facto!) que o A. ficou com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual o que significa que nunca mais poderá desempenhar aquela que era, desde há muito, a sua profissão habitual (a este propósito e sobre esta matéria veja-se a título meramente exemplificativo o Ac. o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 05.04.2018 no âmbito do processo nº 681/15.0T8VRL.G1, o qual está disponível na internet através do site www.dgsi.pt).
25. Ora, nos termos do art. 48.º, n.º 3, al. b) [Por incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual], o sinistrado tem direito a uma pensão anual e vitalícia compreendida entre 50% e 70% da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra função compatível.
26. Por outro lado, o art. 71º, nº 2, da LAT refere o que se entende por retribuição:
“2 - Entende-se por retribuição mensal todas as prestações recebidas com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios.”
27. Está provado que o A. auferia um vencimento base bruto de 2.646,73€, ao qual acrescia o montante de 26,91€/dia de subsídio de alimentação (cfr. facto provado 24). Ora, se multiplicarmos 2.646,73x14 = 37.054,22€, ao qual acrescia o subsídio de 26,91€ x 22 = 592,02€ x 11 = 6.512,22€. Ou seja, o rendimento anual bruto do A. era de 43.566,44€.
Assim, 43.566,44€ x 50% = 21.783,22€. A acrescer, 43.566,44:5 = 8.713,28; 8.713,28 x 18% (admitindo que os 18 pontos de dano biológico correspondem, pelo menos, 18% de IPP [É superior, certamente]) = 1.568,39€. Logo, 21.783,22 + 1.568,39€ = 23.351,61€.
28. Assim, se estivéssemos perante um acidente de trabalho, o A. teria direito a receber uma pensão anual, vitalícia e atualizável (devida desde o dia 01.01.2020, data da consolidação das lesões) no valor anual de 23.351,61€, a ser paga, adiantada e mensalmente, até ao 3º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo que os subsídios de férias e de Natal, cada um no valor de 1/14 da pensão anual, seriam pagos, respetivamente, nos meses de junho e novembro, sendo que tal pensão seria atualizada de acordo com a Portaria nº 6/2022, de 04.01 (aumento de 1% prevista no artº 2º, da Portaria nº 6/2022, de 04.01).
29. O A. iria receber 14x por ano pensão superior a 1.667,97€! O A. teria ainda direito à bonificação de 1.5% pelo facto de padecer de IPATH (não mais poder exercer a sua profissão habitual), que nem estamos a considerar, e teria direito a ser pago de um subsídio para a frequência de ações no âmbito da reabilitação profissional (cfr. Relatório do CRPG).
30. Pelo acima exposto, o A. teria direito a receber uma pensão anual vitalícia e atualizável superior a 23.351,61€ o que perfaz uma média mensal de 1.945,96€. Bastante diferente dos 347,22€ fixados pelo Tribunal a quo.
31. Se multiplicarmos os 23.351,61€ pelos 36 anos (até à esperança de vida dos homens) atingimos o valor de 840.657,96!
32. A este propósito e a título meramente exemplificativo, vejam-se os Acórdão do STJ de 29.03.2022, Proc. 119/19.4T8STR.E1.S1, (Relator Maria João Vaz Tomé), e de 09.03.2022, proc. 959/15.3T8ALM.L1.S1 e ainda o Ac. TRG, de 01.01.2020, proc. 185/15.1T8BRG.G1, em que é relator o Desembargador Afonso Cabral de Andrade.
33. De acordo com a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça, nas situações em que o evento lesivo se reveste simultaneamente da natureza laboral e civil, traduzindo-se num acidente de trabalho e de viação, as indemnizações a atribuir ao lesado, em sede laboral e cível, não são cumuláveis, sendo antes complementares até ao ressarcimento da totalidade do dano. De resto, entende-se também que a responsabilidade pelo acidente de trabalho assume carácter subsidiário. É por esse caracter subsidiário que permite que as seguradoras do AT possam pedir o reembolso, à seguradora do acidente de viação, de tudo o que pagaram ao lesado (tal facto demonstra também a maior abrangência/cobertura do seguro obrigatório relativamente ao seguro de acidentes de trabalho).
34. Refira-se, ainda, que o Tribunal a quo teve como limite temporal a vida ativa (70 anos) quando a jurisprudência dominante do STJ indica que se deverá ter em consideração a esperança de vida (a este propósito vide Ac. STJ de 12.01.2022, proc. 6158/18.5T8SNT.L1.S1 em que é Relatora a Conselheira Maria Graça Trigo, disponível em www.dgsi.pt).
35. Assim, fazendo uma aplicação analógica da LAT (ou pelo menos levando em consideração o acima exposto) a indemnização a fixar pela perda da capacidade de ganho terá de ser a peticionada pelo o A. (750.000€) por ser, de facto, a cumpre o disposto nos arts. 562º e 566º do C. C. e, bem assim, a mais equitativa!
36. Acrescente-se que, além dos casos em que os lesados são ressarcidos no âmbito do AT e, ainda assim, recebem da seguradora do AV, ocorrem muitos casos em que não existe perda da capacidade de ganho (porque continuaram a receber o salário ou porque até já eram reformados) e, mesmo assim, são indemnizados. Isto porque o dano biológico é mais abrangente e deve ter-se em consideração não só o prejuízo, do ponto de vista patrimonial, mas também as limitações que o lesado passou a ter na sua vida extralaboral, no seu dia-a-dia.
37. É extremamente penoso para A. e, por isso, absolutamente injusto, que seja tratado de forma completamente diversa, comparativamente com outros lesados, quando os eventos lesivos são em tudo semelhantes (acidentes de viação). Não é isto que impõe o nº 3 do art. 8 do C. C. – normativo a que, cada vez mais a nossa boa jurisprudência vem dando efetiva cobertura.
38. Se o Tribunal a quo considerando que, em tese, o A. poderá vir a desempenhar uma daquelas profissões referidas pelo CRPG, pretender reduzir aquele valor tendo em consideração tal facto (o que não acontece nos AT, nos quais os sinistrados que beneficiam das pensões vitalícias e atualizáveis poderão desempenhar outras profissões cumulando a pensão com outros rendimentos), ainda assim será necessário ter em consideração que o A. poderá desempenhar a profissão de estafeta ou porteiro, o seu salário será certamente o salário mínimo. O problema é o “mercado absorver” o A. (com as suas limitações físicas objetivas), quando existem outras pessoas disponíveis para exercer funções semelhantes mas que não padecem de qualquer limitação física.
39. É extremamente difícil e mesmo admitindo que as venha a conseguir desempenhar, o A. terá, sempre, de fazer mais esforço do que qualquer outra pessoa que não tenha limitações físicas.
40. Por esse motivo, em qualquer das circunstâncias, a indemnização a atribuir ao Autor não deverá ser inferior a 650.000,00€
41. Quanto à quantificação dos danos não patrimoniais é importante ter em consideração as dores sofridas pelo A. com as lesões e ademais afetação da sua vida quotidiana; o prejuízo de afirmação pessoal; o dano estético.
42. Vejam-se os factos que constam nomeadamente dos factos dados como provados (acima transcritos) sob os números 10 a 21, 23, 30 a 33 e 39.
43. O A. sofreu bastante com o presente sinistro. Aos 41 anos de idade deixou de poder fazer grande parte das atividades lúdicas que anteriormente fazia (jogar futebol, correr, canoagem, BTT etc.), ficou com inúmeras cicatrizes, passou a ser uma pessoa fechada e deprimida. O A. já fez centenas de tratamentos de fisioterapia e ainda hoje faz 3 x por semana, sendo que os terá de continuar a fazer (tratamentos que lhe provocam dor, e, acima de tudo, lhe “roubam” tempo – tempo esse em que poderia estar a fruir de outra forma mais prazerosa); e terá ainda de ser sujeito a nova intervenção cirúrgica no futuro.
44. Assim, deverá ser arbitrada indemnização não inferior aos 100.000€. 45. Uma vez dado como provado o facto 33, as consequências jurídicas a retirar deveriam ser a de condenar a Ré na adaptação da viatura automóvel (“mudanças automáticas”).
46. Uma vez dado como provado o facto 39, as consequências jurídicas a retirar deveriam ser a de condenar a Ré a indemnizar o A. quanto aos 4 meses em que careceu de ajuda de terceira pessoa no valor peticionado de 1.400€.
47. Deverá a Ré ser ainda condenada no dobro da taxa de juros desde a citação uma vez que apesar de ter assumido responsabilidade no acidente nunca formalizou qualquer proposta de indemnização.
48. Encontra-se consagrado na lei o princípio de que a seguradora, "no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte", tem de apresentar ao sinistrado uma "proposta razoável de indemnização" - com tal solução o legislador pretendeu salvaguardar os legítimos direitos das vítimas de acidentes de viação, indemnizando-as tão breve quanto possível, de preferência extrajudicialmente, para o que impôs às seguradoras uma postura activa e verdadeiramente colaborante, sujeitando-as a sanções cíveis (artigo 38.º a 40.º do Decreto-Lei 291/2007) quando não atuarem em conformidade com o que lhes é exigível -a este propósito veja-se o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 24.02.2022, proc. 2374/20.8T8PNF.P1, em que é Relatora a Desembargadora Judite Pires.
49. Tal incumprimento foi assumido pela testemunha CC (cfr passagens acima identificadas). Cabia à Ré provar que cumpriu com acima citado DL – o que não o fez (porque de facto incumpriu!). Ora, dúvidas não restam que a Ré incumpriu disposições legais e não deverá ser beneficiada por ter uma postura pouco transparente. Refira-se que o art. 38º, nº 3, do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto refere o seguinte:
3 - Se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos
50. A ré ao não assumir qual o montante proposto (opção estratégica!) deverá ser, salvo o devido respeito, condenada no dobro da taxa de juro sobre a totalidade da condenação desde a citação. Não se deverá beneficiar o infrator – não é justo que se condenem seguradores pela diferença entre o valor proposto e o valor da condenação da sentença e, no presente caso, premiar uma conduta pouco transparente por parte da ré;
- subordinadamente a ré, pugnando pela alteração,
- da matéria de facto dada como provada, passando a constar do elenco dos factos provados artigos 24º e 25º,
24. O AA estava a trabalhar na Bélgica há cerca de 3 anos, sendo que à data do acidente se encontrava a exercer as funções de carpinteiro de cofragem na empresa B... S.A., a auferir um vencimento mensal bruto de € 700,00 e ajudas de custo de valor variável, sendo o vencimento base líquido de € 674,83.
25. Em termos líquidos o AA auferia de vencimento base líquido a quantia de 674,83€, existindo variações consoante o número de horas que trabalhasse e,
- da sentença no que respeita aos valores arbitrados a título de danos patrimoniais para € 7.898,70 e de perda da capacidade de ganho para € 80.000,00,
- rematando as alegações com as seguintes conclusões:
1- Foram incorrectamente julgados os factos constantes dos pontos 24 e 25 dos considerados provados.
2- O recibo de vencimento do autor revela uma remuneração base de 700,00/mês, constando ainda do mesmo os correspondentes proporcionais/ duodécimos, de subsídio de férias e subsídio de Natal.
3- E, por ser assim, incidem sobre os 816,66 (700+58,33+53,83) os descontos de 11% para a Segurança Social e taxa de IRS, apurando-se um valor líquido de 674.
4- Esta realidade encontra-se espelhada no extracto de remunerações junto aos autos pela Segurança Social e na declaração de IRS apresentada pelo sinistrado, doc.s de 29.6.2020 ref. 6391745 e de 07/07/2020 ref. 6417438.
5- A douta sentença ao apurar um rendimento médio de 2.000/mês desconsiderou o extracto das remunerações efectivas apresentadas pela segurança social e as próprias declarações em sede de IRS.
6- O valor a ter em conta para efeitos de cálculo não pode incluir as ajudas de custo.
7- Acresce que, para efeitos de subsídio de doença facto provado 28 – desde o acidente o autor apenas recebeu € 1.095,06 por se encontrar de baixa pela segurança social – o valor tido conta, tem exclusivamente como critério de cálculo o valor constante das remunerações declaradas (€ 700,00).
8- Entende a Recorrente que os pontos 24 e 25 dos factos dados como provados deverão ser alterados no que se refere aos valores auferidos a título de retribuição, nos termos que se indicarão infra:
24. O AA estava a trabalhar na Bélgica há cerca de 3 anos, sendo que à data do acidente se encontrava a exercer as funções de carpinteiro de cofragem na empresa B... S.A., a auferir um vencimento mensal bruto de € 700,00 e ajudas de custo de valor variável, sendo o vencimento base líquido de € 674,83.
25. Em termos líquidos o AA auferia de vencimento líquido a quantia de € 674,83, existindo variações consoante o número de horas que trabalhasse.
9- E, considerando-se, conforme requerido;
Suscita-se a apreciação da valoração dos danos considerados na douta sentença.
- A título de danos patrimoniais da quantia de € 32.871,31
- A título de dano pela perda da capacidade de ganho, da quantia de € 150.000,00
10- Pugnando a ora recorrente, para que o valor da retribuição mensal do autor seja reconduzida ao valor constante dos recibos apresentados à Segurança Social e para efeitos de IRS, teremos que a operação matemática daí decorrente terá necessariamente um resultado diverso, assim:
“Ao valor de € 10.122,45 (€ 674,00 X 15 meses) que o autor deixou de auferir, há que descontar o valor que recebeu a título de subsídio de doença de doença de € 1.095,06 e de € 4.000,00 de adiantamentos da ré, tendo ainda a receber da ré o valor de € 5.027,39.
11- Concluindo-se quanto a esta vertente indemnizatória, referente aos danos patrimoniais que a quantia constante da alínea a) da Decisão deverá ser de
a) A título de danos patrimoniais a quantia global de € 7.898,70 – valor obtido após a compensação que se efectua [pelos valores já recebidos] da condenação global em € 12.993,76, acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
12- Tendo em conta que o valor apurado para a perda da capacidade de ganho, teve como um dos factores de apuramento, precisamente o valor de € 2.000,00, vem a ora recorrente pugnar, para que essa compensação tenha em conta que o valor mensal a considerar seja de € 764,00 e se considere o benefício da entrega antecipada de capital.
13- A recorrente entende ser excessivo o valor indemnizatório global de € 150.000,00 a título de perda da capacidade de ganho.
14- Em face do sobredito é entendimento da ora recorrente que a indemnização fixada pelo Tribunal "a quo", neste segmento, se mostra verdadeiramente excessivo, pugnando-se para que este valor seja reduzido, alterando-se o valor para quantia não superior a € 80.000,00.
15- Face à requerida alteração da matéria de facto dada como provada, a douta sentença recorrida deve ser substituída por outra que nos segmentos recorridos condene a ré a pagar ao autor a título de danos patrimoniais identificados na alínea a) da decisão no valor de € 7.898,70 e no valor indemnizatório a título de dano pela perda de capacidade de ganho identificado da decisão na quantia global de € 80.000,00.
16- O Tribunal “a quo” interpretou de forma incorrecta o disposto nos artigos 8.º/3 e n.ºs 1 e 3 dos artigos 496.º, 563.º e 566.º/2 CCivil.
Responderam, ambos aos recursos da outra parte, pugnando, invariavelmente, pela sua improcedência.
Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 629.º/1, 633.º, 638.º, 639.º, 644.º/1, 645.º/1 alínea a) e 647.º/1 CPCivil.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho onde se teve ambos os recursos por próprios, tempestivamente interpostos e admitidos com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, uma vez que a tal nada obsta.
II. Fundamentação
II. 1. Como é sabido, o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, no caso, em ambos os recursos está em causa, saber se,
- existem de erros de julgamento e,
- são ajustados os valores concretos das várias parcelas da indemnização.
II. 2. Matéria de facto.
II. 2. 1. Vejamos primeiramente os fundamentos da decisão recorrida.
Factos provados.
1. No dia 21/09/2018, cerca das 17 horas, na E.N. ..., na Avenida ..., freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, ocorreu um embate, em que foram intervenientes os seguintes condutores e veículos: o A./AA, na qualidade de condutor do motociclo de matrícula ..-..-PH, marca Yamaha, modelo ..., de cor branca, do ano de 2000 e DD, residente na Rua ..., freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, como condutor do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-EB-.., marca ....
2. O A. circulava, a velocidade não concretamente apurada, com o sentido de marcha ... - ... e o condutor do EB provinha, naquele momento, a velocidade não concretamente apurada, da zona de acesso da Avenida ... – via que entronca à direita, atento o sentido de marcha do A. – e pretendia circular com o sentido de marcha contrário ao do A., ou seja, ... - ....
3. O A. seguia na E.N. ... e porque os semáforos se encontravam com sinal luminoso vermelho, imobilizou o seu motociclo (..-..-PH) e aguardou que o sinal luminoso passasse a verde.
4. Quando o sinal luminoso passou a verde, o A., que circulava com o capacete colocado, arrancou e, quando já tinha percorrido cerca de 60 metros e estava a chegar à intersecção da E.N. ... com a Avenida ..., sem que nada o fizesse prever, surgiu-lhe o veículo EB, provindo da zona de acesso da Avenida ..., sendo que o seu condutor atravessou o EB na E.N. ..., cortando a linha de marcha ao A..
5. O A., apesar do atravessamento repentino do EB, ainda tentou evitar o embate, todavia, dada a curta distância entre o seu veículo e o ponto de entrada, na via, do EB, foi-lhe impossível evitar a colisão.
6. O embate aconteceu entre a parte frontal do motociclo do A. e a parte lateral esquerda, junto à roda da frente, do EB.
7. O A. ficou imobilizado na faixa onde circulava, mesmo junto ao EB.
8. Tanto o A. como o condutor do EB conhecem, desde há vários anos, o entroncamento onde ocorreu o evento e ambos sabiam que no local onde a dita Avenida ... entronca na E.N. ... existe um sinal de Stop que obriga a parar a quem circula pela Avenida ....
9. Os senhores agentes que estiveram no local do evento a tomar conta da ocorrência registaram medidas, sinalizaram o local provável de embate e outros elementos que julgaram pertinentes e tomaram declarações aos intervenientes, conforme documento 2 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
10. O A. foi assistido no local, inicialmente pelos Bombeiros e, posteriormente, pela viatura VMER.
11. Ainda no local, foi imobilizado (já sem capacete), com colar cervical e plano duro.
12. Porque a sua situação clínica se estava a agravar, foi transportado para o serviço de urgência do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa (CHTS), sob perfusão de Midazolem.
13. Deu entrada no Serviço de Urgência às 18h44m58s e, na triagem de Manchester, (efetuada pelo Enfermeiro EE) foi-lhe atribuído a pulseira vermelha (emergente) -situação muito grave (enquadrada como grande traumatismo), conforme documento 3 da PI cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
14. Foi inicialmente avaliado pelo serviço de Medicina Interna, pelo Dr. FF, que fez constar que o AA fez analgesia, morfina e fentanil e, posteriormente, foi avaliado conjuntamente com o serviço de Cirurgia Geral onde lhe foram efectuados um conjunto de meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT`s).
15. Foi sujeito a uma intervenção cirúrgica logo após o internamento, de redução fechada da fractura com fixação interna-Fémur Ortopedia, pela seguinte equipa: Cirurgião principal – Dr. GG; Cirurgião Ajudante – Dr. HH e Dr. II e Anestesista principal – Dra. JJ.
16. Esteve internado, tendo tido alta hospitalar no dia 05.10.2018, tendo-lhe sido diagnosticadas, designadamente, as seguintes lesões: fractura de dente superior; fractura apófises transversas de C7 e D1; contusão da glândula SR direita; fractura do corpo da omoplata direita; fractura do 1/3 médio da clavícula esquerda; fractura dos arcos costais direitos (1º, 2º, 4º e 7º); hemopneumotórax esquerdo - drenado a 21.09.2018 e retirado dreno a 25.09.2018; provável contusão da supra renal direita; fractura transtrocantérica do fémur esquerdo (envolvendo o pequeno e o grande troncânter); fractura cominutiva diafisária proximal do fémur esquerdo, com sobreposição dos topos - redução e encavilhamento com vareta Gamma 3, tudo conforme documentos 3 a 5 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
17. Ao longo do internamento, além da referida cirurgia, o A. permaneceu com colar cervical colocado e foi sujeito a tratamentos de enfermagem, nomeadamente colocação de drenos, aspiração e tratamento da ferida cirúrgica, tratamentos esses que foram dolorosos.
18. A partir da data em que teve alta hospitalar permaneceu em casa, praticamente imobilizado e com necessidade de ajuda de terceira pessoa, por ordem médica, até inícios de fevereiro, data em que começou a fazer fisioterapia no CHTS, 03 vezes por semana e a ser seguido em Ortopedia pelo Dr. GG.
19. Desde janeiro até agosto de 2019, o AA foi sendo seguido em ortopedia (consulta externa) e efetuou fisioterapia no CHTS, e em agosto de 2019 foi informado no CHTS de que, pese embora necessitasse de manter tratamento de fisioterapia, teria de o fazer em clínica privada.
20. Desde agosto de 2019, o AA é seguido na Clínica ..., do Marco de Canaveses, tendo efetuado fisioterapia 05 vezes por semana, numa primeira fase e, neste momento, encontra-se a fazer fisioterapia 03 vezes por semana – situação de necessidade que deverá manter-se até informação médica em contrário.
21. Após o acidente o A. ficou a padecer das seguintes sequelas: fractura de dente superior (n.º 12); deformidade clavicular visível; cicatrizes ao longo do corpo, mais especificamente duas na zona da anca, de 2 cm e 3 cm (queloides), 3 cm e 1cm no 1/3 distal lateral da coxa, 2 cm na face anterior do joelho; dores no membro superior direito.
22. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 31/12/2019, com défice funcional temporário total de 15 dias, parcial de 452 dias e com repercussão na actividade profissional total de 376 dias e de repercussão na actividade profissional parcial de 91 dias. O quantumdoloris é fixado em 4/7, tendo o A. dores que se mantêm; o dano estético é fixado em 2/7; e a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer em 3/7. O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 18 pontos, sendo as sequelas impeditivas da actividade profissional habitual, mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional, designadamente, como porteiro de edifícios e estafeta.
23. O A. necessita de ajudas técnicas permanentes, tais como, ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares e observação em consultas médicas, além da possibilidade de nova intervenção cirúrgica para extracção de material de osteossíntese.
24. O AA estava a trabalhar na Bélgica há cerca de 3 anos, sendo que à data do acidente se encontrava a exercer as funções de carpinteiro de cofragem na empresa B... S.A., a auferir um vencimento 15,2699€/hora e subsídio de alimentação de 26,91€/dia, sendo o vencimento base bruto de 2.646,73€, conforme doc. 06 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
25. Em termos líquidos o AA auferia valores médios mensais na ordem dos 2.000€/mês, existindo variações consoante o número de horas que trabalhasse.
26. A entidade patronal disponibilizava casa, suportava todas as despesas com as deslocações internas e ainda pagava viagens a Portugal (de avião) de 03 em 03 meses para os trabalhadores visitarem a família.
27. Desde a data do acidente que o A. não voltou mais a trabalhar e nunca mais poderá voltar a desempenhar a sua profissão de carpinteiro de cofragens.
28. Desde o acidente o A. apenas recebeu 1.095,06€ por se encontrar de baixa pela Segurança Social e, ainda, o montante de 4.000,00€ a título de adiantamento por conta da indemnização por parte da Ré, conforme docs. 7 e 8 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
29. O A. nasceu a .../.../1977.
30. Antes do acidente o A. praticava, sempre que podia, futsal e nadava, o que deixou de poder fazer, deixando-o deprimido e revoltado.
31. O AA era uma pessoa alegre e bem-disposta e, actualmente, devido às limitações de que ficou a padecer e à baixa autoestima, passou a isolar-se.
32. Passou a sentir dificuldades nas tarefas do dia-a-dia, como seja, a subir e descer escadas.
33. O Autor foi informado pelo médico que não poderá voltar a circular de mota, dado o posicionamento de condução que tal implica, conduzindo veículo automóvel mas com dificuldades.
34. O Autor, por força do acidente, ainda teve os seguintes danos: a sua moto foi considerada em situação de perda total, tendo a Ré já indemnizado o A. na totalidade por esses danos; o seu capacete ficou destruído, assim como as calças, o casaco de cabedal, este no valor de € 200,00, e o telemóvel (marca Samsung), que lhe tinha custado a quantia de € 227,49, conforme documentos juntos na PI sob os n.ºs 9 e 10, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
35. O A. tem realizado sessões de fisioterapia na Clínica ..., já tendo suportado o valor de € 424,00, conforme documento 11 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
36. Sempre que foi efectuar tratamentos/consultas ao CHTS em Penafiel, o A. foi acompanhado por familiares, sendo que a maioria das vezes foi com a sua irmã, BB, e tal transporte foi sempre efectuado no seu automóvel, desde a habitação do A. em ..., designadamente para tratamentos de fisioterapia nos seguintes dias, conforme doc. 12 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido: janeiro de 2019 - dias 4, 7, 9, 11, 14, 18, 21 e 28; fevereiro de 2019 -dias 1, 4, 6, 8, 11, 13, 18, 20, 22 e 25; março de 2019 - dias 1, 4, 6, 8, 11, 13, 20, 22, 25, 27 e 29; abril de 2019 - dias 1, 3, 5, 8, 10, 15, 17 e 29; maio de 2019 - dias 3, 6, 8, 13, 15, 17, 20 e 22; junho de 2019 - dias 17, 19, 21, 24, 26 e 28; julho de 2019 - dias 1, 3, 5, 8, 10, 17, 22, 24, 26 e 29; e agosto de 2019 - dias 2, 7, 9 e 12; e para consultas externas nos seguintes dias: 30.01.2019, 27.02.2019, 27.03.2019, 26.04.2019, 24.05.2019, 15.07.2019 e 05.08.2019.
37. Quando o A. passou a efetuar fisioterapia na Clínica ..., em Marco de Canaveses, o procedimento foi o mesmo, tendo-se deslocado da sua habitação à Clínica ..., do Marco de Canaveses, nos seguintes dias, conforme documento 13 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido: Agosto de 2019 - dia 30; Setembro de 2019 - dias 2, 3, 4, 5, 6, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 25, 26, 27, e 30; Outubro de 2019 - dias 1, 2, 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 18, 21, 22, 23, 24, 25, 28, 29, 30, 31; Novembro de 2019 - dias 4, 5, 6, 7, 8, 11, 12, 13, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 25, 26, 27, 28, 29; Dezembro - dias 2,3, 4, 5, 6, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20; Janeiro -dias 6, 8, 10, 13, 15, 17, 20, 22, 24, 27, 29, 31; Fevereiro - 4.
38. O A., por forma a ter acesso à participação do acidente, teve de proceder ao pagamento de uma certidão no montante de €162,00, conforme doc. 14 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
39. O A., entre o período de 08.10.2018 e 08.02.2019 (4 meses), permaneceu em sua casa, contudo, precisou de ajuda de terceira pessoa para as tarefas básicas, como tomar banho, vestir-se, cozinhar, tendo-lhe sido prestado auxílio pela sua irmã BB.
40. À data do acidente encontrava-se transmitida para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-EB-.., através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ....
41. Quem circula na rua paralela à Avenida ... e para entrar na mesma, tem de usar o mesmo acesso da Avenida ....
42. A velocidade máxima permitida no local é de 50 km/h, sendo o local uma recta com boa visibilidade, e no dia do acidente o tempo estava bom e o piso seco.
43. A R. iniciou conversações extrajudiciais com o A., tendentes à resolução extrajudicial do litígio, que não lograram obter sucesso.
44. No âmbito da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória que se encontra apensa a estes autos, a R. já adiantou ao A. o valor total de € 10.000,00.
Factos não provados
A) O A. ficou a claudicar do membro inferior esquerdo. B) O A. ficou a padecer de um prejuízo sexual de 2/7. C) O A. tem o 6º ano de escolaridade.
D) O A. está impedido de exercer qualquer profissão da sua área de aptidão, não sendo possível a reconversão profissional.
E) O seu desempenho profissional era de excelência e tinha expectativa de vir a ser promovido a encarregado, o que implicaria passar a auferir um valor hora superior e, consequentemente, a auferir um vencimento mensal líquido superior a 2.500,00€.
F) O veículo automóvel que conduzir terá de ser adaptado, com “mudanças automáticas”, pois o esforço que terá de fazer para inserir as mudanças não é compatível com a força que tem no seu braço direito.
G) A sua irmã deixou de fazer horas de serviço doméstico para lhe prestar auxílio, tendo o A. se comprometido a pagar-lhe a quantia de 350€/mês pela ajuda que esta lhe prestou.
H) O veículo EB circulava na via paralela à Avenida ..., donde provinha para entrar na Avenida ... e não provinha da Avenida ....
I) O sinal de stop de Avenida ... não é visível para quem circula na rua paralela à Avenida ....
J) O condutor do EB antes de entrar na Avenida ... parou o veículo, olhou para a direita e para a esquerda e como não visualizasse trânsito em circulação reiniciou a sua marcha, e quando se encontrava já na referida Avenida, o veículo conduzido pelo A. arrancou em alta velocidade, circulando a mais de 50 km/h.
K) Quando o EB reiniciou a marcha, o PH ainda estava parado nos semáforos, que só chegou entretanto ao local, devido à sua velocidade.
Porque tal questão interessa igualmente à decisão do recurso, vejamos, igualmente, o que ali se deixou exarado em termos de fundamentação para suportar aquela decisão sobre a matéria de facto.
Para dar como provada a matéria supra referida o Tribunal considerou os factos aceites pelas partes, corroborados pelos documentos juntos aos autos e pela prova testemunhal produzida, assim considerados em 1º, 6º, 9º, 29º, 40º, 42º e 44º, designadamente quanto ao embate, intervenientes, características da via, auto da GNR, certidão de nascimento e apólice de seguro (com base nos documentos juntos aos autos).
Assim, consideraram-se para prova de todos os factos provados, também, os documentos juntos aos autos, nomeadamente:
• As fotografias do acidente e do local, juntas como doc. 1 da PI e juntas em audiência de julgamento, onde é perceptível a configuração do local, a intercepção das vias, as características das mesmas e a forma como poderá ter ocorrido o acidente dos autos, em confronto, também, com a demais prova documental (nomeadamente o auto da GNR) e testemunhal, parecendo resultar líquido que a versão trazida aos autos pela R. não é compatível com as características da via, desde logo a alegação de que o condutor do EB provinha da rua paralela, não tendo sido minimamente explicado pela testemunha DD como é que realizou tal manobra, para ficar imobilizado daquela forma após o embate, na perpendicular com a Avenida ... (daí que se tenha dado como não provada a
• matéria de H) a K), sendo certo, também, que em relação ao sinal de STOP na Avenida ..., embora pela parte de trás, o mesmo sinal ainda é perfeitamente visível da rua paralela; e provados, designadamente, os factos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 41º).
• A participação do acidente de viação (doc. 2 da PI), com as características da via e croqui com as medidas e posições dos veículos após o embate, para prova, nomeadamente, de parte dos factos 1º, 2º, 4º, 6º, 7º, 9º, 41º e 42º dados como provados.
• A documentação clínica junta como docs. 3 a 5 da PI, de fls. 110 e ss., 123 e ss., 187 e ss., 186-c e ss. (C..., e relatório final de avaliação de dano corporal da A..., que embora enquadre a situação dos autos, cede perante o relatório do INML, mais pormenorizado e mais recente, numa fase de consolidação médico-legal mais evidente, daí que se tenha considerado este, em detrimento daquele e da documentação junta a fls. 212) – factos provados sob os n.ºs 10º a 23º.
• Os recibos de vencimento juntos como doc. 6 da PI, em confronto com o documento junto pela R. em audiência de julgamento. Na verdade, em ambos os documentos (relativos ao mês de Março de 2018), o valor a receber é exactamente o mesmo, diferenciando apenas a ‘distribuição’ desses valores (além de um dos recibos estar assinado e outro não), pois enquanto nos recibos juntos pelo A. se faz referência ao valor por hora e ao vencimento base com tudo englobado, no recibo que a R. apresentou aparece um montante elevado em que se faz referência a ajudas de custo (mais do dobro do salário base [o que é, manifestamente, incompreensível] e que não foi reflectido em termos de SS e IRS – cfr. docs. juntos a fls. 78 e ss. e 86 e ss.). Tais valores, contudo, foram devidamente explicados em audiência de julgamento, como melhor se irá explicar, por referência a ajudas de custo que eram, no fundo e na prática e como acontece infelizmente as mais das vezes, verdadeiro salário, com carácter de regularidade, sendo certo que as outras despesas (como a renda de casa e os transportes) eram suportadas pela própria entidade patronal (extra recibo, considerando que o A. trabalhava na Bélgica, sendo prática usual neste tipo de trabalho e no estrangeiro ocorrer o pagamento destes encargos e a existência de um salário bem mais elevado, por referência ao salário mínimo que é praticado em Portugal). Daí que se tenha considerado o salário médio líquido mensal de € 2.000,00 (factos provados sob os n.ºs 24º, 25º, 26º).
• O documento 7 da PI para prova do montante recebido pelo A. do ISS, bem como o documento 8 da PI, quanto ao adiantamento de € 4.000,00 por parte da R. e doc. 9 da PI para prova do valor atinente à perda total do veículo (para prova, designadamente, dos factos 28º, 34º e 43º dados como provados).
• As facturas/recibos e outros comprovativos relativos a telemóvel, fisioterapia, consultas e tratamentos e certidão da GNR, juntos como docs. 10 a 14 da PI, tudo para prova, nomeadamente, dos factos provados sob os n.ºs 19º, 20º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º.
• Os documentos juntos na providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, designadamente quanto ao pagamento pela R. ao A. de € 10.000,00 (facto 44º dado como provado).
• A apólice de seguro junta como doc. 1 da contestação, para prova do facto 40º dado como provado.
• O assento de nascimento do A. de fls. 101 e ss., para prova do facto 29º.
• O relatório pericial do INML de fls. 119 e ss., 200 e ss. (final) e respectivos esclarecimentos de fls. 214 e ss., bem como a avaliação efectuada da possibilidade ou não de exercício para a profissão habitual de fls. 221 e ss., para prova, nomeadamente, de parte dos factos dados como provados 10º a 23º, 27º, 30º a 33º, 35º a 37º e 39º, e não provados em A), B), D), F). O relatório pericial, como acontece no caso concreto, ‘tem que ser mesmo um relatório médico-legal, isto é, completo e com justificação de todas as posições assumidas conclusivamente’ (Oliveira Sá, ClínicaMédico-LegaldaReparaçãodoDanoCorporalemDireitoCivil, Coimbra, 1992, pág. 70). Incasu, esta última perícia é sem dúvida concretizadora e justificativa dos valores atribuídos, pelo que a ela nos atemos para a sua fixação, considerando também o relatório posterior que atesta que na situação do A., embora esteja incapacitado para o trabalho habitual de carpinteiro de cofragens, está apto a desempenhar outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional, designadamente, como porteiro de edifícios e estafeta.
O documento 2 da contestação, declaração da Câmara Municipal, apenas refere que a rua paralela não tem nome e que o sinal de stop estava colocado na Avenida .... No entanto, como já verificamos, a versão do condutor do EB não é credível quanto à origem do seu veículo dessa rua paralela (apresentou um discurso ‘defensivo’, a que não foi alheia a circunstância da sua experiência profissional, titubeante, nada escorreito, nada credível e muito condicionado pelo facto de ser o condutor do EB [tendo sido mesmo impossível, apesar das diversas tentativas, fazer com que prestasse um depoimento sereno e espontâneo], e um depoimento pouco consentâneo com as características da via, a posição em que os veículos ficaram depois do embate, os danos dos mesmos [que, ao contrário do que se pretendeu fazer crer, não eram avultados]). E, o certo é que o EB, pela forma como as restantes testemunhas, isentas, relataram o acidente, do que puderam observar, tem uma entrada repentina na via, cortando a linha de trânsito do A., dando causa ao embate (daí os factos não provados de H) a K)).
O documento 3 da contestação, relativo à declaração amigável do condutor do EB, realizada dias depois do acidente, representa apenas a versão desse condutor, que, contudo e de qualquer forma, ‘se coloca’, em declarações, na Avenida ... (como o mesmo admitiu em depoimento).
Em declarações de parte (factos provados 1º a 8º, 10º a 27º, 30º a 33º, 35º a 37º, 39º, e não provados de A) a K)), o A. confirmou as lesões que teve, os incómodos, as actividades que praticava antes e a profissão que exercia na altura do acidente, matérias corroboradas pela documentação junta aos autos e pelos depoimentos das testemunhas inquiridas. Em relação ao salário, apenas soube explicar o que recebia e que a casa e as viagens ‘o patrão pagava por fora’ (na verdade, se não fosse dessa forma, pouco ou nada compensava ir trabalhar para o estrangeiro, se fosse para receber um salário semelhante ao que se recebe cá), não conseguindo explicar porque é que em termos de IRS e SS os valores são diferentes (o que também já é, infelizmente, ‘habitual’ e que muitas das vezes, senão sempre, acaba por prejudicar os próprios trabalhadores, não no imediato, mas pelo menos no futuro).
Quanto ao acidente, referiu apenas que se lembra de arrancar nos semáforos e ver um carro de repente a meter-se à sua frente e que não deu para parar, o que é compatível com os danos, a posição dos veículos na via após o embate, as características da via e os demais depoimentos isentos das testemunhas, nomeadamente, de KK e LL.
Tiveram-se, também, em consideração para a prova da matéria de facto, o depoimento das testemunhas, nos exactos termos a seguir indicados.
Assim, a testemunha MM (para prova de parte dos factos provados 1º a 4º, 6º, 7º, 9º, 10º, 41º, 42º e factos não provados sob as alíneas H) e I)), agente da GNR, que se deslocou ao local no dia do acidente e realizou a participação do acidente de viação e demais elementos atinentes à mesma, depôs de forma credível e isenta, nomeadamente, sobre as características da via, posição dos veículos quando lá chegou, distância para os semáforos e visibilidade (considerando-se, designadamente, que a Avenida ..., na parte em que entronca na Avenida ..., é mais larga [‘quem vem da rua paralela tem que ir para a Rua ... para ir para a Nacional’, ‘vai dar à Rua ... para virar’], concluindo-se que onde o EB saiu, na parte que entronca com a Avenida ..., ainda se considera que faz parte da Avenida ..., de que é continuação; aliás, é perceptível, até pelas fotos juntas e croquis realizado, que essa rua paralela mais parece um acesso a lojas e estacionamentos, pelo que seria incompreensível que quem viesse da Rua ... tivesse de parar para entrar na Avenida ... e que quem viesse dessa rua paralela não o tivesse de fazer…, quando sabe (como era o caso do condutor do EB) que a Rua ..., onde vai ter a rua paralela, tem um stop e que tem de ceder passagem a quem passa na Avenida ...).
A testemunha BB (para prova de parte dos factos provados 10º a 28º, 30º a 37º, 39º), irmã do A., confirmou a matéria atinente às lesões e tratamentos que o A. efectuou, ao tempo de recuperação e à forma como a mesma ocorreu, à ajuda de terceiros para as actividades básicas do dia-a-dia, às despesas que o A. teve, aos bens danificados e ao seu valor na parte em que se deu como provada, atestando também as consequências psicológicas e sociais que advieram para o A., por força do acidente dos autos (consonantes, aliás, com a perícia realizada e junta aos autos). Confirmou também a actividade que o A. exercia na Bélgica e o seu salário (cuja prova documental está junta aos autos e foi devidamente explicada pelo seu colega de trabalho, NN).
A testemunha OO (para prova de parte dos factos provados 1º a 3º, 6º, 7º, 10º a 12º, 30º, 31º, 32º, 34º e factos não provados sob a alínea I)), apesar de ser primo do A. relatou com credibilidade aquilo a que assistiu no local depois da ocorrência do acidente, porque estava a fazer escala como bombeiro e foi das primeiras pessoas a chegar ao local após o acidente. Confirmou a posição do A. após o embate (muito próximo do carro, a 1/1,5 metros, o que indica também a pouca velocidade a que o A. certamente seguia e sem esquecer que inexistiam no local quaisquer rastos de travagem) e que o estado dele era grave, que cortaram a roupa toda, como é habitual, confirmando onde se localizavam a maior parte das lesões. Mais pôde atestar, pela relação que mantém com o A., como ele era antes do acidente e como ficou depois. No que respeita ao acidente, não o viu, referindo apenas que ainda chegou a ver o A. parado nos semáforos, porque estava a passar perto e que o sinal de stop da Avenida ... é visível na rua paralela pela sua parte de trás.
A testemunha KK (factos provados sob os n.ºs 1º a 4º e factos não provados sob as alíneas J) e K)), depôs também com credibilidade e de forma isenta, confirmando que seguia atrás de um veículo que por sua vez seguia atrás do A. na altura do acidente, tendo referido que o A. estava parado nos semáforos, levava capacete e que arrancou normalmente quando o semáforo passou a verde, não denotando qualquer excesso de velocidade. Explicou que o carro que seguia à sua frente virou e que quando a testemunha arranca já dá de frente com o A. no acidente, não tendo visionado o embate propriamente dito, verificando apenas que o A. ficou logo no chão e com lesões.
NN (para prova de parte dos factos provados sob os n.ºs 24º a 26º, 30º e 31º e facto não provado sob a alínea E)), depôs também com conhecimento de parte da matéria, considerando que trabalhou com o A. na Bélgica, confirmando o salário que recebiam, que se trabalhassem todos os sábados rondaria os € 2.400,00/€ 2.500,00 (passando de € 15,00 à hora) e que todas as despesas de casa e transportes, bem como viagens de três em três meses a Portugal, eram suportadas pela empresa, pelo que a alusão a € 700,00 de salário base, mais ajudas de custo, não corresponderá à realidade. Confirmou, também, como era o A. antes do acidente e as actividades que praticavam juntos.
A testemunha LL depôs com credibilidade e conhecimento directo dos factos (para prova de parte dos factos provados sob os n.ºs 1º a 7º, 41º, 42º e factos não provados sob as alíneas H), J), K)), tendo assistido ao acidente dos autos, descrevendo-o de forma espontânea, referindo que estava na esplanada do outro lado da rua e que se apercebeu que ‘o carro meteu-se à estrada e a moto vinha e bateu-lhe’, transparecendo, efectivamente, o relatado pelo A. [em conjugação com a restante prova testemunhal, que declarou que viu o A. parado nos semáforos (OO e KK) e a arrancar normalmente (KK)], de que o acidente se dá pela entrada repentina do EB na via, ‘atravessando-se’ à frente do A. (‘se o carro não se mete-se ele passava’ e que a moto não podia ter-se desviado, ‘aquilo é segundos, dá-se o acidente’). Mais referiu que o EB estava direito na via, não parecendo que tivesse vindo da rua paralela, mas que não viu se vinha daí ou não, depoimento que, aliás, é consentâneo com as regras da normalidade, não havendo justificação para estar a assistir a todos os movimentos do veículo EB prévios ao acidente. Esclareceu, também, que ‘o A. não devia de ir com muita velocidade, já que tinha arrancado nos semáforos e aquando do embate caiu para trás, junto à mota e ao carro, que não ficou com muitos danos’ (e que o condutor do EB ‘deu-se logo como culpado’). Mais confirmou que após o acidente estavam a tentar ligar para os bombeiros e como não conseguiam, a própria testemunha pegou na sua mota e foi chamar os bombeiros.
A testemunha da R., CC, perito de seguros, confirmou as diligências extrajudiciais que a R. realizou para acordo (facto 43º dado como provado), tendo sido considerada a ‘perda total da mota’ (‘mas, às vezes, efectivamente, o valor da reparação ser elevado para o valor da mota em causa, não significa que tenha muitos danos’), mas que havia reservas para assumir integralmente a culpa, perante as declarações do segurado, pelo que não foi possível obterem acordo (apesar de terem feito proposta, que não verteram, contudo, a escrito), até porque tiveram em consideração apenas o valor base do salário, conforme recibo cedido pelo A. (muito embora não estivesse assinado), não tendo considerado as ajudas de custo.
A testemunha da R. PP, médica que observou o A. por parte da Companhia de Seguros R., para quem presta serviços, confirmou o relatório médico junto aos autos e por si subscrito, que como se referiu, embora coincida em certos pontos com o relatório pericial do INML (designadamente, na eventual necessidade de retirar material de osteossíntese e o facto de estar incapaz para o trabalho habitual, mas podendo exercer outras funções dentro da área da sua preparação técnica – para prova de parte dos factos provados sob os n.ºs 22º e 23º e factos não provados sob as alíneas A), B), D), F)), o Tribunal valorou, no entanto, para a matéria dada como provada o relatório do INML, que além de ter sido elaborado de forma mais distanciada das partes, é mais recente e pormenorizado, realizado numa altura em que já tinha passado mais de um ano e meio sobre a data da consolidação médico-legal das lesões, ao contrário daquele relatório da R., em que a consolidação médico-legal das lesões ainda não se tinha verificado, nos termos aqui dados como provados (tal como verificado pelo INML com os elementos que analisou – cfr. fls. 206 v.º).
QQ (para prova de parte dos factos provados sob os n.ºs 4º, 42º e facto não provado sob a alínea I)), averiguador de sinistros, que se deslocou depois ao local e ouviu os intervenientes, caracterizando a via (nomeadamente, a distância dos semáforos, a velocidade máxima permitida e a existência do Stop, que não deixa de ser visível, pela sua parte de trás, mesmo para quem vem da rua paralela) e referindo que os danos nos veículos foram avultados, mas por referência aos valores comerciais dos veículos (referindo mesmo que ‘não estabeleceu por isso qualquer relação com a velocidade, até porque no auto da GNR não existem quaisquer rastos de travagem…’, o que só por si também indicia o ‘atravessamento’ do EB na via, de forma inopinada e repentina, e o embate que se dá por causa disso).
A testemunha DD, o condutor do EB, tal como já foi referido, apresentou um discurso defensivo, claudicante, titubeante e em determinadas circunstâncias até mesmo incompreensível, não respondendo ao que lhe era perguntado, nomeadamente, quando lhe é pedido para explicar (‘indicando mesmo com o dedo numa das fotografias projectadas no ecrã de que se aproximou’) como tinha realizado a manobra para entrar na Avenida ..., e simplesmente não foi capaz de o fazer, nem sequer de forma consentânea com as características da via, do veículo e as regras da experiência comum, pois se vinha em sentido paralelo, muito dificilmente poderia ter ficado como ficou em termos perpendiculares, a não ser que tenha realizado grandes manobras, o que a testemunha não foi capaz de explicar ou afirmar (parte dos factos provados 1º, 2º, 6º a 9º, 41º e factos não provados H) a K)).
Referiu que, ainda assim, ‘invadiu a Rua ...’, tendo noção que esta tem um sinal stop, e que só se apercebe da mota quando entra na Avenida ...…, que aquando do embate a moto caiu para o lado e o A. também e que os danos do seu veículo terão sido realizados com o corpo do A., afastando a ideia de velocidade que quis fazer transparecer, sem o mínimo de correspondência com outros elementos objectivos do local e demais circunstâncias apuradas (seja pelos danos, seja pela inexistência de rastos de travagem, seja pela contradição com todas as demais testemunhas).
Não faz sentido que refira no seu depoimento que vinha da rua paralela, que não terá sinal de stop, mas que entra um pouco na Rua ... que já tem sinal e que nessa parte entra na Avenida ... e que se diga que não tinha de parar (não caberá, certamente, a quem circula na Avenida ..., ‘adivinhar’ de onde vêm os veículos, tanto mais que o condutor do EB estava no mesmo local por onde acedem todos os que vêm da Avenida ..., não estando sequer encostado ao separador da rua paralela, como tentou fazer crer, em contradição com as fotografias juntas aos autos e com as quais foi confrontado, mas ainda assim não referindo onde, afinal, se encontraria… e mais, que percurso fez exactamente até aí chegar… referindo entradas e saídas na via, porque se esqueceu de algo e precisava de ‘ir aos chineses’).
Referiu que ainda hoje não sabe de onde veio a moto, o que não é consentâneo com o ter referido que parou, olhou e não viu ninguém, a não ser que estivesse distraído…, sendo também inexplicável a parte em que depois já refere que viu a moto, para aí a 30 metros, que parou e que ‘se calhar’ a moto bloqueou (coisa que, efectivamente, não sabe e nem tem arrimo com qualquer facto da realidade apurada) e não conseguiu parar, tendo o A. caído por cima do seu capot.
Mais adiantou que, de qualquer forma, ‘não estava a pensar que tinha prioridade e que não está a contar que a companhia de seguros do A. assuma a responsabilidade’ (tendo essa companhia de seguros referido que ‘não assumia’).
Em suma, e pelos fundamentos já explanados, o seu depoimento não foi minimamente credível quanto à dinâmica do acidente como alegado pela R., pelo que não foi valorado pelo Tribunal quanto a essa matéria específica em causa e pelos fundamentos já expostos.
No que concerne à matéria dada como não provada (além da parte de Direito e conclusiva que não foi tida em consideração), a mesma resultou por absoluta falta de prova ou por prova diametralmente oposta ou insuficiência/inconsistência do alegado, dando-se aqui por reproduzida toda a matéria e respectiva fundamentação que se invocou supra, para todos os efeitos legais.
Na realidade, quanto às alíneas A), B), D) e F), em relação a sequelas e necessidades do A. (claudicar, prejuízo sexual, sem reconversão profissional, com necessidade de adaptação de veículo), a matéria especificamente aí constante não resultou nem de prova testemunhal adequada e/ou com razão de ciência para o efeito, nem documental idónea e/ou que afastasse o relatório pericial do INML que em lado algum previu ou fixou tal matéria, pelo que a mesma só podia ser não provada.
No que concerne à alínea C), da escolaridade do A., apesar da referência feita pela sua irmã BB, revelou-se insuficiente perante a inexistência nos autos de qualquer outro elemento.
Em relação à alínea E), quanto à perspectiva de ser promovido e de ganhar mais dinheiro, ninguém abordou tal matéria por forma a poder ser dada como provada.
No que diz respeito à alínea G), que a irmã tenha deixado de fazer horas de serviço doméstico e o A. se tenha comprometido a pagar-lhe € 350,00/mês, tal matéria não foi sequer confirmada pela própria irmã, BB, ou por quem quer que seja, daí ter resultado não provada.
Relativamente às alíneas H) a K), que dizem respeito à dinâmica do acidente e questões atinentes ao local do mesmo, tal como já foi amplamente referido, provou-se outra dinâmica do acidente, factos em parte diametralmente opostos, não tendo resultado verosímil e provada a versão apresentada R. (perante a prova produzida em audiência de julgamento) e o depoimento do condutor do EB nessa parte em específico, pelas razões já explanadas supra e que aqui se reproduzem integralmente.
Na verdade, apenas foi possível apurar que o veículo EB se encontrava em parte do acesso a sair da Avenida ... para entrar na Avenida ... (o que o próprio condutor não foi capaz de negar). De qualquer forma, da rua paralela podia avistar-se o Stop, ainda que pela sua parte de trás e quem dela provém, contudo, também tem de entrar na Avenida ... para poder aceder à Avenida ... (o que o condutor do EB admitiu) e, se assim é, não fará qualquer sentido que quem venha de cima (da Avenida ...) não tenha prioridade para entrar na Avenida ..., e quem entra mais à frente do sinal de Stop, nessa mesma via da Avenida ..., para entrar exactamente pelo mesmo sítio na Avenida ..., já possa ter prioridade (não faz sentido, não tem lógica e fere o bom senso).
Acresce que não existem nos autos quaisquer elementos que conduzam à velocidade concreta quer de um, quer de outro dos veículos (daí que se tenha dado apenas como provado ‘velocidade não concretamente apurada’), mas os elementos de prova existentes, mormente a prova testemunhal, são até no sentido de que o A. não teria imprimido uma velocidade excessiva ao seu veículo, nem para via, nem para o trânsito, nem para a velocidade permitida no local e não havendo quaisquer elementos que levem sequer à conclusão de que o EB inicia a marcha quando o A. ainda estava parado nos semáforos, e que só chegou ao local devido à sua velocidade, até porque percorrer 60 metros quando tem de se iniciar a marcha porque se está parado, e quando o EB só tinha de transpor cerca de três metros (cerca de metade da via), torna inverosímil essa versão apresentada (só se coadunando a ocorrência do sinistro com a entrada do EB de forma repentina e inopinada na via, não dando hipótese ao A. para evitar o embate, desviando-se ou fazendo qualquer outra actividade que o pudesse evitar).
Daí a matéria dada como não provada.
II. 2. 2. No âmbito da modificação da matéria de facto pela Relação, vigora o artigo 662.º/1 CPCivil, segundo o qual “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Porque se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
A alteração da matéria de facto só deve, assim, ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si ou dada a fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
Esta norma tem o propósito expresso reforçar os poderes da Relação, na reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir alcançar a verdade material dos factos e a garantir um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto, sendo certo que, em geral, lhe compete a derradeira palavra sobre esta matéria.
Para tal efeito contribuiu o chamado registo da prova, começado a implementar com o Decreto Lei 39/95 e reforçado pelo Decreto Lei 329-A/95, primeiro e, com o Decreto Lei 180/96, depois.
Como consta do preâmbulo daquele primeiro diploma, “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido”.
A impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
E, assim, as exigências contidas no artigo 640.º CPCivil, a este propósito, surgem, por um lado, na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente e, por outro lado, visam afastar soluções que pudessem reconduzir a uma repetição dos julgamentos.
Donde, apenas se mostra consagrada a possibilidade de reapreciação pelo tribunal superior e, consequente, formação da sua própria convicção (à luz das mesmas regras de direito probatório a que está sujeito o tribunal a quo), quanto a concretos pontos de facto julgados provados e/ou não provados pelo tribunal recorrido e a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1.ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
Tal como se impõe que o tribunal faça esta análise crítica das provas, também o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia, não bastando, sequer, reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos, sendo que, quando isso suceda, deve tal conduta processual constituir motivo de rejeição da impugnação da matéria de facto.
II. 2. 3. Recurso principal ou independente.
II. 2. 3. 1. As razões do autor.
Entende o autor estarem incorretamente julgados,
- como não provados os contidos nos pontos A) C), D) parcialmente e F) e,
- como provado parte de facto contido no ponto 22,
sendo os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, os seguintes, de entre os depoimentos de testemunhas e a prova documental:
facto A) – O autor ficou a claudicar do membro inferior esquerdo.
Entende ser de analisar as queixas evidenciadas no relatório médico do INML do qual consta que o autor se queixa de claudicação permanente – cfr. pág. 5 do relatório do INML;
- por outro lado, do próprio relatório médico elaborado pela ré (junto com o requerimento com ref. 6953794) consta tal informação;
- na parte do “exame objetivo” é referido o que se passa a citar:
“Marcha claudicante com inclinação lateral do tronco e báscula anterior da bacia (viciosa?); sem apoio externo;”
- a testemunha BB, sua irmã, também confirmou o acima referido, transcrevendo, e localizando no suporte de gravação digital o excerto que segue:
Advogado: Ele anda normalmente? Testemunha: Anda a mancar.
Daqui defendendo que este facto deve passar para o elenco dos provados.
Facto C) – O autor tem o 6º ano de escolaridade.
Do relatório de avaliação especializado do CRPG (que seguem abaixo duas fotos) consta que o Autor tem o 6º ano de escolaridade tendo terminado o mesmo com 14 anos de idade e, por outro lado, a testemunha BB, sua irmã, disse que,
Advogado: O AA tinha que escolaridade?
Testemunha: Tinha o 6ª ano que na altura dele era a escolaridade obrigatória.
Daqui defendendo que deve este facto, passar, também, para o elenco dos provados, afirmando que se o Tribunal a quo entendesse que tais elementos eram insuficientes para a prova de tal facto, então teria o poder-dever de pedir mais elementos que, certamente, teriam sido, por si, apresentados.
Facto D – O autor está impedido de exercer qualquer profissão da sua área de aptidão, não sendo possível a reconversão profissional.
Defende que deve ser julgado como provado nos seguintes termos: “O autor está impedido de exercer qualquer profissão da sua área de aptidão, podendo, contudo, beneficiar de plano de reabilitação e reintegração profissional, sendo o seu perfil funcional compatível com a ocupação de posto cujo conteúdo funcional envolva a atividade de membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja porteiro de edifícios, estafeta ou similar”.
Isto porque entende que do relatório do CRPG ficou patente que está com incapacidade permanente absoluta para a profissão habitual, resultando, ainda, que poderá desempenhar outras profissões, sendo, todavia, que as sugeridas não são na sua área de aptidão (construção civil) sendo, por isso, sugerido um plano de reabilitação e reintegração profissional.
Facto F) – O veículo que terá de conduzir terá de ser adaptado.
Entende, aqui, que, certamente por lapso, a perita do INML não refere a concretas lesões no membro superior direito (com o qual coloca as velocidades na viatura) e no membro inferior esquerdo (com o qual usa o pedal da embraiagem) parece evidente a necessidade em adaptar a viatura automóvel de caixa de velocidades normal para caixa com velocidades automáticas, invocando, aqui o que disse a testemunha, sua irmã:
Advogado: Andar de carro, consegue?
Testemunha: Se for só uma coisinha pouca em terrenos muito… Mas depois vem e, às vezes, até se enfia na cama porque as dores são horríveis.
Advogado: custa-lhe circular? Testemunha: custa-lhe imenso!
Advogado: Onde é que ele tem as principais dores? Testemunha: perna esquerda e braço direito.
Cfr. passagem 15m:29 a 15m:45
Advogado: Então para colocar as mudanças na viatura é algo que lhe…
Testemunha: Sim porque precisa do pé esquerdo para a embraiagem e a mão para as mudanças.
Advogado: E custa-lhe?
Testemunha: Custa-lhe imenso, tem de ser viagens pequeninas e raramente.
Daqui afirmando dever este facto passar, também, para o elenco dos provados.
Facto 22 – a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 31/12/2019, com défice funcional temporário total de 15 dias, parcial de 452 dias e com repercussão na actividade profissional total de 376 dias e de repercussão na actividade profissional parcial de 91 dias. O quantumdoloris é fixado em 4/7, tendo o A. dores que se mantêm; o dano estético é fixado em 2/7; e a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer em 3/7. O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 18 pontos, sendo as sequelas impeditivas da actividade profissional habitual, mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional, designadamente, como porteiro de edifícios e estafeta.
Entende ser incorrecta a sua redacção, que, por isso, deve ser alterada, isto porque, não restam dúvidas que está incapaz para a profissão habitual;
- a perita do INML sugeriu a intervenção do CRPG para uma avaliação especializada. A este propósito veja-se o despacho, com ref. 86979835, no qual é referido o que se passa a citar: “para uma melhor caracterização das possibilidades de readaptação profissional, sugere-se avaliação complementar especializada, sugerindo-se que a mesma possa ter lugar no Centro de Reabilitação Profissional ...”;
- do referido relatório do CRPG fez-se constar o tipo de tarefas que executava antes de ter o acidente e as que consegue executar agora - dúvidas não restam que ficou altamente limitado nas suas funções, sendo que as profissões sugeridas não se enquadram na sua área de aptidão (área da construção civil) e, por esse motivo, o CRPG sugere que deverá beneficiar de um plano de reintegração profissional.
E, assim, defende que, tendo por base o relatório do CRPG, o facto 22 deverá ser alterado, passando a ter a seguinte redação: “a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 31/12/2019, com défice funcional temporário total de 15 dias, parcial de 452 dias e com repercussão na actividade profissional total de 376 dias e de repercussão na actividade profissional parcial de 91 dias. O quantum doloris é fixado em 4/7, tendo o A. dores que se mantêm; o dano estético é fixado em 2/7; e a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer em 3/7. O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 18 pontos, sendo as sequelas impeditivas da atividade profissional habitual (incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de carpinteiro de cofragens) podendo beneficiar de plano de reabilitação e reintegração profissional, sendo o seu perfil funcional compatível com a ocupação de posto cujo conteúdo funcional envolva a atividade de membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja porteiro de edifícios, estafeta ou similar”.
Defende, ainda ser incorreta a redação dada ao ponto 43 – a ré iniciou conversações extrajudiciais com o autor, tendentes à resolução extrajudicial do litígio, que não lograram obter sucesso.
Que deverá passar a ter a seguinte: “a ré iniciou conversações extrajudiciais com o autor, tendentes à resolução extrajudicial do litígio, mas nunca formalizou, por escrito, qualquer proposta de indemnização”.
Isto porque, a ré, apesar de ter assumido parte da responsabilidade e de o ter indemnizado, quanto aos danos na mota, na totalidade, nunca formalizou nem efetuou qualquer proposta de indemnização (nem a si, nem ao seu mandatário), o que foi, de resto, assumido pela testemunha CC, funcionário da ré, que disse que apresentaram verbalmente, sem sequer falar em valores.
E, daqui, afirma que segundo o disposto no Decreto Lei 291/2007, cabia à ré, não só formalizar, por escrito, a assunção de responsabilidade (e em que medida) mas também a apresentação, por escrito, de proposta razoável – cabia-lhe provar que cumpriu com o ali previsto e, não o fez, porque de facto incumpriu, invocando o que disse esta testemunha - que não tem a certeza se formalizaram, por escrito, a assunção de responsabilidade (falando em divisão de responsabilidade primeiro e depois em 50% de responsabilidade) e, posteriormente, confirma que nunca formalizaram proposta de indemnização, por escrito. Apesar de referir que fizeram proposta verbal, não adianta o valor da mesma.
Daqui afirmando que não há dúvida que a ré incumpriu as disposições legais ali previstas e não deve ser beneficiada por ter uma postura pouco transparente.
Terminando, por invocar o disposto no artigo 38.º/3 do dito diploma legal, “se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos”, para assim, concluir que a ré ao não assumir qual o montante proposto (opção estratégica!), deve ser condenada no dobro da taxa de juro sobre a totalidade da condenação e que caso informasse o Tribunal do valor proposto seria condenada, apenas, na diferença entre o montante oferecido e o montante fixado pelo Tribunal de acordo com o acima citado inciso normativo.
II. 2. 3. 2. Baixando ao caso concreto.
Desde já, importa salientar que na decisão recorrida se entendeu jugar os factos não provados com o fundamento em que, na absoluta falta de prova ou até em prova diametralmente oposta ou insuficiência/inconsistência do alegado e, concretamente, quanto às alíneas A), B), D) e F), em relação a sequelas e necessidades do A. (claudicar, prejuízo sexual, sem reconversão profissional, com necessidade de adaptação de veículo), tal matéria não resultou nem de prova testemunhal adequada e/ou com razão de ciência para o efeito, nem documental idónea e/ou que afastasse o relatório pericial do INML que em lado algum previu ou fixou tal matéria, pelo que a mesma só podia ser não provada e, no que se refere à alínea C), da escolaridade do autor, apesar da referência feita pela sua irmã BB, revelou-se insuficiente perante a inexistência nos autos de qualquer outro elemento.
Vejamos. Alínea a).
É certo que a irmã do autor, a pergunta sobre se ele anda normalmente, respondeu que anda a mancar.
E, também, é certo que os serviços clínicos da ré em 21.9.2018 referem que o autor claudica.
Mas não é menos certo que, mais recentemente, agora, depois da alta, depois da consolidação das lesões, ocorrida a 31.12.2019, no relatório, datado de 1.4.2021, da perícia médico-legal, efectuada pelo INML, consta que o examinando é dextro e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação.
Será, assim, perfeitamente normal que em 2 nos e meio, por via da recuperação clínica e dos tratamentos a que foi submetido, o autor tenha sentido melhores neste aspecto.
E, naturalmente, por muita proximidade no dia a dia que os irmãos tenham, não pode o testemunho da irmã sobrepor-se à prova pericial, consubstanciada no relatório da perícia médico-legal, efectuada, recentemente, pelo INML.
Improcede, pois este segmento do recurso. Alínea c).
Assiste pertinência, neste particular, à causa de irresignação do autor. Com efeito, ter-se-à que responder afirmativamente à questão de saber
se tem o 6.º ano de escolaridade, dado que, por um lado – mais uma vez - a irmã a pergunta sobre que escolaridade tinha o autor, respondeu que tinha o 6.º ano, que no tempo dele era a escolaridade obrigatória e, por outro, do relatório de avaliação especializado do CRPG, consta que o autor tem o 6.º ano de escolaridade tendo terminado o mesmo com 14 anos de idade.
Não se pode aceitar atenta a regra da livre convicção do tribunal e não sedo caso de prova tarifada, nem a exigir particulares conhecimentos técnicos ou científicos, que o facto de a irmã do autor - com razão de ciência que ostensivamente lhe confere credibilidade para se pronunciar sobre a matéria – confirmar as habilitações alegadas seja tido como insuficiente, perante a inexistência nos autos de qualquer outro elemento.
Não se entende a razão de ser desta insuficiência, muito menos reportada ao facto de o depoimento não ser corroborado por qualquer outro elemento de prova – que, por acaso até é, no caso pelo referido elemento clínico, baseado, é certo, nas declarações do próprio autor.
A não ser o subjacente entendimento, errado, é certo, que teria que ser junto o certificado de habilitações para que o autor provasse ter, afinal, a escolaridade mínima obrigatória – que só não era completada por quem, excepcionalmente, abandonasse a escola, anteriormente.
Com efeito não estamos perante formalidade nem ad substantiam nem ad probationem.
De qualquer forma, importa referir o seguinte. É deveras curioso o entendimento do autor, neste particular, ao defender que se o tribunal entendia que este depoimento e prova documental eram insuficientes para a prova de tal facto, então teria o poder-dever de pedir mais elementos que, certamente, teriam sido, por si, apresentados.
Entendimento sem qualquer suporte legal, mas a que não será alheio o sentimento, a percepção que se vem enraizando, através das sucessivas reformas introduzidas no regime legal do processo civil, que vêm descaracterizando o princípio dispositivo e introduzindo cada vez maiores nuances do inquisitório e da oficiosidade do tribunal, essencialmente através da remoção dos factores que impeçam o conhecimento do mérito, através do conhecimento, mais amplo, da matéria de facto.
O, que o autor numa interpretação perfeita e absolutamente abusiva pretende transpor para o campo do ónus da prova, para o campo da produção da prova.
Se a parte sobre quem recai o ónus de o fazer não o faz, de forma satisfatória, então, deve o tribunal oficiosamente, suscitar a produção de prova cabal e suficiente.
Porventura, ad infinitum, até que a mesma apareça.
Curioso este entendimento do autor, sem dúvida, mas sem qualquer apoio legal, por ora, tem subjacente a ideia de que o tribunal não pode nunca julgar um facto como não provado, sem que primeiro oficiosamente, convide a parte a sobre ele produzir -ir continuando a insistir, ir insistindo na sua produção - prova, suficiente, credível e cabal.
Alínea d).
Perante o ponto não provado - o autor está impedido de exercer qualquer profissão da sua área de aptidão, não sendo possível a reconversão profissional – defende que este ponto deve ser julgado como provado nos seguintes termos - o autor está impedido de exercer qualquer profissão da sua área de aptidão, podendo, contudo, beneficiar de plano de reabilitação e reintegração profissional, sendo o seu perfil funcional compatível com a ocupação de posto cujo conteúdo funcional envolva a atividade de membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja porteiro de edifícios, estafeta ou similar.
Isto porque entende que resulta do relatório do CRPG que estando com incapacidade permanente absoluta para a profissão habitual, poderá desempenhar outras profissões, sendo, todavia, que as sugeridas não são na sua área de aptidão (construção civil) sendo, por isso, sugerido um plano de reabilitação e reintegração profissional.
No ponto 21 dos factos provados consta que o autor ficou a padecer das seguintes sequelas, fractura de dente superior (n.º 12); deformidade clavicular visível, cicatrizes ao longo do corpo, mais especificamente duas na zona da anca, de 2 cm e 3 cm (queloides) 3 cm e 1cm no 1/3 distal lateral da coxa, 2 cm na face anterior do joelho; dores no membro superior direito.
E, no ponto 22 consta que, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 18 pontos, sendo as sequelas impeditivas da actividade profissional habitual, mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional, designadamente, como porteiro de edifícios e estafeta.
Mais uma vez recorrendo ao relatório da perícia-médico legal efectuada pelo INML, dele consta “repercussão permanente na actividade profissional (corresponde ao rebate no exercício da actividade profissional habitual da vítima-actividade à data do evento, isto é, na sua vida laboral, para utilizar a expressão usada na portaria nº 377/2008 de 26 de Maio, tratando-se do parâmetro de dano anteriormente designado por Rebate profissional). Neste caso, é de considerar que as sequelas serão impeditivas do exercícioda actividade profissional habitual, sendo, no entanto, compatíveis com outras profissõesda área da sua preparação técnico profissional”.
Pedido esclarecimento pelo autor ao CRPG, acerca das possibilidades de desenvolver a sua profissão, este veio esclarecer que “somos de parecer que oexaminado de encontra com incapacidade permanente absoluta para o trabalho decarpinteiro de cofragens, podendo beneficiar do plano de reabilitação e reintegraçãoprofissional referido”.
Ou seja, como sublinhou o CRPG o examinando está incapacitado para o trabalho carpinteiro de cofragens, nada impedindo que desenvolva actividade profissional no campo da construção civil, ou mesmo carpintaria, desde que não de cofragens, o que se compreende.
Ou seja, é unânime que ao autor foi reconhecida uma IPATH – recorde-se que era carpinteiro de cofragens na área da construção civil.
O INML refere ademais que poderá desempenhar outras actividades reportadas a profissões da área da sua preparação técnico-profissional. E o CRPG refere, ainda, que poderá beneficiar de um plano de reabilitação e reintegração profissional.
Daqui resulta, parece que de forma óbvia, não se poder afirmar, como pretende o autor, que está impedido de exercer qualquer profissão da sua área de aptidão e que não é possível a reconversão profissional.
Com efeito, a IPATH, reportada a carpinteiro de cofragens na área da construção civil, de que ficou a padecer não abrange toda e qualquer outra profissão da sua área de aptidão.
E, por outro lado, nunca ninguém afirmou – nem o autor o invoca - não ser possível a sua reconversão profissional.
Donde não se pode julgar como provado, nem que o autor está impedido de exercer outra profissão na área da sua aptidão, nem que não é possível a sua reconversão profissional.
O INML e o CRPG afirmam, precisamente, o contrário. Improcede, assim, este segmento do recurso.
Alínea f).
Pretende o autor se jugue provado que, o veículo que terá de conduzir terá de ser adaptado.
Curiosamente, ou não, no seguimento do seu constatado entendimento acerca dos poderes legais do tribunal em sede de produção de prova - que deve colmatar as omissões, as falhas, as faltas de diligência das partes – defende agora o autor que, certamente por lapso, a perita do INML não refere a necessidade de adaptação da viatura automóvel.
E, dizemos, curiosamente porque não censura, neste particular, o tribunal por não ter chamado a subscritora do relatório, para esclarecer se o que escreveu é a realidade ou se existe algum lapso, nomeadamente acerca do facto de não ter mencionado a necessidade de o autor ter que conduzir um veículo adaptado.
Isto é, para esclarecer se a falta de tal referência se deve, pura e simplesmente, ao facto de, dada a natureza e a gravidade das sequelas, não ter constatado tal necessidade. Ou, se, por outro lado, a constatou e, não obstante, o não referiu, por mero lapso evidência.
E, como era fácil, ostensivo e patente, a reparação do apontado lapso.
O tribunal não terá lido o dito relatório da mesma forma que o autor o fez. E, por isso não se suscitou a necessidade de obter qualquer
esclarecimento sobre o que se lhe deparava, ostensivamente, como límpido e cristalino. Se já não era assim para o autor, restava-lhe, ter ele próprio, suscitado a
questão, no tempo e modo oportunos.
Não o fez. Entendeu não o dever fazer, apesar de sugerir a possibilidade de estarmos perante um lapso, porventura um erro de escrita ou de expressão.
Que lhe terá surgido, agora na mente. Não podendo, nesta sede, vir invocar um lapso, que nenhum suporte tem na interpretação da declaração, que deve ser feita de harmonia com o disposto no artigo 236.º e ss. CCivil.
Nem pode, muito menos, extrapolar, ir além do que consta dos elementos clínicos, afirmando que tendo em consideração as concretas lesões no membro superior direito (com o qual coloca as velocidades na viatura) e no membro inferior esquerdo (com o qual usa o pedal da embraiagem) parece evidente a necessidade em adaptar a viatura automóvel de caixa de velocidades normal para caixa com velocidades automáticas, invocando, aqui o que disse – mais uma vez - a testemunha, sua irmã, que à pergunta inicial sobre se o irmão consegue andar de carro, respondeu, custa-lhe imenso, tem de ser viagens pequeninas e raramente; só se for uma coisinha pouca em terrenos muito… Mas depois vem e, às vezes, até se enfia na cama porque as dores são horríveis; custa-lhe imenso circular; tem dores na perna esquerda e no braço direito; precisa do pé esquerdo para a embraiagem e da mão para as mudanças.
Também aqui como a propósito do ponto d), o que o autor faz é interpretar a prova produzida, absolutamente linear e inequívoca, no sentido de não apontar nem num, nem noutro sentido, por si defendidos, para, de forma absolutamente, infundada, insustentada, parcial e interessada, concluir pela verificação de uma realidade virtual, de uma verdade alternativa.
Ali a propósito da impossibilidade de exercer outra profissão na área da sua aptidão e da sua reconversão profissional e, aqui, a propósito da necessidade de um veículo adaptado, com velocidades automáticas por causas das dores que sente a andar de carro e por precisar da mão direita para as mudanças e do pé esquerdo para a embraiagem.
E, assim, dado que não existe prova que afirme esta alegada necessidade, prova que traduza ser essa uma consequência das concretas sequelas de que o autor ficou a padecer, improcede, também, este segmento do recurso.
Defende, ainda, o autor que ao ponto 22 - … O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 18 pontos, sendo as sequelas impeditivas da actividade profissional habitual, mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional, designadamente, como porteiro de edifícios e estafeta - deve ser dada a seguinte redacção - … o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 18 pontos, sendo as sequelas impeditivas da atividade profissional habitual (incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de carpinteiro de cofragens) podendo beneficiar de plano de reabilitação e reintegração profissional, sendo o seu perfil funcional compatível com a ocupação de posto cujo conteúdo funcional envolva a atividade de membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja porteiro de edifícios, estafeta ou similar.
Entende ser incorrecta a redacção dada, porque, não restam dúvidas que está incapaz para a profissão habitual;
Isto, tendo por base o relatório do CRPG, onde consta o tipo de tarefas que executava antes do acidente e as que consegue executar agora, não restando dúvidas que ficou altamente limitado nas suas funções, sendo que as profissões sugeridas não se enquadram na sua área de aptidão (área da construção civil) e, por esse motivo, o CRPG sugere que deverá beneficiar de um plano de reintegração profissional
Relatório que surgiu a sugestão da perita do INML, para uma avaliação complementar especializada, para uma melhor caracterização das possibilidades de readaptação profissional.
Isto é, depois de, no âmbito da repercussão permanente na actividade profissional, o INML ter considerado que as sequelas eram impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, sendo, no entanto, compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional, o CRPG confirmou esta conclusão, esclarecendo que o examinando pode beneficiar de um plano de reabilitação e reintegração profissional.
Carece, contudo de fundamento, com base nestes elementos de prova, que se possa afirmar, que se possa aditar, que se possa julgar como provado, que se possa, na expressão do autor alterar a redacção, (sendo certo que aqui não está em causa um mero jogo de palavras, mas sim, factos, no noção comummente aceite de pedaços da vida real, sobre os quais possa recair a produção de prova) passando a fazer constar que “o seu perfil funcional é compatível com a ocupação de posto cujo conteúdo funcional envolva a atividade de membros superiores, mas sem grande exigência física”.
A concretização e enquadramento desta limitação carece da realização do sugerido plano de reabilitação e reintegração profissional.
Improcede, assim, também, este segmento do recurso.
Quanto ao ponto 43 - a ré iniciou conversações extrajudiciais com o autor, tendentes à resolução extrajudicial do litígio, que não lograram obter sucesso – defende que deve passar a ter outra redacção - a ré iniciou conversações extrajudiciais com o autor, tendentes à resolução extrajudicial do litígio, mas nunca formalizou, por escrito, qualquer proposta de indemnização.
Isto é, substituindo a expressão “que não lograram obter sucesso” por uma outra, “mas nunca formalizou, por escrito, qualquer proposta de indemnização”.
O autor havia alegado na petição inicial,
90.Contudo, na nossa modesta opinião, a Ré não cumpriu com as obrigações a que estava obrigada pelo DL 291/2007, de 21 de agosto, nomeadamente nunca apresentou proposta razoável de indemnização.
91º Assim, devido à violação dos deveres previstos no DL 291/2007, de 21 de agosto, deverá a Ré ser condenada no dobro da taxa de juro (cfr. art. 38º e 39º do citado DL) e bem assim da indemnização prevista no art. 40º, nº 2, do citado DL.
E, agora aqui defende que a ré, apesar de ter assumido parte da responsabilidade e de o ter indemnizado, quanto aos danos na mota, na totalidade, nunca formalizou nem efetuou qualquer proposta de indemnização (nem a si, nem ao seu mandatário), o que foi, de resto, assumido pela testemunha CC, funcionário da ré, que disse que apresentaram verbalmente, sem sequer falar em valores, que não tem a certeza se formalizaram, por escrito, a assunção de responsabilidade (falando em divisão de responsabilidade primeiro e depois em 50% de responsabilidade) e, posteriormente, confirma que nunca formalizaram proposta de indemnização, por escrito.
Isto com vista a não ser permitido fazer integrar esta actuação no cumprimento do que a este propósito dispõe o Decreto Lei 291/2007 – apresentação de proposta razoável de indemnização – com a consequente consequência prevista no artigo 38.º/3 deste diploma legal, “se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos”.
Obviamente, que esta questão se reporta a matéria de direito e que não cabe aqui, por processualmente deslocada, apreciar.
Ora, da prova produzida resulta que, na fase extra-judicial, houve negociações entre as partes, tendo a ré regularizado o valor dos danos materiais relativos ao motociclo do autor, mas como se refere na decisão recorrida, “... pelo que não foi possível obterem acordo (apesar de terem feito proposta, que não verteram, contudo, a escrito) até porque tiveram apenas em consideração o valor do base do salário, conforme recibo cedido pelo autor (muito embora não estivesse assinado) não tendo considerado as ajudas de custo”.
A ré, agora, opõe-se à pugnada alteração da redacção deste ponto, porque alega que na fase extra-judicial o autor lhe forneceu recibo de ordenado, donde constava o salário base sem ajudas de custo, parâmetros para a formulação da proposta de resolução extrajudicial do sinistro, uma vez que o recibo que foi considerado em sede de sentença, só foi introduzido na fase judicial de resolução do sinistro.
Cremos, contudo, que nesta sede, de fixação da matéria de facto provada, ou não, assiste pertinência à causa de irresignação do autor.
Com efeito.
O que alegou foi que a ré nunca apresentou proposta razoável de indemnização.
E, afirmar que a ré iniciou conversações extrajudiciais com o autor, tendentes à resolução extrajudicial do litígio, que não lograram obter sucesso, não traduz a realidade alegada.
Para além, de ser absolutamente irrelevante e inócuo, para qualquer efeito, mormente para o pretendido pelo autor com a alegação que fez e consequente pedido que fez.
Esta última é compatível com a apresentação de proposta e é compatível, da mesma forma, com a não apresentação, de proposta - que foi o que foi alegado pelo autor.
Donde, de facto, o tribunal nem sequer respondeu à questão de facto alegada pelo autor.
A questão não está - mais uma vez, na redacção – mas, sim na realidade dos factos.
E, assim, há que, de facto, alterar o sentido do decidido, afirmando-se como provado o facto alegado – a ré não apresentou proposta razoável de indemnização.
II. 2. 4. Recurso subordinado.
II. 2. 4. 1. As razões da ré.
Entende ter sido incorrectamente julgada a matéria constante dos pontos, - 24. O AA estava a trabalhar na Bélgica há cerca de 3 anos, sendo que à data do
acidente se encontrava a exercer as funções de carpinteiro de cofragem na empresa B... S.A., a auferir um vencimento 15,2699 euros/hora e subsidio de alimentação de 26,91 dia, sendo o vencimento base bruto de 2.646,73.
- 25. Em termos líquidos o AA auferia valores médios mensais na ordem dos 2.000/mês, existindo variações consoante o número de horas que trabalhasse,
os quais, em face dos elementos de prova que foram tidos em conta na própria fundamentação da sentença, não deveriam figurar no elenco dos factos provados com a redacção que lhes foi dada, defendendo passar a ser a seguinte:
24. O AA estava a trabalhar na Bélgica há cerca de 3 anos, sendo que à data do acidente se encontrava a exercer as funções de carpinteiro de cofragem na empresa B... S.A., a auferir um vencimento mensal bruto de € 700,00 e ajudas de custos de valor variável, sendo o vencimento base líquido de € 674,83.
25. Em termos líquidos o AA auferia de vencimento base líquido a quantia de € 674,83 existido variações consoante o número de horas que trabalhasse”.
Isto porque, a decisão recorrida desconsiderou as realidades resultantes dos recibos de vencimento, extractos de remuneração da Segurança Social, critérios de pagamento de subsídio de doença processados pela Segurança Social e declarações de IRS presentadas pelo autor.
A este propósito funda-se a formação da convicção do tribunal na seguinte análise crítica da prova:
- os recibos de vencimento juntos como doc. 6 da PI, em confronto com o documento junto pela ré em audiência de julgamento;
- em ambos os documentos (relativos ao mês de Março de 2018), o valor a receber é exactamente o mesmo, diferenciando apenas a ‘distribuição’ desses valores (além de um dos recibos estar assinado e outro não);
- enquanto nos recibos juntos pelo autor se faz referência ao valor por hora e ao vencimento base com tudo englobado, no recibo que a ré apresentou aparece um montante elevado em que se faz referência a ajudas de custo (mais do dobro do salário base [o que é, manifestamente, incompreensível] e que não foi reflectido em termos de SS e IRS – cfr. docs. juntos a fls. 78 e ss. e 86 e ss.);
- valores, contudo, foram devidamente explicados em audiência de julgamento, pelo autor, por referência a ajudas de custo que eram, no fundo e na prática e como acontece infelizmente as mais das vezes, verdadeiro salário, com carácter de regularidade, sendo certo que as outras despesas (como a renda de casa e os transportes) eram suportadas pela própria entidade patronal (extra recibo, considerando que o autor trabalhava na Bélgica, sendo prática usual neste tipo de trabalho e no estrangeiro ocorrer o pagamento destes encargos e a existência de um salário bem mais elevado, por referência ao salário mínimo que é praticado em Portugal);
- daí que se tenha considerado o salário médio líquido mensal de € 2.000,00;
- as declarações de parte do autor que, em relação ao salário, apenas soube explicar o que recebia e que a casa e as viagens ‘o patrão pagava por fora’ (na verdade, se não fosse dessa forma, pouco ou nada compensava ir trabalhar para o estrangeiro, se fosse para receber um salário semelhante ao que se recebe cá), não conseguindo explicar porque é que em termos de IRS e SS os valores são diferentes (o que também já é, infelizmente, ‘habitual’ e que muitas das vezes, senão sempre, acaba por prejudicar os próprios trabalhadores, não no imediato, mas pelo menos no futuro).
- a testemunha BB, confirmou a actividade que o autor exercia na Bélgica e o seu salário (cuja prova documental está junta aos autos e foi devidamente explicada pelo seu colega de trabalho, NN);
- NN, que depôs também com conhecimento de parte da matéria, considerando que trabalhou com o autor na Bélgica, confirmando o salário que recebiam, que se trabalhassem todos os sábados rondaria os € 2.400,00/€ 2.500,00 (passando de € 15,00 à hora) e que todas as despesas de casa e transportes, bem como viagens de três em três meses a Portugal, eram suportadas pela empresa, pelo que a alusão a € 700,00 de salário base, mais ajudas de custo, não corresponderá à realidade;
Alinha a ré o seguinte raciocínio:
este julgamento revela, para além do mais, notória contradição com os documentos que servem de fundamento à formação da convicção do tribunal;
- o teor dos recibos apresentados pelo autor revelam uma disparidade e contradição entre o rendimento declarado em IRS e na Segurança Social e o alegado vencimento bruto de € 2.646,73;
- o recibo de vencimento revela uma remuneração base de € 700,00/mês, constando ainda do mesmo os correspondentes proporcionais/ duodécimos, de subsídios de férias e de Natal;
- e, por ser assim, incidem sobre os € 816,66 (€700+€58,33+€53,83) os descontos de 11% para a Segurança Social e taxa de IRS, apurando-se um valor líquido de € 674,00;
- esta é realidade, que se encontra espelhada no extracto de remunerações juntos aos autos pela Segurança Social e na declaração de IRS apresentada pelo sinistrado, doc,s de 29.6.2020 refª 6391745 e de 07/07/2020 refª 6417438, documentos que foram desconsiderados na decisão recorrida, onde se afirmou; “importa referir que no montante global da retribuição tomamos em consideração as “ajudas de custo” (para este efeito e para todos os cálculos que se seguem infra, sendo no fundo, um “subsídio” mensal pago sob o título de “ ajudas de custo”, mas que se enquadra na retribuição)”;
- invocando a este propósito o disposto no artigo 260.º/1 do Código do Trabalho, que refere que “não se consideram a) As importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem,
despesas de transporte, abonos de instalação ou outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador, salvo quando, sendo tais deslocações ou despesas frequentes, essas importâncias, na parte que exceda os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador”;
- isto quando, se encontravam em apreciação dois recibos de vencimento relativos ao mesmo mês de Março de 2018, emitidos pela mesma entidade, ambos com o mesmo valor a receber, todavia com parcelas diferentes;
- daqui afirmando a ré que o valor a ter em conta para efeitos de “todos os cálculos” não pode incluir as ajudas de custo;
- a que acresce que, para efeitos de subsídio de doença, facto provado 28 – “desde o acidente o autor apenas recebeu € 1.095,06 por se encontrar de baixa pela SS”, o valor tido em conta, tem exclusivamente como critério de cálculo, o valor constante das remunerações declaradas, € 700,00.
II. 2. 4. 2. Como intróito do que vamos apreciar incumbe aqui aproveitar a oportunidade e a coincidência temporal, para transcrever o que consta do D... online de 13DEZ2022: "cinco empresários portugueses da construção civil foram detidos no âmbito de uma investigação das autoridades belgas aos crimes de associação criminosa, fraude e branqueamento. Terão lesado a Segurança Social daquele país em 11 milhões de euros.
Os empresários, todos portugueses, detinham ou controlavam sociedades portuguesas e belgas e simulavam destacamentos para a Bélgica de trabalhadores supostamente vinculados às empresas nacionais, mas que, na realidade, estavam ao serviço das sociedades belgas. Deste modo beneficiavam de um regime especial de deslocação que os isentava de contribuições para a Segurança Social.
A investigação estima que terão causado um dano financeiro de 11 milhões de euros à Segurança Social belga, relativo às contribuições de mais de 1100 trabalhadores. Para dissimular os ganhos, terão movimentado para Portugal elevadas quantias monetárias, num total de 25 milhões de euros.
18 buscas e cinco detidos
Esta terça-feira, a PJ, no cumprimento de uma Decisão Europeia de Investigação (DEI), titulada pelo DCIAP e proveniente das autoridades belgas, realizou 12 buscas domiciliárias e não domiciliárias em Lisboa, Porto, Guarda e Vila Real.
"Foi possível proceder à recolha de inúmera prova pessoal, de natureza testemunhal e através de interrogatórios de arguidos, bem como, um vasto acervo de prova de natureza documental e digital", acrescenta a PJ em comunicado. Por sua vez, as autoridades belgas realizaram seis buscas e detiveram, fora de flagrante delito, cinco empresários portugueses.
A operação, desencadeada em Portugal pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da PJ, no âmbito de um "Join Action Day" (JAD) com as autoridades belgas, contou com a participação de investigadores da UNCC, Diretoria do Norte e Departamentos de Investigação Criminal da Guarda e de Vila Real, acompanhados por peritos da Unidade de Perícia Tecnológica Informática e da Unidade de Perícia Financeira e Contabilística e por diversos Intérpretes da Unidade de Cooperação Internacional da Polícia Judiciária.
Em solo nacional, a ação foi ainda acompanhada, para além dos Magistrados do DCIAP titulares da DEI, por representantes da Europol e da Eurojust, por diversos elementos das Autoridades Policiais belgas, Magistrados do Ministério Público e um Magistrado Judicial belga; elementos da Segurança Social belga e elementos da Agência Europeia do Trabalho, além da ELA - European Labour Authority, também está presente".
II. 2. 4. 3. Como é sabido, a versão actualizada do SORCA, aprovado pelo Decreto Lei 291/07 de 21AGO, no seu artigo 64.°/7 dispõe que, "para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal".
Como, também, é sabido, o Tribunal Constitucional através do acórdão 221/2019, no processo 094/18, declarou “a inconstitucionalidade (orgânica) com força obrigatória geral, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, da norma constante no n.º 7 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, segundo a qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período”.
Isto já depois de pelo acórdão 565/2018 no processo 534/18 ter decidido, “julgar inconstitucional, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e do princípio da igualdade consignado no seu artigo 13.º, n.º 1, a norma do n.º 7 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, correspondente ao entendimento segundo o qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período”.
Que por sua vez surgiu depois de no acórdão 383/12 no processo se ter decidido “julgar materialmente inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, e do direito à justa reparação dos danos, decorrente do artigo 2.º da Constituição, a interpretação normativa extraída do n.º 7 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, correspondente ao entendimento segundo a qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período”.
Com especial pertinência para a compreensão daquela norma, consta do Preâmbulo que a introduziu que:
“Uma das medidas previstas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de novembro, diz respeito à “revisão do regime jurídico aplicável aos processos de indemnização por acidente de viação, estabelecendo regras para a fixação do valor dos rendimentos auferidos pelos lesados para servir de base à definição do montante da indemnização, de forma que os rendimentos declarados para efeitos fiscais sejam o elemento mais relevante.”
Com efeito, hoje sucede que a determinação do valor dos rendimentos auferidos pelos lesados em processos de indemnização por acidente de viação, na medida em que contribuem para a definição do quantum indemnizatório por danos patrimoniais, gera litígios evitáveis, uma vez que as seguradoras, em regra, baseiam o respetivo cálculo nos rendimentos declarados pelos lesados à administração tributária, ao passo que os sinistrados, não raras vezes, invocam em juízo rendimentos superiores, sem qualquer correspondência com as respetivas declarações fiscais.
Trata-se, portanto, de uma área que, em razão da potencial litigiosidade que lhe está associada, requer a aprovação de regras mais objetivas, que baseiem o cálculo da indemnização, quanto aos rendimentos do lesado, na declaração apresentada para efeitos fiscais.
Assim, não obstante o avanço trazido pela Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, que veio fixar os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel de proposta razoável para indemnização do dano corporal, torna-se imperioso pôr cobro ao potencial de litigiosidade que aquela situação encerra, procurando, por um lado, contribuir para acentuar a tendencial correspondência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais e a remuneração efetivamente auferida – sinalizando-se também aqui, o reforço de uma ética de cumprimento fiscal – e, por outro, aumentar as margens de possibilidades de acordo entre seguradoras e segurados, evitando o foco de litigância que surge associado à dissemelhança de valores que estas situações comportam. A introdução desta regra contribui igualmente para que nestas matérias exista mais objetividade e previsibilidade nas decisões dos tribunais, criando também condições para que a produção de prova seja mais fácil e célere e a decisão mais justa.”
Do acórdão 565/2018 consta a seguinte fundamentação: “são, por conseguinte, vários os interesses prosseguidos por esta alteração legislativa, todos eles com assinalável relevância constitucional:
- diminuição da litigiosidade e consequente alívio dos tribunais (artigos 20.º, n.º 4, e 202.º);
- aumento da celeridade processual, por via da facilitação da prova dos danos patrimoniais em causa (artigo 20.º, n.º 4);
- maior objetividade e previsibilidade nas decisões dos tribunais (artigo 20.º, n.º 4); - reforço de uma ética de cumprimento fiscal (artigos 103.º e 104.º).
(…)
Importa recordar que está em causa a comprovação de um tipo de factualidade que respeita pessoalmente ao interessado, é necessariamente do seu conhecimento direto e sobre a qual o mesmo já se pronunciou por escrito com o dever de dizer a verdade: os rendimentos líquidos por si auferidos numa determinada data passada aquela em que ocorreu o acidente de viação que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal. Tal comprovação faz-se mediante a apresentação da declaração fiscal de rendimentos.
Como sublinhado pelo Tribunal noutras circunstâncias, nomeadamente no Acórdão n.º 530/2008, não pode deixar de reconhecer-se que um regime legal deste tipo, ao circunscrever a prova a produzir apenas à de natureza documental, é, em regra, suscetível de garantir ao interessado a demonstração dos seus rendimentos, visto que as declarações de rendimentos a entregar perante o serviço de finanças, que apresentam sempre um suporte documental, fornecem tipicamente uma indicação suficientemente precisa do nível dos respetivos proventos económicos. Por outro lado, a mesma opção legislativa tem certamente por base a consideração de que os meios de prova documentais são os que se apresentam como possuindo maior eficácia e fiabilidade de que quaisquer outros e que são também os que melhor se compadecem com a celeridade processual.
Em especial, no caso das declarações fiscais, a respetiva obtenção não se mostra nem difícil nem excessivamente onerosa: as mesmas encontram-se ao dispor dos interessados, por respeitarem a declarações pessoais que decorrem do cumprimento de deveres fiscais, podendo ser obtidos, por isso, sem grande dificuldade. Saliente-se, por fim, a cautela do legislador ao limitar a limitação probatória aos casos em que já foram cumpridas as obrigações declarativas relativas ao período em que ocorreu o acidente, prevenindo, desse modo, o risco de as declarações de rendimentos não permitirem efetuar a demonstração dos factos em que assenta o pedido de indemnização por danos patrimoniais reportados ao rendimento mensal do lesado auferido à data do acidente.
(…)
A prova assente nas declarações fiscais é tida como adequada e necessária à realização dos interesses identificados no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto.
(…) No tipo de situações aqui em causa, o interessado só fica limitado na defesa dos seus direitos a indemnização pela perda de capacidade de obter um rendimento equivalente ao seu rendimento mensal real à data do acidente, se e namedida em que tiverdeclaradoparaefeitosfiscaisumrendimentodiferente(inferior)doefetivamenteauferido.
E esta é uma circunstância que o interessado controla, desde logo no momento de apresentação das declarações de rendimentos (mas também posteriormente, por via da entrega de declarações retificativas). Com efeito, se a declaração não corresponder à verdade, tal é imputável ao próprio declarante, que motuproprio ou consentindo em tal prática, sai objetivamente (e ilegitimamente) beneficiado de uma omissão declarativa a que está obrigado. Ou seja, nageneralidadedassituações,etipicamente,ointeressadonãoficaimpossibilitadodeexercerumarealdefesadosseusdireitos; aliás, a possibilidadedeofazerapenaspodeficarlimitadaemconsequênciadiretadeumasuaatuaçãovoluntária a violação de deveres de cidadania fiscal.
(…)
“O rendimento declarado para efeitos fiscais só não corresponderá ao seu rendimento real, caso o interessado tenha omitido algum valor na sua declaração. Nessa perspetiva, a limitação probatória em causa surge como uma espécie de exceptio doli (praeteriti) normativa: a posição adquirida por via de uma atuação de má-fé não merece ser tutelada pelo direito”.
Do 383/2012, consta que,
“de acordo com tal entendimento, a norma restringe os meios de prova admissíveis, vedando ao julgador a possibilidade de valorar outros meios de prova, para além da prova documental decorrente do cumprimento das obrigações fiscais declarativas de rendimentos auferidos.
De tal restrição decorrerá que o incumprimento do dever de verdade do contribuinte, relativamente a tais obrigações declarativas – que (…) frequentemente ocorre através de uma declaração inexata, por defeito, dos rendimentos auferidos, por forma a diminuir o valor do imposto a pagar – terá efeitos incontornáveis sobre o cálculo da indemnização que lhe possa vir a ser devida, na sequência de acidente de viação.
Desta forma, cria-se uma situação em que danos importantes como a perda de rendimentos provenientes do trabalho, por incapacidade temporária, e sobretudo a perda ou redução da capacidade de ganho, por incapacidade permanente – que frequentemente correspondem à maior fatia do montante global indemnizatório devido por força de acidentes de viação - poderão não ser suficientemente ressarcidos”.
II. 2. 4. 4. Baixando ao caso concreto.
II. 2. 4. 4. 1. O objecto de controvérsia reside aqui na matéria relativa ao salário do autor, ao tempo do acidente.
Está fora de causa, em face da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 7 do artigo 64.º do SORCA que ao autor apenas seja permitido provar os rendimentos do trabalho com base na declaração de IRS.
Isto não obstante as prementes necessidades e dificuldades inerentes, bem como, de resto, os particulares interesse em causa, de que o caso sub judice, de resto, é emblemático.
E, assim, temos que sobre essa questão foi produzida prova, para além das declarações de IRS, decisivamente, com os recibos de vencimento, desprezando, aqui a prova testemunhal.
E a prova documental é, irremediavelmente, contraditória e não conciliável entre si.
Prova documental atinente, invariavelmente, a documentos particulares, cfr. artigos 369.º e 373.º/1 CCivil.
Esta fora de causa a possibilidade de os aludidos documentos estarem dotados de força probatória plena contra a ré.
Com efeito, dispõe o artigo 376.º/1 e 2 CCivil que o documento particular cuja autoria seja reconhecida faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (...), considerando-se provados os factos compreendidos na declaração, na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
E, vem-se entendendo que esta norma deve ser interpretada no sentido de que a prova plena do documento particular, quanto aos factos compreendidos nas declarações atribuídas ao seu autor, na medida em que sejam contrárias aos interesses do declarante, se restringe ao âmbito das relações entre o declarante e o declaratário, ou seja, quando invocadas por este contra aquele.
Quer dizer, os factos contidos no documento hão-de considerar-se provados na medida em que, como declaração confessória, possam ser invocados pelo declaratário contra o declarante – emanação dos princípios da confissão, com a inerente eficácia probatória plena do documento restrita às relações inter-partes. Relativamente a terceiros – os não sujeitos da relação jurídica a que respeitam as declarações documentadas - a eficácia probatória plena cederá, para ficar a valer a declaração apenas como elemento de prova a apreciar livremente.
E, no caso das declarações de IRS – que aqui se poderiam ter como contendo matéria desfavorável aos interesses do autor e contrária ao por si alegado na petição inicial – o autor, é de facto, quem emite as declarações delas constantes.
Só que o declaratário não é a ré – é, indubitavelmente, a administração fiscal, já que as declarações foram prestadas à AT, no âmbito de uma relação jurídica fiscal.
Sendo a ré um terceiro, o conteúdo de tais declarações está sujeito, quanto à força probatória, à regra da livre apreciação do tribunal, cfr. artigo 361.º CCivil.
II. 2. 4. 4. 2. Como está fora de causa o tribunal apreciar e decidir a matéria de facto, reportada à questão concreta do salário do autor, com base em recibos de vencimento, quando o relativo ao mês de MAR2018, apresenta duas versões, uma que o autor apresentou à ré antes da instauração da acção e outro apresentado com a petição, aqui acrescido de mais dois relativos a outros tantos meses.
Recibos, todos eles, que não têm reflexo nas aludidas declarações de IRS. Isto é, o conteúdo destas declarações, face ao alegado pelo autor – que vem provado e que a ré impugna - mostra não ser verdadeiro o nelas declarado, pois que, grosso modo, omite o recebimento de quase tudo o que excede 1 mês de salário, constante dos recibos.
Será caso, de resto, de fazer chamar a intervir o MP para se o entender, ele próprio, suscitar a intervenção da AT, no sentido de avaliar a actuação do autor, em sede de cumprimento do CIRS, em relação às declarações em que o lapso temporal já decorrido o permita.
Isto porque, esta omissão deve ter repercussão e produzir eventuais efeitos na sede que lhe é própria, isto é, na relação contribuinte – Fisco, e só nela.
Nenhuma credibilidade, merecem, nem os recibos, nem as declarações de IRS, pois que o vencimento ali declarado não tem reflexo nas sucessivas declarações de IRS.
E, como é sabido, o autor tinha o dever de declarar perante a AT os rendimentos auferidos, ao abrigo dos deveres de transparência e verdade fiscais.
Nem, já agora, nos descontos efectuados para a segurança social.
A exigir, definitivamente, a conclusão de que, com base em tais documentos, nada pode ser valorado apreciado, de forma séria, como é suposto, de modo a que se possa entender ser o reflexo da realidade.
Donde, não pode o tribunal sob pena de estar a legitimar, a ser conivente, com a prática de infracções fiscais, debruçar-se sobre o que quer que seja, atinente com a valoração e apreciação desta prova documental.
Mal comparado, estamos perante aquilo que no processo penal se designa por património incongruente, incompatível com os rendimentos declarados.
Aqui, rendimentos incompatíveis com a declaração de IRS.
Nem o autor está inocente pois que a declaração de IRS é da sua responsabilidade. É por si preenchida, subscrita e apresentada. E as declarações de IRS, juntas, não podem ter sido preenchidas com base nos recibos de salário, juntos.
Nem a entidade patronal, que faz os descontos para a segurança social, próprio e, por conta do trabalhador, com base nas folhas de salário, que não podem ser aquelas aqui juntas.
Isto é, o valor das contribuições pagas à segurança social é o reflexo da declaração prestada mensalmente pele entidade patronal, relativamente ao valor do salário pago ao trabalhador. Da mesma forma, este valor, determina o valor em concreto das prestações sociais que esta venha a ter que pagar ao contribuinte, trabalhador, mormente a título e subsídio de doença.
Esta discrepância, assaz, ostensiva, evidente e manifesta, impede qualquer tentativa séria de o tribunal valorar uns em detrimento dos outos. E, dada a sua complementaridade e dependência lógica e sequencial, está irremediavelmente abalada, infirmada, reduzida a zero, a sua possível credibilidade.
Donde, numa amplitude entre o salário de € 2.000,00 mensal no ano de 2018 e os anuais, desse ano, de 2018, de € 3865,50, de 2017, de € 2.496,67, de 2016 € 3616,62 e de 2015 de € 3.665,68, o tribunal não pode, de forma séria e fundada, optar por qualquer deles.
Não pode atribuir a mínima credibilidade ao que consta em qualquer dos ditos documentos
Resta o depoimento da irmã e do colega de trabalho, que, como parece óbvio, não permite, da mesma forma, sustentar qualquer afirmação do valor minimamente fundado do salário do autor.
Até por decorrência, não só, do carácter absolutamente inconclusivo da prova documental, mas do seu carácter contraditório e incompatível, não só entre si, mas com as obrigações fiscais e para-fiscais inerentes.
Como se disse, estes elementos probatórios não são entre si conciliáveis - antes pelo contrário, contrariam-se e anulam-se mutuamente.
O teor dos recibos, não só, não encontra suporte nas declarações de IRS, como não encontra, também, suporte nos valores pagos pela segurança social.
Esta inconsistência, inconciliabilidade e incompatibilidade dos elementos documentais assinalados não foi arredada pelos depoimentos destas testemunhas.
Nem, já agora pelas declarações de parte do autor - a que nenhuma credibilidade pode ser conferida, pela singela razão de ter, logo, à partida cometido a aludida infracção fiscal, que está na origem de todo este desentendimento.
Necessário teria sido que tivesse explicado, para além do cometimento da infracção fiscal, qual a motivação para o que fez, as causas próximas e o contexto em que se inseriu
Doutra forma, a conceder alguma credibilidade ao que disse estaríamos, claramente, a beneficiar o infractor.
Estaríamos, de facto, perante o melhor de dois mundos, em que o trabalhador ganha sempre, prejudicando, o Fisco e pretendendo – numa situação que não estava previsto nos seus planos – continuar a beneficiar, agora, prejudicando a seguradora do responsável pelo acidente que o vitimou.
Razão pela qual não pode o tribunal fundar sobre a matéria convicção segura, salvo no que se refere ao facto de a autora exercer actividade profissional - todas as testemunhas o referiram e a contradição acima exposta entre os elementos probatórios produzidos refere-se tão só à sua entidade patronal (e vencimento)”.
Não se pode ter estes depoimentos, como defende o autor, como compatíveis com a prova documental produzida, reduzida a zero, como vimos.
E, assim, assiste pertinência, manifesta de resto, às razões apresentadas pela ré – que o autor reconduz, de forma simplista e errada, a questões meramente formais.
Não se pode ter como correctamente julgados os factos contidos nos pontos 24 e 25, este na totalidade e aquela, na parte que excede a afirmação de que o autor estava a trabalhar na Bélgica há cerca de 3 anos, sendo que à data do acidente se encontrava a exercer as funções de carpinteiro de cofragem na empresa B... S.A.,
Nem se diga que o valor a receber é exactamente o mesmo, diferenciando apenas a ‘distribuição’ desses valores (além de um dos recibos estar assinado e outro não), pois enquanto nos recibos juntos pelo A. se faz referência ao valor por hora e ao vencimento base com tudo englobado, no recibo que a R. apresentou aparece um montante elevado em que se faz referência a ajudas de custo (mais do dobro do salário base [o que é, manifestamente, incompreensível] e que não foi reflectido em termos de SS e IRS – cfr. docs. juntos a fls. 78 e ss. e 86 e ss.).
Ou que, tais valores foram devidamente explicados em audiência de julgamento, pelo autor, que disse que
Ou que, as ajudas de custo eram, no fundo e na prática e como acontece infelizmente as mais das vezes, verdadeiro salário, com carácter de regularidade, sendo certo que as outras despesas (como a renda de casa e os transportes) eram suportadas pela própria entidade patronal (extra recibo, considerando que o A. trabalhava na Bélgica, sendo prática usual neste tipo de trabalho e no estrangeiro ocorrer o pagamento destes encargos e a existência de um salário bem mais elevado, por referência ao salário mínimo que é praticado em Portugal).
Argumentos utilizados na decisão recorrida e que o autor considera inatacáveis, recorrendo aos depoimentos da sua irmã e do colega de trabalho NN, afirmando, ser, de resto, facto notório que as empresas que laboram no estrangeiro adotam por regra esta postura nomeadamente com o objetivo de poupar em impostos, seguros de acidentes de trabalho etc. e os trabalhadores, por regra, não têm opção.
E, não se conclua, como faz o autor, que as questões, que qualifica como formais, apontadas pela ré em nada afetam a prova produzida e – atente-se bem nas palavras que utiliza, como se ele próprio fosse o paladino do rigor, da exactidão da verdade - o bom senso e regras da experiência comum.
Seguramente que não tem a noção do significado, nem de bom senso, nem do que sejam as regras da experiência comum. Se fossem o que ele pratica e defende, todos os outros estariam em “contra-mão”.
Sem, dúvida, curiosa, para dizer o menos, a noção de bom senso e de regras da experiência comum, que a prática do autor deixa antever e que aqui não perde a oportunidade de sublinhar.
Assim, está o recurso subordinado condenado ao sucesso, nos termos expostos.
II. 2. 5. Em suma, há que alterar o julgamento da matéria de facto nos seguintes moldes:
- aditar ao elenco dos factos provados o contido na alínea c) – o autor tem o 6.º ano de escolaridade;
o ponto 43 passa a ter a seguinte redacção: a ré não apresentou proposta razoável de indemnização;
o ponto 24 passa a ter a seguinte redacção: o AA estava a trabalhar na Bélgica há cerca de 3 anos, sendo que à data do acidente se encontrava a exercer as funções de carpinteiro de cofragem na empresa B... S.A.;
o ponto 25 passa para o elenco dos factos não provados.
II. 3. O direito.
II. 3. 1. Importa, antes de mais, começar por lembrar que nos encontramos no domínio da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, decorrente de um acidente de viação, do qual foi exclusivamente responsável o condutor do veículo segurado na ré e no qual se viu envolvido o autor.
Responsabilidade, disciplinada no artigo 483.º e ss. CCivil.
Dispõe-se nesse normativo legal que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Extrai-se, assim, desde logo, desse preceito legal que são pressupostos legais dessa responsabilidade a existência de um facto voluntário do agente, que o mesmo seja ilícito, que haja um nexo de imputação desse facto ao agente (culpa), que desse facto resulte um dano e, por fim, que se verifique um o nexo de causalidade entre esse o facto e o dano.
Não vindo aqui colocada qualquer outra questão que não a do quantum da indemnização de alguns dos danos sofridos pelo autor, passamos a encarar, desde já, a questão da obrigação de indemnizar imposta ao lesante pelos danos advenientes para o lesado.
Nos termos do artigo 562.º CCivil o objetivo da indemnização consiste em colocar o lesado na situação em que se encontraria se não fora o acontecimento produtor do dano, desde que este seja resultante desse evento em termos de causalidade adequada.
Tal resultado deve ser procurado, em primeiro lugar, pela reposição da situação tal como estava antes da produção do dano - princípio da restauração natural.
Todavia, não raras vezes essa reposição apresenta-se muito difícil ou mesmo impossível (como acontece no caso dos danos não patrimoniais), tendo lugar então a indemnização em dinheiro, cfr. artigo 566.º/1 CCivil.
A indemnização é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não é possível, não repara integralmente os danos, ou, seja excessivamente onerosa para o devedor, artigo 566.º/1 CCivil, sendo que a indemnização pecuniária tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal e a que teria nessa data se não existisse danos, n.º 2 da mesma norma, sem deixar de se avaliar, em concreto, o dano sofrido.
Daqui decorre que vigora, nesta sede, o princípio da restauração ou reposição natural, traduzido na imposição para o lesante da obrigação de reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, no dever de reposição das coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano. Ou melhor ainda, tal reparação do lesado deve, em princípio, ser feita através da restauração ou reposição natural, só devendo a mesma ser realizada em dinheiro sempre que tal reconstituição (natural) não seja possível, não repare integralmente o dano ou se mostre excessivamente onerosa para o devedor.
Como resulta do artigo 563.º CCivil, tal obrigação de reparação supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo. Porém, o nexo de causalidade (adequada) exigido entre o dano e o facto não deverá excluir a ideia de causalidade indireta – que se dá quando o facto não produz ele mesmo o dano, mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste.
O montante da indemnização medir-se-á pela diferença entre a situação (real) em que o lesado se encontra e a situação (hipotética) em que se encontraria se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano, cfr. artigo 566.º/2 CCivil, que consagra a chamada teoria da diferença.
São por demais consabidas as dificuldades que existem em tal domínio (de cálculo do montante indemnizatório), devido à ausência de regras legais que enunciem objetivamente os critérios (legais) a seguir, e daí que em tais situações, e particularmente naquelas em que não possa ser averiguado o valor exato dos danos a lei mande julgar à luz da equidade, embora sem deixar de ter em conta critérios de verosimilhança ou de probabilidade à luz de cada caso concreto, cfr. artigo 566.º/3 CCivil.
Diga-se, por último, e como decorre do se deixou exposto, que os danos indemnizáveis são tanto os danos que assumam natureza patrimonial – compreendendo, não só o prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter na sequência da lesão, ou seja, os danos emergentes e lucros cessantes - como também aqueles se revistam de natureza não patrimonial, exigindo-se tão só quanto a estes últimos que tenham gravidade suficiente de modo a merecer a tutela de direito, cfr. artigo 496.º CCivil.
II. 3. 2. Como decorre do artigo 564.º CCivil, o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, ou seja, os danos emergentes - que alguns designam com alguma impropriedade também de presentes - como também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, ou seja, os lucros cessantes, sendo que nos termos do nº. 2 daquele mesmo normativo na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; e se não forem determináveis a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.
Assim, entre os danos ressarcíveis encontram-se aqueles que o lesado ainda não sofreu, ao tempo da atribuição da indemnização, mas que seguramente ou muito provavelmente virá a sofrer no futuro, por causa do facto ilícito do lesante.
Danos futuros são os prejuízos que não produzem efeitos imediatamente após o evento danoso, mas que se manifestam ulteriormente. Trata-se de danos não ainda presentes ao tempo em que é exigida e concedida a reparação, mas que se verificarão seguramente no futuro. São danos de natureza patrimonial. Não se tendo ainda produzido, a sua valoração será efetuada com base em juízos de prognose, mediante um cálculo de verosimilhança ou probabilístico.
Naturalmente que o grau de certeza que deve existir para tornar o dano futuro ressarcível – para que seja considerado como previsível - não é o mesmo daquela que carateriza o dano presente.
A especificidade dos danos futuros previsíveis reside justamente no facto de, não se tendo ainda verificado no momento da atribuição da indemnização, virem verossimilmente a produzir-se segundo um grau de elevada probabilidade com base no critério do id quod plerumque accidit.
A previsibilidade com segurança pode resultar da verosimilhança ou de probabilidades da sua produção: a certeza dos danos futuros pode decorrer do facto de serem o desenvolvimento seguro de danos atuais, mesmo que o respetivo quantum seja incerto. Entre a certeza e a elevada probabilidade subsiste, ainda, uma margem significativa de apreciação para os tribunais, de acordo com as regras da experiência comum.
Se os danos futuros não forem previsíveis com segurança bastante, o seu ressarcimento apenas pode ser exigido quando ocorrerem.
E aqui se insere o denominado “dano biológico”.
“A temática da responsabilidade civil tem vindo progressivamente a importar novos conceitos e terminologia, nomeadamente em termos de caracterização e indemnização por danos, assumindo figuras jurídicas com vista a precisar a qualificação e ressarcimento dos danos produzidos nas vítimas, desde logo por acidentes, alargando, até por via disso, o elenco dos casos merecedores de indemnização, que a tradicional nomenclatura dificilmente abarcava. Sirva de exemplo a noção de “dano biológico”, a qual permite uma abrangência mais ampla do que a de “danos patrimoniais” de molde que a indemnização se não confine apenas aos casos em que aquele dano produza repercussões nos rendimentos do lesado. O conceito de dano biológico mostra-se assim alargado”, cfr. acórdão do STJ de 15.9.2016, consultado no site da dgsi.
O dano biológico emerge da afetação de uma pessoa do ponto de vista funcional, que é determinante de consequências negativas, quer, a nível da sua actividade profissional, quer, a nível da sua atividade geral e, quer, ao nível patrimonial, quer, ao nível não patrimonial.
Dano biológico que pode ser definido como um estado de danosidade físico-psíquico-pessoa, representando “uma diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre. Este dano tanto pode ser ressarcido enquanto dano patrimonial, como compensado a título de dano não patrimonial, o que resultará de uma a avaliação casuística, e tudo dependendo da verificação se a lesão originou, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade”, cfr. acórdão do STJ, de 8.03.2016, consultado no site da dgsi.
O certo é que se trata de um dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afectação da saúde e plena integridade física do lesado: é que, qualquer que seja o enquadramento jurídico que, no caso, se entenda reflectir mais adequadamente a natureza das coisas, é indiscutível que a perda genérica de potencialidades laborais e funcionais do lesado constitui seguramente um dano ressarcível, englobando-se as sequelas patrimoniais da lesão sofrida seguramente no domínio dos lucros cessantes, ressarcíveis através da aplicação da «teoria da diferença»; ou, não sendo perspectiváveis perdas patrimoniais próximas ou previsíveis, a penosidade acrescida no exercício das tarefas profissionais e do dia a dia constitui seguramente um dano não patrimonial que, pela sua gravidade, não poderá deixar de merecer a tutela do direito.
Em suma: pelo menos para quem não está irremediavelmente afastado do ciclo laboral, a perda relevante de capacidades funcionais – embora não imediatamente reflectida nos rendimentos salariais auferidos na profissão exercida – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» do lesado num mercado laboral em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, constituindo, deste modo, fonte actual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar como verdadeiros danos patrimoniais.”, cfr. acórdão do STJ de 20.5.2010, in site da dgsi
O ressarcimento do dano biológico consiste “na diminuição ou lesão da integridade psico-física da pessoa, em si e por si considerada, e incidindo sobre o valor homem em toda a sua concreta dimensão”, cfr. João António Álvaro Dias, Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Coimbra, Almedina, 2001, p. 272.
O mesmo entendimento é, de resto, dominante no STJ, de que constitui exemplo paradigmático o acórdão de 12.1.2021, consultado no site da dgsi, “a afetação da integridade físico-psíquica (um dano-evento denominado como dano biológico ou dano na saúde) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial (danos-consequência). Está em causa um dano que corresponde ao efeito de uma ofensa sofrida pelo lesado e que exige de si maiores sacrifícios, maior penosidade no desempenho da sua atividade profissional habitual e, ainda, na sua vida pessoal, no desenvolvimento das tarefas e atividades quotidianas. É um dano corporal, na saúde (que afeta a integridade físico-psíquica do sujeito), futuro – as suas consequências ou sequelas projetam-se no futuro – e previsível – por corresponder à “evolução lógica, habitual e normal do quadro clínico constitutivo da sequela”.
“É um dano que subsiste independentemente da eventual perda ou redução de rendimentos. Trata-se, fundamentalmente, da proteção, pelo ordenamento jurídico, do bem jurídico saúde, entendida como estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas como ausência de doença ou enfermidade”, cfr, acórdão do mesmo tribunal de 29.3.2022
“O dano biológico tem suscitado especiais perplexidades na relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais, por poder incidir numa, noutra ou em ambas as vertentes.
Este dano vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais. É um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas. Determina perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado. Poderá exigir do lesado, esforços acrescidos, conduzindo-o a uma posição de inferioridade no mercado de trabalho. Ou, por outras palavras, é um dano que se traduz na diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.
Ora, o dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral; tanto pode ter consequências patrimoniais como não patrimoniais. Ou seja, depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade. Tem a natureza de perda ‘in natura’ que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
Como quer que seja visto ou classificado este dano, o certo é que o mesmo é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial. É indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências para o lesado em termos de diminuição de proventos”, cfr. acórdão do STJ de 21.4.2022, consultado no site da dgsi.
Como refere Maria da Graça Trigo, O conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do princípio da reparação integral dos danos – Breve contributo; in Revista Julgar, 46, 268 e ss. “coexistem na doutrina e na jurisprudência diferentes acepções de dano biológico. Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, actualmente o significado com que mais frequentemente tal expressão é aquele que correspondente à de consequências patrimoniais da incapacidade geral ou genérica do lesado, aferida em função das Tabelas de Incapacidade Geral Permanente em Direito Civil. Mas este significado coexiste com outros, designadamente com o de dano biológico como consequência não patrimonial de uma lesão psicofísica. É, por isso, conveniente que, ao fazer-se uso da dita expressão (seja num texto de índole doutrinal seja numa decisão judicial), se comece por definir a acepção em que a mesma é utilizada.».
Vem-se entendendo que a expressão “dano biológico” abarca, em si mesmo, duas vertentes:
- como dano evento – no que se deve entender qualquer lesão da integridade física-psíquica, à saúde da pessoa em si e por si considerada, independentemente das consequências de ordem patrimonial, que possa prejudicar quaisquer atividades, situações e relações da vida pessoal do sujeito, não sendo necessário que se refira apenas à sua esfera produtiva, abrangendo igualmente a espiritual, cultural, afetiva, social, desportiva e todas as demais nas quais o indivíduo procura desenvolver a sua personalidade;
- como dano-consequência (de natureza patrimonial) - afectação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento de trabalho, porque é determinante de consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado e, especificamente da sua actividade laboral, diminuindo as alternativas que lhe seriam possíveis ou oferecendo menores possibilidades de trabalho, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho.
O aumento da penosidade e esforço para desenvolver as mesmas tarefas profissionais ou quaisquer outras é, efectivamente, atendível no domínio das consequências patrimoniais da lesão corporal, e não apenas no domínio das consequências não patrimoniais, na medida em que se entenda provado que “tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas”, cfr. acórdão do STJ de 25.05.2017, consultado no site da dgsi.
“Na expressão “dano patrimonial autónomo”, a autonomia define-se por contraposição ao dano patrimonial resultante da afectação da capacidade para o exercício da profissão habitual do lesado. Quer isto dizer que ambas as formas de incapacidade – incapacidade geral ou funcional e incapacidade para a profissão habitual – se podem traduzir em perdas de rendimento certas ou com elevada probabilidade de ocorrência.
1 - O dano biológico – o dano-evento real sofrido pela pessoa no seu corpo - pode levar a danos-consequências patrimoniais e não patrimoniais.
2 - Estes danos patrimoniais são as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos
3 - O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica com uma certa percentagem abrange mais do que uma incapacidade profissional permanente com igual percentagem (e, por isso, dir-se-ia que se tiver sido fixada uma indemnização laboral pela incapacidade profissional, a indemnização do défice funcional complementa-a na medida em que ultrapasse aquela - embora aqui existam acórdãos em divergência).
4 - Essa perda da capacidade geral de ganho - quando não for, ou não for só, a perda concretizada de rendimentos da profissão (por a pessoa não estar a trabalhar, no caso de estar desempregado, ainda não trabalhar por ser estudante, já não trabalhar por ser aposentado/desempregado, ou não se verificar incapacidade parcial permanente para o exercício da profissão habitual, apesar de o lesado ter de fazer esforços suplementares/acrescidos para o efeito, - é indeterminável, pelo que o seu valor deve ser fixado com recurso à equidade (por força do artigo 566.º/3 CCivil), em função dos seguintes factores: (i) a idade do lesado e a sua esperança de vida; (ii) o seu grau de incapacidade geral permanente (isto é, a percentagem do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica); (iii) as suas potencialidades de ganho em profissão ou actividades económicas compatíveis com as suas qualificações e aquele défice; (iv) outros que se revelem no caso; e (v) jurisprudência anterior; e não pela aplicação das tabelas utilizadas para determinação dos danos patrimoniais resultantes da IPP para o exercício da profissão profissão habitual”, cfr. acórdão do STJ de 24.2.2022, consultado no site da dgsi, que vimos seguindo de perto.
Isto é, fora, para além e independentemente da existência ou não da incapacidade para a actividade profissional, atinente com a denominada indemnização pelo dano futuro, a título de lucros cessantes, pela perda da capacidade de ganho, coloca-se a questão da indemnização pelo denominado dano biológico, atinente com o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica e, da sua qualificação: se como dano patrimonial, não patrimonial ou um tertium genus.
O lesado não pode ser objecto de uma visão redutora e economicista do homem-unidade produtiva.
A incapacidade permanente (geral) de que está afectada a vítima constitui, nesta perspectiva, um dano em si mesmo, cingindo-se à sua dimensão anátomo-funcional.
Esta questão que já vinha sendo autonomizada na jurisprudência, veio a ser consagrada na Portaria 377/2008, de 26/05, em cujo Preâmbulo se prevê o “princípio de que só há lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação
incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual ou qualquer outra”, referindo-se, contudo, que “ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica”, acabando o seu artigo 4.º por integrar entre os denominados danos morais complementares o dano biológico.
A consideração do dano biológico, nesta vertente, servirá para cobrir na óptica de uma capitis deminutio, em termos de lesão do bem integridade física e do direito à saúde, o que vem sendo denominado de perda de chance, com a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, bem como, para compensar custos de maior onerosidade com o desempenho ou suprimento dessas atividades - em adição ou complemento da indemnização fixada pelas perdas salariais prováveis, decorrentes do grau de incapacidade fixado ao lesado.
E, assim, não há dúvida que,
- a incapacidade permanente parcial para o trabalho constitui em si mesma um dano patrimonial, mesmo nos casos em que a vítima prossiga a sua actividade profissional habitual e sem que se verifique diminuição da retribuição;
- mesmo, as pequenas incapacidades ainda quando não impliquem directamente uma redução da capacidade de ganho, constituem sempre um dano patrimonial indemnizável, dada a inferioridade em que o lesado se encontra na sua condição física, quanto à resistência e capacidade de esforço;
- a incapacidade permanente parcial não se esgota na incapacidade para o trabalho, constituindo em princípio um dano funcional, mas sempre, pelo menos, um dano em si mesmo que perturba a vida da relação e o bem-estar do lesado ao longo da vida.
Já mais controversa será a questão do seu enquadramento.
Cremos, ser de considerar autonomamente, por um lado, distinto do referido dano patrimonial e, por outro, não se diluindo no dano não patrimonial, na vertente do tradicional pretium doloris ou do dano estético.
É certo que esta questão que vem sendo abordada agora em sede de incapacidade permanente geral (IPG), correspondendo a um estado deficitário de natureza anatómica-funcional ou psico-sensorial, com carácter definitivo e com impacto nos gestos e movimentos próprios da vida corrente comuns a todas as pessoas, mais adequadamente se pode integrar no capítulo dos danos patrimoniais.
E, assim, porque esta vertente do dano biológico, o maior esforço, a acarretar um dano funcional que afecta a sua potencialidade física, psíquiba e intelectual e perturba a vida de relação e bem-estar do autor, com o inerente agravamento inerente ao decorrer da idade, tem reflexo na capacidade de ganho, abordaremos a questão da sua indemnização no capítulo dos danos patrimoniais - isto tenho presente que a qua integração num ou em outro capítulo nenhuma repercussão prática terá no resultado final.
II. 3. 3. Uma vez que se não logrou fazer a prova do salário do autor, importa aqui e agora, antes de se iniciar a apreciação deste segmento do recurso, fixar a base em que deve assentar o que a este propósito se venha a decidir.
E, como refere, a outro propósito, é certo, o autor, há que ter presente as regras do bom senso, do normal acontecer e das regras da experiência comum, na procura do modo de contornar a não satisfação do ónus da prova que sobre esta matéria recaía sobre o autor, atentas as regras de repartição do ónus da prova, contidas no artigo 342.º CCivil.
E, cremos que a mais adequada de colmatar esta lacuna, a que melhor se adequa à justiça do caso concreto, será através do recurso ao salário mínimo da Bélgica, ao tempo do acidente, € 1.562.60.
Isto porque, desde logo, o próprio n.º 8 do referido artigo 64.º, com a redacção, igualmente, introduzida pelo Decreto Lei 153/2008 acautelando um mínimo de proteção relativamente às pessoas mais vulneráveis, prevê que, nas eventualidades de omissão de apresentação declaração de rendimentos, ausência de profissão certa ou de rendimentos declarados muito baixos, o tribunal apure o rendimento mensal do lesado com base na retribuição mínima mensal garantida à data da ocorrência.
Dito isto.
II. 3. 4. Apreciando, as questões, agrupando a que é comum a ambos os recursos.
II. 3. 4. 1. Danos patrimoniais.
Perdas salariais.
Invocando a violação do disposto nos artigos 8.º/3, 496.º e 563.º CCivil, suscita a ré a reapreciação da valoração dos danos fixados a título de danos patrimoniais, € 32.871,31.
Discorda a ré que, em função do conteúdo dos factos provados 24 e 25 e aplicando o direito aos factos, se haja fixado indemnização pelo dano “perdas salariais” aplicando o valor de € 2.000,00x15 meses, defendendo que com base nos valores dos recibos apresentados à segurança social e declarações de IRS e adoptando o raciocínio seguido na decisão recorrida, “ao valor de € 30.000,00/€2.000,00x15 meses) que o autor deixou de auferir há que descontar o valor que recebeu a título de subsídio por doença, € 1.095,06 e € 4.000,00 de adiantamentos da ré, tendo ainda a receber da R. o valor de € 24.904,94”, esta operação matemática deve ser alterada, nos seguintes termos - “ao valor de €10.122,45 (€ 674,00x15 meses) que o autor deixou de auferir, há que descontar o valor que recebeu a título de subsídio de doença de € 1.095,06 e € 4.000,00 de adiantamentos da ré, tendo ainda a receber da ré o valor de € 5.027,39”.
E, assim, conclui que esta vertente indemnizatória, a que se refere a alínea a) do dispositivo da decisão recorrida, deve passar a ser fixada nos seguintes termos:
a) a título de danos patrimoniais a quantia global de € 7.898,70, valor obtido após a compensação que se efectua [pelos valores já recebidos] da condenação global em € 12.993,76, acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao a efectivo e integral pagamento.
Isto porque àqueles € 5.027,39 acrescem os valores, não impugnados, de € 477,49 pelos bens destruídos e € 2.393,82 pelas despesas com fisioterapia, consultas viagens e certidão da GNR.
Ora, na sequência da apontada alteração à matéria de facto, caindo o salário mensal de € 2.000,00, resta-nos o salário mínimo da Bélgica, pelo que a apontada operação deve ser feita com tal parcela.
Assim, ao valor de € 23.439,00/€ 1.562,60x15 meses) que o autor deixou de auferir há que descontar o valor que recebeu a título de subsídio por doença, € 1.095,06 e € 4.000,00 de adiantamentos da ré, tendo ainda a receber da R. o valor de € 18.343,94.
E, assim, em conformidade a alínea a) do dispositivo passará a ter a seguinte redacção:
a) a título de danos patrimoniais a quantia global de € 16.120,19, valor obtido após a compensação que se efectua [pelos valores já recebidos] da condenação global em € 21.215,25, acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Isto, em vez da condenação na quantia global de € 27.776,25 - valor obtido após a compensação que se efectua [pelos valores já recebidos] da condenação global em € 32.871,31 – acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Procede, assim, este segmento do recurso subordinado.
II. 3. 4. 2. A perda da capacidade de ganho.
Defende o autor que,
- sem prejuízo das alterações à matéria de facto – que neste capítulo, se reportam, como vimos ao aditamento das habilitações literárias, que ainda assim, aqui pode assumir interesse e relevância, decisivas, em termos da possibilidade de reintegração profissional do autor – entende ser de levar em consideração os factos provados sob os números 22 a 29 – sendo que, aqui, por efeito do recurso subordinado, como vimos ficaram truncados, quanto aos pontos 24 e 25 de tudo o que ultrapassa a o facto de o autor, ao tempo, trabalhar como carpinteiro de cofragens, na Bélgica,
- tinha 41 anos de idade à data do acidente;
- a entidade patronal disponibilizava casa, suportava todas as despesas com as deslocações internas e ainda pagava viagens a Portugal (de avião) de 03 em 03 meses para os trabalhadores visitarem a família;
- ficou com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) o que consubstancia um caso em que o autor não é reconvertível em relação ao seu posto de trabalho;
- do ponto de vista funcional poderá, em teoria, vir a desempenhar profissões como estafeta ou porteiro (mas sem grande exigência física!) - sendo aconselhado plano de reabilitação e reintegração profissional;
- não voltou a trabalhar e, consequentemente, a auferir rendimentos do seu trabalho - a 21.09.2022 completam-se 4 anos desde a data do trágico acidente;
- a data da consolidação médica das lesões é 31.12.2019; - a esperança de vida para os homens ronda os 78 anos.
E, assim, discorda do valor fixado em € 150.000, entendendo que perante estes factos e fazendo uma aplicação analógica da LAT, a indemnização a fixar pela perda da capacidade de ganho terá de ser a por si peticionada, € 750.000, por ser, de facto, a cumpre o disposto nos artigos 562.º e 566.º CCivil e, bem assim, a mais equitativa, ou € 650.000,00 se se entender que poderá vir a desempenhar uma daquelas profissões referidas pelo CRPG, sendo que mesmo podendo desempenhar a profissão de estafeta ou porteiro, o seu salário será certamente o salário mínimo, onde terá sempre de fazer mais esforço do que qualquer outra pessoa que não tenha limitações físicas.
A isto contrapõe a ré, que tendo em conta o que resulta dos pontos 21 e 22,
- após o acidente o autor ficou a padecer das seguintes sequelas: fractura de dente superior (n.º 12); deformidade clavicular visível; cicatrizes ao longo do corpo, mais especificamente duas na zona da anca, de 2 cm e 3 cm (queloides), 3 cm e 1cm no 1/3 distal lateral da coxa, 2 cm na face anterior do joelho; dores no membro superior direito;
- a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 31.12.2019 com défice funcional temporário total de 15 dias, parcial de 452 dias e com repercussão na actividade profissional total de 376 dias e de repercussão na actividade profissional parcial de 91 dias. O quantum doloris é fixado em 4/7, tendo o A. dores que se mantêm; o dano estético é fixado em 2/7; e a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer em 3/7. O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 18 pontos, sendo as sequelas impeditivas da actividade profissional habitual, mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional, designadamente, como porteiro de edifícios e estafeta,
- admitindo que tais sequelas são, como refere o relatório médico impeditivas de desenvolver a sua actividade habitual de carpinteiro de cofragens, o certo é que pode desenvolver outras actividades no âmbito da sua preparação técnico-profissional, não podendo extrapolar o valor indemnizatório, partindo do princípio de que está “privado” para sempre de rendimentos do trabalho;
- pugnando pela redução do excessivo valor fixado, € 150.000,00, a um não superior a € 80.000,00, tendo presente o salário mensal de € 764,00, bem como o benefício da entrega antecipada de capital, invocando os princípios da equidade, proporcionalidade e igualdade uma vez que a sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros de fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto.
Na decisão recorrida, a este propósito, discorreu-se pela forma seguinte: “No caso concreto, temos de ter em conta a idade do A. à data do acidente (41 anos),
um tempo provável de vida activa até aos 70 anos (29 anos de vida activa), a esperança média de vida até aos 78 anos, uma incapacidade de 18 pontos e, ainda, que o A. auferia mensalmente como salário médio líquido, à data do acidente, € 2.000,00 (tal valor é aplicável independentemente do valor que tenha sido fiscalmente declarado, dando-se prioridade ao valor efectivamente recebido – cfr., neste sentido, o Ac. do TC n.º 221/2019, de 13/05, com força obrigatória geral e os Acs. do TC n.ºs 383/2012, 273/2015 e 565/2018, além do Ac. do STJ de 27/05/2021, processo n.º 10682/15.3T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt).
Assim, partindo dos elementos que temos e de uma vida activa provável e normalmente considerada até aos 70 anos de idade e da esperança média de vida até aos 78 anos, seguiremos aquele critério que se afigura mais perto da realidade actual. Trata-se da fórmula expressa no Ac. do STJ de 08/02/2001, em que já se atende a uma taxa de juro de 2%, mais consentânea com a rentabilização do capital anualmente à data. É a seguinte a fórmula a usar:
(Un – 1) x P
C = --------------(Un x t)
em que, C = capital; Un = número de anos de recebimento; P = pensão anual, com a aplicação da taxa de incapacidade; t = taxa de juro nominal, considerando este de 2%.
Contudo, entendemos que tais operações, sempre aleatórias, apenas podem servir como meros auxiliares, devendo ter-se em conta que, se não se puder avaliar o montante exacto do dano, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, nos termos do art. 566º, n.os 2 e 3, do CC.
Assim, e num puro juízo de equidade, atendendo a todos os factores já enunciados, e considerando o facto de o A. estar incapacitado para a profissão habitual, mas poder exercer outras actividades compatíveis com a sua área técnica de preparação (o equivalente a uma reconversão), temos por justa a fixação da indemnização global de € 150.000,00, sendo esta a quantia a que o A. tem direito a título de indemnização pela perda da capacidade de ganho, contabilizados como danos futuros (cfr., para efeitos de valores indemnizatórios, com incapacidades superiores, o primeiro dos quais para o trabalho habitual ou qualquer outro dentro da sua área de preparação técnico profissional, embora com salários inferiores, mas com situações de incapacidade mais gravosas, os Acs. do STJ de 19/09/2019, processo n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1; e da RC de 15/02/2022, processo n.º 1455/18.2T8GDR.C1, in www.dgsi.pt)”.
Vejamos.
Desde já, a questão afectação da integridade físico-psíquica e a perda da capacidade de ganho.
A afectação da integridade físico-psíquica do lesado é susceptível de gerar danos patrimoniais, entre os quais se encontram a perda de rendimentos pela incapacidade laboral, a perda de oportunidades profissionais ou pessoais e os custos de maior onerosidade no desempenho ou no exercício das actividades desenvolvidas
Aquela afectação, ainda que não acarrete uma diminuição dos concretos rendimentos do lesado, na medida em que implique um esforço acrescido/suplementar para a realização das actividades profissionais e pessoais, constitui um dano futuro indemnizável autonomamente, correspondendo ao denominado dano biológico.
O dano biológico - enquanto lesão, afectação, do direito fundamental à saúde e à integridade física e psíquica - pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial.
Constitui, de resto, questão controversa, a natureza do dano biológico – se, patrimonial, se, não patrimonial, se, mista.
O dano biológico é mencionado expressamente na Portaria 377/2008, de 26-05, em cujo preâmbulo consta que “ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial, o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica”.
Aquela natureza mista resulta, igualmente, desta Portaria, onde no seu artigo 3.º se subsume o dano biológico, atinente a danos patrimoniais, cfr. alínea b) que é indemnizável ao “dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil” e, no artigo 4.º, com a epígrafe danos morais complementares, concretamente na alínea e), se refere que “além dos direitos indemnizatórios previstos no artigo anterior, o lesado tem ainda direito a ser indemnizado por danos morais complementares, autonomamente, nos termos previstos no anexo i da presente portaria, nas seguintes situações: (…) e) quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da sua actividade profissional habitual”.
A mera diminuição da capacidade de trabalho e de ganho, associada ao défice funcional permanente da integridade física e psíquica é considerada dano patrimonial.
E, assim, há lugar à indemnização dos danos patrimoniais decorrentes do défice funcional permanente da integridade física.
Este dano patrimonial é futuro, no sentido de que terá previsivelmente incidência nos resultados patrimoniais da sua vida, quer se tenha como horizonte temporal desta vida aquele que vai até à idade prevista pela lei para a reforma, quer se tenha como horizonte temporal desta vida a esperança média de vida.
A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expectável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.
Não existe qualquer sobreposição ou duplicação de indemnização, isto porque a mesma lesão pode produzir um dano biológico e um sofrimento psíquico, não havendo identidade entre os danos ressarcidos através da indemnização a título de dano biológico e a indemnização a título de danos não patrimoniais.
São autónomos e distintos os danos. Se bem que se não se podem dissociar as dores e desgostos das lesões de natureza física. Tudo consequência e com origem no evento.
Na indemnização pelo dano biológico há que valorar as lesões físicas sofridas e as sequelas e os esforços acrescidos/suplementares na elaboração das quotidianas tarefas profissionais e pessoais.
Quanto aos factos que integram o quantum dos danos não patrimoniais, associados às dores e desgostos por reporte às lesões físicas, há que atender ao estado psicológico e anímico, às dores sofridas durante a baixa médica, durante os tratamentos, a recuperação e as dores que ainda permanecem, e sopesar, ainda, a tristeza e a angústia provocadas pelas dores, bem como, as consequências das lesões a nível estético.
O acento tónico naquela primeira vertente deve ser colocado nas lesões e nas limitações/esforços acrescidos que tais lesões implicam no desempenho das habituais tarefas, na vida profissional e na vida pessoal.
O enfoque deve ser efectuado no esforço suplementar na realização das tarefas e não na dor inerente à sua execução.
Isto, não obstante, necessariamente, naquela avaliação e enquadramento do esforço suplementar na realização dessas tarefas devido às limitações físicas, se fazer, necessariamente, referência à existência de dores.
Questão que enquadrada na, mais ampla, atinente com as dores sofridas desde o dia do acidente até ao presente, com a quantificação do quantum doloris, com o período de baixa médica, com o período e natureza dos tratamentos e com o dano estético que as lesões geraram, deve ser valorada na quantificação dos danos não patrimoniais.
E, então o cálculo deste dano biológico, reportado à “perda da capacidade” deve ser feito aplicando a percentagem de incapacidade àquilo que o lesado recebia ao tempo do acidente.
O que o lesado perdeu, o dano por si sofrido, foi uma parte da sua capacidade de ganho de rendimentos, que não tem correspondência com a diferença entre aquilo que auferia e aquilo que passou a receber depois.
É indiferente que o lesado tenha continuado a auferir o mesmo ordenado apesar de ter uma dada incapacidade, pois que se continua a receber o mesmo é porque continua a produzir o mesmo, tendo para isso que empregar muito maior esforço.
A incapacidade funcional, ainda que não impeça o lesado de continuar a trabalhar e ainda que dela não resulte perda de vencimento, reveste a natureza de um dano patrimonial, já que a força do trabalho constitui um bem patrimonial, sendo certo que essa incapacidade obriga o lesado a um maior esforço para manter o nível de rendimentos auferidos antes da lesão.
Por isso, o lesado não tem sequer de alegar perda de rendimentos para lhe ser atribuída indemnização por ter sofrido incapacidade permanente parcial.
Quanto ao montante da indemnização.
É certo que segundo o Preâmbulo e o quadro do anexo IV da Portaria 377/2008, no cálculo da indemnização pelo dano biológico se deve atender à idade e ao grau de desvalorização.
No entanto, os tribunais, para lograr definir a indemnização equitativa para ressarcimento do dano biológico não podem, nem devem sopesar apenas esses dois factores: idade e grau de incapacidade.
São os critérios contidos no Código Civil que devem presidir na atribuição da indemnização por este dano e não os critérios da Portaria 377/2008, de 26 de Maio, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria 679/2009, de 25 de Junho, os quais quando muito poderão ser utilizadas como critério de orientação ou até de aferição dos resultados alcançados no âmbito do regime geral do CCivil.
É sobejamente reconhecido o melindre da fixação do valor da indemnização reportado à perda da capacidade de ganho, às perdas salariais.
E, assim, a indemnização pelo dano biológico obedece a juízos de equidade, conforme o disposto no artigo 566.º/3 CCivil, assentes numa ponderação casuística, de acordo com o circunstancialismo do caso concreto, as regras da experiência comum, do bom senso e prudência, e decisões jurisprudenciais com as quais seja possível estabelecer um paralelismo
A equidade é a expressão da justiça no caso concreto, consistindo em atender ao condicionalismo de cada caso concreto, com vista a alcançar a solução equilibrada e justa, havendo que ter presentes as regras da boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, bem como os padrões de indemnização adoptados pela jurisprudência.
E, assim, depois da idade do lesado e do seu grau de incapacidade, em termos de circunstâncias do caso concreto, há que atentar nomeadamente, no grau de culpa, na conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas ou potenciais - tendo em conta as qualificações e competências do lesado - nos concretos maiores esforços para o seu exercício, na maior dificuldade de progressão na carreira, na necessidade de escolha de profissão mais adequada à incapacidade existente, na perda de oportunidades profissionais, considerando uma expectativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma mas tendo em conta a esperança média de vida.
No cálculo do valor desta indemnização não há que fazer qualquer dedução (a fim de, alegadamente, se evitar um enriquecimento injustificado resultante do recebimento antecipado de valores que apenas se receberia ao longo da vida), uma vez que se trata de indemnização fixada segundo a equidade e, não calculada de acordo com a teoria da diferença, do artigo 566.º/2 CCivil.
Deve, assim, atender-se ao salário, ilíquido ao tempo.
Deve atender-se à esperança média de vida e não à vida activa, até à reforma.
Deve atender-se à data da consolidação da incapacidade – até lá o que há é uma incapacidade temporária, não, permanente, no caso ocorrida a 31.12.2019.
Sendo certo que o autor tinha então 41 anos de idade.
E, ainda, de notar que o valor desta indemnização irá ser entregue de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la, impondo-se considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa da responsável civil, condizente a uma taxa de juro de 1% julgada equitativa e ajustada, na linha do rendimento do capital, aplicado em produto sem risco.
Isto, não obstante, no presente a questão do recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva, da mesma forma como relevou no passado, uma vez que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzida, a implicar, desde logo, que para se garantir o mesmo rendimento seja necessário um capital de maior dimensão.
E, por outro lado, que a taxa média de inflação, baseada num juízo de previsibilidade, sendo notório que nos últimos anos se tem situado a próximo do zero e negativa, e, alguns períodos, tendo começado no corrente ano, pelas razões conjunturais que se conhecem, a dar sinais de subidas para patamares a rondar os 9%, dando, contudo já sinais de normalização e, mesmo de estabilização, falta saber em que patamar.
Tendo presente jurisprudência mais recente sobre a matéria, sabendo que as tabelas matemáticas usadas para apurar a indemnização, têm um mero carácter indicativo, não substituindo, de modo algum, o recurso à equidade, utilizando a usual e básica tabela - € 1.562,60 x 14 meses x 37 anos x 0,19 = € 153.791,09, encontramos uma orientação para o cálculo do montante indemnizatório pela reparação da perda da capacidade aquisitiva futura, a apreciar segundo um juízo de equidade, tomando em consideração os vertidos critérios objectivadores, aferidores e orientadores seguidos pela jurisprudência, ou seja, sem deixar de considerar que a arbitrada indemnização para reparação pela perda da capacidade aquisitiva futura deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado deixará de perceber em razão da perda da capacidade aquisitiva futura e que se extingue no termo do período de vida, atendendo-se, para o efeito, à esperança média de vida do lesado;
ponderando ainda a evolução provável na situação profissional do lesado, o aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível, a melhoria expectável das condições de vida, a inflação provável ao longo do período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização;
tendo presente que no cômputo da indemnização não se deve deixar de considerar a natural evolução dos salários, tendo-se, em devida atenção a evolução expectável do salário e ponderando-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, importando introduzir um desconto no valor achado, condizente ao rendimento de uma aplicação financeira sem risco, e que, necessariamente, deverá ser tida em consideração pelo tribunal que julgará equitativamente, uma vez que o dano a indemnizar, não pode ser quantificado, em termos de exactidão.
A apontada natureza híbrida ou mista do dano biológico é perfeitamente detectável no caso dos autos, em que estamos confrontados com relevantes limitações funcionais do autor.
Com efeito, da matéria de facto apurada, a esse respeito, facilmente se conclui estarmos, desde logo, perante um dano biológico na sua vertente/dimensão de dano patrimonial futuro, que, naturalmente, se repercutirá negativamente no exercício da sua atividade profissional, afetando a sua capacidade de ganho, quer por via da diminuição imediata dos seus rendimentos, quer por via da frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de outras atividades, devido à natureza da incapacidade funcional e à necessidade de requalificação profissional.
ao levado grau de afetação funcional, que lhe proporcionassem novos ou maiores ganhos económicos/materiais, para além ainda do maior esforço que tais atividades, que possa ainda exercer, sempre lhe exigirão.
Na decisão recorrida apesar de se encontrar enunciada a questão da conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do autor, bem como, o facto de poder exercer outras actividades compatíveis com a sua área técnica de preparação (o equivalente a uma reconversão), o certo é que não se atentou nos seguintes parâmetros.
Por um lado, o exercício de outras actividades, em “reconversão”, ainda que possíveis, e já de si limitativas, pressupõem que sejam adequadas e compatíveis com as limitações físicas que o autor apresenta, quer, num dos membros superiores, quer num dos inferiores.
Actividades, que, em tais condições, não se apresentam fáceis de encontrar/contratualizar, mesmo depois de cumprido o plano de reabilitação e reintegração profissional.
Isto é, as apontadas sequelas e o fixado défice funcional conduzem a uma clara perda de chance ou de oportunidades profissionais, frustrando ou limitando fortemente o leque de escolha das suas opções de atividades profissionais a desempenhar no futuro.
Da mesma forma, não foi valorada a questão atinente com o dano biológico-evento, traduzido na lesão à integridade físico-psíquica, à saúde da pessoa em si, com repercussão negativa, a implicar esforços suplementares na vida corrente.
Assim, verificando-se uma falha na ponderação dos contornos do caso concreto, considera-se mais adequada à real situação do autor, a fixação da indemnização num patamar superior - ainda que não pelos fundamentos por si aduzidos -fixando-se o valor da indemnização total a título de danos futuros, lucros cessantes, englobando o dano biológico evento e consequência, no equivalente a € 220.000,00, que, cremos, num juízo prudencial e casuístico, melhor se adequa.
Este valor insere-se dentro do arco consentido pela margem de discricionariedade que o recurso à equidade legitima.
Ainda que num patamar superior, é certo, mas sem que se justifique, no caso a sua redução, dado que o resultado não se afasta, de modo gritante, substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, de forma a garantir a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, assegurar os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da razoabilidade.
Pelo exposto, afigura-se equitativo fixar em € 220.000,00 o valor para compensar esta dupla vertente deste dano futuro.
Procede, assim, parcialmente, este segmento do recurso principal e improcede, na totalidade, o subordinado.
II. 3. 4. 3. Danos não patrimoniais.
Neste particular defende o autor que é importante ter em consideração as dores sofridas com as lesões e ademais afetação da sua vida quotidiana - o prejuízo de afirmação pessoal e o dano estético, remetendo para os factos provados contidos nos pontoa 10 a 21, 23, 30 a 33 e 39, tendo sofrido bastante com o acidente, aos 41 anos de idade deixou de poder fazer grande parte das atividades lúdicas que anteriormente fazia (jogar futebol, correr, canoagem, BTT etc.), ficou com inúmeras cicatrizes, passou a ser uma pessoa fechada e deprimida e fez já centenas de tratamentos de fisioterapia e ainda hoje faz 3x por semana, sendo que terá de continuar a fazer (tratamentos que lhe provocam dor, e, acima de tudo, lhe “roubam” tempo – tempo esse em que poderia estar a fruir de outra forma mais prazerosa), tendo, ainda, de ser sujeito a nova intervenção cirúrgica no futuro.
E, assim, conclui que o peticionado, € 100.000,00 é um valor mais adequado a compensar e a atenuar o sofrimento que teve, tem e continuará a ter.
Diz a ré que aceita o valor fixado de € 40.000,00, que foi fixado com base numa correcta avaliação da prova produzida, feita de forma exemplar, objectiva, coerente, lógica, adequada às regras da experiência comum, decidindo de mérito, em perfeita harmonia com a matéria de facto, por apelo às regras de experiência comum e, de acordo com a jurisprudência aplicada a casos análogos.
Neste ponto entendeu-se na decisão recorrida do seguinte modo: “A este título é pedida a quantia de € 100.000,00.
Tem-se entendido, na doutrina e na jurisprudência, que merecem a tutela do Direito, aqueles danos que “espelham uma dor, angústia, desgosto ou sofrimento, inexigível em termos de resignação” (Cfr. o Ac. da RC de 12/01/79, CJ, Tomo III, pág. 892).
No caso concreto, quanto a tais danos, provou-se que do acidente em causa (cfr., designadamente, os factos 10º a 22º e 30º a 33º, dados como provados, em confronto com as líneas A) e B) dos factos não provados), o A. sofreu as lesões descritas no relatório médico-legal junto aos autos, com necessidade e sujeição a tratamentos, lesões essas que foram causa directa e necessária das sequelas permanentes e que originaram uma incapacidade de 18 pontos.
Provou-se, ainda, que o A. sofreu dores que ainda hoje se mantêm, tendo deixado de praticar actividades que antes praticava, reflectido na repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer no grau 3/7, tendo ainda um dano estético de 2/7 e um quantum doloris de 4/7.
Há que considerar, ainda, que o A. esteve incapacitado durante um período global de 467 dias.
Face ao exposto, não há dúvida que as dores sentidas pelo A., demais sequelas e sua relevância, são susceptíveis de serem indemnizados a título de danos não patrimoniais e, tendo em conta que o A. apenas ficou com essas lesões devido ao acidente, atendendo à sua situação sócio-económica, às lesões sofridas, às dores físicas que teve decorrentes dos traumatismos e às dores que se mantêm em parte e ao tempo que as lesões demandaram a curar, ao dano estético de que fica a padecer e afectação da sua capacidade física e de lazer e, conjugando tudo isto, num puro juízo de equidade, julga-se equitativa a indemnização de € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais”.
Vejamos.
O artigo 496.º/1 CCivil manda atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, acrescentando o n.º 4 que o montante da indemnização será fixado equitativamente, tendo em conta as circunstâncias enunciadas no artigo 494.º, ou seja, ao grau de culpabilidade do agente, à sua situação económica e à do lesado, e as demais circunstâncias do caso, vg. a natureza e gravidade da lesão.
O artigo 494.º refere como circunstâncias atendíveis o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e quaisquer outras que se justifiquem no caso.
Em causa estão, agora, prejuízos que não atingem em si o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. Ofendem bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro. A ofensa objectiva desses bens tem em regra um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou de natureza moral.
Os danos não patrimoniais podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, podendo concretizar-se, por exemplo, em dores físicas, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem, estados de angústia, etc., reflectindo, mais ou menos, melhor ou pior, manifestações de perturbações emocionais.
Nesta categoria de danos se compreendem todos aqueles que afectam a personalidade moral, nos seus valores específicos, tais como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.
Dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é exorbitante ou excepcional, mas também aquele que sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação.
Para a dor moral ou psíquica é impossível estabelecer escalas peremptórias: dentro do critério da gravidade, seguir-se-ão os ensinamentos da experiência humana em termos de afectividade e sentimento, segundo um prudente arbítrio de indemnização. Nestes danos interfere em especial a natureza e intensidade do sofrimento causado e a sensibilidade do lesado e duração da dor.
A avaliação da sua gravidade tem de aferir-se segundo um padrão objectivo, e não à luz de factores subjectivos, sendo, nessa linha, orientação consolidada na jurisprudência, “com algum apoio na lei”, que as simples contrariedades ou incómodos apresentam um nível de gravidade objectiva insuficiente para os efeitos do n.º 1 do artigo 496.ºCCivil.
O montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
“Neste particular, tem sido salientado que o dano não patrimonial não se reconduz a uma única figura, tendo vários componentes e assumindo variados modos de expressão, abrangendo:
(i) o chamado quantum (pretium) doloris, que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária, com tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos, a analisar através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico;
(ii) o “dano estético” (pretium pulchritudinis), que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima;
(iii) o “prejuízo de distracção ou passatempo”, caracterizado pela privação das satisfações e prazeres da vida, vg., com renúncia a actividades extra-profissionais, desportivas ou artísticas;
(iv) o “prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica), integrando este prejuízo a quebra na “alegria de viver”;
(v) o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”, em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza as lesões muito graves, com funestas incidências na duração normal da vida;
(vi) os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida;
(vii) o prejuízo juvenil “pretium juventutis”, que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida, privando a criança das alegrias próprias da sua idade;
(viii) o “prejuízo sexual”, consistente nas mutilações, impotência, resultantes de traumatismo nos órgãos sexuais;
(ix) o “prejuízo da auto-suficiência”, caracterizado pela necessidade de assistência duma terceira pessoa para os actos correntes da vida diária, decorrente da impossibilidade, de se vestir, de se alimentar, cfr. o citado acórdão do STJ de 21.4.2022.
Como tem vindo a ser afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, a indemnização prevista no artigo 496.º/1 CCivil, é mais propriamente uma verdadeira compensação, que visa proporcionar um acréscimo de bem estar que contrabalance os males sofridos, as dores e angústias suportadas e que permanecem, a maioria, por reporte a lesões físicas que se sofreram.
A indemnização a este título não se destina assim, a apagar o dano, atenta a sua natureza, desde logo, mas tão só proporcionar ao lesado um meio de compensar a lesão através de uma quantia monetária que lhe permita aceder a satisfações que minorem o sofrimento e, que podem ser de natureza espiritual.
Uma vez que, também, aqui, o Código Civil não contém quaisquer tabelas que estabeleçam montantes de indemnização em função da gravidade dos danos e que a compensação devida pelos danos não patrimoniais prevista na Portaria 377/2008 serve para efeitos de apresentação aos lesados, por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, por parte das seguradoras, não afastando a fixação de valores superiores aos aí previstos, cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º, os tribunais procuram alcançar a equidade, a proporcionalidade na fixação da indemnização, recorrendo ao que é decidido em casos análogos.
Também, aqui, afinal, se impõe o recurso à equidade.
De qualquer forma com um sentido diferente daquele a que se recorreu em sede de fixação da indemnização pelo dano biológico.
Com efeito.
Ali, estando em causa um dano patrimonial futuro, a equidade funciona como último recurso, “para permitir alcançar uma definição concreta do conteúdo de um direito subjectivo”, designadamente do direito a uma indemnização, “quando o valor exacto dos danos não foi apurado. Isto porque o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com os princípios e com as regras dos arts. 562.º ss. do Código Civil.
Aqui, o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com a equidade. A equidade funciona como único recurso,
Tendo em vista as próprias finalidades prosseguidas pela compensação neste tipo de danos, não esquecendo que a compensação pelo dano não patrimonial jamais poderá ser traduzido no equivalente à alegria vital perdida, mas uma compensação da dor sofrida, ao liquidar o dano não patrimonial, por forma a encontrar um valor ajustado ao caso concreto que efectivamente compense os danos sofridos, deve ponderar-se os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, bem como, a gravidade do ilícito, a situação do lesado e do obrigado à reparação, sopesando a intensidade do grau de culpa do lesante e extensão e natureza das lesões sofridas.
A ponderação de todos estes critérios com vista à justa compensação, usando juízos de equidade, há-de, contudo, ter presente que os Tribunais não se devem pautar por critérios miserabilistas, nem, por outro lado, seguir critérios de puro mercantilismo.
Tendo presentes estas considerações, temos no caso, que estão provados danos não patrimoniais com gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito.
Na decisão recorrida a ré foi condenada a pagar ao autor a quantia de € 40.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Pretende o autor ver aquele valor aumentado para € 100.00,00.
Tendo isto em consideração e – remetendo aqui para o que se disse supra acerca da não duplicação da indemnização a título de dano biológico na sua vertente não patrimonial e da indemnização pelos danos de natureza não patrimonial – há que valorar no caso, as seguintes circunstâncias:
10. O A. foi assistido no local, inicialmente pelos Bombeiros e, posteriormente, pela viatura VMER.
11. Ainda no local, foi imobilizado (já sem capacete), com colar cervical e plano duro.
12. Porque a sua situação clínica se estava a agravar, foi transportado para o serviço de urgência do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa (CHTS), sob perfusão de Midazolem.
13. Deu entrada no Serviço de Urgência às 18h44m58s e, na triagem de Manchester, (efetuada pelo Enfermeiro EE) foi-lhe atribuído a pulseira vermelha (emergente) -situação muito grave (enquadrada como grande traumatismo), conforme documento 3 da PI cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
14. Foi inicialmente avaliado pelo serviço de Medicina Interna, pelo Dr. FF, que fez constar que o AA fez analgesia, morfina e fentanil e, posteriormente, foi avaliado conjuntamente com o serviço de Cirurgia Geral onde lhe foram efectuados um conjunto de meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT`s).
15. Foi sujeito a uma intervenção cirúrgica logo após o internamento, de redução fechada da fractura com fixação interna-Fémur Ortopedia, pela seguinte equipa: Cirurgião principal – Dr. GG; Cirurgião Ajudante – Dr. HH e Dr. II e Anestesista principal – Dra. JJ.
16. Esteve internado, tendo tido alta hospitalar no dia 05.10.2018, tendo-lhe sido diagnosticadas, designadamente, as seguintes lesões: fractura de dente superior; fractura apófises transversas de C7 e D1; contusão da glândula SR direita; fractura do corpo da omoplata direita; fractura do 1/3 médio da clavícula esquerda; fractura dos arcos costais direitos (1º, 2º, 4º e 7º); hemopneumotórax esquerdo - drenado a 21.09.2018 e retirado dreno a 25.09.2018; provável contusão da supra renal direita; fractura transtrocantérica do fémur esquerdo (envolvendo o pequeno e o grande troncânter); fractura cominutiva diafisária proximal do fémur esquerdo, com sobreposição dos topos - redução e encavilhamento com vareta Gamma 3, tudo conforme documentos 3 a 5 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
17. Ao longo do internamento, além da referida cirurgia, o A. permaneceu com colar cervical colocado e foi sujeito a tratamentos de enfermagem, nomeadamente colocação de drenos, aspiração e tratamento da ferida cirúrgica, tratamentos esses que foram dolorosos.
18. A partir da data em que teve alta hospitalar permaneceu em casa, praticamente imobilizado e com necessidade de ajuda de terceira pessoa, por ordem médica, até inícios de fevereiro, data em que começou a fazer fisioterapia no CHTS, 03 vezes por semana e a ser seguido em Ortopedia pelo Dr. GG.
19. Desde janeiro até agosto de 2019, o AA foi sendo seguido em ortopedia (consulta externa) e efetuou fisioterapia no CHTS, e em agosto de 2019 foi informado no CHTS de que, pese embora necessitasse de manter tratamento de fisioterapia, teria de o fazer em clínica privada.
20. Desde agosto de 2019, o AA é seguido na Clínica ..., do Marco de Canaveses, tendo efetuado fisioterapia 05 vezes por semana, numa primeira fase e, neste momento, encontra-se a fazer fisioterapia 03 vezes por semana – situação de necessidade que deverá manter-se até informação médica em contrário.
21. Após o acidente o A. ficou a padecer das seguintes sequelas: fractura de dente superior (n.º 12); deformidade clavicular visível; cicatrizes ao longo do corpo, mais especificamente duas na zona da anca, de 2 cm e 3 cm (queloides), 3 cm e 1cm no 1/3 distal lateral da coxa, 2 cm na face anterior do joelho; dores no membro superior direito.
22. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 31/12/2019, com défice funcional temporário total de 15 dias, parcial de 452 dias e com repercussão na actividade profissional total de 376 dias e de repercussão na actividade profissional parcial de 91 dias.
O quantumdoloris é fixado em 4/7, tendo o A. dores que se mantêm. O dano estético é fixado em 2/7.
A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer em 3/7.
O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 18 pontos, sendo as sequelas impeditivas da actividade profissional habitual, mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional, designadamente, como porteiro de edifícios e estafeta.
23. O A. necessita de ajudas técnicas permanentes, tais como, ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares e observação em consultas médicas, além da possibilidade de nova intervenção cirúrgica para extracção de material de osteossíntese.
30. Antes do acidente o A. praticava, sempre que podia, futsal e nadava, o que deixou de poder fazer, deixando-o deprimido e revoltado.
31. O AA era uma pessoa alegre e bem-disposta e, actualmente, devido às limitações de que ficou a padecer e à baixa autoestima, passou a isolar-se.
32. Passou a sentir dificuldades nas tarefas do dia-a-dia, como seja, a subir e descer escadas.
33. O Autor foi informado pelo médico que não poderá voltar a circular de mota, dado o posicionamento de condução que tal implica, conduzindo veículo automóvel mas com dificuldades.
É de notar que o défice funcional de que o autor ficou portador já foi indemnizado autonomamente como dano de natureza patrimonial.
Apenas o englobamos, agora, aqui, nesta sede, no elenco dos factos relevantes para a fixação da indemnização por danos patrimoniais, não para o considerar em si mesmo, mas na perspectiva do sofrimento que causa ao autor ver-se portador de tal défice.
Não há, por isso, perigo de duplicação de indemnizações, a tal título. Daqui resulta que o autor sofreu danos não patrimoniais já com algum
significado, na perspectiva do dano existencial, sofrimento e abalo psicológico e emocional e de privação, quer na vida pessoal, desde logo em relação a actos básicos do quotidiano, quer profissional, quer social, lúdica e de lazer, bem como um sério prejuízo de afirmação pessoal, quer pela sua natureza perdurarão no tempo.
Em face da natureza dos danos não patrimoniais provados, graves e merecedores da tutela do direito, e atenta a culpa exclusiva do segurado na ré e a situação económica desta, que se presume próspera, entendemos ajustada e equitativa a compensação fixada na decisão recorrida, que se não afasta dos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência.
Improcede, assim, este segmento do recurso.
II. 3. 4. 4. Consequências jurídicas a extrair do facto 33, dado como provado - o autor foi informado pelo médico que não poderá voltar a circular de mota, dado o posicionamento de condução que tal implica, conduzindo veículo automóvel mas com dificuldades - não condenação da ré na adaptação da viatura automóvel, a liquidar no futuro).
Defende o autor que tendo em consideração este facto dado como provado, tal deveria levar à condenação na adaptação da viatura automóvel (“mudanças automáticas”).
A este propósito expendeu-se na decisão recorrida pela forma seguinte: “O A. pediu, ainda, a condenação da R. a pagar-lhe todas as despesas que este tiver de
vir a realizar com tratamentos médicos/clínicos às lesões sofridas no acidente, ajudas medicamentosas, intervenções cirúrgicas, deslocações, bem como adaptação de viatura, tudo a liquidar em execução de sentença, caso não se consigam quantificar nesta data.
Como verificamos, em relação a esta matéria resultou apenas provado que o A. necessitará de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares e observação em consultas médicas, além da possibilidade de nova intervenção cirúrgica para extracção de material de osteossíntese (facto 23º dado como provado), não tendo resultado provada a necessidade de qualquer adaptação de veículo (al. F) dos factos não provados).
Há que condenar, pois, a R. nesses exactos termos dos factos provados, ou seja, no pagamento de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares e observação em consultas médicas, além da possibilidade de nova intervenção cirúrgica para extracção de material de osteossíntese.
Razão pela qual procede, também, esta parte do pedido, que se relega para liquidação de sentença, uma vez que se desconhece a quantidade, a determinar (art. 609º, n.º 2, do CPC)”.
Esta questão está prejudicada pelo facto de estar dependente da alteração/modificação do julgamento da matéria de facto sobre a alínea f) que como vimos não aconteceu.
Donde está prejudicado o seu conhecimento, aqui e agora, uma vez que estava dependente da procedência do recurso naquele segmento – que não ocorreu.
II. 3. 4. 5. Consequências jurídicas a extrair do facto 39, dado como provado - o autor, entre o período de 08.10.2018 e 08.02.2019 (4 meses), permaneceu em sua casa, contudo, precisou de ajuda de terceira pessoa para as tarefas básicas, como tomar banho, vestir-se, cozinhar, tendo-lhe sido prestado auxílio pela sua irmã BB.
Neste particular expendeu-se na decisão recorrida pela forma seguinte: “No que concerne à alínea d), de ajuda a terceira pessoa, o A. peticionava € 350,00
durante 4 meses, no total de € 1.400,00 alegando que a sua irmã deixou de prestar serviços domésticos para o auxiliar e que ele lhe prometeu esse valor. Contudo, tal matéria resultou como não provada como consta na alínea G) (ou seja, que a irmã do A., apesar de o ter auxiliado, tenha deixado de prestar outros serviços para o auxiliar, ou que o A. lhe tenha prometido algum valor), razão pela qual tal valor também não lhe é devido (cfr., também, o Ac. do STJ de 19/06/2014, processo n.º 1684/09.0TBSTR.E1.S1 e da RC de 15/02/2022, processo n.º 1455/18.2T8GDR.C1, in www.dgsi.pt)”.
Considera o autor que desde facto não foi extraída qualquer consequência, certamente, porque se terá entendido que por não ter sido feita a prova que se comprometeu a entregar à sua irmã € 350,00, então não terá direito a receber qualquer quantia.
Discorda, porque foi feita a prova de que a ajuda foi prestada e o valor peticionado é absolutamente residual – pecando por defeito - face àquilo que seria necessário pagar caso fosse um terceiro a prestar tal serviço, sendo aquele valor exactamente o que se comprometeu a pagar.
E, assim, conclui dever a ré ser condenada a pagar o valor peticionado a este título sob pena de existir um enriquecimento sem causa da ré.
Como parece, medianamente evidente, o autor não coloca em causa a fundamentação do decidido. Se a irmã deixou de fazer outros serviços e se o autor lhe prometeu determinado valor, se não se provou nem uma, nem outra realidade, não podia deixar de ser este segmento do pedido julgado improcedente.
Não se vislumbra – nem o autor invoca, porventura, porque também ele, não vislumbrou – que norma legal possa ter sido violada em face deste julgamento.
Muito menos, onde se possa situar o enriquecimento sem causa por parte da ré, pelo facto de o autor não ter que pagar à irmã o que quer que fosse, uma vez que se não provou, como alegara, que ela deixara de fazer outros serviços ou que ele lhe prometera determinada quantia.
Está, pois, este segmento do recurso votado ao insucesso, de forma assaz, manifesta, de resto.
II. 3. 4. 6. Condenação da ré no dobro da taxa de juro.
Neste particular alega o autor que,
- a ré assumiu o sinistro, considerou a mota como perda total e indemnizou-o quanto ao valor de mercado da mota, deduzido do valor do salvado - que o autor optou por manter;
- a lei consagra o princípio de que a seguradora, "no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte", tem de apresentar ao sinistrado uma "proposta razoável de indemnização";
- o que pretende salvaguardar os legítimos direitos das vítimas de acidentes de viação, indemnizando-as tão breve quanto possível, de preferência extrajudicialmente, para o que se impõe às seguradoras uma postura activa e verdadeiramente colaborante, sujeitando-as a sanções cíveis (artigo 38.º a 40.º do Decreto-Lei 291/2007) quando não atuarem em conformidade com o que lhes é exigível;
- nunca a Ré formalizou qualquer proposta de indemnização, como lhe competia fazer, o que foi assumido pela testemunha CC, que, curiosamente, refere que apresentaram propostas verbalmente, sempre, sem indicar o valor das mesmas;
- cabia à ré não só formalizar, por escrito, a assunção de responsabilidade (e em que medida), mas também a apresentação, por escrito, de proposta razoável, o que não fez e não pode, por isso, ser beneficiada por ter uma postura pouco transparente;
- a ré ao não assumir qual o montante proposto (opção estratégica!) deverá ser condenada no dobro da taxa de juro sobre a totalidade da condenação - caso informasse o Tribunal do valor proposto seria condenada, apenas, na diferença entre o montante oferecido e o montante fixado pelo Tribunal de acordo com o acima citado inciso normativo.
A este propósito expendeu-se na decisão recorrida pela forma seguinte: “Finalmente, o A. pede, sobre a quantia global atribuída, juros calculados ao dobro da
taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento, acrescidos da indemnização do art. 40º do DL n.º 291/2007, de 21/08.
Por outro lado, o A. pede a aplicação das sanções previstas nos arts. 38º, n.º 3 e 39º, n.º 2 e 40º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, de 21/08.
Dados os factos provados e não provados, verifica-se que nenhuma negligência se provou em relação à R. na condução do processo extrajudicial de tentativa de conciliação, tendo diligenciado para o efeito (facto 43º), apesar de ter tido dúvidas quanto à responsabilidade e à incapacidade. Razão pela qual os juros a atribuir serão fixados apenas à taxa legal, sem direito a qualquer outra indemnização.
A este propósito, dispõem,
- o artigo 36.° do Decreto Lei 291/2007, que,
"1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:
e) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico;
(...)
5 - A decisão final da empresa de seguros relativa à situação descrita no número anterior deve ser comunicada, por escrito ou por documento electrónico, ao tomador do seguro ou ao segurado, no prazo de dois dias úteis após a apresentação por estes das informações aí mencionadas";
- O artigo 37.° que "- Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro e que envolva danos corporais, a empresa de seguros deve, relativamente à regularização dos danos corporais:
- 1 alínea c) "comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 45 dias, a contar da data do pedido de indemnização, caso tenha entretanto sido emitido o relatório de alta clínica e o dano seja totalmente quantificável, informando daquele facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico;
- 2 alínea "sempre que, no prazo previsto na alínea c) do número anterior, não seja emitido o relatório de alta clínica ou o dano não seja totalmente quantificável:
b) se a proposta prevista na alínea anterior tiver sido aceite, a empresa de seguros deve efectuar a assunção da responsabilidade consolidada no prazo de 15 dias a contar da data do conhecimento pela empresa de seguros do relatório de alta clínica, ou da data a partir da qual o dano deva considerar-se como totalmente quantificável, se posterior";
- o artigo 38.° que,
"1 - A posição prevista na alínea e) do n.° 1 ou no n.° 5 do artigo 36.° consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte.
2 - Em caso de incumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas no número anterior, quando revistam a forma dele constante, são devidos juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal ou, em alternativa, sobre o montante da indemnização proposto para atém do prazo pela empresa de seguros, que seja aceite pelo lesado, e a partir do fim desse prazo.
3 - Se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos nas disposições identificadas no n." 1 até à data da decisão judicial ou até à data estabelecida na decisão judicial.
4 - Para efeitos do disposto no presente artigo, entende-se por proposta razoável aquela que não gere um desequilíbrio significativo em desfavor do lesado";
- o artigo 39.71 - reportado sinistros que envolvam danos corporais - que, "a posição prevista na alínea c) do n.° 1 ou na alínea b) do n.° 2 do artigo 37.° consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte";
- o artigo 40.°/2 que, "em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas nos n.°s 1 dos artigos 38.° e 39.°, quando revistam a forma constante do número anterior, para além dos juros devidos a partir do 1dia de atraso sobre o montante previsto no n.° 2 do artigo anterior, esta constitui-se devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso";
Obviamente que, se como bem refere o autor, o que aqui se pretende é salvaguardar os legítimos direitos das vítimas de acidentes de viação, indemnizando-as tão breve quanto possível, de preferência extrajudicialmente, para o que se impõe às seguradoras uma postura activa e verdadeiramente colaborante, sujeitando-as a sanções cíveis, quando não atuarem em conformidade com o que lhes é exigível, então, manifestamente, que no caso não se verificam os pressupostos de que dependem a procedência da sua pretensão.
Com efeito.
Como vimos a ré indemnizou o autor pelo valor do motociclo e adiantou-lhe os valores de € 4.000,00 por conta das perdas salariais e € 10.000,00, por conta da indemnização pela perda da capacidade de ganho.
O que não significa, como pretende o autor que haja “assumido o sinistro”, donde não se verifica a previsão legal que invoca “no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte", a seguradora ter de apresentar ao sinistrado uma "proposta razoável de indemnização".
Proposta que não apresentou, em termos formais e as verbalmente apresentadas, não indicavam o valor.
Mas daqui até se poder qualificar a postura da ré como pouco transparente – como faz – o autor – vai uma longa distância.
Como nenhum sentido faz no caso concreto, concluir – como faz o autor -que se não pode beneficiar, a opção estratégica, do infractor.
Improcede, pois este segmento do recurso.
II. 3. 4. 7. Juros a partir da citação.
No seguimento do que entende o autor, a propósito do ponto antecedente, que a ré deve ser condenada no dobro da taxa de juros desde a citação uma vez que apesar de ter assumido responsabilidade no acidente nunca formalizou qualquer proposta de indemnização, invocando o disposto no n.º 3 do artigo 38.º do referido Decreto Lei 291/2007, “se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos”.
Defende o autor, a ré ao não assumir qual o montante proposto deve ser condenada no dobro da taxa de juro sobre a totalidade da condenação desde a citação – isto não obstante, afirmar que entende os motivos que levaram a decisão recorrida a condenar na indemnização de € 40.000,00, pelos danos não patrimoniais, com juros apenas desde a data da prolação da sentença (decisão atualizadora).
Isto porque, a condenação no dobro da taxa de juro nem deveria ser fixada desde a citação, mas sim, desde a data em que a proposta devia ter sido apresentada (obviamente em momento anterior) - assim, apesar de ter peticionado desde a citação, o que a lei determina era que os juros se contabilizassem em dobro desde a data em que a proposta razoável devia ter sido apresentada, não podendo, contudo, o Tribunal ir além do pedido, mas deveria ter fixado os juros em dobro desde a citação, pois que, fixando-os desde a prolação da sentença é retirar o efeito útil à norma acima referida.
A este propósito, expendeu-se na decisão recorrida, pela forma seguinte: “Já se suscitou a questão de saber se os juros moratórios no que respeita aos danos
não patrimoniais são devidos desde a citação ou desde a data da sentença.
Entendemos que, quanto ao montante indemnizatório por danos não patrimoniais, os juros moratórios são devidos desde a data sentença, uma vez que na fixação da indemnização, por aquele tipo de danos já se teve em conta a desvalorização da moeda e a actualização do montante à data da sentença (cfr. neste sentido, o Ac. da RC de 14/03/89, CJ, Tomo II, pp. 42 e 43 e o Ac. do STJ de 02/11/85, CJSTJ, Tomo III, pág. 220 e ainda a Jurisprudência do STJ n.º 4/2002, de 09/05/2002, publicada no DR I-Série-A, n.º 146, de 27/06/2002, que fixa a seguinte jurisprudência: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.”; em sentido contrário, ou seja, de que os juros se contam desde a citação, cfr. o Ac. do STJ de 18/03/97, CJSTJ, Tomo I, pág. 163).
Assim, no que concerne aos danos patrimoniais tem o A. direito a juros legais vincendos a contar desde a data de citação e até efectivo e integral pagamento, à taxa de 4% ao ano até efectivo e integral pagamento (Portaria n.o 291/2003, de 08/04; e arts. 559º, 804º e 805º, todos do CC).
E no que concerne aos danos não patrimoniais, os juros de mora vincendos serão devidos desde a presente decisão e até efectivo e integral pagamento, à taxa de 4% ao ano (Portaria n.º 291/2003, de 08/04, e arts. 559º, 804º e 805º, do CC)”.
Uma vez que o autor bem compreende a razão de ser da fixação do momento da sentença e que se não verifica o invocado pressuposto da fixação, de juros, a partir, do momento da citação - dependente da procedência do segmento anterior deste recurso - está, assim, também, neste ponto o mesmo votado ao insucesso.
III. Sumário – artigo 663.º/7 CPCivil.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso principal e ao recurso subordinado, em função do que se altera o decidido sob as alíneas a) e b) da decisão recorrida nos seguintes termos:
- condenando-se a ré a pagar ao autor,
a) a título de danos patrimoniais a quantia global de € 16.120,19 - valor obtido após a compensação que se efectua (pelos valores já recebidos) da condenação global em € 21.215,25 – acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
b) a título de dano pela perda da capacidade de ganho, a quantia global de € 210.000,00 - valor obtido após a compensação que se efectua (pelos valores já recebidos) da condenação em € 220.000,00 – acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Dada a constatada desconformidade entre os rendimentos do trabalho, alegadamente auferidos e, os declarados para efeitos de IRS, para os efeitos tidos por convenientes, transitado, entregue certidão ao MP.
Custas por ambas as partres, na proporção do decaimento, em casa um dos recursos, que se fixa, respectivamente, no principal e no subordinado, para autor e ré em 8/10 e 2/10 e 1/10 e 9/10.
Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.
Porto, 12/01/2023
Ernesto Nascimento
Carlos Portela
António Paulo Vasconcelos