AUTORIDADE DE CASO JULGADO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Sumário

- Ofende a autoridade de caso julgado e a segurança jurídica que lhe subjaz, a decisão que no mesmo processo, embora em incidentes distintos, decida em termos diversos a mesma relação jurídica material.
- Ofende a autoridade de caso julgado a decisão que indefere liminarmente a exoneração do passivo restante por considerar indiciada a existência de culpa da devedora no agravamento da situação de insolvência, depois de no mesmo processo e no conhecimento dos mesmos factos, ter sido proferida decisão a julgar de fortuita a insolvência, tendo esta primeira decisão transitado em julgado.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação 1208/21.0T8STR.E1

2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

Em 07/05/2021 (…) veio apresentar-se à insolvência com pedido de exoneração do passivo restante.

Colhe-se dos autos:

1 - Por sentença de 19/05/2021 foi declarada a sua insolvência, que teve em conta a seguinte factualidade:

“1. (…) nasceu em 03-01-1967 e é natural da freguesia de (…), concelho de Salvaterra de Magos.

2. A requerente é divorciada, sendo o agregado composto por si.

3. A requerente aufere o Salário Mínimo Nacional, sendo que atualmente se encontra de baixa médica.

4. A requerente não é proprietária de qualquer bem imóvel.

5. A requerente assume ser devedora de créditos no montante de € 75.818,28.”

Mais se consignou que:

“IV – Do Incidente de Qualificação da Insolvência

Na medida em que os autos não dispõem de elementos que justifiquem a abertura deste incidente, com carácter pleno ou limitado, designadamente com vista à formulação de um juízo de culpabilidade da apresentante na situação de insolvência, nada há a ordenar nos termos do artigo 36.º, alínea i), do CIRE.”

2 - Em 25/06/2021 foi apresentado Relatório pelo Administrador da Insolvência, do qual consta:

“II. Das causas da insolvência.

A insolvente e o então marido contraíram empréstimos imobiliários, junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…).

Estes empréstimos destinaram-se à aquisição do prédio descrito na CRP de Benavente sob o n.º (…), freguesia de Benavente, artigo (…), urbano.

Os empréstimos foram incumpridos e o prédio acabou por ser vendido a terceiros no âmbito do processo n.º 1750/08.9TBBNV, que correu termos no juízo de execução do Entroncamento.

A venda não foi suficiente para o pagamento das responsabilidades pelo que foi penhorado parte do vencimento da devedora.

Foram efetuadas buscas, mas não foram encontrados quaisquer bens, com registo a favor da insolvente.

A devedora, não possuí bens suscetíveis de apreensão, para a cobertura de custas e demais despesas do processo.

Assim deve o processo encerrar, nos termos e para os efeitos do disposto artigos 232.º e seguintes do CIRE, sem prejuízo da apreciação do pedido de exoneração do passivo restante.

(…)

A insolvente trabalha por conta de outrem auferindo o vencimento base de € 675,00.

Vive sozinha em casa arrendada, cujo valor da renda mensal é € 300,00.

(…)

Não se conhecendo nenhum motivo que possa conduzir ao indeferimento liminar, entende o Administrador da insolvência que deve ser proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante.

Face à situação pessoal e patrimonial da devedora, nomeadamente a idade, os rendimentos auferidos e as despesas normais a suportar, é razoável fixar para o seu sustento, o valor de um salário mínimo nacional.

A parte que exceda este montante, será objeto de cessão e entregue a fiduciário.

(…)

Perante a inexistência de bens ou direitos suscetíveis de apreensão, propõe-se o encerramento do processo, nos termos dos artigos 232.º e seguintes do CIRE, sem prejuízo da apreciação do pedido de exoneração do passivo restante.”

3 - Notificada do Relatório veio a credora reclamante Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, pronunciar-se, em 08/07/2021, informando que:

Vota desfavoravelmente a proposta de encerramento do processo, porquanto, existe um direito de 1/3 de um imóvel (artigo …, Secção …, da freguesia de …), que foi transmitido em 17 de Maio de 2018 por doação, a favor dos filhos da Devedora Insolvente e que será objeto de impugnação pauliana por parte da reclamante, em ação futura que se encontra a preparar, “ainda que o ato de transmissão de propriedade objeto daquela, não possa ser resolvido em benefício da massa insolvente, porquanto encontram-se esgotados os prazos previstos no disposto no artigo 120.º e seguintes do CIRE”.

Requerendo por isso a apreensão da expectativa de aquisição do direito sobre o prédio em causa, para ulteriores termos de liquidação.

E, quanto à exoneração do passivo restante pronuncia-se, por ora, pela rejeição liminar do pedido de exoneração do passivo restante deduzido pela devedora até que esteja concluída a investigação patrimonial do estado do património identificado no documento que juntou, podendo vir a concluir-se ter havido deliberada atuação de dissipação, em proveito próprio, com o fito de prejudicar os credores.

4 - O documento que refere, junto em 08/07/2021, emitido pela Alta Autoridade Tributária e Aduaneira, atribui ao imóvel em questão o valor patrimonial atual de € 54,89.

5 - Em 12/07/2021 a credora Caixa de Crédito veio comprovar ter intentado a referida ação.

6 - Foi de novo ouvido o Senhor administrador da Insolvência, que assim expôs:

“A doação foi efetuada em 17/05/2018.

O processo de insolvência teve início em 7/05/2021, pelo que está ultrapassado o prazo mencionado no n.º 1 do artigo 120.º do CIRE, não sendo assim possível de tal ser atacada pela resolução.

Citando o Ac. STJ de 17/12/2019, proc. n.º 1542/13.3TBMGR:

“1. Dado que a procedência da impugnação pauliana não tem como consequência a extinção do efeito translativo da venda, o credor impugnante executa os bens, alvo da impugnação, no património do terceiro adquirente.

2. Assim, não regressando os bens vendidos ao património do alienante, posteriormente declarado insolvente, a impugnação pauliana da respetiva venda não aproveita aos demais credores do insolvente. Por isso, o artigo 127.º do CIRE determina que aquela ação de impugnação pauliana não é apensa aos autos da insolvência do devedor alienante.

3. Tratando-se, assim, de bens de terceiro, não pode o administrador da insolvência (que não procedeu à resolução em benefício da massa) apreender esses bens para a massa insolvente”.

A procedência da impugnação pauliana intentada pela Caixa de Crédito Agrícola, não tem como consequência a extinção da doação celebrada em 17/05/2018.

A procedência da impugnação pauliana não tem como consequência, o retorno do direito doado à esfera patrimonial da insolvente.

Então tal direito (1/3 indiviso do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos sob o n.º … (freguesia de …) e na matriz artigo (…), secção n.º … (parte)) não pode ser objeto de apreensão no processo de insolvência.

Dessa forma mantém-se a situação descrita no relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, i.e. o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente (artigo 232.º, n.º 2, do CIRE e artigo 230.º, n.º 1, d), do CIRE).”

7Por sentença de 04/01/2022 foi pela Mmª Juíza decidido:

“Concorda-se na íntegra com o explanado pelo Sr. AI.

Com efeito, atenta a data do negócio jurídico em causa, já decorreram os prazos legalmente previstos para resolução de tal negócio, única forma de poder fazer reverter o bem doado para a massa insolvente, uma vez que, a ação de impugnação pauliana intentada pela referida credora não terá tal efeito jurídico, conforme se pode ler no já citado ac. do STJ de 17-12-2019, proc. n.º 1542/13.3TBMGR.

Acresce que, não foram apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente.

Pelo exposto, nos termos dos artigos 230.º, n.º 1, alínea d) e 232.º, n.º 2, ambos do CIRE, declaro encerrado por insuficiência da massa insolvente o presente processo.

O encerramento do processo, tendo em conta a exoneração do passivo restante, tem o efeito previsto no artigo 233.º, n.º 1, alínea b), do CIRE, de fazer cessar as atribuições do Sr. Administrador da Insolvência.

Em conformidade com o disposto no artigo 233.º, n.º 6, do CIRE, qualifico como fortuita a insolvência.”

8 - Foi interposto recurso desta sentença, tendo este Tribunal da Relação confirmado a mesma, assim mantendo a qualificação da insolvência como fortuita.

9 – Notificada a insolvente para, querendo, se pronunciar quanto ao requerimento da credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, na parte em que esta credora requereu o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, veio esta, por requerimento de 16/03/2022 alegar, em suma:

“1. O pedido de exoneração do passivo restante só deve ser objeto de indeferimento liminar se forem verificadas as condições predispostas nas alíneas do artigo 238.º do CIRE;

2. O que, no caso concreto, não se verifica;

3. A Insolvente preenche todos os requisitos legalmente necessários para que lhe seja concedida a exoneração, tendo já, em sede de Petição Inicial declarado que se dispõe a observar todas as condições legalmente exigidas para a concessão efetiva da dita exoneração;

4. Atentos os elementos enviados aos autos, bem como todas as razões já invocadas nos Requerimentos antecedentes, salvo melhor entendimento, a Insolvente é merecedora de ter uma nova oportunidade;

5. Em nenhum dos elementos trazidos aos presentes autos se pode considerar que a Insolvente tenha agido de forma ilícita, desonesta e de má-fé no que respeita à sua situação económica;

6. Não consideramos que exista no processo elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência e culpa da Insolvente na criação ou agravamento da situação de insolvência;

7. Salvo o devido respeito, outra conclusão não pode restar da chamada investigação patrimonial do estado do património da Insolvente que não seja a de que a Insolvente não agiu de má-fé nem tão pouco dissipou o seu património, em proveito próprio, com o intuito de prejudicar os credores;

8. Mais uma vez se refere que tendo a doação do imóvel em questão sido efetuada a 17.05.2018 e tendo o processo de insolvência início em 07.05.2021, está ultrapassado o prazo mencionado no n.º 1 do artigo 120.º do CIRE, não sendo possível a resolução deste negócio jurídico;

9. Pelo que, não existe forma de fazer reverter o bem doado para a massa insolvente;

10. Atento o exposto, o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante – tendo como finalidade libertar o devedor do pagamento do passivo restante que não seja pago no âmbito do processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste – segue exatamente aquilo que é espectável e transparente face ao comportamento da Insolvente.

Pelo que deve o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pela insolvente ser aceite.”

10 – Notificada de novo, agora para atualizar a informação sobre a sua situação pessoal e económica, veio a Insolvente alegar e comprovar documentalmente que:

1. Quanto à sua situação pessoal, a Insolvente informa o douto Tribunal que não houve quaisquer alterações, mantendo-se a composição do seu agregado familiar.

2. Referente à sua situação laboral, a Insolvente continua a laborar para a mesma empresa, todavia, encontra-se atualmente de baixa, conforme documentos que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos como Docs. 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7.

3. Quanto à sua situação económica, as despesas da Insolvente são exatamente as mesmas, não tendo existido qualquer alteração, juntando-se para o efeito o IRS referente ao ano de 2021 como Doc. 8, que se dá por integralmente reproduzido.

11 – Foi pedido acesso eletrónico ao processo de impugnação pauliana e certidão do registo predial do prédio rústico.

12 – Em 10/11/2022 foi proferida decisão final de indeferimento liminar da exoneração de passivo restante.

Inconformada com tal decisão veio a Insolvente recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:

I- O presente recurso visa a impugnação do despacho proferido pelo Tribunal a quo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela ora Recorrente, (…);

II- Face à prova produzida e dos documentos junto aos autos, resulta evidente a injustiça do despacho de que se recorre, com a qual não pode a Apelante concordar;

III- No entender da Apelante, salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao ter proferido despacho de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, considerando a Apelante existir uma errónea interpretação/contextualização dos factos/ elementos que já constam no processo, que levaram consequentemente a uma decisão injusta e contrária à lei;

IV- Tivesse o Tribunal a quo feito uma correta e imparcial análise crítica dos factos e da documentação junta aos autos, teria concluído que a realidade fáctica, tal como descrita pela Apelante, corresponde à verdade, o que levaria a que o despacho por si proferido tivesse sido em sentido diverso;

V- Resulta evidente, pela singela leitura do despacho de que ora se recorre, que o Tribunal a quo, quanto aos mesmos factos, se pronunciou em sentido divergente relativamente às Sentenças que já havia proferido no âmbito do presente processo;

VI- Da Sentença de declaração de insolvência vs Sentença de encerramento vs Despacho de indeferimento respeitante ao incidente de exoneração do passivo restante:

VII- Por sentença proferida em 19/05/2021, transitada em julgado, com a referência citius 86831623, entendeu o Tribunal a quo declarar a insolvência da ora Requerente (…);

VIII- Na referida sentença entendeu ainda o Tribunal a quo não abrir incidente de qualificação de insolvência, por os autos não disporem de elementos que justificassem tal incidente de qualificação;

IX- Da sentença proferida em 19/05/2021 pelo Tribunal a quo, duas conclusões são manifestas: (1) a ora Recorrente foi declarada insolvente por impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas face aos seus parcos rendimentos; (2) não foi aberto incidente de qualificação de insolvência por os autos não disporem de elementos que justificassem tal conclusão;

X- Porém, entendeu o Tribunal a quo, no despacho de que ora se recorre, com data de certificação citius de 11/11/2022, que existem elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, baseando-se no facto de a ora Recorrente ter doado 1/3 indiviso do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos sob o n.º (…) e inscrito na matriz sob o n.º (…), secção (…);

XI- Questiona-se, em virtude das sentenças/despachos proferidos e respetivas datas: (1) Estará o Tribunal a quo em tempo para levantar tal questão, isto é, suscitar a culpabilidade da Requerente na sua situação de insolvência? (2) Será o incidente de exoneração do passivo restante o incidente apto para tal qualificação? Com o devido respeito, assim não cremos;

XII- Parece, salvo o devido respeito e melhor entendimento, que o Tribunal a quo pretende quedar-se dos conceitos jurídicos associados ao mecanismo processual de (incidente) de qualificação de insolvência para atribuir carácter culposo à conduta da Recorrente de forma a justificar o seu entendimento quanto ao indeferimento do incidente de exoneração do passivo restante;

XIII- Com tal entendimento do Tribunal a quo não pode a Apelante concordar por várias ordens de razão;

XIV- Entende a Apelante que o mecanismo processual para qualificar a insolvência como culposa é, sem margem para dúvidas, o incidente de qualificação de insolvência, nas suas várias modalidades, conforme previstas nos artigos 185.º a 191.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante apenas CIRE);

XV- O incidente de qualificação de insolvência, pleno ou limitado, é um procedimento declarativo do processo de insolvência destinado a apurar se as razões que conduziram o devedor à situação de insolvência foram meramente fortuitas (caso em que o Tribunal qualificará a insolvência como fortuita, conforme, aliás, fez), ou se, pelo contrário, foram culposas, caso em que o Tribunal qualificará a insolvência como culposa;

XVI- Do exposto resulta claro qual o procedimento a adotar para a qualificação da insolvência como culposa ou como fortuita e tal procedimento não é o incidente de exoneração do passivo restante, conforme pretende, com o devido respeito, erradamente, o Tribunal a quo fazer;

XVII- Tal mecanismo (o incidente de qualificação de insolvência), independentemente das suas modalidades, tem pressupostos processuais, nomeadamente temporais, que não podem ser olvidados pelo julgador. Basta uma breve leitura dos artigos 185.º a 191.º para concluir tal afirmação;

XVIII- Deve atender-se, por exemplo, ao disposto no artigo 187.º do CIRE, que no entender da Recorrente é o que releva nos presentes autos, considerando que o Tribunal a quo recorreu ao disposto no artigo 186.º, sob a epígrafe “Insolvência Culposa”, para justificar o despacho de indeferimento do passivo restante da insolvente;

XIX- A ora Recorrente já havia sido declarada insolvente (por sentença proferida pelo Tribunal a quo em 19/05/2021) e o processo já havia sido encerrado (por sentença proferida pelo Tribunal a quo em 04/01/2021);

XX- Não se verificando nenhuma das situações previstas na parte final do artigo 187.º do CIRE, dúvidas não podem subsistir quanto à impossibilidade temporal/processual de abrir o incidente de qualificação de insolvência;

XXI- Excluem-se também as situações previstas nos artigos 188.º a 191.º do CIRE, porquanto os prazos ali previstos não estariam também eles, por mera hipótese de raciocínio, cumpridos pelo Tribunal a quo para uma válida e correta qualificação de insolvência;

XXII- Tal significa dizer que o mecanismo processual utilizado pelo Tribunal a quo para atribuir carácter culposo à sua insolvência não é o processualmente admissível, acrescendo ainda o facto que qualquer uma das modalidades do incidente de qualificação de insolvência seriam, à data do despacho de que ora se recorre, extemporâneas;

XXIII- Entende a Recorrente que a qualificação de insolvência como culposa não poderá ser tida no despacho de exoneração do passivo restante, por tal não ser o despacho admissível para tal qualificação, por violação das normas previstas nos artigos 186.º e seguintes do CIRE, o que desde já se alega para os devidos e legais efeitos;

XXIV- Entende a Recorrente que o Tribunal a quo se pronunciou em sentido divergente relativamente às Sentenças que já havia proferido no âmbito do presente processo;

XXV- Por sentença proferida pelo Tribunal a quo em 19/05/2021, transitada em julgado, com a referência citius 86831623, o Tribunal a quo entendeu que “os autos não dispõem de elementos que justifiquem a abertura deste incidente (incidente de qualificação de insolvência) com carácter pleno ou limitado, designadamente com vista à formulação de um juízo de culpabilidade da apresentante na situação de insolvência, nada há a ordenar nos termos no artigo 36.º, i), do CIRE”;

XXVI- Em sentença proferida pelo Tribunal a quo em 04/01/2022, no qual declara o encerramento do processo, o Tribunal a quo qualifica como fortuita a insolvência”;

XXVII- Em despacho proferido pelo Tribunal a quo em 11/11/2022 o Tribunal a quo entende que “a factualidade apurada permite considerar indiciada a existência de culpa da devedora no agravamento da situação de insolvência, nos termos 186.º do CIRE”, remetendo, para o efeito, para o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE;

XXVIII- Impõe-se questionar: em que momento do processo, que correu os seus termos, o Tribunal a quo tomou conhecimento da doação realizada pela ora Recorrente de 1/3 indiviso do prédio já supra melhor identificado?

XXIX- O Tribunal a quo tomou, pela primeira vez, conhecimento da dita doação [que no entender do Tribunal a quo fundamenta a sua decisão de indeferimento do incidente de exoneração do passivo restante] em 08/07/2021, com a apresentação de um Requerimento apresentado pela Credora Caixa Agrícola Mútuo de (…), com a referência citius 7873170;

XXX- Se de facto a primeira vez que tal informação chegou aos autos foi em 08/07/2021, por que motivo o Tribunal a quo considerou e assim decidiu em sentença proferida 04/01/2022, transitada em julgado, que a insolvência da Apelante é fortuita, se já tinha àquela data conhecimento do (mesmo) facto de que ora se socorre para considerar a existência de culpa da devedora no agravamento da situação de insolvência?

XXXI- Com tal contradição de decisões não pode a Apelante concordar, sob pena de frustração do ordenamento jurídico quando ao efeito das decisões transitadas em julgado;

XXXII- Em virtude de sentença proferida pelo Tribunal a quo, em 04/01/2022, transitada em julgado, deverá a insolvência considerar-se fortuita, o que se requer para os devidos e legais efeitos;

XXXIII- Do prédio doado e da indivisibilidade dos prédios rústicos:

XXXIV- Resulta do despacho de que ora se recorre e da demais informação junta aos presentes autos, que o prédio que foi alvo de doação por parte da ora Requerente é 1/3 indiviso do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos sob o n.º (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…), secção n.º (…);

XXXV- Tal factualidade não é de somenos importância porquanto bem saberá a credora que a regra que subjaz à divisibilidade dos prédios rústicos não é a mesma que subjaz às dos prédios urbanos;

XXXVI- O mesmo significa dizer que, ainda que a ora Recorrente não tivesse doado o dito prédio aos seus filhos e o mesmo integrasse a massa insolvente, a credora não conseguiria ver, ainda assim, o seu crédito satisfeito;

XXXVII- Tal conclusão não se deve apenas ao valor do prédio rústico alvo da doação mas também à impossibilidade de divisibilidade do prédio rústico alvo de doação;

XXXVIII- Caso 1/3 daquele prédio integrasse a massa insolvente, o que faria a credora com o mesmo? Poderia desanexá-lo/separá-lo? Poderia vendê-lo para que o valor da venda satisfizesse o seu crédito? Assim não cremos possível.

XXXIX- Resulta do exposto no artigo 209.º do Código Civil (doravante apenas CC) que: “São divisíveis as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da sua substância, diminuição do valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”.

XL- No caso dos prédios rústicos, com exceção das situações que são disciplinadas por normas especiais, como por exemplo, no caso de prédios REN e RAN, a divisão física de prédio rústico, em que se pretenda manter o destino rústico do prédio, só pode acontecer: (1) Com respeito pelo valor da área estabelecida como unidade de cultura para cada zona do território continental; (2) Se os novos prédios não ficaram: i) com largura inferior a 20 metros; ii) Encravados ou onerados com servidão; iii) com estremas mais irregulares do que as do prédio original;

XLI- (1) Quanto ao valor estabelecido como unidade de cultura: Para o concelho de Salvaterra de Magos, onde se situa implantado o prédio rústico alvo de doação, que pertence à NUT III da Lezíria do Tejo – vide Anexo II da Portaria 19/2019, de 15 de Janeiro, a mesma é de 2,5 hectares para os terrenos de regadio e 48 hectares para os terrenos de sequeiro;

XLII- Considerando que o prédio rústico doado é composto por terreno de regadio e terreno de sequeiro - conforme se pode verificar pela Caderneta Predial Rústica – com área total de 0,688000 hectares, dúvidas não podem restar que 1/3 do referido prédio nunca poderá ter os valores mínimos correspondentes às unidades de cultura para a zona do território continental em causa, razão pela qual será forçoso concluir que o mesmo nunca poderá ser dividido;

XLIII- (2) Forçoso será também de concluir que existindo uma separação do referido prédio, o mesmo ficaria, sem margem para dúvidas, onerado com servidão de passagem, ou encravado com o restante terreno pertencente aos demais comproprietários, razão pela qual, também por este fundamento, o prédio nunca poderá ser dividido;

XLIV- Tais conclusões não podem ser olvidadas para uma justa solução do caso em apreço. É que, na verdade, a dita doação em nada prejudicou o crédito da Credora Caixa Agrícola Mútuo de (…), porquanto o mesmo não teria o condão, pelos fundamentos ora expostos, de satisfazer o seu crédito;

XLV- Fará sentido não exonerar a ora Recorrente do passivo restante, conforme requereu, por esta doação ter sido realizada aos seus filhos, ainda que nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência? Terá sido fundamento para esta doação a intenção de dissipar património para que os credores não vissem os seus créditos satisfeitos?

Assim não cremos que tenha sido;

XLVI- Conclua-se: trata-se de um prédio rústico, indivisível, em regime de compropriedade com demais familiares, com dimensões que não permitem a sua divisibilidade e com valor patrimonial irrisório (a parte da Recorrente corresponde apenas a € 13,72), razão pela qual dever-se-á considerar, como impõe uma justa decisão, que a ora Recorrente não o doou em prejuízo dos seus credores e ainda menos que a sua atuação foi dolosa ou com culpa grave, o que desde já se requer para os devidos e legais efeitos;

XLVII- Do valor do prédio doado e da culpa da devedora:

XLVIII- Alegou a credora Caixa Agrícola Mútuo de (…), nas suas alegações datadas de 25/01/2022, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora, com a referência citius n.º 8382567, no qual, sem procedência, tentou demonstrar que a referida credora tinha uma expectativa de aquisição do direito de propriedade de 1/3 indiviso do referido prédio rústico, que este prédio “tem um valor de mercado não inferior a € 21,700.00 (vinte e um mil e setecentos euros)”.

XLIX- Não compreende a Apelante como pode aquela credora concluir tal facto, bastando, para conclusão contrária, atentar nas informações constantes na Caderneta Predial Rústica do referido prédio: Valor Patrimonial Atual: € 54,89;

L- Não se compreende com base em que fundamento a credora Caixa Agrícola Mútuo de (…) alegou tal facto, porquanto o mesmo não resulta de qualquer documento junto aos autos, nem tampouco de qualquer avaliação requerida;

LI- Se é verdade que tal doação existiu, a verdade é que a Recorrente apenas doou a parte do referido prédio que lhe pertencia, o que significa dizer, por outras palavras, que doou parte do prédio rústico, com valor patrimonial de € 13,72;

LII- A questão que se impõe, face ao valor patrimonial de 1/3 indiviso do prédio doado pela Requerente é se tal doação foi feita de forma dolosa ou com culpa grave.

LIII- Nos termos do artigo 253.º do Código Civil: “Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.”;

LIV- Nos termos do artigo 14.º do Código Penal:

“1- Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar.

2- Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.

3- Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização”;

LV- Qualquer uma das noções de dolo supra expostas têm um elemento subjetivo em comum: a intenção, pois é esse o elemento que deve encontrar-se verificado para que um comportamento seja considerado doloso;

LVI- Não se compreende, no despacho de que ora se recorre, que factos integram a intenção dolosa da Recorrente em dissipar o seu património;

LVII- É verdade que o processo de insolvência da Recorrente e o pedido de exoneração do pedido restante teve início no dia 07/05/2021 Também corresponde à verdade que a doação de 1/3 do prédio indiviso da ora Recorrente aos seus filhos ocorreu no dia 17/05/2018.

LVIII- Note-se que, se a Recorrente tivesse iniciado o seu processo de insolvência no dia 18/05/2021 tal questão não se colocaria, porquanto o prazo de três anos anteriores ao processo de insolvência já teriam decorrido;

LIX- A questão que se coloca é exatamente essa: Fará sentido considerar que, por (APENAS) 10 dias, a Recorrente tenha, dolosamente, dissipado o seu património? Assim não cremos;

LX- E se tais argumentos não fossem suficientes para afastar um entendimento de comportamento doloso por parte da Recorrente, atente-se, mais uma vez, ao valor do bem doado (quanto a 1/3 do indiviso prédio): € 13,72!

LXI- Correria um homem médio o risco, de forma dolosa, de não ver o seu incidente de exoneração do passivo restante deferido por uma doação de 1/3 indiviso de um prédio rústico no valor de € 13,72?

LXII- Tal atuação da Recorrente não é compatível com uma atuação dolosa, pelo que nos afastamos, por completo, do entendimento do Tribunal a quo, pelo que deve considerar-se que a atuação da Recorrente não foi dolosa, o que desde já se requer para os devidos e legais efeitos;

LXIII- Importa considerar o conceito de culpa e as suas legais consequências;

LXIV- Dúvidas não podem restar que o entendimento do Tribunal a quo de a Recorrente ter atuado de forma dolosa ou com culpa grave terá o condão de não lhe permitir a exoneração do seu passivo restante;

LXV- O mesmo significa dizer que essa não exoneração é uma consequência, uma penalização pela sua alegada conduta dolosa/com culpa grave;

LXVI- Transpondo outros conceitos jurídicos que fazem parte do nosso ordenamento jurídico, designadamente o conceito de pena previsto no artigo 40.º do Código Penal, é de trazer à colação em que medida a culpa tida no comportamento da Recorrente vai influenciar e dessa feita fazer calcular a sua medida da “pena”/ consequência;

LXVII- Transpondo tal raciocínio para o caso em apreço, importa verificar se a medida da culpa a atribuir ao comportamento da Recorrente ao doar 1/3 do referido prédio indiviso, com valor patrimonial de € 13,72 é proporcional à “pena”/ consequência que tal qualificação irá suscitar;

LXVIII- É que, efetivamente, em consequência de tal doação, no valor irrisório de € 13,72, a Recorrente não verá exonerado um valor superior a € 69.999,85 (sessenta e nove mil novecentos e noventa e nove euros e oitenta e cinco cêntimos);

LXIX- Prevê o n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”;

LXX- Entende a Recorrente que a “pena”/consequência que vai ter pelo seu comportamento é excessivo, face à culpa que teve ao adotar tal comportamento que, conforme supra explanado não pode considerar-se grave;

LXXI- Entende a Recorrente que mal andou o Tribunal a quo ao considerar indiciada a existência da culpa da devedora no agravamento da sua situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º do CIRE;

LXXII- Entende ainda a Recorrente que o Tribunal a quo não fez uma correta análise da factualidade dos autos e por isso, também, salvo melhor e diverso entendimento, considerou, mal, que o património que responde pelas dívidas da insolvente tornou-se mais exíguo, reduzindo a possibilidade dos credores serem ressarcidos.

LXXIII- Razões pelas quais interpõe o presente recurso e considera que o despacho de indeferimento de exoneração do passivo restante deverá ter alterado por outro que, naturalmente e como impõe uma decisão justa, o permita.

A final requer seja alterada a decisão recorrida e deferida liminarmente a exoneração do passivo restante.

Contra-alegou a Recorrida Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L., assim concluindo:

I. O presente recurso interposto pela Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) tem por objeto o douto Despacho de indeferimento da exoneração do passivo restante proferido em 10.11.2022, com a referência eletrónica n.º 91601822, o qual doutamente considerou que no caso dos presentes autos encontra-se preenchida a alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do C.I.R.E.

II. O douto Despacho de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante proferido pelo Tribunal a quo não padece de nenhum dos vícios que a Devedora Insolvente (…) alega.

III. Porquanto o douto Tribunal de Primeira Instância efetuou uma correta apreciação e valoração da matéria de facto e a melhor aplicação de Direito ao caso em concreto, não merecendo, assim, qualquer censura ou reparo!

IV. Senão vejamos, os factos relevantes para a análise do objeto do recurso interposto:

1 – O presente processo de insolvência iniciou-se em 07.05.2021, na sequência da apresentação à insolvência por parte da Devedora Insolvente e ora Reclamante (…).

2 – A Devedora Insolvente e ora Reclamante (…) foi declarada insolvente por sentença de 19.05.2021, transitada em julgado.

3 – Na sentença de declaração de insolvência proferida foi dispensada a realização da assembleia de apreciação do relatório a que alude o artigo 156.º do CIRE, dada a previsível reduzida composição da massa insolvente.

4 – No ponto IV da douta sentença de declaração de insolvência referente ao Incidente de Qualificação da Insolvência foi doutamente decidido que “Na medida em que os autos não dispõem de elementos que justifiquem a abertura deste incidente, com carácter pleno ou limitado, designadamente com vista à formulação de um juízo de culpabilidade da apresentante na situação de insolvência, nada há a ordenar nos termos do artigo 36.º, alínea i), do C.I.R.E.”.

5 – Nos termos do n.º 5 do artigo 36.º do CIRE e uma vez que não se designou data para a realização da assembleia de apreciação do relatório, indicou-se na referida sentença que, a) no prazo de 60 dias contados da presente decisão, deveria o Administrador da Insolvência apresentar relatório sobre as diligências realizadas e o resultada das mesmas – artigo 155.º, do CIRE; b) os credores e o Administrador da Insolvência poderiam pronunciar-se quanto ao pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Requerente na petição inicial no prazo de 70 dias contados da presente decisão, nos termos do disposto no artigo 236.º, n.º 4, do CIRE e c) os credores poderiam pronunciar-se quanto ao relatório apresentado pelo Administrador da Insolvência no prazo de 15 dias contados da respetiva junção.

6 – O pedido de exoneração do passivo restante foi apresentado pela insolvente na petição inicial apresentada em 07.05.2021.

7 – A Devedora Insolvente e ora Reclamante (…) declarou preencher os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas.

8 – Em 17.05.2018, a Devedora Insolvente e ora Reclamante (…) doou aos seus filhos (…) e (…), em comum e partes iguais 1/3 indiviso do prédio rústico, sito em (…), Rua da (…), lugar e freguesia de (…), concelho de Salvaterra de Magos, composto por terreno de cultura arvense de sequeiro, fugueiras, oliveiras, sobreiros, vinha e dependência agrícola, descrito na Conservatória do Registo Predial sob n.º (…), da freguesia de (…), e inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo (…), da Secção (…).

9 – Pela Ap. (…), de 2018.05.18 foi registada a aquisição do 1/3 indiviso do prédio referido a favor de (…) e (…), por doação.

10 – O Senhor Administrador de Insolvência apresentou o relatório nos termos do artigo 155.º do CIRE em 25.06.2021, ato processual com a referência eletrónica n.º 7835143.

11 – Por requerimento de 08.07.2021, com a referência eletrónica n.º 7873170, a Credora Reclamante e ora Recorrida Caixa Agrícola pronunciou-se quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, opondo-se à sua concessão, por entender que no caso dos presentes autos se encontra verificada a factualidade prevista no disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do C.I.R.E., impondo-se, portanto, o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

12 – A Credora Reclamante e ora Recorrida Caixa Agrícola intentou em 09.07.2021 impugnação pauliana, que corre termos sob o nº 589/21.0T8BNV, Comarca de Santarém – Juízo Local Cível de Benavente.

13 – O Administrador da Insolvência reconheceu créditos no montante de € 58.330,27 (cinquenta e oito mil trezentos e trinta euros e vinte e sete cêntimos) à Credora Reclamante e ora Recorrida Caixa Agrícola.

14 – Em 04.01.2022 foi proferido douto despacho de encerramento do processo de insolvência, o qual já transitou em julgado, tendo sido decidido o seguinte:

“Com efeito, atenta a data do negócio jurídico em causa, já decorreram os prazos legalmente previstos para resolução de tal negócio, única forma de poder fazer reverter o bem doado para a massa insolvente, uma vez que, a ação de impugnação pauliana intentada pela referida credora não terá tal efeito jurídico, conforme se pode ler no já citado ac. do STJ de 17-12- 2019, proc. n.º 1542/13.3TBMGR.

Acresce que, não foram apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente.

Pelo exposto, nos termos dos artigos 230.º, n.º 1, alínea d) e 232.º n.º 2, ambos do CIRE, declaro encerrado por insuficiência da massa insolvente o presente processo.

O encerramento do processo, tendo em conta a exoneração do passivo restante, tem o efeito previsto no artigo 233.º, n.º 1, alínea b), do CIRE, de fazer cessar as atribuições do Sr. Administrador da Insolvência.

Em conformidade com o disposto no artigo 233.º, n.º 6, do CIRE, qualifico como fortuita a insolvência.”.

15 – Da proferida decisão de encerramento do processo de insolvência foi autonomizado quanto ao pedido de exoneração do passivo restante o seguinte entendimento do Tribunal a quo:

“Antes de mais, notifique a insolvente para, querendo, no prazo de 10 dias, se pronunciar quanto ao requerimento de 08-07-2021 [7873170] da credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, na parte em que esta credores requer o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.”.

V. Pelo que, bem andou o douto Tribunal de Primeira Instância ao considerar que no caso dos presentes autos de insolvência encontra-se preenchida a alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do C.I.R.E. e alínea d) do n.º 2 e n.º 4 do artigo 186.º do C.I.R.E., e como tal justificador da não concessão do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Devedora Insolvente e ora Recorrente (…).

VI. Assim, bem andou o douto Tribunal de Primeira Instância ao julgar que “ao doar o referido património aos seus filhos, a insolvente retirou esse bem do seu património, transferindo- o para o património dos seus filhos, ou seja, dispôs de bens em proveito de terceiros.

Uma vez que tal património deixou de estar na esfera jurídica da insolvente, sem que a mesma tenha recebido qualquer contrapartida, o património que responde pelas dívidas da insolvente tornou-se mais exíguo, reduzindo a possibilidade dos credores serem ressarcidos.

(…)

Deste modo, ao doar o património indicado aos filhos, a insolvente dispôs do mesmo em proveito de um terceiro, pelo que está preenchida a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

A factualidade apurada permite assim considerar indiciada a existência de culpa da devedora no agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”.

VII. Efetivamente, a Devedora Insolvente e ora Recorrente nas suas alegações de recurso incorre numa série de equívocos, não merecendo qualquer acolhimento nenhum dos argumentos por si aduzidos nas suas alegações. Senão vejamos:

VIII. Vem a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) invocar que “o Tribunal a quo, quanto aos mesmos factos, se pronunciou em sentido divergente relativamente às Sentenças que já havia proferido no âmbito do presente processo”.

IX. Na verdade, a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) confunde e faz confundir os diferentes institutos jurídicos, a saber a qualificação de insolvência e a pronúncia sobre o pedido de exoneração do passivo restante.

X. Não assiste qualquer razão à Devedora Insolvente e ora Recorrente (…), porquanto a decisão judicial proferida no âmbito do Despacho colocado em crise tem por objeto a pronúncia do Tribunal a quo sobre o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Devedora Insolvente (…), tendo, para o efeito, apreciado os factos carreados para os presentes autos de insolvência, acima melhor descritos, e analisado, como aliás se impõe, a verificação no caso sub judice de algum dos fundamentos legais que inviabilizam o seu deferimento liminar, conforme expressamente previstos no artigo 238.º do C.I.R.E..

XI. A verdade é que inexiste qualquer incompatibilidade nas diversas decisões judiciais proferidas nos presentes autos de insolvência.

XII. A nossa Doutrina e Jurisprudência são unânimes ao afirmarem que a exoneração do passivo restante é uma medida que não pode ser encarada como uma via para o Devedor Insolvente se livrar das dívidas sem nada pagar, como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem, mas antes uma medida que o devedor, pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração, fez merecer e justificar.

XIII. Juízo esse que é incompatível com a ocorrência de qualquer um dos comportamentos do Devedor Insolvente expressamente definidos no disposto no artigo 238.º, n.º 1, do C.I.R.E., como sucedeu no caso dos presentes autos.

XIV. Efetivamente, “O prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante pressupõe, além do mais, a retidão do comportamento anterior do insolvente no que respeita à sua situação económica”, conforme douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.03.2010, disponível em www.dgsi.pt.

XV. É inegável que existe uma estreita relação entre a qualificação da insolvência como culposa e os comportamentos do devedor justificadores da não concessão da exoneração do passivo restante enunciados nas alíneas b), d), e) e g) do n.º 1 do referido artigo 238.º do C.I.R.E.

XVI. De resto, a referida alínea e) do artigo 238.º do C.I.R.E., subsumível à conduta da Devedora Insolvente (…), remete expressamente para o artigo 186.º do C.I.R.E. para efeitos de densificação do conceito de “culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência”.

XVII. Contudo, a qualificação da insolvência como culposa só poderá acontecer no âmbito do respetivo incidente.

XVIII. No caso dos presentes autos, o douto Tribunal de Primeira Instância absteve de declarar aberto o incidente de qualificação de insolvência culposa, nos termos do disposto no artigo 36.º, n.º 1, alínea i), do C.I.R.E..

XIX. Sendo que do artigo 36.º, n.º 1, alínea i), do C.I.R.E. decorre a não obrigatoriedade da abertura desse incidente de qualificação da insolvência, que só ocorrerá se, quando da prolação da sentença de declaração de insolvência, o processo já fornecer elementos que justifiquem a sua abertura.

XX. Além do que, como prescreve o disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do C.I.R.E. os elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, necessários à verificação do disposto na referida alínea, poderão ser fornecidos pelos credores ou pelo Senhor Administrador de Insolvência até ao momento da decisão sobre o pedido de exoneração do passivo restante, o que significa que nada impede que os mesmos sejam carreados para os autos após a prolação de sentença de declaração de insolvência, o que, aliás, sucedeu no caso dos presentes autos.

XXI. A verdade é que “O incidente de qualificação da insolvência e a exoneração do passivo restante são temas absolutamente distintos e autónomos, não se exigindo para o indeferimento liminar do pedido de exoneração (nem para a cessação antecipada do período de cessão – artigo 243.º, n.º 1, do CIRE – nem para a decisão final sobre a exoneração – artigo 244.º) que o incidente de qualificação tenha ocorrido com decisão sobre a culpa do devedor”, conforme douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.09.2021, disponível em www.dgsi.pt.

XXII. Porquanto, a douto Despacho que indefere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante limita-se a apreciar in casu a verificação de algum dos factos impeditivos da sua concessão, expressamente previstos pelo Legislador no referido artigo 238.º do C.I.R.E. , sendo que é o próprio Legislador que remete expressamente para o artigo 186.º do C.I.R.E., no âmbito do qual densifica o conceito de “culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência”.

XXIII. A Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) incorre em novo equívoco quando insinua que o Tribunal a quo “utilizou” o incidente de exoneração do passivo restante para se pronunciar sobre a qualificação da insolvência.

XXIV. Porquanto, o douto Tribunal a quo limita-se a apreciar os factos dados como provados nos presentes autos de insolvência e a atribuir-lhes uma valoração jurídica em total consonância com o previsto pelo Legislador no que ao pedido de exoneração do passivo restante diz respeito, que, aliás, é esse o objeto do douto despacho a que a Devedora Insolvente (…) ora recorre.

XXV. O que, em nada se confunde com o instituto da qualificação de insolvência culposa!

XXVI. A Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) incorre em novo equívoco quando refere que o “Tribunal a quo se pronunciou em sentido divergente relativamente às Sentenças que já havia proferido no âmbito do presente processo”.

XXVII. Relativamente à douta sentença de declaração de insolvência da Devedora Insolvente (…) proferida em 19.05.2021, nada ordenou quanto à abertura do incidente de qualificação de insolvência nos termos do disposto no artigo 36.º, n.º 1, alínea i), do C.I.R.E., precisamente por não dispor de elementos que justificassem a abertura do referido incidente de qualificação de insolvência.

XXVIII. No que respeita à decisão de encerramento do presente processo de insolvência proferida em 04.01.2022, com a referência eletrónica n.º 88760789, no âmbito da qual foi decidido o seguinte:

“Com efeito, atenta a data do negócio jurídico em causa, já decorreram os prazos legalmente previstos para resolução de tal negócio, única forma de poder fazer reverter o bem doado para a massa insolvente, uma vez que, a ação de impugnação pauliana intentada pela referida credora não terá tal efeito jurídico, conforme se pode ler no já citado ac. do STJ de 17-12- 2019, proc. n.º 1542/13.3TBMGR.

Acresce que, não foram apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente.

Pelo exposto, nos termos dos artigos 230.º, n.º 1, alínea d) e 232.º, n.º 2, ambos do CIRE, declaro encerrado por insuficiência da massa insolvente o presente processo.

O encerramento do processo, tendo em conta a exoneração do passivo restante, tem o efeito previsto no artigo 233.º, n.º 1, alínea b), do CIRE, de fazer cessar as atribuições do Sr. Administrador da Insolvência.

Em conformidade com o disposto no artigo 233.º, n.º 6, do CIRE, qualifico como fortuita a insolvência.”

XXIX. Veja-se que o enunciado artigo 233.º, n.º 6, do C.I.R.E. dispõe que “Sempre que ocorra o encerramento do processo de insolvência sem que tenha sido aberto incidente de qualificação por aplicação do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 36.º, deve o juiz declarar expressamente na decisão prevista no artigo 230.º o carácter fortuito da insolvência.”.

XXX. Efetivamente, não tendo sido declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência por aplicação do disposto no artigo 36.º, n.º 1, alínea i), do C.I.R.E, como sucedeu no caso sub judice, e ocorrendo o encerramento do presente processo de insolvência, porque não foram apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente, o certo é que o Tribunal a quo deve declarar expressamente o carácter fortuito da insolvência.

XXXI. Pelo que, o Tribunal de Primeira Instância limitou-se a aplicar o regime legal expressamente previsto e definido pelo Legislador no referido artigo 233.º, n.º 6, do C.I.R.E..

XXXII. O que em nada se confunde com os requisitos legais expressamente previstos pelo Legislador que inviabilizam a concessão da exoneração do passivo restante.

XXXIII. Aliás, não houve lugar a qualquer produção de prova e julgamento de factos que in casu levassem a concluir pela declaração de insolvência como fortuita, até porque tais factos inexistem no caso dos presentes autos.

XXXIV. Se assim fosse o Legislador teria expressamente previsto que em caso de declaração de insolvência como fortuita o pedido de exoneração do passivo restante seria sempre deferido, o que seria um perfeito absurdo.

XXXV. Porquanto os institutos são independentes entre si, bem como as respetivas decisões judiciais!

XXXVI. Tanto assim é que o referido artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do C.I.R.E. não prevê como requisito a necessidade de que haja decisão de qualificação de insolvência.

XXXVII. E muito menos previu a obrigatoriedade de que a insolvência tenha sido qualificada como culposa, sendo que se tal assim fosse a condição pretendida pelo Legislador, este teria previsto como requisito a referência a tal decisão, o que claramente não se verifica atento o disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do C.I.R.E..

XXXVIII. A este propósito veja-se, a título de exemplo, o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 12.05.2009, disponível em www.dgsi.pt, nos termos do qual se conclui que “A circunstância de ter ocorrido encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente não é obstáculo a que seja analisado o pedido de exoneração do passivo restante”.

XXXIX. E ainda o doutamente decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.2019, disponível em www.dgsi.pt, quando afirma que “Não existe contradição, nem violação do caso julgado, entre a decisão do indeferimento deste pedido e a decisão de qualificação da insolvência como fortuita”.

XL. Resulta dos factos dados como provados, e acima melhor identificados, que em 17.05.2018, a Devedora Insolvente e ora Reclamante (…) doou aos seus filhos (…) e (…), em comum e partes iguais 1/3 indiviso do prédio rústico, sito em (…), Rua da (…), lugar e freguesia de (…), concelho de Salvaterra de Magos, composto por terreno de cultura arvense de sequeiro, fugueiras, oliveiras, sobreiros, vinha e dependência agrícola, descrito na Conservatória do Registo Predial sob n.º (…), da freguesia de (…), e inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo (…), da Secção (…).

XLI. Invoca a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) que caso “não tivesse doado o dito prédio aos seus filhos e o mesmo integrasse a massa insolvente, a credora não conseguiria ver, ainda assim, o seu crédito satisfeito. E tal conclusão não se deve apenas ao valor do prédio rústico alvo da doação (…), mas também à impossibilidade de divisibilidade do prédio rústico alvo de doação. É que (…), caso 1/3 daquele prédio integrasse a massa insolvente, o que faria a credora com o mesmo? Poderia desanexá-lo / separá-lo? Poderia vendê-lo para que o valor da venda satisfizesse o seu crédito? Assim não cremos possível”.

XLII. Logicamente que caso a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) não tivesse doado o único bem do qual era proprietária, este teria sido apreendido a favor da massa insolvente e seria objeto de liquidação, podendo até ser vendido aos demais comproprietários, para satisfação total ou parcialmente dos créditos reclamados pelos credores, incluindo o crédito da Credora Reclamante e ora Recorrida Caixa Agrícola, a qual, ficou assim prejudicada, ao contrário do que a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) quer fazer parecer!

XLIII. Pelo que a doação realizada pela Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) teve como único propósito dissipar o único bem do qual era proprietária, o que obviamente inviabilizou a possibilidade dos credores satisfazerem os seus créditos, total ou parcialmente.

XLIV. E independentemente se se trata de um Prédio Rústico ou de 1/3 de um Prédio Rústico.

XLV. Como a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) bem sabe para a liquidação do referido bem objeto de doação seria desnecessária qualquer divisibilidade do referido Prédio Rústico ou desanexação.

XLVI. Veja-se que o referido artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do C.I.R.E., aplicável ex vi do artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do C.I.R.E., prevê que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que tenha disposto dos bens em proveito pessoal ou de terceiros.

XLVII. Não determinando o referido preceito legal como requisito a divisibilidade do bem disposto em proveito pessoal ou de terceiros.

XLVIII. Pelo que, é totalmente irrelevante a alegada indivisibilidade do Prédio Rústico em causa.

XLIX. Com efeito, a Devedora Insolvente e ora Recorrente Rosália Maria Feiteira Leal doou o único bem do qual era proprietária, com claro prejuízo dos credores da presente insolvência, cuja atuação revela a existência de culpa no agravamento da sua situação de insolvência nos termos do disposto no artigo 186.º do C.I.R.E..

L. Acresce ainda que, é completamente irrelevante para efeitos de apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo restante e atento o disposto nos referidos artigos 238.º, n.º 1, alínea e) e 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), ambos do C.I.R.E. qual o valor patrimonial do bem objeto de doação, seja ele de € 13,72 ou de € 54,89.

LI. Porquanto, os requisitos legais previstos nos preceitos legais acima referidos não preveem como requisito legal o respetivo valor patrimonial ou de mercado do bem objeto de dissipação.

LII. Além do que, o bem objeto de doação – 1/3 do prédio rústico, sito em (…), Rua da (…), lugar e freguesia de (…), concelho de Salvaterra de Magos, composto por terreno de cultura arvense de sequeiro, fugueiras, oliveiras, sobreiros, vinha e dependência agrícola, descrito na Conservatória do Registo Predial sob n.º (…), da freguesia de (…), e inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo (…), da Secção (…) – tem um valor de mercado muito mais elevado, não inferior a € 21.700,00 (vinte e um mil e setecentos euros), em comparação com o seu valor patrimonial tributário constante da respetiva caderneta predial.

LIII. Aliás, como o irá demonstrar a respetiva perícia requerida no âmbito da ação pauliana instaurada pela Credora Reclamante e ora Recorrida Caixa Agrícola, a qual corre termos sob o nº 589/21.0T8BNV, Comarca de Santarém – Juízo Local Cível de Benavente, que, aliás, a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) bem sabe que foi requerida a respetiva avaliação.

LIV. A Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) incorre em novo equívoco quando invoca que a doação que fez não foi de forma dolosa ou com culpa grave.

LV. Porquanto, in casu aplica-se o disposto na alínea e) do n.º 1 do referido artigo 238.º do C.I.R.E., remete expressamente para o artigo 186.º do C.I.R.E..

LVI. Sendo que o n.º 2 do referido artigo 186.º do C.I.R.E. contem um elenco de circunstâncias que fazem presumir a insolvência culposa do Devedor, sendo que essa presunção é inilidível.

LVII. Isto é, sendo demonstrado o facto enunciado nalguma das diversas hipóteses do n.º 2 do artigo 186.º do C.I.R.E., como sucede no caso dos presentes autos, fica imediatamente estabelecido o juízo normativo da culpa do devedor, sem necessidade de se demonstrar o nexo causal entre a atuação prevista nessas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.

LVIII. É esse o entendimento pacífico da nossa Doutrina e Jurisprudência que “A presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE é uma presunção inilidível (juris et de jure), quer quanto à culpa, quer quanto ao nexo causal entre o facto-base (a atuação do devedor insolvente) e a criação ou agravamento da situação de insolvência, o mesmo é dizer, demonstrado que o devedor teve um comportamento subsumível a alguma das previsões das várias alíneas daquele n.º 2, tem-se por criada ou agravada a situação de insolvência, sem possibilidade de prova em contrário”, como melhor nos explica a este propósito o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.09.2021, disponível em www.dgsi.pt.

LIX. Pelo que, a presunção inilidível de culpa configurada pelo Legislador nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do C.I.R.E., in casu com aplicação da alínea d) do referido preceito legal, ex vi do disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do C.I.R.E., afasta a aplicação e o entendimento sufragado pela Devedora Insolvente e ora Recorrente Rosália Maria Feiteira Leal relativamente ao conceito jurídico de culpa, no caso o artigo 14.º do Código Penal, designadamente o invocado elemento subjetivo referido, a intenção, ou proporcionalidade da “pena”.

LX. Assim, bem andou o douto Tribunal a quo ao julgar verificado o comportamento da Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) justificador da não concessão do benefício da exoneração do passivo restante, precisamente por constarem do processo elementos que preenchem uma das presunções inilidíveis da insolvência culposa prevista na alínea d), do n.º 2, e n.º 4 do artigo 186.º do C.I.R.E., pelo que se tem por preenchido o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração prevista na alínea e), do n.º 1 do artigo 238.º do C.I.R.E..

LXI. Efetivamente, o processo de insolvência teve início em 07.05.2021, e a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) doou o único bem do qual era proprietária nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

LXII. É, portanto, claro o manifesto prejuízo para os credores da Devedora Insolvente e ora Recorrente (…), merecendo forte censura a sua atuação.

LXIII. Porquanto, a ser concedida a pretendida a exoneração, o que não se concede e por mera hipótese de patrocínio ora se refere, isso significaria que a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) se livraria alegremente das suas dívidas, com grave prejuízo para os credores.

LXIV. Sendo assim, a Devedora Insolvente e ora Recorrente (…) com a sua atuação culposa agravou a sua situação de insolvência nos termos do disposto nos artigos 238.º, n.º 1, alínea e) e 186.º, n.º 1, n.º 2, alínea d) e n.º 4, do C.I.R.E., pelo que não merece a oportunidade que o instituto de exoneração do passivo restante visa, a de conceder ao insolvente sério e de boa fé uma oportunidade de regresso a uma vida sem dívidas, com sacrifício dos seus credores.

LXV. Com efeito, nenhuma censura merece a douta decisão ora recorrida ao ter indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Devedora Insolvente e ora Recorrente (…).

Pugnando, a final pela manutenção do decidido.


II

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), são as seguintes as questões a decidir:

- Se a decisão que indeferiu liminarmente a exoneração do pedido restante ofende a autoridade de caso julgado de decisão proferida no mesmo processo.

- Em caso negativo, se não estão demonstrados fundamentos aptos ao indeferimento liminar.


III

A factualidade a considerar resulta do relatório supra (sob os nºs 1 a 12), a que se aditam os seguintes factos:

13 - Em 17-05-2018, a insolvente doou aos seus filhos (…) e (…), em comum e partes iguais 1/3 indiviso do prédio rústico, sito em (…), Rua da (…), lugar e freguesia de (…), concelho de Salvaterra de Magos, composto por terreno de cultura arvense de sequeiro, fugueiras, oliveiras, sobreiros, vinha e dependência agrícola, descrito na Conservatória do Registo Predial sob n.º (…), da freguesia de (…), e inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo (…), da Secção (…).

14 - Pela Ap. (…), de 2018-05-18 foi registada a aquisição do 1/3 indiviso do prédio referido a favor de (…) e (…) por doação.

15 - Os factos 13 e 14 foram dados a conhecer e comprovados nos autos em 08/07/2021.

16 – A decisão de 04/01/2022 que qualificou de fortuita a insolvência e que veio a ser confirmada por acórdão deste Tribunal da Relação assentou em tal conhecimento.

17 - A Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL intentou em 09-07-2021 impugnação pauliana, que corre termos sob o n.º 589/21.0T8BNV, Comarca de Santarém – Juízo Local Cível de Benavente.

18 - O Administrador da Insolvência reconheceu créditos no montante de € 58.330,27 à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L..


IV

Fundamentação jurídica

O tribunal a quo indeferiu liminarmente a exoneração do pedido restante formulado pela insolvente.

Com a seguinte fundamentação de facto e de direito:

“No caso vertente apurou-se que a insolvente em 17-05-2018 doou aos seus filhos (…) e (…), em comum e partes iguais 1/3 indiviso do prédio rústico, sito em (…), Rua da (…), lugar e freguesia de (…), concelho de Salvaterra de Magos, composto por terreno de cultura arvense de sequeiro, fugueiras, oliveiras, sobreiros, vinha e dependência agrícola, descrito na Conservatória do Registo Predial sob n.º (…), da freguesia de (…), e inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo (…), da Secção (…).

Tal doação foi realizada nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência, conforme exigido pelo artigo 186.º, n.º 1, do CIRE aplicável ex vi do artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, uma vez que o início do processo de insolvência teve lugar em 07-05-2021.

Ao doar o referido património aos seus filhos, a insolvente retirou esse bem do seu património, transferindo-o para o património dos seus filhos, ou seja, dispôs de bens em proveito de terceiros.

Uma vez que tal património deixou de estar na esfera jurídica da insolvente, sem que a mesma tenha recebido qualquer contrapartida, o património que responde pelas dívidas da insolvente tornou-se mais exíguo, reduzindo a possibilidade dos credores serem ressarcidos.

Por outro lado, a insolvente não apresentou qualquer explicação para a indicada doação, tendo-se limitado a indicar preencher todos os requisitos legalmente necessários para que lhe seja concedida a exoneração, mais considerando que tendo a doação do imóvel em questão sido efetuada a 17.05.2018 e tendo o processo de insolvência início em 07.05.2021, está ultrapassado o prazo mencionado no n.º 1 do artigo 120.º do CIRE, não sendo possível a resolução deste negócio jurídico.

Porém, não está em causa, neste conspecto, a resolução de qualquer negócio, mas sim a admissão liminar da exoneração do passivo restante, devendo a conduta da insolvente ser apreciada nos termos em que foi praticada, sendo irrelevante o facto de o negócio não ter sido resolvido pelo Sr. AI. Tanto mais que, nos termos do artigo 120.º do CIRE, o prazo para resolução de negócios é de 2 anos; mas para efeitos do artigo 186.º do CIRE, aplicável à exoneração ex vi do artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, o prazo em causa é de 3 anos, como supra explanado.

Deste modo, ao doar o património indicado aos filhos, a insolvente dispôs do mesmo em proveito de um terceiro, pelo que está preenchida a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

A factualidade apurada permite assim considerar indiciada a existência de culpa da devedora no agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Está, assim, preenchida a alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pelo que, mais não resta do que indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante” (sublinhados nossos).

Considerou, assim, o tribunal a quo que o facto da insolvente ter sido proprietária de 1/3 indiviso do prédio rústico acima descrito e o ter doado em 17/05/2018 a seus filhos, requerendo a sua insolvência em 07/05/2021 (num período de tempo inferior a 3 anos), terá de ser considerada culpada por uma situação de agravamento da situação de insolvência, nos termos da presunção inilidível prevista no artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE, aplicável às pessoas singulares por força do n.º 4, o que implica o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante por força do disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE.

O que, em princípio, se afigura ajustado ao figurino legal.

Sucede que a sentença proferida nestes mesmos autos em 04/01/2022 onde se discutia a possibilidade de encerrar o processo por insuficiência de massa insolvente, ponderando no relatório aquela mesma realidade factual – doação pela insolvente de 1/3 indiviso a seus filhos em 17/05/2018 – concluiu: “Em conformidade com o disposto no artigo 233.º, n.º 6, do CIRE, qualifico como fortuita a insolvência”.

Dispõe a norma destacada que:

“Sempre que ocorra o encerramento do processo de insolvência sem que tenha sido aberto incidente de qualificação por aplicação do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 36.º, deve o juiz declarar expressamente na decisão prevista no artigo 230.º o caráter fortuito da insolvência.”

Alínea essa que dita:

“i) Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com caráter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º;”

Temos pois, que, ao convocar o artigo 233.º, n.º 6, do CIRE para qualificar como fortuita a insolvência, sendo pressuposto desta norma a ausência de abertura do incidente de qualificação por ausência de elementos que o justifiquem, ponderou o tribunal a mesma realidade fáctica que depois ponderou para a qualificar como culposa.

Assim, dentro do mesmo processo a insolvência foi considerada fortuita em 04/01/2022 e culposa em 10/11/2022, sendo a realidade factual subjacente à ponderação, comum a ambas as decisões.

Nos termos do artigo 628.º do Código de Processo Civil (CPC), a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.

Com o trânsito em julgado, «a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º» – nos termos do artigo 619.º, n.º 1, do CPC.

Sendo que por força do 621.º do mesmo diploma «A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)».

Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/05/2021, Proc. 4171/20.1T8LSB.L1-2 in www.dgsi.pt:

“I - A força de caso julgado da sentença é um fenómeno essencial à garantia dos valores constitucionais da confiança e da segurança jurídica, bem como à prossecução da finalidade da pacificação social, e espraia-se sob diferentes prismas ou modalidades.

II - Pode ocorrer por força da exceção do caso julgado, a qual reflete a denominada função negativa do caso julgado, com recurso à tríplice identidade, nos termos do artigo 580.º, n.º 1, do CPC.

III - Já a figura da autoridade do caso julgado não se afeiçoa à ideia de identidade jurídica, mas de prejudicialidade entre objetos processuais.”

Apenas a primeira decisão transitou em julgado.

O respeito pelo conteúdo dessa primeira decisão implica que não possa haver decisão posterior, ainda que em incidentes distintos, que contrarie a autoridade (ou efeito positivo) do caso julgado.

“Na autoridade do caso julgado, a identidade do objeto da relação jurídica pode ser meramente parcial: uma determinada questão decidida na primeira ação configura-se como questão prejudicial na segunda, não podendo aí ser decidida em termos diversos, obviando-se assim a que a relação jurídica material definida por uma decisão com trânsito em julgado possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica.” – lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/05/2021, Proc. 1360/20.2T8PNF.P1, no mesmo site.

Temos, pois, como procedente a primeira questão do recurso e que visava apreciar se a decisão que indeferiu liminarmente a exoneração do pedido restante ofendia a autoridade de caso julgado de decisão proferida no mesmo processo.

Devendo, por consequência, ser revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgando fortuita a insolvência admita liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante.

Resultando prejudicada a segunda questão do recurso.

Em suma:

(…)


V


Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgando fortuita a insolvência admite liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante.

Sem custas.

Évora, 09/02/2023

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Mário João Canelas Brás (1º Adjunto)

Jaime Pestana (2º Adjunto)