INJÚRIA
DIFAMAÇÃO
QUEIXA
PRAZO
CADUCIDADE
CONTAGEM
SUSPENSÃO
PANDEMIA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário

I – No nosso sistema penal, o legislador considerou que, relativamente a certos crimes (tais como os crimes de injúria e de difamação denunciados nos autos), a existência de um procedimento criminal respectivo em tribunal está dependente da existência de uma queixa apresentada (em regra) pelo respectiva pessoa ofendida, dentro do prazo de 6 meses a contar (em regra) da data em que essa teve conhecimento (naturalístico) do facto e dos seus autores.
II – Nestes casos, a queixa da pessoa ofendida é um pressuposto positivo indispensável para uma eventual punição do agressor, na medida em que sem ela nem sequer haverá procedimento criminal. Tendo esse prazo natureza substantiva, uma vez que (até haver queixa) ainda não existe sequer um processo (judicial). E sendo esse um prazo de caducidade, findo o qual se extingue o respectivo direito de queixa da (em regra) pessoa ofendida.
III – Esse prazo de 6 meses foi o que legislador considerou suficiente para que a pessoa ofendida, conhecendo (naturalisticamente) os alegados factos e seus autores, decida se quer, ou não, formular uma queixa crime respectiva contra os mesmos. Pois, atenta a natureza dos alegados crimes, não se justificaria que a titular do direito de queixa pudesse exercê-lo a todo o tempo, sem qualquer limite temporal.
Caso decida fazê-lo, impõe-se que o faça dentro desse prazo, cuja contagem tem início no dia imediatamente seguinte àquele conhecimento e terminando às 24 horas do dia que corresponda, no 6º mês seguinte, àquele dia.
IV – O prazo (de caducidade) do direito de queixa só pode suspender-se nos casos em que a lei expressamente o determine.
Tal sucedeu em virtude pandemia epidemiológica provocada pela doença Covid -19 que assolou Portugal e, no âmbito do estado de emergência e do estado de calamidade declarados no nosso país, foram aprovadas Leis (excepcionais e temporárias) que, expressamente, determinaram a suspensão dos prazos de caducidade durante os períodos temporais de 9/3/2020 a 3/6/2020 e de 22/1/2021 a 6/4/2021.
Mas, esta suspensão da caducidade só opera relativamente aos prazos que tiverem início durante tais períodos.
Caso estas Leis viessem a ser aplicadas a prazos de caducidade já iniciados anteriormente, fariam parar essa contagem que só seria retomada mais tarde e tal significaria (na prática) um prolongamento do respectivo prazo de queixa que (não decorrendo continuadamente) só findaria mais tarde, obviamente, em desfavor das pessoas denunciadas/arguidas. E, consequentemente, tal equivaleria a uma aplicação retroactiva, concretamente, menos favorável a estas últimas – violando o sobredito princípio basilar da não retroactividade de lei penal, concretamente, menos favorável ao arguido.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
 
RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Torres Vedras - J1, no processo 690/21.0T9TVD, foi proferido despacho judicial (em 30/5/2022) a rejeitar a acusação particular que havia sido deduzida pela assistente (A) contra as arguidas (B e C) imputando-lhes a prática dos crimes de difamação e injúria (previstos e puníveis pelos art.ºs 180º e 181º do Código Penal) e cuja acusação particular o Ministério Público havia acompanhado (em 8/4/2022) nos exactos termos.
Tendo aquele despacho o seguinte o teor (constante sob a refª. 152838516 aqui transcrita na parte respectiva):
«Registe e autue como processo comum com intervenção do Tribunal singular.
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O Tribunal é competente.
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- DA TEMPESTIVIDADE DA QUEIXA:
Veio a assistente A deduzir acusação particular contras as arguidas B e C, pelos crimes de difamação e injúria, p. e p. pelos artigos 180.º e 181.º do Código Penal, conforme decorre de fls. 204-207 dos autos.
A acusação particular veio a ser acompanhada pelo Ministério Público, conforme decorre de fls. 220.
Os crimes imputados às arguidas assumem natureza particular, conforme decorre do artigo 188.º do Código Penal.
Nos crimes particulares, a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo está dependente de queixa e da constituição de assistente por parte do titular do direito e o Ministério Público só pode deduzir acusação depois de o assistente ter deduzido acusação particular.
Assim, a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas, sendo que, sem a queixa, o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, instaurando o inquérito.
Tal implica o exercício desse direito no prazo de 6 meses após o facto, sob pena de extinção de tal direito (artigo 115.º, n.º 1 do CP).
A falta da queixa relativamente aos factos descritos na acusação particular, dentro do prazo a que alude o citado artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal, enquanto pressuposto de procedibilidade, obsta ao conhecimento do mérito da causa.
Feitas tais considerações, do teor da acusação particular, em termos de circunstâncias temporais em que os factos ocorreram extraem-se as seguintes datas: 29.07.2020, 31.07.2020, 02.08.2020, 10.08.2020, 19.08.2020 e 21.08.2020, data em que terá ocorrido o último acto imputado à arguida B. Relativamente à arguida C, não vem concretizada nenhuma data, porém decorre dos artigos 8.ª a 12.ª que o comportamento imputado é anterior à data de 19.07.2020.
Sucede que, compulsados os autos, constata-se que a queixa crime contra as arguidas foi apresentada no dia 20.04.2021 (fls. 1 dos autos).
Por conseguinte, a queixa crime foi apresentada pela denunciante para além do prazo legal de 6 meses, sendo, por isso, manifestamente extemporânea.
Na esteira do propugnado pelo aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 358/14.4PBVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt, «[n]os crimes semipúblicos e particulares a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas; sem a queixa o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo (...)».
Em face do exposto, carece o Ministério Público da necessária legitimidade para promover o processo e para a dedução da acusação.
Em face do exposto, decide-se rejeitar a acusação particular de fls. 204-207, deduzida pela assistente, por falta de legitimidade para o exercício da acção penal, nos termos do disposto nos artigos 48.º, 50.º, 285.º e 311.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do Código de Processo Penal.
É devida taxa de justiça pelo Assistente, que se fixa em 2 UC (artigos 515.º, n.º 1, alínea f), e n.º 2, do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa).»                                          
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Inconformado, veio o Ministério Público junto desse Tribunal interpor recurso (em 3/7/2022), pedindo a revogação dessa decisão e a sua substituição por outra, tendo em vista a apreciação do mérito da causa. Tendo formulado, no termo da motivação, as seguintes conclusões (constante sob a refª. 12533735 agora transcrita nesta parte):
«1. Os factos imputados à arguida B ocorreram até ao dia 21/08/2020. Já os factos imputados à arguida C, ocorreram em dia não concretamente apurado, situado antes de 29/07/2020.
2. A queixa crime foi apresentada no dia 20/04/2021.
3. Ao prazo legal de seis meses para o exercício do direito de queixa a que alude o artigo 115º, nº 1, do Código Penal, acresce o período de tempo em que vigorou a suspensão no âmbito das medidas excepcionais e temporárias de reposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-Cov-2 e da doença COVID-19, de acordo com o disposto na Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, redacção dada pela Lei 4-B/2021, de 1 de Fevereiro e Lei 13-B/2021, de 5 de Abril.
4. In casu, a suspensão do prazo em causa verificou-se no período compreendido entre os dias 22/01/2021 e 06/04/2021 – cfr. artigos 4º, da Lei 4-B/2021, de 1 de Fevereiro e 6º, da Lei 13-B/2021, de 5 de Abril.
5. A queixa não foi extemporânea, encontrando-se verificado esse pressuposto de procedibilidade e tendo sido deduzida acusação particular, pelo que, em conformidade, face à natureza particular dos ilícitos criminais em presença, tem o Ministério Público plena legitimidade para o exercício da acção penal.
6. Desta feita, a decisão recorrida não observou o disposto nos artigos 311º, nºs 2, alínea. a) e artigos 4º, da Lei 4-B/2021, de 1 de Fevereiro e 6º, da Lei 13-B/2021, de 5 de Abril.» 
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Nesta Relação, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer (constante sob a refª. 19246483) no sentido de acompanhar a argumentação do Ministério Público junto da primeira instância, pugnando pela procedência do recurso por esse interposto.
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Não houve resposta a este parecer.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO
Âmbito do recurso e questão a decidir
Dispõe o art.º 412º, nº 1, do Código de Processo Penal (doravante com a abreviatura CPP) que: «A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido».
O objeto do recurso define-se, pois, pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como pacificamente decorre da conjugação dos art.ºs 412º, nº 1, e 410º do CPP e, também, em sintonia com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19-10, em D.R. I-A Série de 28.12.1995 e com o acórdão do STJ de 12-09-2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt.
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo Ministério Público /recorrente, a única questão a decidir é saber se: A queixa constante dos autos é, ou não, extemporânea?
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Com interesse para esta decisão importa ter presente a seguinte factualidade incontroversa relativamente aos presentes autos:
- No dia 20/4/2021 foi registada a entrada em Tribunal de uma queixa, formulada por A contra B e C, imputando a estas a prática de alegados crimes reportados a 29/7/2020, 31/7/2020, 2/8/2020, 10/8/2020, 19/8/2020 e 21/8/2020 quanto à primeira denunciada e desde data (não concretamente apurada) anterior a 19 ou 29/7/2020 quanto à segunda denunciada e por factos alegadamente conhecidos, por aquela denunciante, desde essas datas respectivas (cfr. refª. 10802012 aqui dada por reproduzida);
- Foi admitida a requerida constituição da denunciante como assistente nos autos (cfr. refª. 148483538 aqui dada por reproduzida);
- Na sequência de notificação do Ministério Público à assistente para esta, querendo, deduzir acusação particular pela alegada prática dos denunciados crimes de injúria e difamação, esta veio deduzida acusação particular contra aquelas, entretanto, constituídas arguidas, imputando-lhes a prática de tais alegados crimes em tais datas (cfr. as refª. 152020314 e 12172027 aqui dadas por reproduzidas);
- Tendo o Ministério Público acompanhado, na íntegra, essa mesma acusação particular (cfr. refª. 152283735 aqui dada por reproduzida).
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Questão única: A queixa constante dos autos é, ou não, extemporânea?
A Exmª Juiz da instância considerou que sim, por ter sido apresentada depois de decorrido o respectivo prazo de 6 meses (contado desde a data do respectivo conhecimento pela queixosa).
A Digna Procuradora do Ministério e a Exmª Procuradora-Geral Adjunta consideraram que não, alegando que esse despacho (recorrido) não atentou ao acréscimo temporal inerente à suspensão ocorrida, durante tal contagem, por força das Leis que vigoraram durante a pandemia Covid-19.   
Apreciando e decidindo
Como sabemos, no nosso sistema penal, o legislador considerou que, relativamente a certos crimes (tais como os alegados crimes de injúria e de difamação denunciados nos autos), a existência de um procedimento criminal respectivo em tribunal está dependente da existência de uma queixa apresentada (em regra) pelo respectiva pessoa ofendida, dentro do prazo de 6 meses a contar (em regra) da data em que essa teve conhecimento do facto e dos seus autores – conforme preveem expressamente o art.º 50º, nº 1, do Código de Processo Penal (doravante com a abreviatura CPP) e os art.ºs 113º, nº 1, e 115º, nº 1, do Código Penal (doravante com a abreviatura CP).
Desta forma – e seguindo de perto os ensinamentos de Figueiredo Dias em “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, 19.º capítulo, II 1. c) §§ 1065 a 1069, págs. 666-668 – o legislador pretendeu: De um ponto de vista político-criminal, em relação ao pequeno crime (bagatelas penais e pequena criminalidade) que o procedimento penal respetivo só tenha lugar se e quando tal corresponder ao interesse e vontade do titular do direito de queixa, ou mesmo, que o procedimento só possa prosseguir, após o inquérito, se tiver lugar a acusação particular. Assim evitando que o processo penal, se prosseguisse sem ou contra a vontade do ofendido, pudesse, em certas hipóteses, representar uma inconveniente (ou mesmo inadmissível) intromissão na esfera das relações pessoais estabelecidas entre ele e os outros participantes processuais. E, assim, também tendo a função de específica proteção da vítima do crime, nomeadamente no caso dos crimes que afetam de maneira profunda a esfera da intimidade daquela. Reconhece-se que a vítima deve poder decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o que pode ser o mal da revelação processual da sua intimidade (quando o processo possa significar uma afronta ainda maior para a intimidade do ofendido do que o próprio crime), sob pena de, de outra forma, poderem frustrar-se as intenções político-criminais que, nesses casos, se pretenderam alcançar com a criminalização.
Assim – também seguindo de perto os ensinamentos doutrinais constantes daquela mesma obra de Figueiredo Dias, págs. 663 a 665 e 674,  bem como da anotação a estes preceitos legais penais em “Comentário do Código Penal” de Paulo Pinto de Albuquerque, 4ª edição actualizada, págs. 507-514 e, também, constantes da anotação por Ricardo Bernardes aos artigos do Código Civil a seguir indicados em “Código Civil Anotado”, Volume I, 2ª edição revista e actualizada da Almedina, págs. 398 e segs. e, ainda, Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette em “Código Penal Anotado e Comentado, Legislação Conexa e Complementar”, Quid Juris, Sociedade Editora, pág. 307, nota 5 e, finalmente, Manuel Lopes Maia Gonçalves em “Código Penal Português, Anotado e Comentado – Legislação Complementar”, 18ª edição, pág. 444 – : 
. Nestes casos, a queixa da pessoa ofendida é um pressuposto positivo indispensável para uma eventual punição do agressor, na medida em que sem ela nem sequer haverá procedimento criminal. Sendo a queixa feita através de requerimento no qual a pessoa ofendida exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por alegado crime cometido contra ela. Sendo atendida como data da queixa aquela que conste como data de registo de entrada da queixa em tribunal.
. Sendo que, para efeitos de cálculo, esse prazo é um prazo de caducidade (conforme prevê o art.º 298º, nº 2, do Código Civil doravante com a abreviatura CC), de natureza substantiva uma vez que (até haver queixa) ainda não existe um processo. Estando a sua contagem sujeita ao disposto no art.º 279º “ex vi” do art.º 296º ambos do CC, nomeadamente, quanto ao seu início de contagem, não se inclui o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr e, quanto ao seu termo, sem olvidar a fixação de jurisprudência feita pelo acórdão do STJ de 18/4/2012 (do Exmº. Juiz Conselheiro relator Pires da Graça) publicado da dgsi e segundo a qual este prazo de 6 meses termina às 24 horas do dia que corresponda, no 6º mês seguinte, ao dia em que o titular desse direito tiver conhecimento do facto e dos seus autores e se, nesse último mês, não existir dia correspondente, o prazo finda às 24 horas do último dia desse mês.
. Só podendo suspender-se este prazo nos casos em que a lei expressamente o determine (conforme prevê o art.º 328º do CC).
. Findo esse prazo, extingue-se o respectivo direito de queixa do ofendido. Sendo esse prazo de 6 meses aquele que o legislador considerou suficiente para que o ofendido, conhecendo os factos e os seus autores, decida se quer, ou não, formular uma queixa crime respectiva contra os mesmos. E, em caso afirmativo, impondo-se que o faça dentro desse prazo, cujo termo inicial é aquele simples conhecimento naturalístico dos alegados factos e dos alegados autores. Pois, atenta a natureza dos alegados crimes, não se justificaria que o titular do direito de queixa pudesse exercê-lo a todo o tempo, sem qualquer limite temporal, nomeadamente por ódio ou vingança.
. Podendo esta excepção (de extinção por caducidade do direito de queixa) ser apreciada oficiosamente pelo Juiz ou pelo Ministério Público em qualquer fase do processo e caso seja considerada procedente obsta ao seu prosseguimento respectivo e, se for caso disso, ficando prejudicada a apreciação do respectivo mérito da lide (cfr. o art.º 333º, nº 1, do CC).

No caso em apreço, conforme já vimos, é indiscutível que no dia 20/4/2021 foi registada a entrada em Tribunal de uma queixa formulada por A contra B e C, imputando a estas a prática de crimes reportados aos dias 29/7/2020, 31/7/2020, 2/8/2020, 10/8/2020, 19/8/2020 e 21/8/2020 quanto à primeira denunciada e desde data, não concretamente apurada, mas anterior a 19 ou 29/7/2020 quanto à segunda denunciada e por factos conhecidos, por aquela denunciante, desde essas datas respectivas.
Sendo que tais crimes denunciados, de injúria e de difamação, estavam dependentes da apresentação de queixa e de subsequente acusação particular, nos termos previstos pelo art.º 188º, nº 1, em conjugação com os art.ºs 180º, nº 1, e 181º do CP.
Ora, tendo em conta a data do início da contagem do respectivo prazo de 6 meses, para o exercício do direito de queixa pela denunciante, respectivamente em 20 ou 30/7/2020, 1/8/2020, 3/8/2020, 11/8/2020, 20/8/2020 e 22/8/2020, afigura-se-nos como sendo, manifestamente, tardia/extemporânea a apresentação da sua queixa em 20/4/2021, já depois de decorridos mais de 6 meses contados desde cada uma daquelas datas. E, por isso, quando já estava extinguido (por caducidade) esse direito da denunciante.

Salvo o devido respeito pela posição do Ministério Público/recorrente, não consideramos que o regime de suspensão dos prazos (incluindo de caducidade) previsto na Lei nº 1-A/2020, de 19-3, com a redacção dada pela Lei nº 4-B/2021, de 1-2 e na Lei nº 13-B/2021, de 5-4, seja aplicável ao caso em apreço.
 É indiscutível, porque público e notório, que em 2020, devido a uma pandemia epidemiológica provocada pela doença Covid -19 que assolou Portugal (e o resto do mundo), foi declarado no nosso país quer o estado de emergência, quer o estado de calamidade [através da Lei nº 1-A/2020 de 19-3 cujo art.º 7º, nº 3, foi alterado pela Lei nº 4-A/2020, de 6-4, revogado pela Lei nº 16/2020, de 29-5, que passou a prever regime processual transitório e excepcional no seu art.º 6º-A, preceito este que foi revogado pelo art.º 3º da Lei nº 4-B/2021, de 1-2, que passou a regular a matéria no aditado art.º 6º-B, cessando a sua vigência por força do disposto no art.º 3º da Lei nº 13-B/2021 de 5-4, que aditou à sobredita Lei nº 1-A/2020 o art.º 6º-E,  da norma revogatória contida no art.º 6º] e por força destas Leis foi determinada, expressamente, a suspensão de todos e quaisquer prazos para a prática de actos processuais no âmbito de quaisquer processos judiciais e, também, a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade nos períodos de 9/3/2020 a 3/6/2020 e de 22/1/2021 a 6/4/2021.
Porém, este regime legal excepcional e temporário tem de ser conjugado com um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico que é o da não retroactividade das leis, salvo se, uma lei penal se mostrar, concretamente, mais favorável ao arguido – cfr. os art.ºs 18º, nº 3, e 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa (doravante com a abreviatura CRP) e o art.º 2º do CP.
E, aliás (na parte com interesse para o caso em apreço) o art.º 19º, nº 6, da CRP consigna, expressamente, que: «A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos (...) a não retroactividade da lei criminal (...)».
Tal como ressalva a Lei nº 44/86, de 30-9, que estabeleceu o regime do estado de sítio e do estado de emergência (art.º 2º, nº 1).
E tal salvaguarda (da não afectação da não retroactividade da lei criminal), também, ficou expressa, aquando da sobredita pandemia, nos respectivos Decretos do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18-3 (art.º 5º, nº 1), nº 17-A/2020, de 2-4 (art.º 7º, nº 1) e nº 20-A/2020, de 17-4 (art.º 6º, nº 1).
Por conseguinte, a determinação (da suspensão dos prazos de caducidade) contida nas sobreditas Leis (abreviadamente designadas “Leis Covid”) para vigorar, como vigoraram, durante os sobreditos períodos temporários e a título excepcional, não foi, nem pode ser aplicada ao respectivo prazo de caducidade em apreço nos autos.
Pois, aquando da data respectiva de início da contagem do prazo de queixa nenhuma dessas “Leis Covid” estava em vigor. Só tendo iniciado vigência quando já estava a decorrer a contagem do respectivo prazo. E, caso lhe viessem a ser aplicadas (como pretende o recorrente), fariam parar essa contagem que só seria retomada mais tarde. E tal significaria (na prática) um prolongamento do respectivo prazo de queixa que (não decorrendo continuadamente) só findaria mais tarde, obviamente, em desfavor das pessoas denunciadas/arguidas. E, consequentemente, tal equivaleria a uma aplicação retroativa, concretamente, menos favorável a estas últimas – violando o sobredito princípio basilar da não retroactividade de lei penal, concretamente, menos favorável ao arguido.
 
Aliás, tem sido maioritária a posição da jurisprudência dos nossos Tribunais da Relação bem como da nossa doutrina a propósito dos prazos, já em curso, de prescrição do procedimento criminal ou das penas, mais concretamente, ao considerarem que tais normas [temporárias e excepcionais decorrentes da pandemia epidemiológica de Covid-19] não podem alargar tais prazos já em curso sem violarem o sobredito princípio da não retroactividade da lei penal menos favorável ao arguido – cfr. a título de exemplo o acórdão do TRG de 25/1/2021 (processo nº 179/15.9FAF.G2), o acórdão do TRP de 14/4/2021 (processo nº 300/19.6Y9PRT-B.P1), o acórdão do TRC de 7/12/2021 (processo nº 200/09.8TASRE.C3), os acórdãos do TRE de 23/2/2021 (processo nº 201/10.3GBVRS.E1) e de 26/10/2021 (processo nº 28/06.7IDFAR-A.E1) e os acórdãos do TRL de 24/7/2020 (processo nº 128/16.5SXLSB.L1), 26/10/2022 (processo nº 32/15.4PALSB.L1-3) e de 27/10/2022 (processo nº 902/16.2IDLSB-A.L1-9) todos publicados na internet; Germano Marques da Silva (“Ética e estética do processo penal em tempo de crise pandémica” em Revista do Ministério Público, número especial COVID-19, 2020, págs. 109-127); Adriano Squilacce e Raquel Cardoso Nunes (“Suspensão dos Prazos de Prescrição em Processo Penal e Contraordenacional por Efeito da Legislação Covid-19” em Foro de Actualidade Portugal, acessível na internet); Rui Cardoso e Valter Baptista  (“Estado de Emergência – COVID 19 – Implicações na Justiça – Jurisdição  Penal e Processual e Processual Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Abril de 2020, págs. 533-536); e também a doutrina seguida por José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, (“A Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março – uma primeira leitura e notas práticas” e “Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e a terceira vaga da pandemia COVID-19” em Julgar online, respectivamente, Março de 2020 pág. 7 e Fevereiro de 2020 pág. 8).
Ora, tendo em conta a similitude entre prescrição e caducidade, em termos de natureza substantiva de ambos os respectivos prazos, afigura-se-nos que tal entendimento maioritário se aplica, também, ao prazo de caducidade do direito de queixa.
 Pois, atenta a sua natureza substantiva, sempre que haja sucessão de leis penais no tempo (independentemente da lei nova ser temporária ou não) a sua aplicação ao caso concreto (a factos anteriores à sua vigência/a prazos já anteriormente iniciados) não pode afastar-se do princípio da não retroactividade da lei penal (corolário do princípio da legalidade), nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido.

Voltando ao caso em apreço, constatamos que a data do conhecimento pela denunciante de cada um dos factos por ela denunciados (em 29/7/2020, 31/7/2020, 2/8/2020, 10/8/2020, 19/8/2020 e 21/8/2020 quanto à denunciada B e em 19 ou 29/7/2020 quanto à denunciada C) ocorreu no intervalo de vigência entre cada uma daquelas Leis Covid (reportadas aos períodos de 9/3/2020 a 3/6/2020 e de 22/1/2021 a 6/4/2021).
Pelo que, a contagem do respectivo prazo de caducidade do direito de queixa da denunciante teve início no dia imediatamente seguinte à respectiva data (isto é, a 30/7/2020, 1/8/2020, 3/8/2020, 11/8/2020, 20/8/2020, 22/8/2020 e 20/7/2020), sem que, então, estivesse em vigor qualquer uma daquelas Leis Covid.
 Só 5 meses depois ou quase 5 meses depois ou quase 6 meses depois, respectivamente (já durante o decurso daquele prazo respectivo e já quase completado esse prazo respectivo) tendo vindo a iniciar a vigência da segunda daquelas Leis Covid.
Ora, afigura-se-nos que esta sua aplicação (no caso em apreço pretendida pelo recorrente/Ministério Público, ao sobredito prazo em curso) seria, para além de retroactiva, concretamente mais desfavorável às denunciadas/arguidas.
Pois, como é óbvio, da suspensão dessa contagem adviria um concreto prolongamento do prazo para o exercício do direito de queixa/um adiamento do termo do respectivo prazo, obstando à sua sobredita extinção (por caducidade) do direito de queixa da denunciante – que, sem a aplicação dessa suspensão a tal prazo, já se havia esgotado o mesmo e já se havia extinguido o direito de queixa daquela, aquando da apresentação em juízo da sua queixa.
Por conseguinte e em jeito de conclusão final, impõe-se dizer que não pode ser aplicado ao caso em apreço o acréscimo temporal inerente à suspensão prevista nas sobreditas Leis que vigoraram durante a pandemia Covid-19.  
                                                 
DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal desta Relação, em não conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se o despacho recorrido.
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Sem tributação.
Notifique.
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Lisboa, 9 de Fevereiro de 2023
Paula de Sousa Novais Penha
Carlos da Cunha Coutinho
Raquel Correia de Lima