NULIDADE
CASO JULGADO
Sumário

Efeitos da declaração de nulidade do despacho que não admitiu o articulado superveniente – Caso julgado formal.

Texto Integral

Acordam em conferência, na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, do Tribunal da Relação de Lisboa



1.–Por despacho de 20.4.2022 com a referência citius 481919, proferido no processo principal, o Tribunal da Propriedade Intelectual (doravante também Tribunal a quo, Tribunal de primeira instância ou Tribunal recorrido), decidiu o seguinte:
“Fls. 1408-1409: com efeito, a audiência final incidirá sobre a matéria do articulado superveniente e respectiva resposta, que não chegou a ser considerada na sentença entretanto anulada em sede de recurso de apelação, não havendo razão para não aproveitar a prova já produzida nos autos em obediência aos princípios da aquisição e agilização processuais, o que se consigna em resposta ao requerimento de 25.03.2022 (ref.ª 41760137), nos termos do artigo 6º do CPC.”

2.–Do despacho referido no parágrafo anterior veio a recorrente interpor o presente recurso para o Tribunal da Relação, pedindo o seguinte:

“(...) deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Despacho Recorrido e ordenando-se que o Tribunal retome todo o processado após a apresentação do articulado superveniente da Ré, que teve lugar no dia 30.10.2019, não limitando a tramitação dos autos ao objeto desse articulado superveniente, nomeadamente o âmbito da nova audiência final, dos meios de prova requeridos e do novo julgamento que se impõe”.

3.–A recorrente invocou, em síntese:

  • Por decisão sumária do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.12.2021, proferida nos autos principais, foi invalidado todo o processado nestes autos desde a data em que a ré apresentou o articulado superveniente rejeitado pelo Tribunal recorrido e posteriormente admitido por decisão sumária do Tribunal da Relação proferida no apenso J dos presentes autos;
  • Na decisão sumária de 6.12.2021, o Tribunal da Relação não ordenou apenas a produção de prova adicional, mas invalidou todo o processado após a apresentação do articulado superveniente;
  • O que, conjugado com o princípio da actualidade das decisões judiciais, implica a produção de todos os meios de prova sobre a violação dos direitos de propriedade intelectual da recorrente, cometidas pela ré até à data em que for proferida a decisão;
  • O despacho recorrido viola essa decisão tomada pelo Tribunal da Relação, que transitou em julgado.

4.–A ré não contra-alegou

Delimitação do âmbito do recurso

5.–Tem relevância para a decisão do recurso a seguinte questão, suscitada pelos argumentos da recorrente vertidos conclusões:

A.–Efeitos da declaração de nulidade do despacho que não admitiu o articulado superveniente junto pela ré

Factos que o Tribunal leva em conta para decidir o recurso

6.–Para decidir o presente recurso o Tribunal leva em conta os seguintes factos, que resultam dos autos e termos processuais juntos aos autos, a seguir sintetizados para facilitar a compreensão dos antecedentes do recurso, cujas referências citius serão indicadas infra e que se dão aqui por integralmente reproduzidos.

7.–Por despacho saneador de 30.9.2019 o Tribunal recorrido seleccionou os temas de prova – cf. referência citius 381276/processo principal.

8.–Por despacho de 9.12.2019 o Tribunal recorrido não admitiu o articulado superveniente junto pela ré – cf. referência citiuas 385285/processo principal.

9.–Do despacho mencionado no parágrafo anterior foi interposto recurso, no qual, por decisão sumária do relator de 22.2.2021, proferida no apenso J, onde foi tramitado o recurso do despacho que não admitiu o articulado superveniente junto pela ré, o Tribunal da Relação decidiu o seguinte:

“Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados no ponto 2.4 da presente decisão singular do relator, julga-se procedente a apelação e revoga-se a decisão recorrida, decretando, em sua substituição, que se admite a junção aos autos do articulado superveniente apresentado pela Ré no dia 30.10.2019 e que tem a referência 33875142, com todas as legais consequências decorrentes dessa admissão.”

O Tribunal da Relação fundamentou, além do mais, a decisão sumária de 22.2.2021 como se segue:

“(...) os factos alegados nessa peça processual relevam para a construção da solução jurídica do pleito, nomeadamente porque põem em causa a validade da pretensão deduzida em juízo pelo Autor (...)
(...) O que significa que a decisão recorrida violou realmente, por incorrecta interpretação dos mesmos, o disposto nos artºs 588.º n.ºs 1 e 4 e 596.º do CPC 2013. (...)”

cf. decisão sumária de 22.2.2021 com a referência citius 16659888/apenso J.

10.–Por sentença de 28.1.2021 o Tribunal recorrido julgou parcialmente procedente a acção e condenou a ré a abster-se de usar as marcas em crise – cf. referência citius 425419/processo principal.

11.–Da sentença mencionada no parágrafo anterior foi interposto recurso, no qual, por decisão sumária da relatora de 6.12.2021, proferida no recurso da sentença da primeira instância mencionada no parágrafo anterior, o Tribunal da Relação decidiu o seguinte:

“DECISÃO
Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 652º, n. 1, al. h) do CPC, julgo extinta a presente instância recursiva, não conhecendo do seu objecto, por força da decisão proferida no Apenso J.”

O Tribunal da Relação fundamentou, além do mais, a decisão sumária de 6.12.2021, como se segue:

“(...) o cumprimento do decidido no Apenso J implica, forçosamente, a invalidação de todo o processado após a apresentação do referido Articulado Superveniente, devendo o tribunal a quo extrair todas as consequências legais decorrentes da decisão de admissão daquele articulado, nomeadamente, nos termos do art. 588º nº 4 e 6 do CPC, ordenando a notificação da parte contrária para sobre ele exercer o contraditório e, ampliar o objecto do litígio e os temas de prova com os factos nele articulados que interessam à decisão da causa, tal como ficou superiormente decidido, submetendo-os a novo julgamento, findo o qual deverá proferir nova sentença.(...)”

–cf. decisão sumária de 6.12.2021 com a referência citius 17635582/processo principal.

12.–Por despacho de 25.2.2022 o Tribunal recorrido não admitiu o articulado superveniente junto pelo autor, mas admitiu os documentos por ele juntos e ampliou o objecto do litígio/temas de prova anteriormente fixados no despacho saneador – cf. referência citius 474551/processo principal.

13.–Por requerimento de 25.3.2022 a ré pediu ao Tribunal a quo que mantivesse a validade da prova já produzida que não incidiu sobre os temas de prova resultantes do articulado superveniente da ré admitido em recurso – cf. referência citius 99029/processo principal.

14.–Sobre o requerimento mencionado no parágrafo anterior veio a incidir o despacho agora recorrido, de 20.4.2022, que decidiu que: “a audiência final incidirá sobre a matéria do articulado superveniente e respectiva resposta, que não chegou a ser considerada na sentença entretanto anulada em sede de recurso de apelação, não havendo razão para não aproveitar a prova já produzida nos autos em obediência aos princípios da aquisição e agilização processuais, o que se consigna em resposta ao requerimento de 25.03.2022 (ref.ª 41760137), nos termos do artigo 6º do CPC” – cf. referência citius 481919/processo principal.

Quadro legal relevante

15.–Têm relevo para a apreciação do recurso os seguintes preceitos legais:

Código de Processo Civil ou CPC

Artigo 91.º
Competência do tribunal em relação às questões incidentais
1- O tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.
2- A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respetivo, exceto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia.

Artigo 195.º
Regras gerais sobre a nulidade dos atos
1- Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
2- Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
3- Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo.

Artigo 277.º
Causas de extinção da instância
A instância extingue-se com:
a)- O julgamento;
b)- O compromisso arbitral;
c)- A deserção;
d)- A desistência, confissão ou transação;
e)- A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.

Artigo 547.º
Adequação formal
O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.

Artigo 611.º
Atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes
1- Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
2-Só são, porém, atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida.
3-A circunstância de o facto jurídico relevante ter nascido ou se haver extinguido no decurso do processo é levada em conta para o efeito da condenação em custas, de acordo com o disposto no artigo 536.º.

Artigo 620.º
Caso julgado formal
1- As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
2- Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630.º.

Artigo 630.º
Despachos que não admitem recurso
1- Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário.
2- Não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual, proferidas nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º, das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º e das decisões de adequação formal, proferidas nos termos previstos no artigo 547.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios.

Apreciação da questão suscitada pelo recurso

A.–Efeitos da declaração de nulidade do despacho que não admitiu o articulado superveniente junto pela ré

16.-A questão suscitada pela recorrente prende-se com a ofensa ao caso julgado, ou seja, segundo este Tribunal julga perceber, a recorrente defende, embora sem indicar claramente que disposições legais entende terem sido violadas, que o despacho recorrido viola o caso julgado formado pela decisão sumária proferida pelo Tribunal da Relação no âmbito deste processo, mencionada no parágrafo 11.

17.–Convém recordar que se formou caso julgado meramente formal, circunscrito ao processo, quanto à decisão que extinguiu a instância recursiva por causa diversa do julgamento (artigos 277.º - e) e 620.º do CPC), a saber, a decisão sumária da Relação mencionada no parágrafo 11. Importa também clarificar que, quanto à decisão interlocutória da Relação mencionada no parágrafo J – que anulou o despacho que rejeitou o articulado superveniente da ré e substituiu tal despacho por outro que o admitiu – a mesma encontra-se abrangida pelo disposto no artigo 630.º n.º 2 do CPC; porém, afigura-se que dá lugar à formação de caso julgado formal na medida em que contende com a aquisição processual de factos, neste caso de factos supervenientes (cf. artigos 5.º e 611.º do CPC).

18.–Dito isto, o que está em causa é decidir se é possível alargar os efeitos do caso julgado aos motivos da decisão da Relação mencionada no parágrafo 11. Para isso, este Tribunal levará em conta a seguinte doutrina: Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, páginas 714 a 719; Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, Volume III, Almedina, Coimbra, páginas 398 a 404; Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, páginas 327 a 335.

19.–Nos termos do artigo 621.º do CPC, a decisão da Relação mencionada no parágrafo 11 constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, nele se incluindo as questões a que alude o artigo 91.º n.º 1 do CPC. Com efeito, à luz do artigo 91.º do CPC, o Tribunal competente para uma acção, é competente para conhecer de todos os incidentes que nela se levantarem e de todas as questões que o réu suscitar como meio de defesa. Sendo que, para efeito desta disposição legal, os incidentes serão aqui entendidos em sentido lato, como questões que tenham de ser previamente resolvidas para estatuir sobre a pretensão do autor e não na acepção estrita dos artigos 292.º a 361.º do CPC.

20.–A esse propósito, resulta dos pontos 14 e 15 da decisão sumária da Relação mencionada no parágrafo 11, que se levantou no processo um incidente sobre o interesse da ré em que fosse levado em conta o articulado superveniente admitido pela decisão interlocutória da Relação, proferida no apenso J, mencionada no parágrafo 9. Embora a ré nada tenha alegado em sua defesa quanto a esse incidente, o certo é que o incidente foi levantado pelo Tribunal de primeira instância que dele conheceu nos seguintes termos:  em vez de admitir o articulado superveniente e repetir o julgamento, em obediência à decisão do Tribunal da Relação proferida no apenso J, perante o silêncio da ré quando foi notificada para se pronunciar sobre essa questão incidental, o Tribunal a quo decidiu mandar subir o recurso de apelação da sentença entretanto proferida, na qual não foi levado em conta esse articulado superveniente junto pela ré.

21.–Porém, à luz do disposto no artigo 195.º do CPC, mostrava-se necessário resolver um problema: determinar os efeitos na nulidade resultante do error in judicando da decisão que, em primeira instância, não admitiu o articulado superveniente da ré, que o Tribunal da Relação, no apenso J, revogou por julgar que ofendeu os artigos 588.º n.ºs 1 e 4 e 596.º do CPC. Ora, é forçoso constatar que a violação desses preceitos não constitui uma nulidade principal, mas uma mera irregularidade. Tal irregularidade, porém, produziu a nulidade do despacho da primeira instância que não admitiu o articulado superveniente da ré, por influir na decisão da causa, como julgou o Tribunal da Relação na decisão sumária proferida no apenso J, mencionada supra no parágrafo 9.

22.–Neste contexto, não se afigura controverso entre as partes que os efeitos da nulidade implicam que os temas de prova tenham de ser ampliados em resultado da admissão do articulado superveniente da ré e do contraditório sobre o mesmo, que a sentença proferida tenha de ser considerada nula e proferida nova sentença, nem que o julgamento tenha de ser repetido levando em conta os novos temas de prova e os meios de prova cuja produção tenha entretanto sido requerida e admitida.

23.–O que é controverso no presente recurso é saber se a prova já produzida relativamente aos temas de prova inicialmente seleccionados deve também ser anulada por depender absolutamente do despacho anulado ou, se a prova já produzida pode ser aproveitada, por não ser prejudicada por essa nulidade e dela ser independente. E nesse caso, qual o âmbito do novo julgamento.

24.–Sobre tal questão não se pronunciou a decisão sumária da Relação, proferida no apenso J que. anulou o despacho que não admitiu o articulado superveniente da ré. Assim, afigura-se que o Tribunal da Relação, na decisão proferida no apenso J, deixou ao Tribunal de primeira instância a tarefa de aplicar em concreto o disposto no artigo 195.º n.ºs 2 e 3 do CPC, nos termos do qual: “2 - Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes. 3 - Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo.”

25.– No entanto, ainda que a título incidental e na fundamentação, a decisão da Relação mencionada no parágrafo 11 decide essa questão, resolvendo o problema acima enunciado no parágrafo 23, como se segue: “Porém, o cumprimento do decidido no Apenso J implica, forçosamente, a invalidação de todo o processado após a apresentação do referido Articulado Superveniente, devendo o tribunal a quo extrair todas as consequências legais decorrentes da decisão de admissão daquele articulado, nomeadamente, nos termos do art. 588º nº 4 e 6 do CPC, ordenando a notificação da parte contrária para sobre ele exercer o contraditório e, ampliar o objecto do litígio e os temas de prova com os factos nele articulados que interessam à decisão da causa, tal como ficou superiormente decidido, submetendo-os a novo julgamento, findo o qual deverá proferir nova sentença.”

26.–Pelo que, atendendo ao disposto no artigo 91.º n.º 1 do CPC, afigura-se que o caso julgado formal abrange os fundamentos da decisão da Relação acima mencionados no parágrafo 25 nos termos dos quais, importa cumprir o contraditório, adicionar os temas de prova em questão, submeter a julgamento os temas de prova que forem adicionados e depois proferir nova sentença.

27.–A invalidade de todo o processado subsequente, que é referida na decisão da Relação mencionada no parágrafo 11, é aí concretizada pelo Tribunal da Relação nos termos transcritos no parágrafo 25, no que diz respeito às fases da instrução e julgamento, sem que essa concretização mencione a anulação de toda a prova já produzida, ou da selecção dos temas de prova já anteriormente feita, o que seria, aliás, contrário ao princípio da conservação dos actos consagrado no artigo 195.º n.ºs 2 e 3 do CPC, aplicável às nulidades secundárias como a que foi objecto da decisão sumária da Relação proferida no apenso J. Com efeito, o que é afectado pelo despacho anulado por via de recurso, no apenso J, por dele depender absolutamente, não é a selecção dos temas de prova já feita nem a prova produzida sobre eles, mas apenas a apreciação dessa prova, assim como a necessidade de garantir o contraditório após admissão do articulado superveniente, de aditar temas de prova, de admitir os meios de prova sobre os factos supervenientes, de repetir o julgamento sobre a prova já constituída e constituenda e de proferir nova sentença.

28.–A esse propósito, na interpretação do artigo 195.º do CPC importa levar em conta a unidade do sistema jurídico (artigo 9.º n.º 1 do Código Civil). Ora, à luz desse critério interpretativo, é forçoso constatar que, nos termos do artigo 589.º do CPC, a apresentação do articulado superveniente pode ter lugar depois da marcação da audiência final, sem que isso obste à produção de prova relativamente à restante matéria em discussão. Com efeito, nesse caso a audiência só se interrompe se houver inconveniente na produção imediata dos restantes meios de prova, designadamente quando a inquirição de meios de prova oral sobre os temas de prova inicialmente fixados deva abranger também os temas de prova aditados. Acresce que, o artigo 419.º do CPC admite a possibilidade de a prova ser produzida antecipadamente, desde que, tratando-se de prova oral, esta seja gravada, como prevê o artigo 294.º n.º 2 do CPC, formalidade cujo cumprimento não foi posto em causa pela recorrente. De onde se extrai que, a validade da prova já produzida, desde que gravada e documentada, não depende absolutamente da nulidade do despacho que não admitiu o articulado superveniente; o que depende desse despacho é a apreciação dessa prova, ou seja, o juízo que recaiu sobre a mesma, que deve ser feito novamente.

29.–Enfim, contrariamente ao que parece defender a recorrente, é a admissão do articulado superveniente e não a repetição dos meios de prova já produzidos, que dá resposta ao princípio da atendibilidade dos factos supervenientes para que a decisão corresponda à situação existente no momento da decisão (cf. artigo 611.º n.º 1 do CPC).

30.–Assim, à luz dos princípios da conservação dos actos processuais, da equidade do processo e da adequação formal às especificidades da causa, previstos nos artigos 195.º, 547.º e 589.º do CPC, afigura-se que cabe ao Tribunal de primeira instância proceder à adequação formal necessária para dar cumprimento integral às decisões da Relação proferidas em recurso, que, neste caso, se afigura terem ambas força de caso julgado dentro do processo, pelos motivos acima explicados. Em consequência, a recorrente tem razão na parte em que defende que, para garantir um processo equitativo, o julgamento – nele incluída a audiência e a sentença – não pode limitar-se aos temas de prova aditados, nem à apreciação da prova que venha a produzir-se sobre os mesmos. Porém, isso não implica que a prova já produzida não possa ser aproveitada; o que tem de repetir-se é apenas o juízo sobre a sua apreciação.

31.–Na verdade, para encontrar uma solução equitativa há que atender às especificidades da causa para alcançar as finalidades mencionadas nas decisões da Relação, quer a referida no parágrafo 11, quer a referida no parágrafo 9. Para isso, o Tribunal a quo deve levar em conta, nomeadamente, a necessidade de proferir nova sentença que reaprecie a totalidade da prova já produzida e aprecia a prova que se venha a produzir adicionalmente, fixe novamente a matéria de facto provada e não provada e emita um juízo conjunto, quer sobre os meios de prova já produzidos cuja validade se mantém, quer sobre os que se venham a produzir sobre os factos aditados. Deve ser esse o âmbito do novo julgamento. Assim, tendo sido concedido o contraditório, feito o alargamento dos temas de prova e admitidos meios de prova sobre os factos supervenientes, formalidades processuais cujo cumprimento não está em causa no presente recurso, afigura-se que o despacho recorrido deve ser revogado parcialmente e substituído por outro que:
  • Determine que, sendo nula a sentença proferida, será realizada nova audiência na qual será aproveitada a prova já produzida, que se mantêm válida e será reapreciada em conjunto com a prova que vier a produzir-se sobre os temas de prova aditados, seguindo-se nova sentença que emitirá um novo juízo sobre a totalidade da matéria de facto e das questões de direito com relevo para a decisão da causa;
  • Conceda prazo às partes para esclarecerem se, de entre os meios de prova já produzidos, pretendem a repetição de alguns, circunscrita aos temas de prova aditados em resultado da admissão do articulado superveniente e da resposta ao mesmo.

32.–No mais, deve manter-se o despacho recorrido apenas na parte em que dele decorre manter-se a validade dos meios de prova já produzidos, sobre os temas de prova inicialmente fixados.


Decisão

Acordam as Juízes desta secção em julgar parcialmente procedente o recurso e, em conformidade:
I.– Revogar parcialmente o despacho recorrido substituindo-o por outro que determina que, sendo nula a sentença proferida, será realizada nova audiência na qual será aproveitada a prova já produzida, que se mantêm válida e será reapreciada em conjunto com a prova que vier a produzir-se sobre os temas de prova aditados, seguindo-se nova sentença que emitirá um novo juízo sobre a totalidade da matéria de facto e das questões de direito com relevo para a decisão da causa.

II.–Ordenar à primeira instância que, após baixa dos autos, notifique as partes para, em 10 dias, esclarecerem se, de entre os meios de prova já produzidos, pretendem a repetição de alguns, circunscrita aos temas de prova aditados em resultado da admissão do articulado superveniente e da resposta ao mesmo.

III.–Manter o despacho recorrido apenas na parte em que dele decorre manter-se a validade da prova produzida sobre os temas de prova inicialmente fixados.

IV.–Condenar em custas ambas as partes, na proporção do decaimento, que o Tribunal fixa em ½ a cargo da autora e ½ a cargo da ré – artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC.



Lisboa, 11 de Janeiro de 2023



Paula Pott - (relatora)

Eleonora Viegas - (1.ª adjunta)

Ana Mónica Pavão - (2ª adjunta)