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CONTRATO PROMESSA
FORMALIDADE AD SUBSTANTIAM
ABUSO DE DIREITO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
SINAL
Sumário
I – O artigo 410.º, n.º 3, do Código Civil, estabelece uma regra de carácter imperativo, que visa tutelar, em especial, a posição do promitente-comprador, obrigando ao reconhecimento presencial de assinaturas (devidamente autenticado) no texto que formaliza a promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a constituir. II - Trata-se de uma formalidade ad substantiam cuja inobservância num contrato-promessa onde a mesma era imposta determina a nulidade desse contrato, atípica, que não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, podendo ser sempre invocada, a todo o tempo, pelo promitente que promete adquirir o direito, salvo se a sua invocação, dadas as circunstâncias em que é exercida, corresponder a abuso de direito (artigo 334.º do Cód. Civil). III - O abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, que, conforme entendimento doutrinal e jurisprudencial, poderá assumir relevância como forma de paralisar os efeitos da nulidade do negócio, - pressupõe um determinado comportamento anterior que é incompatível ou contraditório com essa invocação; exigindo-se um comportamento consistente e reiterado que seja bastante para criar no outro contraente uma confiança séria e legítima de que a nulidade não irá ser invocada, de tal modo que o exercício desta pretensão – que vem defraudar a expectativa e confiança adquirida com base naquele comportamento anterior – corresponda a uma clamorosa e intolerável ofensa ao principio da boa-fé e ao sentimento de justiça geralmente partilhado pela comunidade. IV - No caso dos autos, assumindo as contraentes faltosas (promitentes-compradoras) perante a outra parte uma conduta expressa e inequívoca de repúdio do contrato-promessa de compra e venda, em termos tais que não subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua vontade (e propósito) de não outorgar o contrato prometido, tal comportamento, equiparado à inexecução da prestação dentro de prazo razoável, tem efeito extintivo do vínculo contratual. V - Perante um tal posicionamento das devedoras (promitentes-compradoras), de inequívoco e definitivo repúdio do contrato-promessa, qualquer interpelação cominatória da iniciativa do credor seria um acto inútil e destituído de justificação. VI - Estando em causa um contrato-promessa de compra e venda com sinal passado, assiste à credora (promitente-vendedora) a faculdade de retenção do sinal prestado (artigo 442.º, n.º 2, 1.ª parte, do Cód. Civil). (Sumário elaborado pelo relator).
Texto Integral
Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - Relatório[[1]]
1.1. AA … e BB… intentaram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra “CC…, Lda.”, pedindo que seja a acção considerada totalmente procedente e em consequência:
a) ser reconhecido o erro sobre o objeto do negócio em que incorreu na sua declaração negocial com a consequente anulação do contrato-promessa e a condenação da Ré a devolver o montante recebido a título de sinal e juros desde a citação, até efetivo e integral pagamento;
E, caso assim não se entenda,
b) que seja reconhecida e declarada a nulidade desse contrato por falta de forma legalmente exigida, condenando-se a Ré a devolver o montante recebido a título de sinal, acrescido de juros desde a mesma data;
E, cumulativamente,
c) ser a Ré condenada em indemnização às Autoras nos termos do art.º 227º, do Código Civil no valor correspondente aos juros à taxa legal em vigor calculados sobre o sinal, que se venceram desde a assinatura do contrato-promessa e dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento.
Alegam, para tanto, em resumida síntese, que:
. a Ré é proprietária de imóvel que pôs à venda através de mediação imobiliária;
. as Autoras visitaram o imóvel e vieram a outorgar, como compradoras, em contrato-promessa de compra e venda;
. só depois da celebração deste contrato, as Autora receberam a documentação respeitante ao imóvel;
. na posse dessa documentação, pediram empréstimo bancário, mas, a avaliação feita pelo banco revelava que a realidade física do imóvel não coincidia com a realidade documental e, por causa dessa desconformidade, o imóvel foi avaliado por valor inferior ao valor de que as Autoras careciam para a compra;
. em face dessa situação, as Autoras pediram à mediadora que solicitasse à Ré que diminuísse o preço da venda de forma a que as Autoras conseguissem comprar a casa;
. a Ré não aceitou e as Autoras pediram à mediadora que comunicasse à Ré a resolução do contrato e a restituição do sinal, o que a Ré não aceitou fazer;
. mais tarde, a Ré aceitou baixar o preço da venda, mas, dado o tempo decorrido, as Autoras já tinham perdido o interesse na casa; . as Autoras prometeram comprar casa no pressuposto de que estava devidamente legalizada e licenciada, o que a Ré sabia que não sucedia; além do que
. as partes prescindiram, no contrato-promessa, do reconhecimento presencial das assinaturas, mas, essa é formalidade essencial à validade do contrato.
1.2. Citada, a Ré veio contestar alegando, em suma, que, efetivamente, celebrou com as ora Autoras o contrato-promessa em causa e que para que se conseguisse concretizar o negócio a ora Ré acedeu a baixar o valor de venda, mas foram as Autoras que perderam o interesse na compra, sendo-lhes imputável o incumprimento do contrato-promessa.
1.3. Foi proferido despacho saneador tabelar e enunciaram-se os temas da prova.
1.4. Realizou-se a audiência de julgamento, numa única sessão e com observância do legal formalismo conforme resulta da respectiva acta.
1.5. Em 20-07-2022 veio a ser proferida sentença (ref.ª 137721237), cujo segmento dispositivo aqui se transcreve:
“Tudo visto e ponderado, decide este Tribunal julgar a presente ação parcialmente procedente, e, assim, declara-se a nulidade do contrato-promessa objeto dos autos e, consequentemente, condena-se a Ré a devolver às Autoras o montante de 10.000,00€ (dez mil) euros, acrescido de juros de mora vencidos desde 20-1-2021 e vincendos até efetivo e integral pagamento; absolvendo-se a Ré do demais peticionado pelas Autoras.
Mais se decide julgar improcedente o pedido de condenação da Ré como litigante de má-fé.
Custas pela Ré - art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”
*
1.6. Inconformada com a sua sucumbência, a Ré interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por acórdão que julgue o pedido das Recorridas improcedente “in totum”.
Formulou, para tanto, alegações que remata com as seguintes conclusões:
«A. Diante de toda matéria dada como provada e não provada nos presentes autos, deve ser revogada a decisão preferida pelo Tribunal “a quo”, considerando assim o manifesto abuso de direito por parte das recorrentes no caso em tela;
B. Porque a recorridas teriam a obrigação de informar acerca do resultado da avaliação bancária até o dia 24/07/2020, cfr. cláusula 5ª do respetivo CPCV.
C. Facto que só chegou ao conhecimento da Recorrente no dia 16-08-2020 informaram mediadora FR, tendo a mesma depositado todas suas expectativas na realização da Escritura definitiva.
D. Restou comprovado também que comprova também que logo após a comunicação das autoras, pouco tempo depois o réu aceitou em baixar o valor do imóvel para €155.000,00, assim retirando o valor solicitado de €20.000,00, amoldando desta forma o negócio as possibilidades das Autoras.
E. Sendo certo que tal facto revela o investimento de confiança depositado pela Recorrente na estabilidade definitiva do contrato-promessa;
F. Desta forma, a Recorrente acreditou que a Escritura sempre fosse se realizar;
G. Até porque o contrato estava vigente e as Recorridas teriam a obrigação legal de cumpri-lo, não podendo exigir a devolução do sinal pago, sem, contudo, terem cumprido com o requisito previsto contratualmente;
H. Todavia, para surpresa da Recorrente, as Recorridas ainda no prazo de vigência do CPCV celebrado, estavam a realizar tentativas para aquisição uma outra casa, o que demonstra mais um indício da ausência de boa-fé por parte das Recorridas.
I. Concluindo que a conduta das Recorridas está revestida de vício, sendo como tal integrante do abuso de direito.
J. Sobretudo porque causou uma expectativa de venda do imóvel por parte da Recorrente, que teve que tirar seu imóvel do mercado por todo tempo de vigência do contrato, sendo certo que o bem estava à disposição das Recorridas, que mesmo assim, ao seu belo prazer optaram por adquirir outro imóvel.
K. Não obstante ao fato das Recorridas terem o dever legal e moral de se submeter e cumprirem com o clausulado do respetivo contrato-promessa firmado com a Recorrente.
L. Nunca poderá se considerar que as Recorridas tenham agido desprovidas de abuso de direito previstos no art.º 334º Código Civil.
M. Ou seja, as condutas contraditórias das Recorridas frustraram a confiança criada pela Recorrente em relação à situação, o que configura uma violação qualificada do princípio da confiança, sendo certo que as relações entre as pessoas pressupõem um mínimo de confiança sem a qual não seriam possíveis.
N. De outra forma, diz-se que o caso em apreço é paradigmático do abuso de direito da Recorrente, o qual deveria ter sido reconhecido pelo Tribunal, e uma vez que não foi, merece ser reformado.
O. Até porque a conduta das Recorridas contrariou todos os ditames da boa-fé, portanto não podemos dessa forma concordar com a nulidade reconhecida pelo Juiz “a quo”.
P. Assim, uma vez que as Recorridas adotaram um comportamento que teve a idoneidade para criar na Recorrente uma convicção séria, que aquela iria cumprir o negócio e não iria em momento algum invocar a nulidade.
Q. Nomeadamente porque nunca havia pensado que o contrato-promessa celebrado viesse a ser incumprido.
R. Até porque essa sempre foi a intenção da Recorrente que, como já dito manteve sempre o imóvel a disposição das Recorridas para Escriturar.
S. Entretanto, como as mesmas perderam definitivamente a intenção de dar seguimento ao negócio, posto que perderam o interesse no imóvel.
T. Ora, no caso dos autos nunca poderá se considerar que a conduta das Recorridas está revestida de boa-fé, pelo contrário.
U. Primeiro as Recorridas se utilizaram de diversos subterfúgios com o intuito único de desfazer o negócio celebrado com o Recorrente.
V. Deve ser considerado que a conduta das Recorridas foi abusiva e reveladora do abuso de direito, isso porque as mesmas nunca iriam conseguir dar cumprimento ao estipulado pelo CPCV celebrado.
W. Uma vez que receberam o resultado da avaliação bancária após o prazo para comunicação a Recorrente previsto no contrato-promessa, ou seja, no dia 11-08-2020, tendo o prazo decorrido no dia 24-07-2020, portanto se tronou impossível dar cumprimento a previsão legal.
X. No entanto, tal conduta é inadmissível, posto que a recorrente depositou toda sua convicção na questão, sempre acreditando que a Escritura definitiva fosse se realizar.
Y. Isto porque, o CPCV já havia sido celebrado a mais de um mês quando tomou conhecimento da questão atinente ao crédito bancário, tendo superado a situação com a redução do valor para escriturar o imóvel.
Z. Ocorre que mesmo a Recorrente ajustando o negócio para se enquadrar nas possibilidades da Recorrida, as mesmas optaram por comprar outra casa.
AA. Nesse contexto, temos que ter em consideração que esse tempo que o imóvel fica à disposição de um cliente, sem que o mesmo volte para o mercado, ou até mesmo seja vendido, acarreta um prejuízo palpável para a Empresa
BB. Principalmente em se tratando de uma Empresa que tem como objeto social a compra e venda de imóveis para revenda, que é o caso da Recorrente.
CC. Por todo o exposto, restou patente nos presentes autos, sendo perfeitamente perceptível que a Recorrida agiu com abuso de direito, vindo a abalar o investimento de confiança da Recorrente que foi depositado na estabilidade de que o contrato-promessa fosse celebrado definitivamente.
DD. Sendo assim, deve ser reformada a Sentença proferida nos presentes autos, reconhecendo que agiram com abuso de direito, e, consequentemente deverão perder o valor do sinal pago a título de sinal.»
1.7. As Autoras apresentaram contra-alegações que concluíram nos seguintes termos:
«a) Vem o recurso interposto da decisão do Tribunal a quo que julgou a presente ação Tudo visto e ponderado, decide este Tribunal julgar a presente ação parcialmente procedente, e, “assim, declara-se a nulidade do contrato-promessa objeto dos autos e, consequentemente, condena-se a Ré a devolver às Autoras o montante de 10.000,00 (dez mil) euros, acrescido de juros de mora vencidos desde 20-1-2021 e vincendos até efetivo e integral pagamento; absolvendo-se a Ré do demais peticionado pelas Autoras.
Mais se decide julgar improcedente o pedido de condenação da Ré como litigante de má-fé.
Custas pela Ré - art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.”
b) A decisão proferida não merece nenhum reparo, pelo que deverá ser mantida, como a seguir se demonstrará.
c) Donde resulta claro que todos os factos dados como provados tem suporte na prova produzida ou por confissão/acordo das partes,
d) E nos mais, a nulidade do contrato promessa é clara e inequívoca, pelo que não podia o Douto Tribunal a quo decidir de forma inversa.
e) De facto, o presente recurso não é mais do que um meio dilatório para não cumprir ou lograr forma de não cumprir com a devolução do sinal a que a Ré está adstrita.
f) E no que ao abuso de direito concerne, choca o alegado quando dos autos resulta provado que a Ré prometeu vender a 2 pessoas e outorgou 2 contratos promessa do mesmo imóvel.
g) De facto, aos 10/02/2022, na Audiência de discussão e Julgamento, as Autoras, através do depoimento de parte da Ré, tiveram conhecimento de que o imóvel objecto dos presentes autos havia sido vendido a terceiro.
h) Venda essa, ocorrida na sequência da celebração de um contrato promessa de compra e venda celebrado com o Sr. PM, aos 01/10/2020.
i) Pelo que, aos 30/09/2020, data em que a Ré enviou uma carta – a qual já consta dos autos - para as Autoras, na qual afirmou aceitar celebrar o negócio prometido às Autoras, era do conhecimento da mesma que, no dia imediatamente seguinte àquele iria celebrar um contrato promessa de compra e venda com o actual proprietário do imóvel.
j) Ao arrepio de tudo aquilo que dita a boa-fé e a legalidade, insolitamente, veio a Ré, aos 15/10/2020 e, portanto, já após a celebração do contrato promessa de compra e venda com o Sr. PM, remeter nova carta às Autoras, através da qual dá conhecimento às mesmas que a escritura referente ao imóvel já prometido a terceiro, se encontrava agendada para o dia 29/10/2020.
k) Ora, com este comportamento, a Ré escondeu intencionalmente às Autoras que havia prometido o mesmo imóvel a terceiro, simultaneamente, reforçando junto daquelas de que era sua intenção prosseguir com o negócio que lhes havia sido prometido.
l) Torna-se assim, inequívoco, que a Ré adotou uma postura de má-fé para com as Autoras, desconsiderando, em absoluto, o negócio já celebrado com estas, portanto litiga de má-fé ao peticionar sejam as Autoras/Recorridas condenadas por abuso de direito.
m) Acresce que, a má-fé manifestada pela Ré, não se esgota com a promessa de venda a terceiro, na medida em que, a mesma esteve presente desde o início das negociações prévias ao contrato promessa de compra e venda.
n) A má-fé contratual da Ré é particularmente evidente quando se analisa o teor da Cláusula 5.ª do CPCV, da qual resulta, expressamente, que, a não obtenção de financiamento bancário apenas daria lugar à devolução do sinal já entregue, se tal facto, fosse comunicado à Ré, por carta registada com AR, num período não superior a 10 (dez) dias, a contar da data de assinatura do contrato, ou seja, a partir de 14/07/2020.
o) Ora, a Ré, face à atividade que desenvolve, não podia desconhecer, aliás, estava obrigada a saber, que um prazo de 10 (dez) dias a contar da celebração de um CPCV é sobejamente insuficiente para conseguir obter aprovação bancária e ainda, comunicar tal facto, através de carta registada com AR.
p) Assim, não podemos deixar de concluir que, a inclusão da cláusula em análise teve como único objetivo garantir que a Ré arrecadava, pelo menos, €10.000,00 (dez mil euros), independentemente, do desfecho das negociações; ao mesmo tempo que dava a aparência de estar a salvaguardar a posição contratual das Autoras.
q) Estando em causa um processo de formação de um contrato, as partes estavam sujeitas a agir em boa-fé, desde logo, por força do artigo 227.º do CC; o que impunha à Ré, enquanto promitente vendedora, esclarecer as Autoras quanto ao verdadeiro alcance das cláusulas incluídas no contrato promessa de compra e venda celebrado e, abster-se de incluir no mesmo cláusulas, claramente prejudiciais para as Autoras.
r) Ao ter agido contrariamente ao disposto no n.º 1 do artigo 227.º do CC, a Ré incorreu em responsabilidade por culpa na formação dos contratos, nos termos do n.º 2 deste preceito.
s) Acresce que, à data da celebração do CPCV, a Ré escusou-se de proceder à entrega da documentação ao imóvel prometido, levando a que as Autoras assinassem um contrato sem terem conhecimento da informação real e devidamente documentada do mesmo.
t) Situação que, só por si, preenche a previsão do artigo 227.º do CC; demonstrando, mais uma vez, a clara má-fé da Ré.
u) Ora, a entrega dos documentos em momento posterior à celebração do CPCV, levou a que as desconformidades legais com a realidade física do imóvel só fossem conhecidas pelas Autoras depois de estas se terem comprometido a adquirir o imóvel.
v) Caso tal conhecimento tivesse ocorrido no momento devido, ou seja, antes da assinatura do CPCV, as Autoras, jamais haviam celebrado tal contrato, pelo que, a omissão da Ré foi determinante para o desfecho das negociações; o que culminou na apresentação da presente acção.
w) A Ré, para além de não ter como desconhecer aquelas divergências, visto ser a proprietária do imóvel, agiu voluntariamente, no sentido de omitir as mesmas; até porque, a Ré procedeu a obras de alteração da tipologia do imóvel, sem que tivesse legalizado as mesmas, nos termos do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro.
x) Consequentemente, o conhecimento tardio destas desconformidades no imóvel, por culpa exclusiva da Ré, levou a que o banco não aprovasse o crédito nos termos peticionados pelas Autoras, já que o pedido inicial referia um imóvel de tipologia T4, quando na verdade, a documentação legal descrevia um imóvel de tipologia T2.
y) O que, mais uma vez é demonstrativo da má-fé e mais, do dolo da Ré, ao longo de todo o processo pré-contratual.
z) Por outro lado, desde Agosto de 2020 que era do conhecimento da Ré da impossibilidade das Autoras celebrarem o contrato prometido, por consequência da não obtenção de crédito bancário, motivo que se deveu, exclusivamente, ao comportamento da Ré.
aa) Não obstante, a verdade é que a Ré veio sempre a insistir na celebração do contrato prometido, fixando datas para a celebração da escritura de compra e venda, bem sabendo que a mesma, naturalmente, não se iria realizar, por facto a ela, exclusivamente, imputável.
bb) Acresce a tudo isto que, a Ré alegadamente terá agendado a escritura de compra e venda do imóvel, para 04/11/2020, sem que disso desse conhecimento às Autoras, invocando, agora, a não comparência das mesmas, por forma a imputar a estas a culpa na não realização do negócio; aproveitando-se assim, do seu próprio comportamento, para arrecadar o montante pago a título de sinal.
cc) Factos estes que foram alegados e provados junto do tribunal a quo, que rejeitou a ampliação do pedido feito pelas Autoras.
dd) No mais, entendemos que efetivamente resultou até provado que a Ré sabia que o imóvel dos autos tinha áreas de construção não licenciadas, sendo sujeitas a licenciamento, o que omitiu às Autoras, porque decorre da prova produzida que foi a mesma que levou a cabo as obras não licenciadas;
ee) E que a Ré agiu de modo a ocultar das Autoras a divergência entre a descrição do imóvel nos documentos e a realidade física do prédio; e bem assim, de modo a ocultar que, por isso, o seu valor era bastante inferior ao expectável, de forma a levá-las a contratar sabendo que, de outro modo, jamais venderia o imóvel pelo valor pedido, o que resulta do facto da Ré ter a compra e revenda de imoveis por objecto social, saber o preço de mercado de um imóvel regularizado ou não, bem como do preço de um T2 ou 1 T4.
ff) Bem como o facto que a Ré conhecia as irregularidades do imóvel em momento prévio à assinatura do contrato promessa e, ainda assim, quis contratar nesses termos, o que decorre da prova produzida e da própria confissão da parte quando referiu na própria contestação que os documentos eram sempre entregues ao promitente comprador após a outorga do contrato promessa.
gg) Donde, s.m.o., deveriam os pontos supra estarem dados como provados, muito embora a consequência legal se reconduza à mesma solução jurídica, ou seja, a devolução do sinal pago à Ré.
hh) Muto embora se mantenha que deveria a Ré/Recorrente ser condenada em litigância de má-fé, por mentir e omitir deliberadamente os factos das Recorrentes e até do Tribunal, bem por litigar bem sabendo que a sua conduta foi e é censurável;
ii) O presente recurso nos coloca perante uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva, já que este comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito.
jj) Pelo que resulta clarividente que a Recorrente litiga de má-fé e as Autoras nunca litigaram em abuso de direito, pois tão só quiseram que fosse feita a tão costumada JUSTIÇA.
kk) Pelo exposto, deve a sentença recorrida ser mantida de forma integral!»
18. Foram colhidos os vistos legais.
II – Delimitação do objeto do recurso:
De acordo com o disposto nos artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer oficiosamente, estando esta Relação adstrita à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso (art.º 130º do CPC). Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
No caso, atendendo às conclusões do recurso, a questão fulcral a decidir é a da inalegabilidade da invocação da invalidade formal do contrato promessa, com base na figura do abuso de direito.
III – Fundamentação
A) Motivação de facto:
A Primeira Instância considerou provados e não provados os seguintes factos:
A.1) Factos provados:
1. A propriedade do imóvel consistente em casa de rés-do-chão para habitação, sótão para arrecadação e logradouro, com a área total de 220 m2, sendo 82 m2 de área coberta e 138 m2 de área descoberta, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 3…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras, freguesia de Torres Vedras (S. Maria do Castelo S. Miguel) sob o n.º … mostra-se inscrita em nome de “CC …, Lda.” por ter sido adquirido por adjudicação em Execução, conforme Ap... de 2018/09/18.
2. A ora Ré colocou este imóvel à venda através da mediadora imobiliária “FR, Mediação Imobiliária, Unipessoal, LDA”.
3. As ora Autoras, através da Plataforma eletrónica “IDEALISTA” viram o anúncio de venda do imóvel, o qual o anunciava como um “T4”, indicando na secção “comentários do anunciante” como “moradia T4 recuperada com espaço exterior” pelo valor de 175.000,00 euros.
4. Nesse anúncio publicitado, o imóvel figurava com as seguintes características: “Moradia T4 recuperada, com espaço exterior; Kitchenet; Sala com recuperador de calor; Cozinha semi equipada; Suite com 21 m2 e terraço; wc com cabine de hidromassagem; Escada em granito; Placa; forno, micro-ondas, exaustor; janelas com oscilo-batente em PVC com vidros duplos; Estores elétricos; Vídeo porteiro; Churrasqueira no exterior; varanda; Arrumos; Totalmente remodelada; Aproveitamento de sótão; piso flutuante; Poliban; A moradia encontra-se localizada muito próxima à cidade de Torres Vedras, em lugar muito sossegado com paisagem vinhateira, dispõe de área exterior. Para mais informações contactar: FR, Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda.”. Características específicas: Moradia independente, 2 andares, 128 m2 construídos, T4, 3 casas de banho, lote de 220 m2, terraço, varanda; Segunda mão/bom estado; Arrecadação; Orientação Este/Oeste”.
5. As ora Autoras contactaram aquela mediadora, na pessoa de FR e marcaram visita ao imóvel, que se realizou no dia 19 de junho de 2020, tendo-se fixado o valor em 173.000,00€.
6. As ora Autoras e a Ré outorgaram no “contrato-promessa de compra e venda”, datado de 14 de Julho de 2019, com cópia junta aos autos a fls. 22/23 e do qual não consta qualquer menção a ato de reconhecimento das assinaturas pelo notário.
7. Conforme consta deste contrato, no ato da sua assinatura, as ora Autoras entregaram à ora Ré o valor de 10.000,00 euros a título de sinal e princípio de pagamento.
8. Ficou convencionado neste contrato que este seria “automaticamente resolvido sem qualquer prejuízo para todas as partes intervenientes, com respetiva devolução do sinal entregue” se as ora Autoras não conseguissem obter financiamento bancário, desde que informassem a ora Ré, por carta registada com A.R. num período não superior a 10 (dez) dias a contar da data da assinatura deste contrato.
9. Após a celebração do “contrato-promessa” foi entregue a documentação do imóvel às ora Autoras.
10. Na posse da documentação do imóvel, as ora Autoras iniciaram os procedimentos para obtenção do empréstimo bancário tendo sido ordenada, pela entidade bancária, a avaliação do imóvel.
11. Conforme a caderneta predial do imóvel (artigo matricial … da freguesia de Santa Maria, São Pedro e Matacães) este consiste em casa de habitação de rés-do-chão e sótão, sendo, o rés-do-chão, com três assoalhadas, cozinha, casa de banho, marquise; e o sótão é composto por sala ampla para arrecadação e logradouro. Tipologia: T2.
12. Da avaliação efetuada pelo Novo Banco, com data de 11-8-2020, consta, quanto ao imóvel, designadamente, a menção a 1 (um) quarto, 1 (uma) sala, 1 (uma) cozinha, 1 (uma) casa de banco, 1 (um) terraço, 1 (um) sótão e 1 (um) quintal; e, bem assim, a seguinte observação: “Existe uma ampliação para tardoz, não registada e, por isso, não valorizada (quartos). Caso a documentação seja atualizada, a avaliação deverá ser revista.”.
13. Nessa sequência, a entidade bancária apenas aceitou emprestar às ora Autoras, para a compra da casa dos autos, certo montante baseado na avaliação do aludido imóvel, esta, no valor de 144.960,00 euros.
14. As Autoras reputaram esse valor de insuficiente para conseguirem adquirir o prédio dos autos pelo valor constante do contrato-promessa; e o banco não aceitou emprestar às Autoras o valor que estas pretendiam para a compra.
15. As Autoras informaram a mediadora do resultado da avaliação bancária solicitando-lhe, com esse fundamento, a negociação de valores com a Ré por forma a baixar o valor do imóvel e a tornar possível às Autoras a sua aquisição.
16. Num primeiro momento, a Ré não aceitou reduzir o valor da venda prometida.
17. As Autoras tinham muita urgência na compra de casa e reiniciaram as buscas para a compra de outra casa que vieram a adquirir.
18. Em 16 de Agosto de 2020, a mediadora FR, satisfazendo pedido das Autoras, dirigiu-se ao legal representante da ora Ré dando conta de que o negócio de compra e venda não podia realizar-se porque o imóvel havia sido avaliado pelo banco por valor muito abaixo do valor de que as Autoras necessitavam; e, por isso, solicita à Ré o reembolso do valor transferido aquando do contrato-promessa (10.000,00 euros) para o IBAN das Autoras.
19. Em data concretamente não apurada, mas, anterior a 20-8-2020, as ora Autoras entraram em contacto telefónico com a Ré, pretendendo a restituição do sinal prestado, dado que as Autoras pretendiam adquirir outra casa.
20. Em 20-8-2020, as ora Autoras foram contactadas por FR que lhes comunicou que o Sr. FM, representante da Ré, se disponibilizava a baixar 15.000,00 euros na venda da moradia em apreço.
21. As Autoras tinham urgência na aquisição de casa e, a essa data, já haviam cuidado de se comprometer na aquisição de outra casa, razão pela qual não aceitaram essa proposta.
22. Da cláusula 11ª do “Contrato-Promessa de Compra e Venda” consta: “Ambos os outorgantes prescindem do reconhecimento notarial das assinaturas de acordo com o disposto pelo art.º 410.º, nº 3, do Código Civil, não podendo invocar a nulidade do contrato por esse facto.
23. Em 25 de Setembro de 2020, FR transmitiu às ora Autoras que a Ré acedia em baixar o valor do imóvel para 155.000,00 euros, assim retirando o valor solicitado de 20.000,00 euros.
24. E em 15 de Outubro de 2020, a Ré, por carta, veio convocar as Autoras para a realização de escritura de compra e venda a realizar em 29 de outubro de 2020.
25. A propriedade do imóvel objeto dos autos mostra-se inscrita em nome de PM, conforme Ap. … de 2020/11/18, por ter sido adquirida por compra.
A.2) Factos não provados:
1. A Ré sabia que o imóvel dos autos tinha áreas de construção não licenciadas, sendo sujeitas a licenciamento, o que omitiu às Autoras.
2. A Ré agiu de modo a ocultar das Autoras a divergência entre a descrição do imóvel nos documentos e a realidade física do prédio; e bem assim, de modo a ocultar que, por isso, o seu valor era bastante inferior ao expectável, de forma a levá-las a contratar sabendo que, de outro modo, jamais venderia o imóvel pelo valor pedido.
3. A Ré sabia que, em virtude das irregularidades do bem, o montante financiado pelo banco nunca seria suficiente para concretizar o negócio nos moldes clausulados.
4. A Ré conhecia as irregularidades do imóvel em momento prévio à assinatura do contrato promessa e, ainda assim, quis contratar nesses termos.
5. As Autoras perderam o interesse no negócio prometido por causa dos vícios do negócio/ do imóvel.
6. A Ré publicitava o imóvel como “moradia T4” induzindo as Autoras voluntária e conscientemente em erro-vício, pois que publicitaram o imóvel para venda com características que sabiam que o imóvel não tinha nem podia ter.
B) Mérito do recurso:
A Recorrente não se conforma com a decisão recorrida que, julgando procedente o pedido subsidiário formulado pelas Autoras, ora Recorridas, declarou a nulidade do CPCV objecto dos autos e, consequente, condenou a Recorrente a devolver às Recorridas o montante de €10.000,00 (dez mil euros), acrescido de juros de mora vencidos desde 20-01-2021 e vincendos até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a dos demais pedidos.
Não está em causa a qualificação jurídica do contrato ajuizado como contrato-promessa de compra e venda, nem existe divergência entre as partes relativamente ao regime jurídico aplicável ao caso, pelo que nos dispensamos de qualquer consideração sobre a referida temática.
A discordância da Recorrente com o decidido circunscreve-se à questão da nulidade do CPCV, por falta de reconhecimento notarial das assinaturas (artigo 410.º, n.º 3, do Cód. Civil), não lhe merecendo censura a solução jurídica que foi dada às questões da anulação do CPCV com fundamento em erro sobre o objecto (pedido principal) e da litigância de má-fé da Recorrente, nem o entendimento vertido na sentença recorrida de que a cláusula 11.ª do CPCV, que estipula a renúncia das partes ao reconhecimento notarial das respectivas assinaturas, é nula, por contrariar norma imperativa e interesses de ordem pública.
E fundamenta a sua irresignação no entendimento de que as Recorridas não poderiam ter invocado a nulidade do CPCV, por falta de reconhecimento notarial das assinaturas, face ao teor da cláusula 11.ª, nos termos da qual as partes contratantes acordaram prescindir do referido reconhecimento e não poderem invocar o referido vício de forma.
Na sua perspectiva, as Recorridas actuaram com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, nos termos do artigo 334.º do Cód. Civil, em contradição com a conduta anteriormente assumida e os ditames da boa-fé, a frustrar a confiança criada na Recorrente em relação à situação futura.
As circunstâncias que a Recorrente aponta como reveladoras da conduta dolosa e abusiva das Recorridas são as seguintes:
- “a) O CPCV foi celebrado e assinado no dia 14/07/2020;
b) As recorridas teriam a obrigação de informar acerca do resultado da avaliação bancária até o dia 24/07/2020, cfr. cláusula 5ª do respetivo CPCV;
c) (…) as Autoras tiveram o resultado da avaliação bancária no dia 11-08-2020, em seguida no dia 16-08-2020 informaram mediadora FR que, por solicitação das autoras estava a comunicar tais fatos a Ré;
d) (…) logo após a comunicação das autoras, pouco tempo depois o réu aceitou em baixar o valor do imóvel para €155.000,00, assim retirando o valor solicitado de €20.000,00, amoldando desta forma o negócio as possibilidades das Autoras;
e) Tal facto é revelador do investimento de confiança na estabilidade definitiva do contrato-promessa;
f) O que fez com que o Recorrente acreditasse que a Escritura sempre fosse se realizar;
g) Até porque o contrato estava vigente e as Recorridas teriam a obrigação legal de cumpri-lo, não podendo exigir a devolução do sinal pago, sem contudo terem cumprido com o requisito previsto contratualmente;
h) Todavia, para surpresa da Recorrente, as Recorridas ainda no prazo de vigência do CPCV celebrado, estavam a realizar tentativas para aquisição uma outra casa”.
*
A Exma. Senhora Juíza a quo, na linha da doutrina e jurisprudência maioritárias, considerou que a violação do preceituado no n.º 3 do artigo 410.º do Cód. Civil (falta de reconhecimento das assinaturas do promitente ou promitentes) constitui uma nulidade atípica que carece de ser invocada pelas partes. E que “sendo a nulidade invocada pelos promitentes-compradores, a mesma pode ser feita a qualquer tempo, nem necessidade de mais; sendo invocada pelo contraente que promete transmitir ou constituir o direito, fica dependente de a omissão dos requisitos ter sido culposamente causada pela outra parte – cfr. decisão em que se expressa esta realidade jurídica e se decide em conformidade, o Ac. STJ, de 08-06-2010, Relator: Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt.”
E, alinhada com o entendimento expresso no Acórdão STJ, de 4-7-2013 (Relator: Pires da Rosa, também, disponível em www.dgsi.pt.), defendeu que “não obstante, do contrato-promessa, possa constar que se dispensa o reconhecimento das assinaturas, e que a nenhuma das partes outorgantes é lícito invocar qualquer nulidade, seja a que título for, designadamente daí adveniente, uma tal cláusula será nula; e isto por contrariar norma de interesse e ordem pública, que pretende defender justamente os promitentes compradores – normalmente a parte mais fraca – contra a sua fraqueza negocial.”
E, assim, sendo nula tal cláusula, podem os promitentes-compradores invocar a nulidade do contrato, não obstante este tipo de cláusula conste do contrato que assinaram.”
Tal como a Recorrente, só podemos sufragar este entendimento, pela sua correcção, no que toca à interpretação e aplicação do direito.
No entanto, já divergimos da sentença recorrida no que concerne à solução jurídica dada à questão da inalegabilidade do vício formal do CPCV, ou seja, quanto ao entendimento expresso na sentença recorrida de que nada impede as Autoras de obterem a declaração da nulidade que peticionam, por preterição da formalidade ad substantiam exigida pelo n.º 3 do artigo 410.º do Cód. Civil (falta de reconhecimento das assinaturas dos promitentes).
Ao contrário do defendido na sentença recorrida, entendemos que a factualidade que resultou provada permite concluir que as Autoras (promitentes-comparadoras) actuaram em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto efectuaram ao longo de vários meses - desde a outorga do CPCV em 14-07-2019 até 16-08-2020 - diversas e elucidativas comunicações à Ré, promitente-vendedora, ainda que por intermédio da mediadora imobiliária, que pressupõem a intocada validade do contrato-promessa que subscreveram (sem a formalidade necessária) e a vontade de concretização da negócio prometido (realização da escritura da compra e venda), apenas se tendo lembrado de invocar o vício formal previsto no artigo 410.º, n.º 3, do Cód. Civil, aquando da interposição da presente acção, em 23-10-2020.
Como refere o Prof. Menezes Cordeiro[[3]] “(…) admitimos hoje que os próprias normas formais cedem perante o sistema, de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se tornem verdadeiramente inalegáveis”[[4]].
O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou diversas vezes sobre os pressupostos do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, designadamente no acórdão de 29-10-2020 (proc. n.º 26150/16.3T8LSB.L1.S1), acessível em www.dgsi.pt.
Como se refere neste aresto, «quer a doutrina[[5]], quer a jurisprudência[[6]] aceitam serem pressupostos do abuso de direito, na invocada modalidade do venire contra factum proprium:
i) a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança;
ii) que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a atual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente;
iii) que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, ou seja, que tenha confiado na situação criada pelo ato anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente;
iv) que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma atividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa atividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente;
v) que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjetiva objetivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objetiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano.»
E, dentro desta linha de orientação, sublinham a necessidade de todos estes pressupostos serem «globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo»[[7]].
Ora, no caso sub judice, na indagação se a conduta da Autora integra ou não uma situação de abuso do direito, haverá que ponderar a imagem global dos factos provados, bem como às características do contrato celebrado entre as partes e a todo o contexto jurídico e sócio económico subjacente à sua celebração.
E tudo ponderado afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que merece acolhimento a tese da Ré, promitente-vendedora.
Com efeito, a invocação, pelas Autoras (promitentes-compradoras), na presente acção, volvidos 13 meses sobre a outorga do CPCV, da nulidade do contrato por falta de reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes, é chocantemente contraditória com o comportamento anteriormente adoptado pelas mesmas, ao arrepio de todo o investimento de confiança feito pela Recorrida (promitente-vendedora) em face da conduta anterior daquelas Recorrentes, de tudo resultando que esse venire é juridicamente intolerável.
Existe, portanto, no caso em apreço, um caso de inalegabilidade do vício formal do negócio, que impede as Autoras de obterem a declaração de nulidade que peticionaram.
Por essa circunstância, mas também por consideramos que o vínculo contratual se extinguiu, por resolução fundada em facto culposo imputável às Autoras, entendemos que a estas não assiste o direito à pretendida restituição do sinal prestado e que a acção terá de improceder “in totum”.
Vejamos,
Nos termos da cláusula 5.ª do CPCV, as promitentes-compradoras (Autoras) tinham de informar a promitente-vendedora (Ré) até 24-07-2019 acerca do resultado da avaliação bancária, sendo que só o fizeram em 16-08-2020 e, ainda assim, através da mediadora imobiliária FR (n.ºs 8 e 12 dos factos provados). Está, assim, afastada, por não se verificarem os respectivos pressupostos, a resolução (automática) do CPCV estipulada na cláusula 5.ª o que implica que o CPCV permaneceu em vigor entre as partes.
Esta comunicação de 16-08-2020, tal como a comunicação posterior das Autoras a solicitar à Ré (promitente-vendedora) a redução do preço do imóvel prometido vender, pressupõem não só a intocada validade do CPCV como a vontade de aquelas promitentes-compradoras querem cumprir o contrato, sendo tais factos reveladores do investimento de confiança na estabilidade definitiva do contrato por parte da Ré (n.ºs 15 dos factos provados).
Tal facto é revelador do investimento de confiança na estabilidade definitiva do CPCV e fez com que a Recorrente (promitente-vendedora) acreditasse que a escritura de compra e venda sempre se fosse realizar, donde ter acedido a baixar o preço do imóvel em €15.000,00, proposta que as Autora não aceitaram por, entretanto, já se terem comprometido na aquisição de outra casa (n.º 21 dos factos provados), em condições de preço que não foram alegadas e que, como tal, desconhecemos.
Contudo e objectivamente o que se verificou foi que as promitentes-compradoras perderam o interesse no negócio prometido, não se tendo provado que tal tenha sucedido por causa dos vícios do negócio ou do imóvel (n.º 5 dos factos não provados).
E essa perda de interesse está reflectida nos factos provados sob 18, 19 e 21, dos quais resulta cristalino que as promitentes-compradoras afirmaram de forma inequívoca perante a Ré, promitente-vendedora, que o negócio de compra e venda não poderia realizar-se, que pretendiam adquirir outra casa e que lhe solicitaram (por duas vezes) a restituição da quantia de €10.000,00 entregue a título de sinal.
Como é sabido, independentemente do cumprimento das respectivas prestações, as relações obrigacionais extinguem-se por via da resolução, da revogação e da denúncia. A resolução e a denúncia conduzem à cessação do vínculo obrigacional por declaração unilateral de uma das partes dirigida à contraparte. Por sua vez, a revogação pressupõe a existência de um consenso das partes com vista à cessação do vínculo contratual. A estas três causas, supervenientes[[8]], de cessação do contrato, acresce a caducidade que determina a extinção do vínculo em virtude de facto superveniente.
Em caso de impossibilidade superveniente importa distinguir se houve ou não uma conduta culposa do devedor. Não sendo a impossibilidade imputável ao devedor, a prestação extingue-se (artigo 790º, n.º 1, do CC) e se a contraprestação tiver sido efectuada será restituída nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa (artigos 795º, n.º 1 e 473º e segs do CC). No caso de impossibilidade imputável ao devedor, cuja culpa se presume (art.º 799º, n.º 1, do CC), o credor pode resolver o contrato e tem direito a ser indemnizado pelos danos sofridos (art.º 801º, do CC).
O direito de resolução, importando a destruição da relação contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, assim, a um direito potestativo vinculado – artigo 432º, n.º 1, do Cód. Civil.
Fica, por isso, a parte que invoca a resolução obrigada a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do contrato que o seu acto determina.
De realçar, quanto a este ponto, que quando esteja em causa o incumprimento bilateral vigora a regra do «tu quoque», ou seja, “a parte infiel ao contrato não pode, em princípio, derivar direitos da violação praticada pela contraparte ao mesmo contrato”, designadamente quando o pedido de resolução se mostre abusivo (cf. Brandão Proença, “Do incumprimento Do Contrato-Promessa Bilateral”, 1987, pp. 95 e ss.).
Efectivamente, como dos artigos 801º, n.º 2 e 802º, n.º 1, do Código Civil decorre, só o contraente fiel – aquele que cumpriu ou se ofereceu para cumprir – goza de legitimidade para resolver o contrato, ficando vedado ao faltoso invocar o seu próprio incumprimento como fundamento resolutivo.
Por fim, deve salientar-se que constitui jurisprudência largamente maioritária, se não uniforme, do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que só a falta definitiva e culposa de cumprimento, que não a simples mora, legitima a resolução do contrato-promessa (cf., por todos, o acórdão do STJ, de 09/02/2006, proc. 05B4093, disponível em www.dgsi.pt/jstj).
Ora, a propositura da acção pelas Autoras, em 23-10-2020, conjugada com as interpelações feitas à Ré para restituição do sinal, efectuadas em 16 e 20 de Agosto de 2020, tem de ser interpretada como uma declaração (receptícia – art.º 236.º do Cód. Civil) concludente e definitiva de não quererem cumprir o CPCV. E nem sequer, face à exiguidade de factos alegados e provados sobre a matéria, se pode concluir que tal impossibilidade fosse decorrente da não obtenção de financiamento bancário para o efeito, não imputável às Autoras.
Objectivamente apreciada, à luz dos factos provados, essa impossibilidade tem de ser imputada às Autoras uma vez que era às mesmas que cabia alegar e demonstrar factos que permitissem ao tribunal concluir que tudo fizeram para obter os meios financeiros de que careciam para concretizar o negócio.
Ora, o CPCV foi celebrado em 14-07-2019 e o que se constata é que as Autoras apenas em 03-08-2020, decorridos que eram 13 meses sobre a outorga daquele contrato, formalizaram um pedido de crédito à habitação junto do Novo Banco (cfr. Doc. de fls. 24 verso a 29 junto com a PI), isto não obstante se terem comprometido a informar, no prazo de 10 dias o resultado do pedido de financiamento bancário (cláusula 5.ª do CPCV - fls. 22 verso a 24 - e facto provado sob o n.º 8).
De tudo se extrai que as Autoras não recorreram atempadamente ao crédito bancário, que apenas o fizeram tardiamente e junto de uma única instituição bancária (Novo Banco) e que quando o fizeram já estavam interessadas e empenhadas na aquisição de outro imóvel.
Por conseguinte, as Autoras não lograram ilidir a presunção de culpa que sobre si recai, nos termos do disposto no artigo 799.º do Cód. Civil.
Finalmente, também não se verifica minimamente a falta de um interesse objectivo da credora (a Ré e promitente-vendedora) que permitisse a declaração de resolução, ao abrigo da norma geral do art.º 808º do Cód. Civil.
O incumprimento definitivo do contrato-promessa, pode verificar-se em consequência de uma, ou mais, das seguintes situações:
1ª - inobservância de prazo fixo essencial para a prestação;
2ª - ocorrência de um comportamento do devedor que exprima inequivocamente a vontade de não querer cumprir o contrato;
3ª - ter o credor, em consequência da mora, perdido o interesse que tinha na prestação;
4ª - encontrando-se o devedor em mora, não realizar a sua prestação dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor.
As duas últimas situações enunciadas correspondem a outros tantos casos que a lei expressamente equipara ao não cumprimento definitivo em consequência da mora – art.º 808º, n.º 1, do Código Civil. A perda do interesse do credor é apreciada objectivamente, o que significa que o valor da prestação deve ser aferido pelo Tribunal em função das utilidades que a prestação teria para o credor, tendo em conta, a justificá-lo, «um critério de razoabilidade própria do comum das pessoas» e a sua correspondência à «realidade das coisas» - art.º 808º-2 (cfr. Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, pp. 20, nota 3; Galvão Telles, “Obrigações”, 4ª ed., 235; Ac. STJ, 21/5/98, BMJ 477º-468).
Quando tal não ocorra, deve entender-se que o contrato continua a ter interesse para as partes – o interesse do credor mantém-se -, apesar da mora, e esta só pode converter-se em incumprimento definitivo se a prestação não vier a ser realizada em «prazo que razoavelmente for fixado pelo credor», sob a cominação estabelecida no preceito legal – interpelação admonitória (cfr. A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, 9ª ed., 532 e ss.). De notar que uma tal interpretação pressupõe ainda a manutenção do interesse no cumprimento.
Às restantes situações aludidas não se refere expressamente a lei.
Apesar desse vazio legal, ninguém põe em dúvida a equiparação da segunda situação à inexecução da prestação dentro de prazo razoável, sendo que essa causa “tem de ser expressa por uma declaração absoluta e inequívoca de repudiar o contrato. Impõe-se que o renitente emita uma declaração séria, categórica e que não deixe que subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua vontade (e propósito) de não outorgar o contrato prometido”, tanto mais que, perante um tal posicionamento do devedor, qualquer interpelação cominatória seria um acto inútil e destituído de justificação (Galvão Telles, ob. cit., 189; Antunes Varela, cit., I, 6ª ed., 91; Brandão Proença, ob. cit. 90; Acórdãos STJ, 26/01/99, CJ VII- Tomo I, p. 61 e de 06/02/07, proc. 07A749).
Quanto à primeira, há-de estar-se perante as chamadas obrigações de prazo fixo essencial absoluto – “negócios fixos absolutos” ou de “prazo fatal” – em que o decurso do prazo sem o devido cumprimento pode determinar, sem mais, a sua extinção, por oposição às de prazo fixo relativo, simples ou usual em que o decurso do prazo poderá fundamentar o direito à resolução quando concorram os requisitos gerais (artigos 808º, 801 e 802º do CC).
Revertendo ao caso concreto e tendo presente o clausulado do CPCV celebrado e a factualidade adquirida nos presentes autos haverá que ponderar o seguinte:
- o prazo que foi estabelecido pelas partes para a outorga da escritura de compra e venda não era um prazo sério e peremptório cujo decurso legitimasse a Ré a emitir, de forma automática e imediata, a declaração de resolução, ao abrigo do art.º 432º, nº 1, do Código Civil;
- o incumprimento definito do CPCV por parte das Autoras ocorreu com a “interpelação” feita à Ré através da propositura da presente acção com vista à resolução do CPCV, por suposta nulidade, e à restituição, pela promitente-vendedora, em singelo, da quantia que lhe fora entregue pelas Autoras a título de sinal;
- neste sentido apontam igualmente as interpelações feitas pelas Autoras à Ré, em 16 e 20-08-2020, com vista à restituição do sinal, acompanhadas da declaração reveladora de perda de interesse na realização do negócio prometido;
- as referidas condutas das Autoras, apreciadas objectivamente, correspondem a uma declaração absoluta, inequívoca e categórica de repudiar o CPCV, não subsistindo quaisquer dúvidas sobre a vontade das promitentes-compradoras de não outorgar a escritura de compra e venda (contrato-prometido);
- perante tal posicionamento das devedoras, qualquer interpelação cominatória por banda da Ré (promitente-vendedora) seria um acto inútil e destituído de justificação.
Em suma, entendemos que a extinção do vínculo contratual e consequente resolução do CPCV se deu por culpa exclusiva das Autoras, culpa que, aliás, se presume, nos termos do disposto no artigo 799.º, n.º 1, do Cód. Civil.
Destarte, sendo o incumprimento do CPCV à parte que constitui o sinal, no caso as Autoras e promitente compradora, assiste à Ré o direito a fazer sua a quantia de €10.000,00 (dez mil euros) que lhe fora entregue a esse título (art.º 442.º, n.º 2, 1.ª parte, do Cód. Civil)
Procede, portanto, o recurso, devendo a sentença recorrida ser revogada e substituída por acórdão que julgue improcede, por não provada a acção, e absolva a Ré dos pedidos.
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IV - Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, de 20-07-2022, com a ref.ª 137721237, decisão que substituem por este acórdão que julga a acção improcedente, por não provada, e absolve a Ré dos pedidos.
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As custas da acção e do recurso serão suportadas pelas Autoras - artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e 7.º, n.ºs 4 e 8, do RCP.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 26 de janeiro de 2023 Manuel Rodrigues Nuno Lopes Ribeiro Gabriela de Fátima Marques
_______________________________________________________ [1] Com aproveitamento parcial do relatório da sentença recorrida. [2] Cf. Geraldes, António Santos Abrantes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, 2017, Almedina, p. 109 [3]In Tratado de Direito Civil, Parte Geral, V, 2. Ed., Almedina, p. 342. [4] Sobre a matéria, entre outros, os acórdãos do TRG, de 17-12-2013, proc.º n.º 24/12.5TBAVV.G1; do TRC, de 03-05-2016, proc.º n.º 1159/14.5TBCLD.C1; e do STJ, de 26-10-2022, proc. n.º 5261/20.6T8BRG.G1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. [5] Cfr, entre outros, Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, 1984, pág. 752 e segs. [6] Conforme se vê, entre muitos outros, dos Acórdãos do STJ, de 12.11.2013 (processo nº 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1) e de 19.11.2015 (processo nº 884/12.0TVLSB.L1.S1), ambos acessíveis in www.dgsi/stj.pt. [7] Cfr. citados Acórdãos do STJ, de 12.11.2013 (processo nº 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1) e de 19.11.2015 (processo nº 884/12.0TVLSB.L1.S1). [8] A cessação do contrato está relacionada com situações supervenientes ocorridas após a respectiva celebração e pressupõe sempre um negócio jurídico válido e eficaz. A par das causas supervenientes referidas (resolução, revogação, denúncia ou caducidade), os efeitos do contrato também não se produzem, se o mesmo, em razão da invalidade (causa originária), for declarado inexistente, nulo ou anulado.