EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO
NULIDADE DA DECISÃO – ESPECIFICAÇÃO DOS FACTOS
CUMPRIMENTO DA PRESTAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL
ABERTURA/FRESTA
MURO
Sumário


I - As afirmações decisórias contidas num pronunciamento judicial, não valem desgarradas do ato de aplicação do direito que as determinou ou, tão pouco, pela sua aparência semântica. Valem, isso sim, no quadro jurídico que a elas conduziu e na medida - e só nessa medida - em que nesse quadro adquiriram significado e são passíveis de uma reconstrução racional. Valem, pois, enfim, como afirmações decisórias de cariz técnico-jurídico cujo sentido passa pelo processo argumentativo que as justificou.
II - Se da sentença dada à execução consta a obrigação de fechar uma abertura/fresta até a mesma se situar, pelo menos, a um metro e oitenta centímetros de altura, e reduzir as suas dimensões ao comprimento e altura máximos de quinze centímetros, a colocação de vidro fosco ou martelado, não cumpre aquela obrigação.
III - De igual modo, se em obediência às restrições contidas no artigo 1360.º do Código Civil a sentença manda tapar a abertura feita num muro, a colocação de uma rede não é medida bastante para as finalidades que a lei visa proteger.

Texto Integral


I - Relatório

No âmbito da execução para prestação de facto, que tem como título executivo uma sentença, veio a executada AA dizer que já cumpriu a sentença dada à execução, já tendo modificado a abertura/fresta e tendo fechado a abertura/portão.
A parte contrária opôs-se ao requerido, considerando ainda não se encontrar prestado o facto determinado na sentença.
Foi realizada uma perícia no sentido de apurar o que falta realizar para dar cumprimento ao determinado na sentença e o custo da prestação.

Resulta do relatório pericial constante de fls. 109 e seguintes:
«Para dar cumprimento ao ordenado na decisão é necessário “Fecho da abertura /fresta existente na parede norte numa largura de 0,40m por 0,30m de altura, de forma a ficar garantida uma altura mínima de 1,80m a contar do solo em ambos os lados da parede, reduzindo as suas dimensões ao comprimento e altura máximos de 15cm, realizada com alvenaria de blocos, rebocada e pintada conforme paramento onde se insere. - Vg 178,0€; desmonte de portões e fecho das aberturas existentes no muro voltado a poente, no caso de portão de acesso pedonal com 1,23cm de largura e do portão carral com 3,70m de largura, ambos com 0,92m de altura, em alvenaria de blocos, rebocados e pintados conforme panos de muro e pilares adjacentes - 4,54m² 444,0€ e desmonte de infraestrutura elétrica existente no muro, no caso do contador e quadro de disjuntores, e fecho das aberturas em alvenaria de blocos, rebocados e pintados conforme panos de muro e pilares adjacentes, Vg 184,0€”, sendo o valor estimado para execução do trabalho de € 806,00, acrescendo € 14,76, de mão-de-obra.»
Foi, então, proferida decisão que julgou não se encontrar cumprida a sentença.

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Inconformada com a decisão, veio a executada AA interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

1. Ao abrigo do art.º 644.º, n.º 1, al. a) do CPC, vem o presente recurso interposto da douta sentença de 08/11/2022, que julgou não cumprida a obrigação decorrente do título executivo.
2. A exigência de fundamentação da sentença tem naturalmente várias valências: para impor ao Juiz da causa que pondere e reflicta criticamente sobre a decisão; para permitir que as partes que recorram da sentença estejam na posse de todos os elementos que determinaram o sentido da decisão; e para que seja possível o Tribunal de recurso apreciar o acerto ou desacerto da sentença recorrida.
3. No caso dos autos, a douta sentença recorrida não discrimina os factos provados e não provados.
4. Tanto é suficiente para que se mostre verificada a nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, que expressamente se argui.
5. Atentas as matérias sobre que versou o relatório (que não demandam conhecimentos especiais) e o respectivo teor lacunoso, mal andou o Tribunal a quo em fundar a sua decisão fundamentalmente naquele meio de prova.
6. Não é ao perito que compete interpretar o título executivo (uma sentença judicial) e apreciar se a Executada cumpriu as obrigações em que foi condenada;
7. Contrariamente ao vertido na douta sentença recorrida, a Executada não foi condenada a fechar a abertura identificada em 13) dos factos provados da sentença que constitui o título executivo, mas tão somente a modificá-la de acordo com o estabelecido nos artigos 1360.º e 1363.º do Código Civil;
8. As restrições previstas na mencionada disposição legal visam fundamentalmente a defesa do direito de propriedade; não são as “vistas” que estão em causa, mas a devassa traduzida na possibilidade de ocupação do prédio vizinho por virtude da abertura de uma porta ou de uma janela, ou do debruçar ou estender de um braço, sobre o prédio vizinho.
9. A Executada, ao utilizar materiais inamovíveis, ou seja, "definitivos", que impossibilitam os actos de debruçar e de observar o exterior, tapou na sua totalidade a abertura com caixilho de ferro fixo e vidro fosco / martelado, também fixo, pelo que deixou de existir no local qualquer abertura / fresta (cfr. fotografia n.º 1 junta com o requerimento de 02/06/2022).
10. Aquela obra deixou de ser irregular nos termos e para os efeitos dos artigos 1360.º e 1363.º do Código Civil, por ser insusceptível de importar constituição de uma servidão de vistas sobre o prédio vizinho.
11. O requerimento de 19/02/2022 não consubstancia confissão, mas a comunicação de uma situação de excepção, um caso furtuito ou de força maior: o risco de destruição de propriedade e perigo para a vida e integridade física de seres humanos;
12. Entre a situação de excepção comunicada aos Autos e uma “confissão”, vai uma grande distância, até atendendo às regras próprias da confissão, designadamente o princípio da indivisibilidade a que alude o art.º 360.º do Código Civil, segundo o qual se uma declaração complexa feita em articulado da parte, contiver afirmações de facto desfavoráveis a essa parte, mas também factos que lhe são favoráveis, a contraparte que se quiser aproveitar de tal confissão como meio de prova plena deve, de igual modo, aceitar a realidade dos factos que lhe são desfavoráveis.
13. A preceito de tal matéria, foi arrolada uma testemunha, naquele requerimento de 19/09/2022, que o Tribunal a quo não ouviu, mas também não indeferiu;
14. O entendimento do Tribunal a quo, no sentido de que “tapar a abertura” passa por “reconstruir o muro” colide com o disposto no art.º 10.º, n.º 5 do CPC, segundo o qual, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva, especialmente quando nem na acção declarativa a Exequente peticionou a reconstrução do muro;
15. Outrossim, a sentença que serve de base à execução não condena a Executada a reconstruir um muro.
16. A obrigação da Executada é “tapar a abertura / portão mencionado em 15) dos factos provados”, ou seja, A Ré só foi condenado a fechar a abertura do portão 15) dos factos provados, com 3m de largura, o que já fez com uma rede de vedação apropriada para o efeito, de modo que por ela já não é possível passar (Cfr. fotografia n.º 2 junta com o requerimento de 02/06/2022).
17. A Executada cumpriu a sua obrigação.
18. A douta sentença recorrida viola os art.os 10.º, n.º 5 e 615.º, n.º 1, al. b) do CPC e os art.os 360.º, 1360.º e 1363.º do Código Civil.
Pugna a Recorrente pela procedência do seu recurso e, em consequência:
a-) Anulada a sentença recorrida por verificação da nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC; e
b-) Revogada a sentença recorrida, proferindo-se acórdão que julgue cumpridas as obrigações em que a Executada foi condenada, com a consequente extinção da execução.
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando os Recorridos pela manutenção do decidido.
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II - Delimitação do objeto do recurso

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber:
 - se ocorre a nulidade da decisão
- se a obrigação se mostra cumprida em conformidade com o título.
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III – Fundamentação

Os factos a considerar são os que resultam do relatório supra.
a) Da nulidade da sentença por falta de descriminação dos factos:
Sustenta a recorrente que a decisão recorrida enferma da nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, por não conter os factos.
As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615º nº 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece, além do mais, que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al.b)).
O Prof. Castro Mendes[i], após a análise dos vícios da sentença conclui que uma sentença é nula quando “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.
Na senda da delimitação do conceito, adverte o Prof. Antunes Varela[ii], que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.
Quanto ao vício de falta de fundamentação, ensina o Prof. Alberto dos Reis[iii], que “uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas”, conformemente a nulidade por falta de fundamentação só ocorre quando há “ausência total de fundamentos de direito e de facto”, sendo certo que “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.
Para que a sentença esteja eivada deste vício de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
As nulidades típicas da sentença reconduzem-se, assim, a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
Como se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de 19.11.2015[iv] na nulidade, ao contrário do erro de julgamento, em que se discorda do teor do conteúdo da própria decisão, invocam-se circunstâncias, legalmente previstas no artigo 615º do CPC, que ferem a própria decisão.
Por isso, as nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, e impeditiva de um pronunciamento de mérito.
No caso vertente vem arguida a nulidade da sentença por não conter a descriminação dos factos provados e não provados.
De acordo com o disposto no artigo 615º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A nulidade contemplada neste preceito impõe-se por duas ordens de razões: de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstrata soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto; de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de poder impugnar o respetivo fundamento.
Sucede, porém, que em causa está uma decisão num incidente que, em face da posição das partes, tinha por escopo único aferir se a prestação realizada pela executada estava inteiramente conforme à obrigação em que foi condenada na sentença.
A suficiência da prova produzida, com essencialidade para o relatório pericial, permitiu o conhecimento da questão.
No quadro dos factos essenciais suficiente e claramente fixados, a sua exposição na decisão, enquanto conformação fática da pretensão das partes, é bastante em termos de metodologia de estrutura da decisão para a solução de mérito.
Em tal situação, não é exigível a discriminação dos factos provados e a separação no corpo do texto da decisão do segmento da fundamentação de facto, nos termos prescritos no artigo 607º, nº3 e 4º, do Código de Processo Civil.
A recorrente insurge-se - de forma que se nos apresenta inconsequente - com a estrutura da decisão por não contemplar a “secção” dos factos provados, sem retirar dessa alegada falha a impercetibilidade da decisão de mérito alcançada.
Dito de outro modo, não vem sustentado pela recorrente que a falta de indicação dos factos provados e não provados tornou impercetível a decisão, ou que o imediato julgamento de mérito impediu um desenvolvimento processual que poderia efetivamente levar a diferente decisão final.
Ora, a sentença é uma peça processual que deve ser elaborada com racionalidade e de acordo com uma enunciação lógica, e quando se sedimenta na suficiência da alegação das partes e dos elementos do processo, é a partir da exposição desta realidade que será integrada juridicamente.
O que é importante é que o juiz realize uma descrição inteligível da realidade fáctica invocada que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita às partes a sua efetiva compreensão e impugnação.
Esta, cremos, é a questão crucial. E neste conspecto, não afirma a recorrente que a decisão não cumpriu a função de convencer as partes quanto ao trajeto percorrido e que não a habilitou, enquanto parte vencida, à compreensão dos seus fundamentos.
Em jeito de conclusão, impõe-se considerar que a circunstância de não constar da decisão a expressão “factos provados”, não significa que a decisão não contém a factualidade pertinente que, no caso, é conformada pela descrição da obrigação a que a executada foi condenada na sentença e a específica prestação que nos autos de execução realizou.
Logo, não se verifica o vicio de falta de fundamentação de facto ou de direito geradora da nulidade da sentença.

b) Cumprimento da obrigação em conformidade com o título.
Está em apreciação a questão de saber se a executada, na pendência do processo executivo, deu cumprimento à obrigação em que foi condenada.
Resulta da sentença dada à execução que, entre o mais, a executada foi condenada:
“b) a modificar a abertura/fresta mencionada em 13) dos factos provados, adequando a sua altura e dimensões ao legalmente estabelecido no artigo 1363.º, n.º 2, do Código Civil, ou seja, fechando a aludida abertura/fresta até a mesma se situar, pelo menos, a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo em ambos os lados da parede, e reduzir as suas dimensões ao comprimento e altura máximos de quinze centímetros, no prazo de oito dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença.
c) a tapar a abertura/portão mencionada em 15) dos factos provados, no prazo de oito dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença.
Consta dos factos provados:
“artigo 13º - A ré, sem o consentimento e autorização dos autores, procedeu à realização de uma abertura, na parede norte do seu prédio, junto ao telhado, com cerca de 50 centímetros de largura e 40 centímetros de altura, encontrando-se implantada a cerca de 1,50 metros do solo, quando vista do seu interior.
14) A referida abertura encontra-se gradada e deita directamente para o prédio descrito sob o artigo ...) – alínea b), sem mediar qualquer distância entre aquela abertura e este prédio.
15) Para aceder a pé e com veículos ao caminho público que se localiza a poente do seu prédio, a ré, contra a vontade e sem o consentimento dos autores, passa através do prédio identificado em 2) – alínea a), tendo efectuado, para o efeito, uma abertura no muro de vedação do seu prédio, munida de portão, com a largura de cerca de 3 metros que deita directamente para o referido prédio identificado em 2) – alínea a)”.
Sustenta a recorrente que tapou na sua totalidade a abertura/fresta com caixilho de ferro fixo e vidro fosco/martelado, também fixo (materiais inamovíveis) e que fechou a abertura no muro com uma rede de vedação, cumprindo assim com a sua obrigação.
Salvo o devido respeito, a recorrente não cumpriu o determinado na sentença dada à execução.
"As decisões, como os contratos, como as leis, como, afinal, todos os textos, têm de ser interpretados e não lidos; ler não é o fim; é o princípio da interpretação"[v].
           
A apreensão do sentido e alcance decisivo de qualquer decisão apura-se por atividade hermenêutica, cujas regras são as estabelecidas nos artigos 236º e seguintes do Código Civil, ainda que tenham de ponderar-se igualmente as regras da interpretação legal.
O propósito de tal atividade hermenêutica não é reconstruir a intenção do julgador (a mens judicis), mas sim apreender "o sentido precetivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente"[vi], havendo que ponderar a especificidade da decisão como ato jurídico – ato puramente funcional, coartado da característica da liberdade negocial comummente associada aos demais atos jurídicos –, exprimindo não uma declaração de vontade subjetiva, antes uma injunção aplicativa do direito ao caso concreto[vii].
A interpretação deve ser feita de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário, possa deduzir do comando injuntivo, não podendo deixar de considerar-se, em atenção à particular natureza do ato interpretando, também as regras próprias da interpretação da lei e de se conformar especialmente a posição (carregada de significado e de sentido) do declarante.
A decisão judicial é "a necessária conclusão de um pré-ordenado procedimento", situando-se o seu autor "numa específica área técnico jurídica, investido na função de aplicador da lei, que, por sua vez, está obrigado a interpretar, em conformidade com as regras estabelecidas no artigo 9º do Código Civil, dirigindo-se a outros técnicos de direito"[viii].
As afirmações decisórias contidas num pronunciamento judicial, não valem desgarradas do ato de aplicação do direito que as determinou ou, tão pouco, pela sua aparência semântica. Valem, isso sim, no quadro jurídico que a elas conduziu e na medida - e só nessa medida - em que nesse quadro adquiriram significado e são passíveis de uma reconstrução racional. Valem, pois, enfim, como afirmações decisórias de cariz técnico-jurídico cujo sentido passa pelo processo argumentativo que as justificou[ix].
É neste sentido que os elementos objetivos, correspondentes ao ato de interpretação e aplicação do direito, se destacam na compreensão do sentido de uma decisão judicial, da pura afirmação, descontextualizada desse ato, que essa decisão pareça expressar, se isso (o que nela pareça) não obtiver uma efetiva comprovação, racionalmente expressa, no antecedente acto de interpretação e aplicação do direito[x].
Tendo como ponto de partida o texto da decisão, que circunscreve, no limite mínimo, as possibilidades interpretativas, ter-se-á de presumir que o juiz consagrou a decisão mais acertada, mais justa, mais conforme aos interesses a ponderar (art. 9º, do Código Civil).
Importante elemento de interpretação da decisão judicial é de que sempre, em cada uma delas, se impunha ao juiz que a proferiu ponderar que as partes queriam era a justiça do seu caso concreto e que, na aplicação do direito, ao juiz se impunha ‘alargar o campo da sensibilidade axiológica de direito ao facto concreto, com características naturalísticas, históricas, sociológicas e culturais próprias, numa apreciação dialéctica do facto à norma’, dialectizando a ratio legis e assim a superando pela ratio iuris, encerrando a jurisprudência um ‘pensamento normativo de realização do direito, correspondente às expectativas prático-sociais dos sujeitos, realizando o direito na solução do caso concreto com a consciência jurídica geral, com as expectativas sociais de validade e justiça’, em vista de alcançar uma coerência valorativa ou axiológica, enquanto projecção da ideia do direito, tradutora de uma concebida ordem social justa[xi].
No caso de interpretação de decisão judicial a posição do declarante deve ser especialmente conformada, pois carregada de sentido e significado – ele (o declarante, juiz) aspira ao justo concreto, exigido pela consciência jurídica geral.
A sentença constitui um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deve ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Se na fundamentação do despacho o juiz seguiu determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, o segmento decisório deve ser interpretado em conformidade com essa direção.
O que vem de dizer-se assume particular importância no caso dos autos, considerando a consistência e orientação da fundamentação jurídica da decisão interpretanda, que serve de título executivo, em correlação com o seu comando injuntivo (ou seja, do dispositivo), pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.

Assim, na parte que agora interessa, o dispositivo da decisão tem o seguinte teor:
“b) a modificar a abertura/fresta mencionada em 13) dos factos provados, adequando a sua altura e dimensões ao legalmente estabelecido no artigo 1363.º, n.º 2, do Código Civil, ou seja, fechando a aludida abertura/fresta até a mesma se situar, pelo menos, a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo em ambos os lados da parede, e reduzir as suas dimensões ao comprimento e altura máximos de quinze centímetros, no prazo de oito dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença.
Da decisão judicial decorre com meridiana clareza que à recorrente compete fechar a abertura até a mesma se situar, pelo menos, a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo em ambos os lados da parede, e reduzir as suas dimensões ao comprimento e altura máximos de quinze centímetros.
Ora, fechar a abertura não é colocar na mesma vidro fosco ou martelado, é colocar o mesmo (idêntico) material de que é constituída a parede. Por isso mesmo se disse na decisão que a abertura tinha de ser modificada por forma a adequar a sua altura e dimensões ao legalmente estabelecido.
Ademais, a justificação avançada pela recorrente, de que com a colocação do vidro deixou de ser possível o ato de debruçar e de observar o exterior, não colhe.
É que a lei não manda que se coloque na abertura qualquer material ou mecanismo, que impeça o ato de debruçar e de observar o exterior, exige que, em qualquer circunstância, ela se situe pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, e não tenha mais de quinze centímetros.
Quanto à abertura efetuada no muro, condenou-se a executada a “tapar a abertura/portão”.
Também, aqui, é manifesto que a recorrente não tapou tal abertura. A colocação de rede não é medida bastante para as finalidades que a lei visa proteger.
As restrições indicadas no artigo 1360.º do Código Civil à abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes visam tutelar os interesses privados dos titulares de direitos sobre prédios vizinhos, obstando a que estes prédios sejam facilmente objeto de indiscrição de estranhos e impedindo que o prédio seja facilmente devassado com o arremesso de objetos.
Se a decisão que se executa considerou que a abertura no muro de vedação, que estava munida de portão, por deitar diretamente para o prédio dos recorridos e não respeitar o intervalo de metro e meio, violava a lei, ordenando a sua tapagem, apresenta-se evidente que a simples colocação de uma rede não cumpre os fins visados pela norma.
Interpretando o título executivo, analisando os seus fundamentos e a finalidade da norma jurídica que se visa garantir, o dispositivo de tapagem da abertura/portão exige a sua eliminação, de molde que a abertura realizada, que deu origem ao portão, seja eliminada com materiais compatíveis com a parede/muro de vedação onde foram realizadas, ou seja, tapar com os mesmos (idênticos) materiais do muro existente do prédio da executada.
Como se deixou expresso na decisão recorrida, deverá a executada fechar a abertura que criou, retirando o portão e reconstruindo o muro, só assim cumprindo a sentença dada à execução que ordenou que fosse tapada a abertura/portão.
Improcede, assim, a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - As afirmações decisórias contidas num pronunciamento judicial, não valem desgarradas do ato de aplicação do direito que as determinou ou, tão pouco, pela sua aparência semântica. Valem, isso sim, no quadro jurídico que a elas conduziu e na medida - e só nessa medida - em que nesse quadro adquiriram significado e são passíveis de uma reconstrução racional. Valem, pois, enfim, como afirmações decisórias de cariz técnico-jurídico cujo sentido passa pelo processo argumentativo que as justificou.
II - Se da sentença dada à execução consta a obrigação de fechar uma abertura/fresta até a mesma se situar, pelo menos, a um metro e oitenta centímetros de altura, e reduzir as suas dimensões ao comprimento e altura máximos de quinze centímetros, a colocação de vidro fosco ou martelado, não cumpre aquela obrigação.
III - De igual modo, se em obediência às restrições contidas no artigo 1360.º do Código Civil a sentença manda tapar a abertura feita num muro, a colocação de uma rede não é medida bastante para as finalidades que a lei visa proteger.
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IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pela Recorrente (cf. artigo 527º, do Código de Processo Civil).
Guimarães, 19 de Janeiro de 2023

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes


[i] In “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 308.
[ii] In “Manual de Processo Civil”, pg. 686.
[iii] In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, páginas 139 e 140.
[iv] Disponível em www.dgsi.pt.
[v]  Acórdão do S.T.J. de 28.07.1994, CJ, Ano II; Tomo 2, p. 166.
[vi] Acórdão da Relação de Coimbra de 15/01/2013 (Henrique Antunes), no sítio www.dgsi.pt.
[vii] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/02/2011 (Lopes do Rego), no sítio www.dgsi.pt.
[viii] Citado acórdão do STJ de 3/02/2011 (Lopes do Rego), no sítio www.dgsi.pt.
[ix]  Acórdão da Relação de Guimarães de 18/12/2017 (Maria João Matos), no sítio www.dgsi.pt.
[x] Acórdão da Relação de Coimbra de 22/03/2011 (Teles Pereira), no sítio www.dgsi.pt.
[xi] Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/99, de 12/01/99, no sítio www.dgsi.pt (publicado na Série I do DR de 13/02/1999).