PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
ASSESSOR TÉCNICO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITO DE PERSONALIDADE
CONFLITO DE DIREITOS
Sumário


I- O Direito ao contraditório, como emanação do Direito mais amplo do “Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional efetiva” traduz-se fundamentalmente no direito das partes de participar ativamente na produção de todas as provas, quer as por si indicadas, quer as indicadas pela parte contrária, controlando-as em todas as suas fases, mesmo durante a fase da sua produção “strito sensu”.
II- Assiste assim à ré, no exercício do contraditório, o direito de fazer-se assistir num exame médico-legal por assessor técnico (nos termos previstos no art.º 480º nº 3 do CPC).
III- O exercício do contraditório pode sofrer restrições, nomeadamente quando esse direito colide com outros direitos ou interesses individuais relevantes da parte contrária, igualmente protegidos legalmente, como sejam os direitos de personalidade, no caso o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
IV- Daí resulta portanto, que estamos perante um conflito de direitos (o direito da ré de exercer o contraditório, e o direito do A à sua privacidade e ao seu pudor), conflito esse que deve ser resolvido nos termos gerais de direito, o qual deve passar, ou pela harmonização ou concordância prática de direitos se eles forem iguais ou da mesma espécie, ou, caso eles sejam desiguais ou de espécie diferente, da prevalência de um sobre o outro.
V- Sendo os direitos de natureza diversa, cabe ao julgador a determinação do direito que deve prevalecer, por o considerar superior, o que demanda uma análise casuísta de cada um dos direitos envolvidos, e a sua relevância prática em confronto com o outro.
VI- Não fere o sentimento de pudor do A a presença de assessor técnico da ré no exame médico-legal a que ele vai ser submetido, à região lombar e cervical (lesões que diz ter sofrido).
VII – Daí que deve prevalecer o direito da ré a exercer o contraditório sobre o direito do A à sua privacidade e à reserva da sua intimidade.

Texto Integral


Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: José Manuel Alves Flores
2ª Adjunta: Sandra Maria Vieira Melo

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

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I- RELATÓRIO

BB demandou nesta ação declarativa com processo comum a “L... - Companhia de Seguros S.A”, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 43.740,00, acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal a partir da citação até integral pagamento, com o fundamento de que no dia 23/04/2019 foi vítima de um acidente de viação causado pelo segurado da ré, tendo sofrido com o mesmo, entre outros, danos físicos, nomeadamente a nível cervical e lombar.
Requereu, no final da petição, prova pericial a realizar pelo Instituto de Medicina Legal, indicando para o efeito os competentes quesitos.
Admitida pelo tribunal a realização da perícia – com o objeto fixado pelo A -, a realizar no Gabinete Médico Legal, veio a ré, ao abrigo do disposto no art.º 480º nº 3 do CPC, declarar que pretende indicar como assessor técnico para assistir à referida perícia o Dr. CC, requerendo a sua notificação do dia e hora em que aquela iria ter lugar.
O A. veio deduzir oposição ao requerimento apresentado, alegando que uma vez que estamos perante um exame médico físico-psíquico à sua pessoa, é manifesto que este tipo de perícias é suscetível de ofender o pudor do examinando, o que deverá determinar a impossibilidade de representação da Ré para assistir à diligência. Para além disso, sendo a perícia realizada no G.M.L. por perito especializado em dano corporal na vertente médico-legal, e a idoneidade técnica do Sr. perito, que será inquestionável, poderá sempre a ré levantar ou questionar todas as dúvidas que considere convenientes após o relatório apresentado.
A este requerimento veio objetar a ré dizendo que o Autor lhe pretende coartar o direito de poder indicar um assessor técnico, faculdade essa conferida a ambas as partes. Tanto mais que segundo o alegado pelo Autor, ele ficou a padecer, em resultado do acidente, de problemas da coluna cervical e lombar, pelo que, tendo em consideração as zonas do corpo que serão objeto do exame, em termos objetivos e sociais, não são áreas capazes de afetar o seu direito de privacidade e pudor, não se estando perante uma zona privada íntima ou de caráter sexual. A presença no ato da perícia de um assessor técnico indicado pela ré, sendo também ele médico, e sendo a perícia medico legal um ato médico, não é mais lesiva do que a do próprio perito, tendo em conta que são ambos médicos e estão ambos sujeitos ao mesmo estatuto e deveres profissionais.
Acresce que o direito da Ré de se poder socorrer de assessor técnico nos exames médico-legais constitui manifestação do seu direito ao contraditório, na vertente a que se refere o nº 3 do art.º 3º CPC, ou seja, : o direito da parte, devidamente esclarecida quanto aos aspetos técnicos do concreto exame médico-legal, poder influenciar o resultado do processo, pela sindicância que venha a fazer ao relatório pericial apresentado.
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Foi então proferida nos autos a seguinte decisão (que sintetizamos):
“Veio a ré requerer, ao abrigo do disposto no art. 480º nº 3 do CPC (…) que pretende indicar assessor técnico para assistir à perícia ordenada nos autos. O autor opõe-se a tal pretensão (…). “O n.º 3 do artigo 480.º estabelece que "as partes podem assistir à diligência e fazer-se assistir por assessor técnico, nos termos previstos no artigo 50.º, salvo se a perícia for suscetível de ofender o pudor ou implicar quebra de qualquer sigilo que o tribunal entenda merecer proteção". Pudor significa "sentimento de vergonha ou timidez causado por algo que fere a sensibilidade ou a moral de uma pessoa", "sentimento de timidez ou vergonha". Deve então, considerando o disposto nos artigos 26.º n.º 1 da Constituição da República e 80.º n.º 1 do Código Civil, interpretar-se a expressão "ofender o pudor" como abrangendo a reserva da intimidade da vida privada (…). Nessa medida, na perícia médico-legal a uma das partes, a presença da outra e/ou do seu mandatário e do assessor técnico é, muito provavelmente, "suscetível de ofender o pudor", pelo que, a verificar-se esta suscetibilidade, nos termos daquele n.º 3 não deve ser admitida a comparência destes em tal "diligência". E, como não podia deixar de ser, o juízo sobre esta matéria será, necessariamente, formulado em função do concreto objeto da perícia. Essa suscetibilidade não deixa de existir pela circunstância de o assessor técnico ser médico, pois, nesse caso sempre se trata de alguém estranho ao examinando e com quem este teria de partilhar a intimidade, quando é certo que a sua presença não é indispensável para a realização da perícia. Note-se que o assessor não fica sujeito a qualquer dever de reserva ou sigilo; antes pelo contrário, ele deverá partilhar com a parte e/ou o seu mandatário toda a informação que tenha por relevante, sob pena de não exercer devidamente a sua função. O objcto da perícia consistirá em saber se: 1 -Como consequência directa e necessária do acidente de viação supra descrito, a examinando sofreu lesões? 2. Lesões a nível cervical? 3. E a nível lombar? 4. Apresenta um desvio escoliótico, dorso-lombar de dupla curvatura? 5. Apresenta lesões de uncartrose em C5-C6 e C6-C7? 6. Na flexão total apresenta dor terminal? 7. É visível uma contratura das goteiras lombares mais acentuada à direita? 8. Demonstra dores na palpação da transição lombo sagrada? 9. Visualiza-se um agravamento acentuado de raquialgias, sobretudo a nível lombar com os esforços e sedestação prolongada ? 10. É verificável osteófitos nos pratos vertebrais de L5 e S1, junto ao disco, que reduzem o calibre desses orifícios e produzem contactos nas raízes L5 ? 11. A nível cervical é verificado um deslocamento da vértebra C7, relativamente a D1 ?(…)
Mais uma vez (…) podemos afirmar que (…) há aqui aspetos de grande sensibilidade, que atingem um núcleo importante da intimidade da vida privada do autor; dito de outra forma, a presença nas diligências da perícia médico-legal do assessor técnico indicado pela ré é suscetível de ofender o pudor daquele (…). A ré vai ter conhecimento do resultado de todas as diligências levadas a cabo no âmbito da perícia, pois será notificada do teor do relatório pericial que o perito irá elaborar (artigo 484.º). Em segundo lugar, à ré assiste a faculdade de reclamar contra qualquer deficiência, obscuridade ou contradição que considere existir no relatório pericial (artigo 485.º). Em terceiro lugar, a ré tem o direito de solicitar esclarecimentos ao perito no decorrer da audiência de julgamento (artigo 486.º). Em quarto lugar, a ré pode requerer a realização de uma segunda perícia (artigo 487.º). Em quinto lugar, o autor não intervém na perícia nas suas vestes de parte, mas sim de um sinistrado que tem de ser observado pelo perito (…). Portanto, a impossibilidade de a ré ser assistida no exame médico-legal por um assessor técnico, contrariamente ao que afirma, não a impede de vir a "formular um juízo crítico e valorativo acerca do relatório pericial", nem confere ao autor qualquer vantagem. Aqui chegados, indefere-se a presença de acesso técnico requerida pela ré. Notifique”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a ré interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1ª.   Por despacho proferido em 14.09.2022, o Mmo. Juiz indeferiu a presença de um assessor técnico na perícia médico legal, requerida pela Ré, pelo facto de entender que a presença do assessor técnico era suscetível de ofender o pudor, tendo, assim, indeferido o requerido com base no disposto no art. 480º nº 3, parte final.
2ª. A presença do assessor técnico é uma faculdade das partes, sendo certo que o assessor técnico não se confunde com o perito médico, uma vez que aquele não examina nem avalia o examinando, podendo apenas assistir à perícia.
3ª. Tendo em conta o despacho proferido e a sua fundamentação, o objeto deste recurso circunscreve-se à circunstância de se saber se a presença do assessor técnico indicado pela Ré, um médico, na perícia médico legal a efetuar ao autor é suscetível de ofender o pudor.
4ª. Por despacho de 14.09.2022, foi fixado o objeto da perícia que circunscreve-se apenas à região lombar e cervical do Autor, regiões do corpo que o Autor alega terem sido afetadas em consequência do acidente.
5ª. Face ao objeto fixado pelo tribunal e o alegado pelo Autor na petição quanto aos danos sofridos, não pode aceitar-se que esse ato de inspeção seja capaz de afetar o direito de privacidade e pudor do autor, tanto mais que não está em causa a inspeção de uma zona íntima ou de caráter sexual.
6ª. Na verdade, a questão da ofensa ao pudor tem de ser vista caso a caso e com as maiores das cautelas sob pena de se coartar um direito das partes, nomeadamente uma manifestação do direito ao contraditório, na vertente a que se lhe refere o nº 3 do art 3º CPC – o da parte ser devidamente esclarecida quanto aos aspetos técnicos do concreto exame médico-legal, e poder influenciar o resultado do processo pela sindicância que venha a fazer ao relatório pericial.
7ª. Aliás, a faculdade de a parte poder indicar um assessor técnico para assistir à perícia está intimamente relacionada com o direito da parte de poder melhor fundamentar um eventual pedido de esclarecimentos ou a reclamação do relatório pericial.
8ª. Além do mais, sendo o assessor técnico também ele médico, como é o perito que vai efetuar a perícia médico legal, está igualmente sujeito ao mesmo estatuto e, nomeadamente ao dever de sigilo profissional.
9ª. E estando em causa a realização de um meio de prova, uma perícia medico legal, que é um ato médico, a participação do assessor não é mais lesiva do que a do próprio perito, tendo em conta que são ambos médicos e estão ambos sujeitos ao mesmo estatuto.
10ª. Assim, não pode aceitar-se que a presença do assessor técnico na perícia médico legal, no caso concreto, seja suscetível de atentar ao pudor,
11ª. Pelo que deve ser revogado o despacho proferido e substituído por outro que defira a presença de um assessor técnico indicado pela Ré na perícia médico-legal a realizar à pessoa do Autor.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida…”
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Dos autos não consta que tenha sido apresentada Resposta ao recurso.
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II- OBJETO DO RECURSO

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), a questão a decidir no presente recurso é apenas a de saber se o tribunal recorrido deveria ter admitido a presença de assessor técnico (da ré) na perícia a realizar ao sinistrado no Gabinete Médico-Legal.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ponderar para a decisão da questão suscitada é a que consta do relatório deste acórdão (no qual se reproduziu, em síntese, a tramitação processual decorrente dos autos principais), e a que consta da decisão recorrida (que a recorrente não põe em causa).
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IV- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:

Requereu a ré a presença de um assessor técnico por si indicado na perícia médico-legal requerida pelo A e deferida pelo tribunal, a realizar no Gabinete Médico Legal, a qual foi indeferida pelo tribunal, com o fundamento de que a presença do mesmo ofendia o pudor do A. 

Dispõe o nº 3 do art.º 480º do CPC que “as partes podem assistir à diligência e fazer-se assistir por assessor técnico”.
Começamos por dizer que a ré não requereu a sua presença (eventualmente através do seu mandatário) no exame médico-legal a realizar ao A., mas apenas a presença de um assessor técnico da sua confiança, um médico, cujo nome e domicílio profissional indica, para estar presente e acompanhar o exame médico a realizar ao A, por perito do Gabinete Médico-legal (do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P. - INMLCF, I. P.). Aliás, faz a ré questão de frisar bem, nos seus requerimentos, que se trata de um médico, cuja identidade indica, que tem a mesma categoria profissional do perito médico que vai realizar o exame médico ao A, o qual está sujeito aos mesmos deveres profissionais e deontológicos, nomeadamente aos do sigilo profissional.
Faz ainda a ré referência ao tipo de exame a levar a cabo ao A, designadamente as lesões por ele alegadamente sofridas, e as zonas do corpo onde elas se encontram – região lombar e cervical –, que não são suscetíveis, objetivamente, de pôr em causa o seu sentimento de pudor ou vergonha (ao ser expostas perante um médico). Aliás, aduz em abono da sua tese o facto de o exame ser feito também por um médico, uma personalidade com as mesmas qualificações do assessor técnico que indica.
Mas sobretudo faz a ré apelo ao direito legal que lhe assiste, de exercer o contraditório ao longo de todo o processo, nos termos previstos no art.º 3º, nº3 do CPC, nomeadamente na fase da produção da prova, o qual só poderá ser exercido efetivamente se ela puder estar representada no exame por médico da sua confiança, que estará em melhores condições de a poder auxiliar em eventual reclamação ou esclarecimentos às respostas dadas aos quesitos formulados pelo A no objeto da perícia definido.
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E temos de dar razão à ré.
Começando pelo último argumento utilizado, a lei confere de facto à ré o direito ao contraditório e o direito de o exercer ao longo de todo o processo, particularmente na produção de todas as provas, nomeadamente da prova pericial – direito que lhe foi coartado com a decisão proferida.
Como é sabido, a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam (assim como os mandatários das partes), ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial (art.º 388º do Código Civil e Ac RC de 24.04.2012, disponível em www.dgsi.pt.)
Sendo embora livremente fixada pelo tribunal a força probatória das respostas dos peritos (art.º 389º do CC), é muito importante a descrição e a apreciação especializada feita por aqueles sobre os factos a analisar, sendo por isso também muito relevante a participação das partes no exame que àqueles é cometido, sobretudo no exercício do seu direito a contraditoriamente participar na produção da prova e de influenciar a decisão final.
Nos termos do art.º 3º nº3 do CPC “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório…”, corolário do princípio do “Acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva” consagrado no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, o qual no seu nº 4 consagra o direito de todos a que a causa em que intervenham seja objeto de decisão mediante processo equitativo, ou seja, que garanta a participação efetiva de ambas as partes, em termos de igualdade e de equidade, em todas as fases do processo.
A propósito do direito ao processo equitativo, considerou-se no acórdão do Tribunal Constitucional nº 675/2018, de Dezembro de 2018 (publicado no DR, 1ª Série, de 23.1.2019) que “No quadro do direito ao processo equitativo, enquanto corolário do direito de acesso aos tribunais e estruturante do princípio do Estado de Direito (…), exige-se a estruturação processual de modo a garantir uma efetiva tutela jurisdicional, o que vem sendo materializado através de outros princípios entre os quais «o direito de defesa e o direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 415)”.
O princípio do contraditório está de facto incindivelmente ligado ao direito a um processo justo e à tutela jurisdicional efetiva.
Como refere Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, 4ª Edição, Gestlegal, Coimbra, 2017, p. 127), mais do que o mero direito de contraditar a versão da contraparte, o Tribunal Constitucional vem edificando o princípio do contraditório como uma «garantia de participação efetiva das partes em todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão».
Alude-se a uma concretização do princípio da igualdade, impondo que a todas as partes seja dada a mesma oportunidade de se pronunciar no processo, através de uma «proibição de estabelecimento de qualquer discriminação arbitrária e materialmente infundamentada no que ao estatuto dos sujeitos processuais se reporta» (Lopes do Rego, “Acesso ao direito e aos tribunais”, Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas, 1993, p. 44 e “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, pp. 745 e 747).
O princípio do contraditório liga-se, por outro lado, de modo indispensável ao princípio da proibição da indefesa, que é materializada não só no direito de impugnar uma decisão, como também na possibilidade de ver apresentada a argumentação antes de uma decisão judicial ser tomada. Este princípio, decorrente do reconhecimento do direito geral ao contraditório, inerente ao direito a um processo justo implicado no direito fundamental de acesso à justiça, consagrado no artigo 20º da Constituição, afirma uma proibição da limitação intolerável do direito de defesa perante o tribunal. Ele liga-se à «regra fundamental da proibição da indefesa, de sorte que nenhuma decisão pode ser tomada pelo tribunal sem que previamente tenha sido dada a efetiva possibilidade ao sujeito demandado de a discutir, contestar e valorar» (Acórdão do STJ de 17.11.2015, disponível em www.dgsi.pt).
Mas sobretudo reconhece-se ao princípio do contraditório uma dimensão de influência no juízo, um princípio de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio, materializado no «direito de cada um a ser ouvido em juízo», preferencialmente antes de a decisão ser tomada (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, reimpressão, 1993, p. 379; Lopes do Rego, ob. citada, p. 65; e Lebre de Freitas, ob cit., p. 135).
O conteúdo daquele princípio radica assim na possibilidade dada a cada parte de apresentar as suas razões e argumentos antes da decisão judicial e em condições que a não desfavoreçam em confronto com a parte contrária. Na expressão de Jorge Miranda («Constituição e Processo Civil», Direito e Justiça, vol. VIII, tomo 2, 1994, p. 20), no «dever e direito do juiz em ouvir as razões das partes em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão».
Como bem refere Lebre de Freitas (ob. cit., p. 127), citando o que o Tribunal Constitucional assinalou no Acórdão nº 510/2015, «o escopo do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito a incidir ativamente no desenvolvimento do processo». Por esta razão, o princípio opor-se-á, em regra, à adoção de decisões judiciais com fundamentos sobre os quais as partes não tenham oportunidade de se pronunciar.
Em suma, «um processo equitativo postula (…) a efetividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas», pelo que «cada uma das partes deve poder exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição, antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras» (Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, tomo I, 2ª Edição, anotação ao artigo 20º, p. 443).
Serviu esta resenha doutrinal e jurisprudencial para rebater o argumento usado na decisão recorrida - de que “…A ré vai ter conhecimento do resultado de todas as diligências levadas a cabo no âmbito da perícia, pois será notificada do teor do relatório pericial que o perito irá elaborar (artigo 484.º). Em segundo lugar, à ré assiste a faculdade de reclamar contra qualquer deficiência, obscuridade ou contradição que considere existir no relatório pericial (artigo 485.º). Em terceiro lugar, a ré tem o direito de solicitar esclarecimentos ao perito no decorrer da audiência de julgamento (artigo 486.º). Em quarto lugar, a ré pode requerer a realização de uma segunda perícia (artigo 487.º) (…). Portanto, a impossibilidade de a ré ser assistida no exame médico-legal por um assessor técnico, contrariamente ao que afirma, não a impede de vir a "formular um juízo crítico e valorativo acerca do relatório pericial", nem confere ao autor qualquer vantagem…” - argumento esse que apenas salvaguarda o direito do contraditório da ré na sua vertente passiva, de oposição à decisão tomada pelo perito, ou do seu controle “a posteriori”, quando aquele princípio tem uma componente mais alargada, no sentido do direito da parte (aqui a ré) de assistir à própria perícia (através de um técnico da sua confiança), e de a poder observar, para a poder depois controlar, podendo melhor exercer o contraditório na análise do relatório final efetuado.
Alias, nos termos da lei (art.º 480º nº4 do CPC), “as partes podem fazer ao perito as observações que entendam e devem prestar os esclarecimento que o perito julgue necessários”. Ora, se a parte pode assistir à diligência ou fazer-se assistir por assessor técnico, ela pode participar ativamente na realização da diligência, diretamente ou por intermédio do seu assessor técnico, fazendo ao perito as observações que entender e que podem, de facto, vir a influenciar o exame médico, e o próprio relatório final.
No fundo, é a consagração legal do direito das partes – aqui da ré -, de participar ativamente na produção de todas as provas, quer as por si indicadas, quer as indicadas pela parte contrária, controlando-as em todas as suas fases, mesmo durante a fase da sua produção “strito sensu”.
No caso concreto, o direito da ré sai reforçado se atentarmos no facto de se tratar de perícia/exame médico singular, em que a figura do Assessor Técnico é fundamental, já que as partes não podem nomear os seus peritos. O Assessor Técnico (das partes) acompanha a realização do exame com o intuito de observar e relatar aquilo que observou, mesmo sem interferir propriamente na realização da perícia. A sua presença permitirá à recorrente tomar conhecimento “direto” da avaliação a que o A. for submetido, dos procedimentos adotados, dos exames objetivos, etc. Desta forma estará melhor salvaguardado o seu direito de defesa, especialmente para eventual pedido de reclamação, esclarecimento, ou mesmo segunda perícia.
Como a tal propósito bem se acentuou no Acórdão da Relação de Coimbra, de 28-11-2018 (disponível em www.dgsi.pt), “…as funções do assessor técnico (…) implicam que o mesmo funcione junto da parte que o nomeou como se de um «intérprete» se tratasse relativamente ao conteúdo do ato inspetivo: a sua intervenção destina-se a traduzir e transmitir ao advogado da parte o conteúdo do ato, com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para este, de modo a que possa exercer eficazmente o contraditório através das reclamações que entenda fazer ao relatório pericial…”.
Foi também esse o sentido que encontramos no Ac. da mesma Relação, de 24.11.2018 (disponível em www.dgsi.pt), de que “O direito da parte se poder socorrer de assessor técnico nos exames médico legais constitui manifestação do direito ao contraditório, na vertente a que se lhe refere o nº 3 do art 3º CPC – o da parte, devidamente esclarecida quanto aos aspetos técnicos do concreto exame médico-legal, poder influenciar o resultado do processo pela sindicância que venha a fazer ao relatório pericial.”
O direito ao contraditório está de resto bem patente nas normas processuais que fomos citando, que importaram para o direito adjetivo o princípio constitucional do “Acesso ao direito e à Tutela jurisdicional efetiva” consagrado no art.º 20º da CRP.
O art.º 480º nº 1 e 3 do CPC consagra precisamente esse direito de contraditório ao estabelecer que “Definido o objeto da perícia procedem os peritos à inspeção e averiguações necessárias à elaboração do relatório pericial” (nº1). “As partes podem assistir à diligência e fazer-se assistir por assessor técnico, nos termos previstos no art.º 50º” (nº3) – ou seja, nos mesmos moldes que pode ser prestada “Assistência técnica aos advogados”, ou seja, “quando no processo se suscitem questões de natureza técnica para as quais não tenha a necessária preparação, pode o advogado fazer-se assistir, durante a produção da prova (…) de pessoa dotada de competência especial para se ocupar das questões suscitadas”. “As partes podem (também) fazer ao perito as observações que entendam e devem prestar os esclarecimentos que o perito julgue necessários” (nº 4).
Esta regra não é mais do que um afloramento particular da regra mais geral estatuída no art.º 415º do CPC, inserido no Título V relativo à Instrução do Processo, intitulado “Princípio da audiência contraditória” o qual estatui que “Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas” (nº1); e “Quanto às provas constituendas, a parte é notificada, quando não for revel, para todos os atos de preparação e produção da prova, e é admitida a intervir nesses atos nos termos da lei…” (nº 2), e esta, por sua vez, do princípio fundamental do contraditório consagrado no art.º 3º do CPC.
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É certo que a lei impõe restrições ao exercício do contraditório, nomeadamente quando esse direito colide com outros direitos ou interesses individuais relevantes da parte contrária, igualmente protegidos legalmente, como sejam os direitos de personalidade, designadamente o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (constitucionalmente previstos nos artºs 25º e 26º da Constituição e consagrados nos artºs 70º e 80º do Código Civil).
É nesse sentido que deverá ser interpretado o art.º 480º nº3 do CPC, como uma restrição ao princípio do contraditório, ao estabelecer que “As partes podem assistir à diligência e fazer-se assistir por assessor técnico (…) salvo se a perícia for suscetível de ofender o pudor…” da pessoa a examinar – protegendo dessa forma os seus direitos de personalidade, concretamente o seu direito à sua integridade moral e à sua intimidade. 
Faz de facto sentido que seja restringido legalmente um direito processual de uma das partes (no caso o direito ao contraditório) perante um direito de personalidade da outra parte (um direito absoluto) se aquele puser este em causa.
Efetivamente, os direitos de personalidade estão também consagrados de forma ampla na nossa legislação civil, desde logo na cláusula geral do art.º 70º do CC no qual se prevê que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”, estando depois consagrado no art.º 80º o “Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, no qual se prevê que “Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem (nº1). A extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas (nº2)”.
Como salienta Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III, 2001, Almedina, pp. 32 e 33), os direitos de personalidade constituem um conjunto de direitos subjetivos que incidem sobre a própria pessoa humana, ou sobre alguns modos de ser fundamentais, físicos ou morais da personalidade, inerentes à pessoa humana, e exprimem o minimum necessário e imprescindível da personalidade.
Ora, é manifesto que o A tem direito à sua integridade física e moral, assim como à reserva da sua intimidade e do seu corpo, e pode, ainda que em termos subjetivos, entender que é uma ingerência à sua privacidade a presença de outras pessoas num exame médico legal, nomeadamente a presença de um assessor técnico da ré (mesmo sendo um médico), como, de resto, o manifestou nos autos, opondo-se à presença daquele no exame medico a realizar.
Daí resulta portanto, que estamos perante um conflito de direitos (o direito da ré de exercer o contraditório, e o direito do A à sua privacidade), conflito esse que deve ser resolvido nos termos gerais de direito.
Com efeito, um dos problemas mais frequentes na aplicação dos direitos de personalidade é precisamente a existência de conflitos, decorrentes da colisão desses direitos com outros direitos ou bens de natureza diferente, mas também com dignidade legal. Esse conflito deve ser resolvido com recurso ao instituto da colisão ou conflito de direitos, nos termos previstos no art.º 335º do CC no qual se prevê que “Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes (nº1). Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”.
Ou seja, a resolução do conflito de direitos deve passar, ou pela harmonização ou concordância prática de direitos, se eles forem iguais ou da mesma espécie, ou, caso eles sejam desiguais ou de espécie diferente, na prevalência de um direito ou bem em relação a outro. Claro está que, neste último caso, é a própria lei que deixa ao critério do julgador a determinação do direito que deve prevalecer, por o considerar superior, o que demanda, em nosso entender, uma análise casuísta de cada um dos direitos envolvidos, e a sua relevância prática em confronto com o outro.
O Tribunal Constitucional, chamado a resolver algumas situações de conflito de direitos envolvendo direitos de personalidade, tem considerado, de forma reiterada, que o direito à privacidade e à integridade física e moral, é também ele passível de restrições (mesmo por via legislativa), desde que elas respeitem o preceituado no artigo 18º nº 2 da CRP, ou seja, desde que se limitem ao necessário para salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos (Ac. TC nº 368/02 in www.tribunalconstitucional.pt).
Efetivamente, o TC tem apreciado em concreto essa compatibilização nos casos em que existe a submissão juridicamente obrigatória a exames ou testes clínicos, considerando que o direito à intimidade da vida privada pode ser limitado em resultado da sua harmonização com outros direitos fundamentais ou com outros interesses constitucionalmente protegidos (de saúde pública ou de justiça), no respeito pelo princípio da proporcionalidade (Ac. do TC nº 355/97 in www.tribunalconstitucional.pt.)
Também no Ac. TC nº 319/95 (in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 31º vol., pág. 501) se considerou lícita a restrição aos direitos de personalidade nos testes de alcoolemia efetuado a condutores de veículos, assim como no Ac. do mesmo TC nº 616/98 (in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 41º vol., págs. 263 e ss.), se considerou que, embora se devesse concluir que, nas ações de investigação de paternidade, existia um constrangimento do réu a submeter-se aos exames de sangue, tendo em conta os efeitos processuais de uma eventual recusa, mesmo assim tal constrangimento deveria ser tido como constitucionalmente admissível, quando confrontado e balanceado com os outros direitos fundamentais em presença.
E na mesma linha se tem orientado a jurisprudência da Comissão Europeia dos Direitos do Homem e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (conforme se pode ver na obra de Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª ed., Coimbra, 1999, pág. 184).
Tudo isto para concluir que estando nós perante direitos desiguais - sendo um deles o direito processual da ré ao exercício do contraditório, e o outro o direito de personalidade do A relacionado com a sua intimidade e reserva da sua privacidade, a proteção do seu pudor -,  este último pode ter de ceder perante o primeiro, se se vier a concluir, à luz duma análise casuística, e da ponderação dos interesses a salvaguardar, que aquele deve prevalecer.
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Começando desde logo pela noção de “Pudor” (referida no nº 3 do art.º 480º do CPC) não consta da lei uma noção de tal sentimento, descrevendo-o no entanto o tribunal recorrido de uma forma que nos parece muito correta, como o “sentimento de vergonha ou timidez causado por algo que fere a sensibilidade ou a moral de uma pessoa, sentimento de timidez ou vergonha”, enquadrando-se esse sentimento no direito à reserva da intimidade da vida privada, o qual vem consagrado no art.º 26º nº1 da Constituição, e no art.º 80º nº 1 do Código Civil. Também o recente Ac. desta Relação de Guimarães, de16.12.2021 (disponível em www.dgsi.pt), se refere a esse conceito como o sentimento de “vergonha produzida por actos ou coisas que ferem a decência, a modéstia ou a honestidade…”.
Existia de facto no Código Penal de 1982, no art.º 205º, inserido nos crimes sexuais, o crime de “atentado ao pudor”, no qual se previa como atentatório do pudor o “comportamento pelo qual outrem é levado a sofrer, presenciar ou praticar um acto que viola, em grau elevado, os sentimentos gerais de moralidade sexual”. O bem jurídico protegido era, assim, no contexto geral do tipo legal em causa, o sentimento de “moralidade sexual” do ofendido.
Em comentário àquele tipo legal de crime, Leal Henriques e Simas Santos (“O Código Penal de 1982, volume 3, 1986, páginas 75 e 76) referiam que neste conceito se reúne “o conjunto de regras que disciplinam, numa dada sociedade, o comportamento humano ligado ao sexo”, regras essas que “visam proteger o sentimento de pudor inerente a todo o ser humano minimamente socializado, pudor que o faz recuar de vergonha perante actos ou coisas que firam a honestidade, a decência, a modéstia, o recato”, ccrescentando ainda aqueles AA que como individual ou pessoal que é, tal sentimento “não se afere pelo padrão de determinada pessoa ou classe, mas por aquele pudor que é comum à generalidade das pessoas numa dada época e num dado lugar”.
E fazendo novamente apelo ao que se decidiu no Ac. da RG de 16.12.2021, acima citado, no qual se faz também referência ao “crime de atentado ao pudor”, “…apesar da noção que então vigorava comportar alguma precisão e objetividade, e de se considerar que certos atos aberrantes, perversos e antinaturais eram só por si suscetíveis de a integrar, deveria entender-se, porém, que só em face de determinado comportamento concreto é que o ato (sofrido, presenciado ou praticado) poderia ser classificado como violador do sentimento geral de moralidade sexual”.
Ora, como se sabe, tal forma de criminalização desapareceu do nosso Código Penal, assim como o conceito jurídico a ele associado, de “moralidade” ou “moralidade sexual”, tendo sido recentrada a necessidade da sua proteção na área da intimidade pessoal que integra o reduto ou reserva da vida privada, por contraponto à social, em que se projetam as manifestações mais caras da liberdade e autodeterminação individuais (Ac. RG de 16.12.2021, acima citado).
Apesar disso, entendemos que do conceito de “pudor” a considerar para os efeitos do art.º 480º nº3 do CPC não devem arredar-se ainda hoje, por pertinentes e atuais (até pelo significado para ele ainda encontrado nos dicionários da língua portuguesa), as noções de “vergonha ou timidez causadas por algo que fere a sensibilidade ou a moral de uma pessoa”, como se faz na decisão recorrida, conceito ainda ligado de certa forma a uma noção de “moralidade”, de “intimidade pessoal”, inserido embora no conceito mais alargado de “reserva da intimidade da vida privada e familiar”, tal como normativamente vem consagrado no nº 1 do art.º 26º da Constituição, e no art.º 80º do Código Civil.
Efetivamente, não constando da lei uma noção do que seja o sentimento de “pudor” de um indivíduo, ele terá de ser protegido como um direito de personalidade consagrado no art.º 26º da Constituição, e nos artºs 70º e 80º do CC (Direito à reserva da intimidade da vida privada), não sendo de menosprezar as construções jurídicas que se vêm fazendo daquele conceito, quer na doutrina quer na jurisprudência, no sentido, cremos que aceitável, de que serão atentatórios ao pudor de uma pessoa, todos os comportamentos que causem resistência, embaraço, vergonha, mal-estar, receio, e que impliquem observação e exposição (devassa) de certas zonas do corpo da pessoa visada (Ac. da RG de 16.12.20221).
Concordamos ainda (na esteira do defendido nos Acs. deste RG, de 23-01-2020 e de 13-07-2021, e no Ac. RP de 25-02-2021, todos disponíveis em www.dgsi.pt) que embora tenhamos de nos ater a uma ideia socialmente comum de “pudor”, captável e aceitável pela generalidade dos cidadãos num determinado momento histórico e social, devemos pô-la em prática justamente em função de cada caso concreto. Nos dizeres do primeiro dos acórdãos citados, “…subsiste o carácter relativo do conceito, dependente, na sua ponderação e consideração casuísticas, de fatores variados como a personalidade e modo-de-ser individuais, o ambiente social em que o sujeito se insere e os costumes por ele vivenciados, bem como a sua sensibilidade e os padrões de moralidade, designadamente sexual, por que se norteia, o nível do recato, decência e modéstia por que se pauta e, consequentemente, a extensão e densidade consequentes do reduto dentro do qual cultiva e preserva a sua intimidade pessoal (…) variável no tempo, de pessoa para pessoa e conforme as circunstâncias…”.
É perante estas noções (sobretudo jurisprudenciais) que devemos aferir se a recusa do A em permitir que o assessor técnico da ré assista ao exame médico ao qual se vai submeter atenta contra o seu pudor, ao ponto de fazer paralisar o direito da ré ao exercício do seu contraditório.
Quanto à situação pessoal do A, dos autos resulta apenas, relativamente à sua situação de vida, que se trata de um homem de 77 anos (à data do acidente), reformado “com fracos recursos” (auferindo uma reforma abaixo do salário mínimo), a viver em ..., AA, e que os atos de vida diária por si praticados são a cuidar do quintal, onde tem árvores de fruto e hortaliças. Um homem de idade avançada, portanto, e de baixa condição social, onde o sentimento de “pudor” estará certamente mais agudizado do que num cidadão jovem, com mais recursos económicos e culturais (em geral com menos relutância em mostrar partes do seu corpo).
Não podemos no entanto esquecer que se trata de uma parte do corpo a expor onde aquele sentimento de pudor se faz sentir menos – a zona superior das costas, acima da cintura ou junto dela  –, uma vez que as lesões de que o A. diz padecer se situam na zona lombar e cervical. Ora, em termos objetivos e sociais essa área do corpo não é apta a afetar de forma ponderosa o direito de privacidade e pudor de um indivíduo normal. Como bem refere a ré, não estamos perante uma zona privada intima ou de caráter sexual, onde as exigências de privacidade seriam mais acentuadas.
Mesmo em termos subjetivos, não nos parece que o desnudar essa parte do seu corpo em frente a um médico, ainda que estranho, seja para o A. atentatório do seu “pudor”, ao ponto de ele poder opor-se, como o fez, à presença desse médico durante o exame médico a que irá sujeitar-se. Aliás, o A. já se sujeitou, em 14/05/2019, à realização de dois TACs, à região cervical e à região lombar, tendo necessariamente que tirar a roupa da parte superior do corpo para ser submetido a tais exames.
Acresce que o assessor técnico da ré, que ela fez questão de identificar (com nome, cédula e domicílio profissional) é um médico, tal qual o perito que vai examinar o A, sujeito a todos os deveres deontológicos relativos à classe médica a que pertence, entre eles o de guardar sigilo profissional sobre as pessoas examinadas (fora da esfera das suas funções, claro, que são as de assessorar a ré na análise da perícia para a qual foi designado). Ademais, para além do direito que lhe assiste de fazer observações ao perito, as suas funções são muito reduzidas, limitadas praticamente a observar e a acompanhar o exame médico do seu colega. 
Donde, a conclusão a tirar de tudo quanto se expôs é a de que não consideramos que o assessor técnico da ré não possa assistir ao exame médico a realizar ao A no Gabinete Médico Legal.
Consideramos de facto, contrariamente ao que foi decidido na primeira instância, que não há qualquer ofensa ao sentimento de pudor do A com a presença daquele assessor, e que a existir algum desconforto por parte do A, ele não se sobrepõe ao interesse da ré no exercício do seu direito ao contraditório e ao seu direito de defesa, que deverá, no caso, prevalecer.
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Por todo o exposto, concluímos que não pode a decisão em apreço ser mantida, devendo, antes ser revogada e substituída por outra que permita que a ré se faça assistir na perícia médica a realizar ao A. por assessor técnico por si escolhido.
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, Julga-se procedente o recurso e revoga-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que autorize a ré a fazer-se assistir no exame médico a realizar ao A. por assessor técnico por si indicado.
Custas da apelação pelo recorrido (artºs 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
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Guimarães, 19.1.2023