REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
CRIME DE AMEAÇA
ELEMENTOS DO TIPO
FALTA DE ELEMENTO SUBJETIVO
ATUAÇÃO DE FORMA LIVRE
Sumário


I- No requerimento acusatório em questão, e no que ao elemento subjetivo concerne consta que o arguido “atuou da forma descrita, com o propósito de provocar medo e inquietação em A., desiderato que logrou alcançar. O arguido sabia que a sua conduta, além de censurável, era proibida e punida por lei.”

II- Apesar da forma não tabelar de afirmar o dolo, pode constatar-se que se identificam nas expressões utilizadas a vontade e conhecimento da prática de um facto ilícito (elementos volitivo e intelectual) e, bem assim, a consciência da ilicitude (elemento emocional), o que basta para afirmar a existência de modo suficiente da totalidade dos elementos subjetivos do tipo de crime em causa.

III- A imputada forma de atuação só poderia ter ocorrido livre e deliberadamente, como se extrai da narração vertida na acusação ao escrever-se que o arguido dirigiu as expressões ao assistente, embora por interposta pessoa, com o propósito, a intenção, a vontade, de provocar neste medo e inquietação, desiderato que alcançou, consciente de que ao assim proceder assumia uma conduta censurável, proibida (ilícita) e punida por lei (criminalmente punida).

Texto Integral


I. Relatório

Nos autos de processo comum singular, com o NUIPC 5330/20.2T9BRG, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., após ter sido remetido à distribuição, para efeitos do despacho de saneamento previsto no art. 311º do CPP, foi proferido o seguinte despacho:

“Autue como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular.

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O Tribunal é competente.
Nos termos do disposto no artigo 311º, nºs 2, a), do Código de Processo Penal, recebidos os autos no tribunal sem que tenha havido instrução, o juiz pode rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada, o que se verifica quando, designadamente, os factos descritos não constituam crime (nº3, d)).
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No caso em apreço, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 153º, nº1, Cód. Penal.
Imputa-lhe, para tanto, em suma, a circunstância de ter dito ao assistente, por interposta pessoa, “… que um dia ia aparecer esticado numa esquina todo partido, isto também se trata, a seu tempo logo se trata”.
Acrescenta que o arguido “atuou da forma descrita, com o propósito de provocar medo e inquietação em BB, desiderato que logrou alcançar. O arguido sabia que a sua conduta, além de censurável, era proibida e punida por lei.”
O crime de ameaça é p. e p. pelo artigo 153º, nº1, Código Penal, nos termos do qual: “[Q]uem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, (…) de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias” (artigo 153º/1)”.
No que ora nos importa, o tipo subjetivo pode ser preenchido por qualquer modalidade de dolo, constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los (artigos 13º e 14º do Código Penal), independentemente da vontade de concretizar a ameaça, bastando a consciência por parte do agente de que a sua conduta é suscetível de produzir medo ou inquietação ao destinatário e vontade de que tal se verifique.
A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual (representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo de ilícito) e um elemento volitivo (especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito), do que resultará a imputação de um dolo direto – se há intenção de realizar o facto, dolo necessário – se há previsão do facto como consequência necessária da conduta, dolo eventual – se há conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.
Impõe-se, quanto ao elemento subjetivo, num crime doloso como o dos autos, que se afirme que o arguido atuou de forma livre (sendo capaz de determinar a sua ação, podendo agir de forma diversa, assim se afastando a existência de causas de exclusão da culpa), deliberada (que quis realizar o facto criminoso) e consciente (representando todas as circunstâncias do facto, sendo imputável), sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (com consciência da ilicitude) – neste sentido, Acs. TRE de 6.10.2015, TRC 1.6.2011, in www.dgsi.pt.
O tipo subjetivo de ilícito inclui, por isso, o dolo do tipo e o dolo da culpa.
Ora, na acusação pública deduzida nos autos - e ainda que nada obste a que se abdique da utilização das fórmulas habituais – o certo é que nada se diz quanto à (essencial) liberdade da atuação do arguido, à liberdade e capacidade de o mesmo determinar a sua ação, de molde a afastar qualquer causa de exclusão da culpa, pelo que o elemento subjetivo se mostra insuficientemente narrado.
Por força do princípio do acusatório e da vinculação temática, com consagração constitucional (art. 35º nº 2 da CRP), o tribunal só pode investigar e julgar dentro dos limites da acusação, que define e fixa o objeto do processo e delimita os poderes de cognição do Tribunal, que não pode servir-se dos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º, CPP, para transformar condutas atípicas submetidas a julgamento, que merecem absolvição, em condutas típicas, dignas de condenação (a este propósito, Ac. Unif. Jurisprudência nº 1/2015, Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27, pp. 582 – 597).
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No tocante à acusação particular deduzida pelo assistente pela prática do crime de difamação, diga-se que dispõe o art. 180º, CP: «[Q]uem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa a é 240 dias».
Como crime de mera atividade e doloso que é, tem como elementos constitutivos, objetivamente, a ação adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à honra ou consideração de outrem, e, subjetivamente, o dolo, constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los (artigos 13º e 14º do Código Penal).
No que respeita ao elemento subjetivo, e dando por reproduzido o que ficou dito supra, a este propósito, em relação à acusação pública, concluímos que nada se diz, na acusação particular apresentada, sobre o elemento emocional do dolo, enquanto tipo de culpa, habitualmente traduzido na expressão de que os arguidos atuaram “sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” ou outra equivalente.
A este propósito, conforme ficou dito no Ac. TRG, 19/06/2017, Proc. 430/15.3GEGMR.G1 in www.dgsi.pt: «I) A alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na conceção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo e os elementos do tipo de culpa. II) Na acusação deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras "filha da puta" e "pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu". Esta articulação contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto) e do elemento intelectual do dolo. Já em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), habitualmente traduzido na expressão de que "o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal", ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência. III) Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária à verificação do crime imputado à arguida, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não restava outra solução ao Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos arts. 283º, nº 3, b) e 311º, nºs 2, a), e nº 3, d) do CPP».
Assim, os factos descritos pelo assistente são insuficientes para consubstanciar a prática de qualquer crime, o que não é, conforme ficou dito supra, suscetível de suprimento pelo Tribunal.
Em consequência do que ficou dito, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2 al. a) e nº 3 al. d), do Código de Processo Penal, rejeito as acusações pública e particular deduzidas contra o arguido, por manifestamente infundadas.
Custas pelo assistente pela rejeição da acusação particular, fixando-se a taxa de justiça no mínimo (art. 515.º, n.º 1, al. f), CPP, art. 8.º, n.º 9 do RCP e tabela III a este anexa).
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Veio o assistente deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido, fundado na prática dos crimes constantes das acusações deduzidas.
Nos termos do disposto no artigo 71º do Código de Processo Penal, que consagra o princípio da adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime deve ser deduzido no processo penal respetivo, ressalvados os casos previstos na lei.
Impõe-se, pois, que o pedido formulado seja emergente da prática de um crime, o que implica que aquele tenha como causa de pedir os mesmos factos que constituem o pressuposto da responsabilidade criminal a apreciar, e que constem da acusação deduzida e recebida para julgamento.
Caso contrário, o pedido formulado carece de suporte, porquanto é a acusação (ou a pronúncia) que fornece o referencial do ilícito causador dos danos indemnizáveis.
No presente caso, tendo as acusações deduzidas contra o demandado sido rejeitadas, inexiste objeto do processo que constitua causa de pedir para a formulação de pedido cível.
Nesta conformidade, por impossibilidade legal, não admito o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante civil/assistente (art. 277º, e), CPC).
Sem custas, atento o valor do pedido (art. 4º, nº1, n), RCP).
Notifique.
Oportunamente arquive.
... (data certificada pelo sistema)”.
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Inconformado, interpôs o Ministério Público recurso, pedindo a revogação deste despacho, sustentando as seguintes conclusões:

III – CONCLUSÕES:
1) A rejeição da acusação nos termos e para os efeitos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do CPP implica que os factos imputados ao arguido não sejam de forma evidente e incontestável integradores do crime que lhe é imputado;
2) No caso concreto, diz-se então, na acusação que, “Com a atuação do arguido, BB sentiu receio e ainda sente pela sua integridade física.
O arguido actuou da forma descrita, com o propósito de provocar medo e inquietação em BB, desiderato que logrou alcançar.
O arguido sabia que a sua conduta, além de censurável, era proibida e punida por lei penal.”.
3) No despacho de que se recorre, a M.ma Juiz a quo conclui que “… na acusação pública deduzida nos autos – e ainda que nada obste a que se abdique da utilização das fórmulas habituais – o certo é que nada se diz quanto à (essencial) liberdade da atuação do arguido, à liberdade e capacidade de o mesmo determinar a sua ação, de molde a afastar qualquer causa de exlusão da culpa, pelo que o elemento subjetivo se mostra insuficientemente narrado”.
4) Ora, a acusação deduzida contém todos os factos e elementos, objetivos e subjetivos, necessários à subsunção do crime p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual o arguido vinha acusado.
5) Foram assim violados pelo despacho recorrido os artigos 311.º, n.º 2, alínea a), n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal e 187.º, do Código Penal.

Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogado o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que receba integralmente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido e o submeta a julgamento também pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, do Código Penal, assim se fazendo, como sempre,
JUSTIÇA.”

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Subidos os autos a este Tribunal, o Sr. Procurador Geral Adjunto apôs o seu visto.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º/2 C P Penal, nada mais tendo sido acrescentado.
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Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência
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II. Fundamentação

Como é consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º, nº 1, do CPP.
Assim, para apreciação deste Tribunal, vem suscitada no presente recurso, tão só, a questão de saber se a acusação deduzida pelo recorrente Ministério Público, uma vez que o assistente se conformou com a não admissão da acusação particular, está em condições de ser recebida, seguindo o processo para julgamento.

A concreta questão aqui suscitada – necessidade ou não de alegação, descrição na acusação dos factos integradores do elemento subjetivo do tipo surge, com alguma frequência, normalmente associada a acusações particulares, por crimes de injúrias e de difamação, crimes de natureza particular, mas também vão surgindo situações como a vertente, em que nos deparamos com a rejeição de uma acusação pública, concretamente relativa à imputação da prática de um crime de ameaça.
Em face das conclusões apresentadas importa decidir se a omissão, na acusação do elemento intelectual do dolo implica a sua rejeição por ser manifestamente infundada (como decidiu o despacho recorrido), ou se pelo contrário, (como defende o recorrente), tal omissão não se verifica no caso concreto.

Para uma melhor apreciação da questão subjacente ao presente recurso, importa, desde já, recordar, o teor da acusação pública deduzida.

É do seguinte teor:

“(…)
No 20 de novembro de 2020, por intermédio da esposa do arguido, BB teve conhecimento que este tinha dito “… que um dia ia aparecer esticado numa esquina todo partido, isto também se trata, a seu tempo logo se trata”.
Com a atuação do arguido, BB sentiu receio e ainda sente pela sua integridade física.
O arguido atuou da forma descrita, com o propósito de provocar medo e inquietação em BB, desiderato que logrou alcançar.
O arguido sabia que a sua conduta, além de censurável, era proibida e punida por lei penal.”

Vejamos, então.

É do seguinte teor a norma alegadamente violada:
artigo 311º do CPP:
“1. recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre s nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido par a julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) de não aceitar a acusação do assistente ou do MP na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respetivamente.
3. para os efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) se os factos não constituírem crime”;

Temos então que, no caso sub judice, a acusação foi rejeitada, por se ter “considerado como manifestamente infundada”, “… na acusação pública deduzida nos autos - e ainda que nada obste a que se abdique da utilização das fórmulas habituais – o certo é que nada se diz quanto à (essencial) liberdade da atuação do arguido, à liberdade e capacidade de o mesmo determinar a sua ação, de molde a afastar qualquer causa de exclusão da culpa, pelo que o elemento subjetivo se mostra insuficientemente narrado”.
A propósito da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º C P Penal refere Germano Marques da Silva in Curso, III, 207/8, que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”.
Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do C P Penal é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”.
“Acusação manifestamente infundada é aquela que nos seus próprios termos não tem condições de viabilidade”, no entendimento expressivo de Maia Gonçalves, o que acontece nos casos taxativos previstos no n.º 3 do artigo 311º C P Penal.
“O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime, só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos constitutivos - objectivos e subjectivo - de qualquer ilícito criminal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante”, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C P Penal.
Assim, importa apreciar se dirigir a alguém as palavras com teor ameaçador que o arguido dirigiu a terceira pessoa, mas respeitantes ao queixoso/assistente, nos moldes descritos na acusação pública que contra aquele deduziu, é susceptível de integrar o tipo legal de ameaça do artigo 153º, nº 1, do CP.
Estabelece o artigo 283º, nº 3, do CPP, que “a acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
Esta exigência resulta facilmente compreensível, se atentarmos no facto de que os poderes de cognição - e, consequentemente, de decisão - do tribunal estão limitados pelo princípio da vinculação quanto ao objecto (essencial) do processo, tal como definido na acusação.
Não só o Tribunal precisa de saber, desde logo, exactamente aquilo que tem de julgar (porque não será possível, a partir deste ponto, alterar-se o manancial fáctico, com que terá de trabalhar senão em medida muito limitada), como o arguido, para se poder defender adequadamente da acusação que lhe é feita, tem de saber, também desde já, aquilo que se supostamente terá feito.
O acto de julgar contém-se no âmbito e dentro dos limites que são colocados por uma acusação fundamentada. Trata-se manifestamente de um caso seguro de vinculação temática.
Isto porque é pela acusação que se define e fixa o objecto do processo, o objecto do julgamento, e, portanto, passível de condenação será tão só o arguido pelos factos constantes da acusação.
Se os factos integradores do dolo não estiverem descritos na acusação, o arguido, desconhecendo, por um lado o nexo de imputação dos factos, se a título de culpa se de negligência e por outro, a modalidade do dolo, que o acusador tem por subjacente, vê-se impedido de exercer de forma cabal, o seu direito de defesa.
Sem a descrição dos factos, inexiste objecto idóneo à actividade do Tribunal e da mesma forma, fica o arguido impossibilitado de se defender.
Como da mesma forma, em face do princípio geral “nulla poena sine culpa”, consagrado no artigo 13º C Penal, fica demonstrada a necessidade, a imprescindibilidade, mesmo, de os elementos integradores da culpa (do dolo, necessariamente, no caso, do crime de ameaça), para fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena.
“A culpa é a censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso e, assim, se traduz num juízo de valor”, (cfr. Prof. Eduardo Correia, in Direito Criminal, I, 313.)
“Os elementos da culpa são a imputabilidade do agente, a sua actuação dolosa ou negligente e a inexistência de circunstâncias que tornem não exigível outro comportamento”, (ibidem, 322.)
“O dolo e a negligência têm como substracto um fenómeno psicológico, representado por uma certa posição do agente perante o facto ilícito capaz de ligar um ao outro. Estes fenómenos psicológicos, eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do agente, cabem, ainda assim, dentro da vasta categoria de factos processualmente relevantes”, (cfr. Prof. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, in Manual de Processo Civil, 392,) com evidente pertinência em relação ao processo penal.
Daqui se conclui, igualmente, pela necessidade de a acusação dever conter os factos, neste sentido, que permitam formular o referido juízo de censura ético-jurídica ao arguido.
O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo leal de crime de ameaça, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º, nº 3, do CPP, impõe que seja incluído na acusação.
De resto, encerrada a discussão na audiência de julgamento, aquando da reunião de deliberação subsequente, na apreciação do mérito, será pela questão de saber se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime, que se inicia esta fase de elaboração da decisão final, cfr. artigo 368º, nº 2 alínea a), do CPP.
Resulta, assim, cremos suficientemente evidenciada a importância da referência na acusação, a todos os factos integradores dos elementos constitutivos do tipo legal.
Os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança são, naturalmente, os que integram, enquanto elementos constitutivos, os diferentes tipos das várias incriminações previstas na lei penal.
Como é consabido, elementos constitutivos dos diversos tipos legais de crime, são por um lado, o objectivo, que se traduz na descrição objectiva da acção ou omissão proibida – e, por outro lado, o subjectivo, relativo à atitude (aos conhecimentos) que o agente deve apresentar em relação à realização do tipo penal.
Sem a sua verificação cumulativa, não se pode afirmar o preenchimento do tipo.
Convém recordar, desde já, que o tipo legal de crime de ameaça é de natureza dolosa, ou seja, apenas a conduta dolosa é punida e não a negligente, cfr. artigo 13º C Penal, daí que o elemento subjetivo, no caso vertente, apenas se pode traduzir no dolo.
O artigo 14º do CP, não define o dolo do tipo, apenas prevê as diversas formas que o mesmo pode revestir.
Nos termos do nº. 1, “age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar”, dolo directo;
segundo o nº. 2, “age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta”, dolo necessário e,
em face do nº. 3, “quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”, dolo eventual.
“A doutrina dominante conceptualiza o dolo, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito.
O dolo surge, então, justificadamente como conhecimento - o momento intelectual – e vontade – momento volitivo – de realização do facto.
Os 2 elementos, do ponto de vista funcional, não se encontram, no entanto, ao mesmo nível:
o elemento intelectual do dolo do tipo, não pode, por si mesmo, considerar-se decisivo da distinção dos tipos dolosos e dos tipos negligentes, uma vez que também estes últimos podem conter a representação pelo agente de um facto que preenche um tipo de ilícito - a chamada negligência consciente, artigo 15º alínea a) do CP.
Será, pois, o elemento volitivo, quando ligado ao elemento intelectual, que verdadeiramente serve para indiciar (embora não para fundamentar) uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento, uma culpa dolosa”, (cfr, Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, I, 334.)
Comportamentos dolosos, na expressão do mesmo autor, ibidem, 247, são aqueles em que “o agente previu e quis a realização do tipo”.
“Hoje vem-se colocando, a questão de saber se o dolo se esgota naqueles elementos ou se inclui também um elemento emocional – a consciência da ilicitude”, (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Jornadas, 72 e Direito Penal, Parte Geral, I, 333 e 489, apud Maia Gonçalves, in C Penal anotado, 17ª edição, 103.)
Expende, o Prof. Figueiredo Dias que, “o dolo não se pode esgotar no tipo de ilícito e não é igual ao dolo do tipo, mas exige ainda do agente, o momento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo, ou seja uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas”.
Ora, voltando ao nosso caso concreto, o recorrente defende, nas conclusões, que:
“Tendo em conta o imputado crime de ameaça, cujo tipo é definido no art.º 153.º do CP, resulta que se exige, para a sua prática, que a atuação seja dolosa, dolo esse que se traduz, grosso modo, na consciência e vontade da realização dos elementos objetivos do tipo de crime de ameaça, onde se inclui a “consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade na ofendida ameaçada”.
O significado das expressões utilizadas na acusação são:
- Agir com o propósito de provocar medo e inquietação noutra pessoa é agir por determinação da sua consciência, da sua vontade, das suas escolhas, das suas decisões, dos seus motivos, com determinada intenção, de forma decidida, resoluta;
- Proibido é algo que não é permitido, cuja prática não é permitida por lei;
- Uma conduta punida por lei é uma conduta repreendida, castigada, penalizada.
Esse atribuído significado afigura-se correto, seja na aceção da linguagem corrente, seja no âmbito do conhecimento e da vontade da decisão, em que o dolo se traduz”.

Como vimos, ao nível do elemento típico subjetivo do ilícito ficou exarado na acusação pública que o arguido “atuou da forma descrita, com o propósito de provocar medo e inquietação em BB, desiderato que logrou alcançar. O arguido sabia que a sua conduta, além de censurável, era proibida e punida por lei.”
Não se suscitam dúvidas de que, ao proferir as expressões aludidas, o arguido atuou com vontade de causar medo e inquietação na pessoa do assistente, com esse “propósito” (elemento volitivo), e sabendo que ao assim proceder atuava de forma proibida e punida por lei, ou seja, com conhecimento e vontade de concretização do tipo de ilícito (elemento intelectual). Será que daí não consta, e não se infere, como diz o despacho recorrido, que o arguido agiu de forma livre, sem se poder retirar se sabia o que estava a fazer?
Nos crimes dolosos - como é o crime de ameaça p.p. artigo 153º do Código Penal - o dolo é constituído pelos referidos três elementos, ou seja, quando a alguém é imputada a prática de um crime doloso tem de ficar claro que agiu a perceber o que fez (elemento intelectual), a querer fazer o que fez (elemento volitivo) e com a consciência de que praticava um crime (elemento emocional).
Só perante esta tríplice realidade se pode fazer a afirmação de que alguém agiu dolosamente e se assegura que o arguido se pode defender cabalmente da acusação, também sob o ponto de vista subjetivo.
Nos tribunais é comum resumir o proceder doloso na fórmula “agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a conduta era ilícita e criminalmente punida, ou proibida e punida por lei”, não assumindo tal fórmula carater sacramental, e podendo ser expressa através da imputação de factualidade concreta que confere precisamente a mesma realidade.
Esta fórmula não consta nestes termos específicos do requerimento de acusação. Mas, como dissemos, aqui é aplicável o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º do CPP. A alínea b) do nº 3 do artigo 283º refere “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; a alínea c) “a indicação das disposições legais aplicáveis”).
Ora, perante a factualidade exposta constante do requerimento acusatório é evidente que desde já se pode afirmar que tal factualidade não está descrita de forma exemplar. É à luz dessas palavras incertas na acusação, e das que constam do texto legal aplicável, que há que decidir se se pode afirmar que o requerimento é omisso quanto ao elemento subjetivo do crime de ameaça, na medida em que foi essa a causa de rejeição identificada no despacho recorrido.
Como se diz no acórdão desta relação de 11/07/2017 proferido no processo 649/16.0T9BRG.G1 (Desembargador Jorge Bispo) in www.dgsi.pt, (também citado no despacho recorrido e na motivação do recurso interposto, e incidente sobre um requerimento de abertura da instrução, com plena aplicação ao caso vertente): “ainda que a matéria alegada no RAI possa não ter sido descrita de forma exemplar, se tal peça permitir aferir da verificação dos elementos objetivos e subjetivos do crime, o RAI não deverá ser rejeitado”.
Ora, já vimos que a afirmação de uma atitude dolosa implica a afirmação de que o arguido sabia o que fazia, queria fazê-lo e que agiu com a consciência de que praticou um crime.
No requerimento acusatório em questão, e no que ao elemento subjetivo concerne – não obstante o despacho recorrido se fundamentar numa atribuída falta de indicação “na acusação pública deduzida nos autos … nada se diz quanto à (essencial) liberdade da atuação do arguido, à liberdade e capacidade de o mesmo determinar a sua ação, de molde a afastar qualquer causa de exclusão da culpa, pelo que o elemento subjetivo se mostra insuficientemente narrado” - consta que o arguido “atuou da forma descrita, com o propósito de provocar medo e inquietação em BB, desiderato que logrou alcançar. O arguido sabia que a sua conduta, além de censurável, era proibida e punida por lei.”
Apesar da forma não tabelar de afirmar o dolo, pode constatar-se que se identificam nas expressões utilizadas a vontade e conhecimento da prática de um facto ilícito (elementos volitivo e intelectual) e, bem assim, a consciência da ilicitude (elemento emocional), o que basta para afirmar a existência de modo suficiente da totalidade dos elementos subjetivos do tipo de crime em causa. A imputada forma de atuação só poderia ter ocorrido livre e deliberadamente, como se extrai da narração vertida na acusação ao escrever-se que o arguido dirigiu as expressões ao assistente, embora por interposta pessoa, com o propósito, a intenção, a vontade, de provocar neste medo e inquietação, desiderato que alcançou, consciente de que ao assim proceder assumia uma conduta censurável, proibida (ilícita) e punida por lei (criminalmente punida).
É claro que, a falta de alegação do dolo, mormente num crime essencialmente doloso, não é um pormenor que possa ser tido como implícito, na descrição dos elementos objetivos do tipo.
“Se nada impede que se capte o dolo, dada a sua natureza de intimamente ligado à vida interior do agente, insusceptível de apreensão directa, através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa extrair, por meio de presunções, mesmo ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”, cfr. Ac deste Tribunal de 23.2.83, in BMJ, 324º, 620, no entanto, uma coisa é a prova do dolo e outra, diversa, é a sua alegação.
Só pode ser objecto de prova, o facto anteriormente alegado.
“Não se pode admitir a figura de dolo implícito”, (cfr. Ac. RG de 7.4.2003, in CJ, II, 291), nem a Constituição da República consente presunções de culpa, cfr. artigo 32º, nº 1, 2 e 5 da Constituição da República.
No entanto, não é esta a situação que se verifica no caso vertente.

Finalmente terá ainda de reconhecer-se que apesar da peça processual em análise não ser modelar, o arguido ao ser com ela confrontado percebe do que está a ser acusado, não se vislumbrando que resultem coartados quaisquer direitos de defesa.
Tanto basta para se concluir que o recurso tenha de ser julgado procedente.
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III. DECISÃO.

Em face do exposto acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, e determinam que seja substituído por outro que, na ausência de qualquer outro motivo impeditivo, admita a acusação pública proferida, seguindo-se os ulteriores termos processuais

Sem custas.

Notifique.
(Acórdão elaborado pelo relator e revisto pelos subscritores – art. 94º, nº 2, do CPP)
Guimarães, 23 de janeiro de 2023

Os Juízes Desembargadores
Relator – José Júlio Pinto
1º Adjunto – Pedro Cunha Lopes
2º Adjunto – Fátima Furtado