ACUSAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
REJEIÇÃO DO RAI APRESENTADO PELO ASSISTENTE
CRIME MAIS GRAVE
Sumário


No caso de o Ministério Publico ter deduzido acusação, imputando ao arguido a prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do CP, o assistente, discordando da acusação, por entender que a conduta imputada deverá ser mais grave, pode requerer instrução, descrevendo no respetivo requerimento de abertura de instrução, sob a forma de uma acusação, os factos integradores dos elementos objetivo e subjetivo do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145º, nº 1 al. a) e nº 2, este com referências às alíneas h) e j) do nº 2 do artigo 132º, ambos do CP, nos termos do disposto no artigo 286º, nº 1, 287º, nº 1 al. b) e 69º, nº 2 al. b), todos do CPP.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO
           
1. No processo de inquérito com o NUIPC646/20.0GAEPS, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal ... – Juiz ..., foi proferido despacho no dia 26-05-2022 [referência179438187] que se transcreve:
           
«Requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA:
           
Nos termos do artigo 286.º, n.º1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A Instrução pode ser requerida pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação, e pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, quanto a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (artigo 287.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal).
No requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, este terá de indicar não só as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público, mas também os actos de instrução que deseja sejam realizados, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e outros, pretende provar.
Ao Requerimento de Abertura de Instrução do Assistente é ainda aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal (artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) ou seja, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a  indicação das disposições legais aplicáveis.
A inobservância destes requisitos implica nomeadamente a nulidade da acusação (artigo 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
Assim, no Requerimento de Abertura de Instrução o Assistente terá, desde logo, de descrever os factos concretos que pretende imputar ao arguido.
Perante o arquivamento determinado pelo Ministério Público e de acordo com o artigo 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente constituirá uma “acusação alternativa”, que deve descrever os
factos que fundamentam a eventual aplicação ao(s) arguido(s), definindo e delimitando assim o objeto do processo.
Atenta a estrutura acusatória do processo penal, o Requerimento de Abertura de Instrução não pode limitar-se à simples impugnação do despacho de arquivamento, para o que o meio adequado é a reclamação hierárquica.
Isto porque não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor.
A Instrução é uma fase processual facultativa, com finalidades e âmbito específicos e definidos por lei e onde não cabe levar a cabo diligências de investigação, como se de um complemento ou continuação do Inquérito se tratasse, no sentido de apurar factos a imputar aos arguidos.
Não descrevendo o assistente os factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia implica necessariamente uma alteração substancial do requerimento, ferida pois de nulidade nos termos do artigo 309.º do Código de Processo Penal.
Ora, nos presentes autos e compulsado o teor do requerimento de abertura da instrução, verifica-se que o assistente se limita a invocar as razões da sua discordância com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público e as razões por que, no seu entender, o processo deveria ter prosseguido para julgamento pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
           
Todavia, o assistente salienta no primeiro artigo do RAI o seguinte:
O teor da acusação formalizada pelo Ministério Publico, que seguidamente se reproduz (…) padece, (…) de um enquadramento inadequado dos factos apurados no que respeita à qualificação jurídica:”
           
E segue a transcrição da acusação pública.
Depois, o assistente entende que, quer pela natureza do objeto usado na agressão, quer pela zona vital do corpo atingida (cabeça), bem como a extensão qualitativa e quantitativa das lesões provocadas, a qualificação da ofensa à integridade física devia ser qualificada.
Porém, as afirmações feitas pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução, não traduzem o necessário elenco de factos a imputar ao arguido.
Pela simples razão de que não deduz ele, assistente, uma acusação alternativa.
Na verdade, se bem se reparar, a acusação pública nem sequer contém o relato completo das lesões e suas consequências quando relata:
Como consequência dessas pancadas o ofendido ficou com uma ferida na região parietal esquerda e dores e limitação funcional à flexão palmar do punho esquerdo, melhor descritas no relatório médico-legal de fls. 56 a 59.
Só que omite a menção às lesões e sua cura ou consolidação descritas no relatório pericial subsequente de fls. 126 a 130.
E o assistente não aproveita o RAI para colmatar tal omissão, como deveria ter feito formulando uma acusação alternativa que reunisse os elementos objetivos e subjetivos do crime qualificado que imputa e que configurasse o objeto da instrução.
O juiz de instrução não tem a missão de tentar «salvar» os requerimentos imperfeitos e insuficientes, respigando uma palavra aqui, um segmento de frase mais à frente, eventualmente aproveitando também o conteúdo da queixa, para, contextualizando tudo, compor uma acusação que não lhe compete formular. Na realidade, a sua função não é “acusar”, mas apenas a de “comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (art. 286 nº 1 do CPP). Tendo o MP decidido arquivar o inquérito o juiz de instrução “comprova” a acusação do assistente, como se lê no Ac. R. Guimarães de 26/1/2015, REL. DES. Fernando Monterroso, www.dgsi.pt.
Na verdade, o requerimento de abertura de instrução em apreço apresentado pelo assistente, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, pronunciando-se apenas quanto à justeza da qualificação jurídica do despacho final, é no entanto omisso quanto aos necessários factos (que são diversos dos do crime de ofensa à integridade física simples), não descrevendo os acontecimentos e os comportamentos que pretende ver imputados, e não descrevendo a motivação aquando da sua alegada prática.
Não decorre, pois, do requerimento em análise, a referência directa a quaisquer factos que possam consubstanciar os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime qualificado, razão pela qual, a prosseguirem os autos, o arguido não saberia relativamente a que factos teria de defender-se e, ainda que viesse a ser proferido despacho de pronúncia, o mesmo redundaria necessariamente numa alteração substancial do requerimento de abertura de instrução, e por isso, viciada pela nulidade prevista pelo n.º 1 do artigo 309.º, do Código de Processo Penal.
Acresce que, nestes casos, é insustentável a prolação de um despacho de aperfeiçoamento, sob pena de haver lugar a uma prorrogação do prazo legal para requerer a abertura da instrução inadmissível em processo penal fora do caso previsto no art. 107.º, nº 6, do Código de Processo Penal.
Isso mesmo resulta inequivocamente do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no Diário da República n.º 212, I Série A, de 4 de Novembro de 2005 que, fixando jurisprudência nesta matéria determinou que: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.” e para cujos fundamentos se remete.
           
Nesta conformidade, por inadmissibilidade legal, atenta a falta de indicação dos factos sobre os quais deveria incidir a presente instrução, ao abrigo do disposto nos art.ºs   287.º, nºs  2  e  3,  do  Código  de  Processo  Penal,  e  32.º,  n.ºs 1  e  5,  da  Constituição  da  República Portuguesa, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA.
Custas a seu cargo, fixando em 1 UC a taxa de justiça. Notifique.
Remeta oportunamente os autos à distribuição.»

2. Inconformado, o assistente AA, interpôs recurso, concluindo a sua motivação do seguinte modo (transcrição).
           
«II - Conclusões
I. O Despacho de que se recorre, ao entender como inadmissível a abertura da instrução visada pelo assistente, fez uma errada interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 286.º, alínea b) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 287.º, ambos do Código de Processo Penal, que resultaram violados.
II. Tanto na acusação, como na pronúncia, os factos e a pretensão são inseparáveis, até porque um dos requisitos obrigatórios é a indicação das disposições legais aplicáveis (alínea c) do n.º 3 do artigo 283.º e n.º 2 do artigo 308.º do CPP), pelo que a palavra “factos” não pode ser entendida de forma meramente literal, isolada do enquadramento sistemático processual penal.
III. Os preceitos violados devem ser entendidos no sentido de permitirem a abertura de instrução quando requerida pelo assistente quando este vise apenas uma qualificação jurídica diversa dos factos constantes da acusação do Ministério Público.
IV. Ainda para mais quando com essa qualificação jurídica esteja em causa uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, o que faz com que estejamos perante uma alteração substancial dos factos, nos termos da alínea f) do artigo 1.º do CPP, pois nesses casos o Assistente está impedido de lançar mão do disposto no artigo 284.º do CPP, o que faria com que ficasse impedido de discordar da qualificação jurídica propugnada pelo Ministério Público quanto ao crime de que foi vítima.
V. Ora a decisão do Ministério Público de acusar nos moldes em que o fez, isto é, com a qualificação jurídica que entendeu justificar-se para o caso, tem de estar necessariamente submetida ao controlo judicial do Juiz de Instrução.
VI. A interpretação como a que foi sustentada pelo Despacho recorrido, considerando a referida inadmissibilidade legal da instrução (n.º 3 do artigo 287.º do CPP), compromete irremediavelmente a possibilidade de controlo judicial da decisão do Ministério Público.
VII. A fase de instrução deve articular-se com a fase de inquérito, sendo a mesma judicializada precisamente para se aferir da bondade ou da inadequação da decisão proferida pelo Ministério Público em toda a sua amplitude.
VIII. A tese a sufragar é sem dúvida a que defende (conforme jurisprudência citada na motivação) que é legalmente admissível a abertura da instrução a requerimento do Assistente, mesmo que o único objetivo seja a discussão sobre a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.
           
Nestes termos e nos mais de Direito, entende o Assistente que o presente recurso merece provimento e, consequentemente deverá o Despacho que ora se impugna, ser revogado por um Acórdão que, em conformidade com as razões expendidas nas conclusões, determine a sua substituição por Despacho que declare aberta a instrução e assim faça JUSTIÇA.»

3. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, sustentando que o despacho recorrido deve ser revogado, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
«B) Conclusões

I – O despacho recorrido - rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente - funda-se na ausência da apresentação da acusação alternativa.
II – O requerimento de abertura de instrução do assistente – quando pretende a pronúncia do arguido – deve revestir a forma de uma acusação, obedecendo aos requisitos do artigo 283.º, nº3 do Código de Processo Penal, sendo-lhe aplicável o decidido no AUJ n.º1/2015, publicado no D.R. nº18/2015.
III – O assistente reproduziu a acusação pública deduzida nos autos, narração à qual acrescentou – pontos 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 19.º - os factos que integram o crime de ofensa à integridade física qualificada, bem como a norma que o prevê e pune – ponto 22.º.
IV - Do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente resulta a descrição do crime de ofensa à integridade física qualificada pelo qual o assistente pretende a pronúncia do arguido.
V- Assim, afigura-se-nos que dever ser dado provimento ao recurso e ser o arguido pronunciado pela prática dos factos que integram um crime de ofensa à integridade física qualificada, tal como alegado no requerimento de abertura de instrução.
Nestes termos, deverá o recurso ser procedente, contudo Vossas Excelências, porém, farão JUSTIÇA»

4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento, aderindo aos fundamentos constantes da resposta apresentada pelo Ministério Público e aduzindo doutas considerações sustentadas na Doutrina e Jurisprudência que cita.
Não houve qualquer resposta a este parecer.

5. Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta, foram colhidos os vistos, após o que, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea b) do mesmo diploma.

II. FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Delimitação do objeto do recurso.
            É consabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação e nas quais sintetiza as razões do pedido que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando, assim, para o tribunal superior, as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficiosos de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais[1].
No caso presente, a única questão a decidir consiste em saber se, no caso vertente, contrariamente ao decidido no despacho recorrido, se verifica a admissibilidade legal da instrução face ao teor do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente/recorrente.

2. Processado relevante.
O requerimento de abertura de instrução (doravante designado por RAI), foi formulado pelo Assistente, na sequência de acusação deduzida pelo Ministério Público em sede de despacho de encerramento do inquérito, por crime de natureza semipública.
Nessa medida, cabe ter em conta o teor de tal despacho e bem assim, o teor do próprio RAI.
           
Despacho de encerramento do inquérito [referên...], (transcrição):
           
«Declaro encerrado o inquérito – art.º 276.º, nº 1, do CPP.
O Ministério Público, em processo comum e com intervenção de tribunal singular deduz acusação contra o arguido
BB, filho de CC e de DD, nascido em .../.../1980, natural de ..., divorciado, residente na Rua ..., ..., ...;
Porquanto indiciam suficientemente os autos que:
No dia 23.10.2020, pelas 18h15, o ofendido AA, sócio-gerente da empresa “D... Lda.”, acompanhado por EE, dirigiu-se à empresa “E... Unipessoal, Lda.”, pertencente ao arguido BB, com o objetivo de falar com este sobre uma dívida que o arguido teria decorrente de uma venda que a empresa do ofendido lhe tinha feito.
Nessa altura e local, na sequência da conversa mantida com o ofendido, o arguido disse a este e EE para se irem embora e foi buscar um objeto em madeira com cerca de 30 cm de comprimento e ponta na forma de uma bola, com o qual desferiu várias pancadas na cabeça e braço esquerdo do ofendido.
Como consequência dessas pancadas o ofendido ficou com uma ferida na região parietal esquerda e dores e limitação funcional à flexão palmar do punho esquerdo, melhor descritas no relatório médico-legal de fls. 56 a 59.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente bem sabendo que com tal conduta molestava fisicamente o ofendido.
O arguido conhecia o carácter proibido e punido da conduta que adotou.
Com a factualidade descrita, o arguido praticou, em autoria material, um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.143º, nº 1, do C. Penal.
           
Prova
Pericial:
- exames médico-legais de fls. 56 a 59 e 126 a 130.
-Testemunhal:
- AA, melhor id. a fls. 53;
- EE, melhor id. a fls. 83.
           
Documental:
- a dos autos designadamente de fls.4 a 6, 35, 36 a40, 65, 93 a 96.
Notifique o ofendido, o arguido e respetivo defensor do presente despacho, em conformidade com os arts.277º/3 ex vi 283º/5 e 113º/1, todos do C.P.P.
Entregue cópia da presente acusação ao arguido com a informação de que dispõe de 20 dias para efeitos do disposto no art.287º do C.P.P.»

RAI – [referência ...11], (transcrição):
«AA, Assistente nos autos acima indicados, vem ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal,
Requerer a abertura de instrução nos presentes autos em que é Arguido,
BB, filho de CC e de DD, nascido em ..., natural de ..., divorciado, residente na Rua ..., ..., ....
Nos termos e com os fundamentos seguintes
Da Acusação por parte do Ministério Público
1.º O teor da Acusação formalizada pelo Ministério Público, que seguidamente se
reproduz após conversão em articulado por facilidade de exposição, padece, no modesto entendimento do Assistente, de um enquadramento inadequado dos factos apurados no que respeita à qualificação jurídica.
I. No dia 23.10.2020, pelas 18h15, o ofendido AA, sócio-gerente da empresa “D... Lda.”, acompanhado por EE, dirigiu-se à empresa “E... Unipessoal, Lda.”, pertencente ao arguido BB, com o objetivo de falar com este sobre uma dívida que o arguido teria decorrente de uma venda que a empresa do ofendido lhe tinha feito.
II. Nessa altura e local, na sequência da conversa mantida com o ofendido, o arguido disse a este e EE para se irem embora e foi buscar um objeto em madeira com cerca de 30 cm de comprimento e ponta na forma de uma bola, com o qual desferiu várias pancadas na cabeça e braço esquerdo do ofendido.
III. Como consequência dessas pancadas o ofendido ficou com uma ferida na região parietal esquerda e dores e limitação funcional à flexão palmar do punho esquerdo, melhor descritas no relatório médico-legal de fls. 56 a 59.
IV. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente bem sabendo que com tal conduta molestava fisicamente o ofendido.
V. O arguido conhecia o carácter proibido e punido da conduta que adotou.
VI. Com a factualidade descrita, o arguido praticou, em autoria material, um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.143º, nº 1, do C. Penal.
           
Da diferente qualificação jurídica.
2.º Entendeu o Ministério Público que “Com a factualidade descrita, o arguido praticou, em autoria material um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º143º, n.º1 do C. Penal”
3.º Todavia, entende o Assistente que o Arguido praticou crime mais grave do que
aquele de que é acusado.
4.º Logo, não concordando com aquela qualificação jurídica, não lhe resta senão requerer a abertura de instrução (nesse sentido, entre outros, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/04/2014, processo 12/13.4GEVCT.G1, Relator: Ana Teixeira e Silva, in dgsi.pt).
5.º No âmbito da análise à conduta do Arguido, como a descrita em II. e III., com
vista à sua qualificação jurídica à luz dos critérios usados pela jurisprudência, há que analisar e tentar objetivar o dolo daquelas condutas criminais em face:
a) Do instrumento utilizado e o modo como foi operado na prática do crime; e
b) Das partes do corpo atingidas e a extensão qualitativa e quantitativa das lesões (Vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-03-2019, Processo nº802/17.9JABRG.G1, Relatora: Teresa Coimbra, in dgsi.pt)
6.º O instrumento utlizado pelo Arguido mostra-se descrito em II. da Acusação como um "objeto em madeira com cerca de 30 cm de comprimento e ponta na forma de
uma bola".
7.º A descrição do objeto no que se refere ao tamanho, forma e ausência de aplicação definida, demonstra que estamos perante algo de semelhante à comummente designada “moca de ...”, que se destina a ser, como foi no caso em apreço, utilizado como arma de agressão.
8.º Pelo que indubitavelmente estamos prante um objeto particularmente perigoso,
que pode mesmo ser considerado uma arma proibida.
9.º Por outro lado, impõe-se realçar a forma como o Arguido alcançou aquele objeto imediatamente antes da práica da agressão, pois ausentou-se da conversa que estava a ter com o Assistente e a testemunha pata ir buscá-lo a outro lugar.
10.ºTal circunstância reconduz-se ao conceito tradicional de premeditação, o que demonstra uma vontade mais intensa e persistente de praticar o crime, uma frieza de ânimo que se traduziu numa atuação calculada ou refletida do agente, reveladora de sangue frio na execução e indiferença perante as consequências do ato.
11.º Impõe-se também analisar o modo como aquele objeto foi operado na prática  do crime e as partes do corpo do Assistente que foram atingidas, bem como a extensão qualitativa e quantitativa das lesões.
12.º O arguido "desferiu várias pancadas na cabeça e braço esquerdo do ofendido",
13.º O que significa que atingiu uma zona vital do Assistente, onde se localiza o órgão mais sensível do corpo humano, que é o cérebro, protegido apenas pela caixa craniana, que é das estruturas ósseas mais frágeis do corpo humano.
14.º Ora o Arguido visou, atingiu e feriu o Assistente na cabeça, mais precisamente na região parietal esquerda, tendo este sangrado de forma abundante.
15.º Bem como atingiu o Assistente no braço esquerdo, que este usou para se tentar proteger das pancadas, tendo com aqueles atos gerado uma limitação funcional à flexão palmar do punho esquerdo do Assistente.
16.º A utilização daquele meio e a zona do corpo visada demonstram à saciedade que o Arguido bem sabia que estava a criar uma situação de particular perigosidade para o Assistente, dificultando de forma grave as possibilidades da vítima se defender da sua atuação.
17.º Diz-nos o n.º 1 do artigo 143.º do Código Penal que "Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de pisão até 3 anos ou com pena de multa".
18.º  Mas, "se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de pisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;..."; sendo "suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º” (alínea a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 145.º do Código Penal”.
19.º Ora em face dos factos, é evidente que o Arguido ao usar a moca de que se foi propositadamente munir, utilizou um "meio particularmente perigoso”, e com uma óbvia “frieza de ânimo”, demonstrativa de uma "reflexão sobre os meios empregados", "suscetível de revelar a especial censurabilidade" do agente (vd. alíneas h) e j do n.º 2 do artigo 132.º do CP).
20.º Tais factos traduzem uma óbvia “majoração da carga de desvalor comportamental", traduzidos num "acentuado aumento da desproporcionalidade entre a perigosidade de próprio atentado e a capacidade de correspondente defesa do visado, e especial idoneidade à produção de gravoso - quiçá fatal - lesionamento" (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/11/2018, Processo 24/17.9GCLMG.C1, Relator Abílio Ramalho, in dgsi.pt), in casu, agravado ainda e também pela frieza de ânimo revelada pelo Arguido.
21.º Em face do exposto, o Assistente entende que a qualificação dos factos típicos constantes da acusação deverá ser alterada, porquanto:
22.º Com a factualidade descrita, o arguido praticou, em autoria material, um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 143.º, articulado com a alínea a) do n.º1 do artigo 145.º e alíneas h) e j do n.º 2 do artigo 132.º, estas aplicáveis ex vi n.º 2 do citado artigo 145.º, todos do Código Penal.
           
Nestes termos e nos mais de Direito, requer a V. Exa. que se digne ordenar a abertura de instrução, sendo a qualificação jurídica da acusação alterada em conformidade com o exposto, sendo o Arguido pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada.
           
Atos de instrução requeridos - Prova:
I. Requer sejam tomadas declarações novas declarações ao Assistente quanto aos factos supra alegados em 6.º a 9.º 14.º e 15.º»

3. Apreciação do recurso.
Cabe fazer uma breve resenha do regime legal aplicável, tendo em conta a questão a apreciar identificada supra.
De acordo com o disposto no artigo 286º, n.º 1 do Código de Processo Penal (diploma a que pertencem, doravante as disposições legais sem referência ao diploma a que pertencem), a instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.
Em conformidade, dispõe o artigo 308º, n.º 1 que "Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia."
E estabelece o n.º 2 que “é correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº1 do artigo anterior”.
Trata-se de uma fase processual facultativa (n.º 2 do artigo 286º), que está dependente de requerimento.
Todavia, o requerimento para abertura de instrução está sujeito a alguns requisitos na ausência dos quais se retirarão consequências, relativamente às quais, não existe unanimidade, quer na doutrina, quer na jurisprudência, sendo que, a mais grave redunda em que a fase de instrução não tenha lugar.
Uma vez que, no caso dos autos estamos em presença de RAI apresentado pelo Assistente, tendo o Ministério Público encerrado o inquérito deduzindo acusação por crime de natureza semipública, cabe ter em consideração o que segue.
O artigo 287º, depois de prever a possibilidade de abertura de instrução requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular e relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (n.º 1, alínea b), preceitua no seu n.º 2 que "O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283º (…)."
Dispõe o artigo 283º nº3 alíneas b) e d):
A acusação contém, sob pena de nulidade:
(…)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o arguido neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
(…)
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;”.
Assim, distingue a lei entre aquilo que são requisitos meramente formais e requisitos de natureza substancial.
Com efeito, a referência legal à “não sujeição do requerimento a formalidades especiais” deve ser entendida como reportada às questões meramente formais, como sejam, por exemplo, o uso de fórmulas rituais ou a alegação por artigos.
Já em termos substanciais, o requerimento de abertura de instrução tem de observar as seguintes condições:
a) - Sintetizar as razões da discordância da acusação, por forma a possibilitar a fiscalização judicial da atividade do Ministério Público no inquérito;
b) - Narrar os factos e indicar as normas jurídicas incriminatórias, uma vez que irá delimitar o objeto do processo; e
c) - Especificar os meios de prova adequados, quer os que não foram devidamente valorados no inquérito, quer novos meios (de prova), a realizar em sede de instrução.
O juiz de instrução está substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos que tenham sido descritos no requerimento de abertura de instrução do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação por parte do Ministério Público.
No caso dos autos, por não estarmos perante uma situação de arquivamento do inquérito por parte do Ministério Público, o objeto do processo será definido pelo conteúdo da acusação, conjugado com o do RAI, no qual se sustenta que existem outros factos pelos quais não foi deduzida acusação, correspondendo à conduta do arguido, em consonância com os factos da acusação e os do RAI, uma outra qualificação jurídica.
Compreende-se por que motivo a narração dos factos no requerimento para abertura da instrução assume particular relevo, na medida em que o artigo 309º, n.º 1, estabelece que “a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”, prevendo o artigo 303º as consequências da alteração não substancial e substancial dos factos descritos em tal requerimento e constatadas em sede de instrução.
Impõe-se, assim, no RAI apresentado pelo assistente, mesmo nos casos como o dos autos, a delimitação do thema decidendum, já que o juiz está limitado pelos factos aí alegados, sob pena de proferir uma decisão nula se não tiverem sido alegados os factos que vierem a recair no despacho de pronúncia.
Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório consagrado no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Dada a estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial do nosso processo penal, de acordo com o princípio da vinculação temática, o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação (ou pela pronúncia), como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas por esses poderá ser condenado.
Em última análise, o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido através do princípio, também constitucional, do contraditório, inerente àquele outro princípio e cuja efetividade implica uma definição clara e precisa do objeto do processo (cf. artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
           
Conforme doutamente referido no parecer mencionado supra: “Ora, como é consabido, existe um elevado número de acórdãos, das várias instâncias superiores, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça, sobre o tema aqui em apreciação e nos quais se dá um inequívoco sinal de enorme exigência quanto aos termos em que tem de ser formulado o requerimento de abertura da instrução ( vide, v.g., v.g., Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/11/2015 no Processo n.º 165/13.1TAPVL.G1, Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, publicado no DR, I Série, de 27-01-2015 e o Acórdão do STJ, de 11/09/2019, no Proc. 47/17.8YGLSB). 
           
E é certo que dessa vasta jurisprudência – que, para não sermos fastidiosos, não vamos aqui reproduzir - se vem concluindo que um requerimento de abertura da instrução, na parte de imputação, tem de conter uma narração enxuta dos factos, que enuncie em que consistiu, no concreto, a conduta do(s) arguido(s), segundo a composição dos elementos do tipo legal de crime, existindo, desde logo, aspetos de inequívoca importância, que devem constar de qualquer acusação e, reflexamente, do requerimento de abertura da instrução, por serem do núcleo duro factual de um libelo, acima de tudo em vista da vinculação temática que orientará a defesa do arguido.”

Mas, como vimos assinalando, o caso dos autos não é de interposição de RAI pelo Assistente quando o despacho de encerramento do inquérito foi no sentido do arquivamento, mas sim de acusação.
Pretendendo o assistente, apenas acrescentar factos aos narrados na acusação (concretamente, no que respeita ao elemento subjetivo), conferindo à conduta do agente, assim delineada e circunscrita, uma outra qualificação jurídica, necessariamente, as exigências relativas à narração de factos (no RAI) têm que aferir-se por referência a uma estrutura acusatória já existente e que foi definida na acusação.
Em suma, quando em causa estejam crimes de natureza pública ou semipública, o Assistente pode requerer a abertura de instrução "relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação" [artigo 267°, nº 1, alínea b)], visando a instrução, neste caso, a "comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa a julgamento" (artigo 286º, nº 1), o que se compreende dadas as atribuições conferidas pela lei ao Assistente de "deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimentos dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza" [artigo 69°, nº 2, alínea b)].
A este propósito, por visar um caso, em tudo semelhante ao que está em causa no presente recurso, permitimo-nos transcrever parte do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-12-2006[2] (aliás mencionado pelo Recorrente):
Face a um despacho acusatório que entende insuficiente, por não retratar a factualidade denunciada e investigada, o assistente requereu a abertura de instrução relativamente a esses factos e consequente diferente qualificação.
O M.mo Juiz recorrido, entendeu que tal extravasava a factualidade alegada na participação, «nem mesmo a reproduz», «o que desde logo levaria à sua rejeição, por inadmissibilidade legal».
Cremos, todavia que sem razão. Com efeito, a adoptar o entendimento contrário ficaria completamente despida de conteúdo – afora os casos de completo arquivamento - a norma do artº 287º, 1, b), do CPP que possibilita ao assistente requerer a abertura de instrução «se o procedimento criminal não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação». Ou seja, se essa fosse a vontade do legislador processual penal, a redacção da norma em causa deveria fazer referência exclusiva aos casos em que o MP tivesse proferido despacho de arquivamento. A adoptar esse entendimento – de que o assistente não pode requerer a abertura de instrução nos casos como o presente – ficaria por completo vedada a possibilidade judicial de fiscalização – prévia à fase de julgamento – da actividade do MP nos casos em que a acusação formulada é deficiente, por não conter uma integral descrição dos factos pertinentes ao tipo legal da incriminação ou mesmo a uma incorrecta incriminação.
Tal decorre mesmo da norma do artº 284º, 1, do CPP que apenas possibilita ao assistente – nos casos de procedimento por crime de natureza não particular – a formulação de acusação que não ‘extravase’ o conteúdo da proferida pelo MP, já que apenas lhe permite a acusação pelos factos acusados, por parte deles «ou por outros que não importem alteração não substancial da mesma», ou seja, que não tenham «por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (artº 1º, 1, f), CPP).
A delimitação substantiva do mérito da requerida instrução há-de coincidir com aquela que opera relativamente à referente à fase de inquérito, ou seja, há-de ser a que resulta dos factos investigados (artºs 283º e 308º do CPP). Ainda que haja sido denunciada a prática de factos integrantes de um crime menor, nada impede que a acusação seja formulada relativamente a um crime de maior gravidade, se os indícios recolhidos constituírem o respectivo substracto factual. (Nada impede que o MP formule acusação relativa à prática de crime de homicídio – ainda que a noticia criminal haja sido recolhida relativamente a factos apenas integrantes de crime de ofensa à integridade física - se os indícios recolhidos durante o inquérito apontam nesse sentido; do mesmo modo, se, os indícios recolhidos apontam nesse sentido ou se o assistente entende que outros ocorreram e não foram investigados, que apontam nesse sentido, nada impede que ele requeira a abertura de instrução relativamente a eles, se o MP não investigou completamente os factos ou se, apesar de tal, apenas acusou por aquele crime menos grave.)
Como resulta do acórdão da Relação de Lisboa, de 11/5/2004 (CJ, III-129), «quando o MP tenha deduzido acusação, mas o assistente entenda que a mesma deveria ter como objecto outros factos, nomeadamente com maior amplitude», deve requerer a abertura de instrução.”
           
Volvendo ao caso sub judice.
Na decisão recorrida, o tribunal a quo, considera que o RAI apresentado pelo assistente é “omisso quanto aos necessários factos (que são diversos dos do crime de ofensa à integridade física simples), não descrevendo os acontecimentos e os comportamentos que pretende ver imputados, e não descrevendo a motivação aquando da sua alegada prática.
Não decorre, pois, do requerimento em análise, a referência direta a quaisquer factos que possam consubstanciar os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime qualificado, razão pela qual, a prosseguirem os autos, o arguido não saberia relativamente a que factos teria de defender-se (…).
Ora, analisado o RAI, pensamos que o Tribunal a quo não interpretou da forma mais correta o respetivo conteúdo.
Com efeito, do RAI constam, embora de forma que não pode reputar-se de tecnicamente perfeita, concede-se, os factos que, no entender do Assistente, integram, a par daqueles que são descritos na acusação, quer o elemento objetivo, quer o subjetivo do crime de ofensa à integridade física qualificado (por oposição à acusação que qualificou os factos que descreve como integradores dos elementos constitutivos do crime de ofensas à integridade física simples)
Recorrendo, uma vez mais, às doutas considerações constantes do parecer da Exmº Procuradora-Geral Adjunta, que subscrevemos:
“No caso em preço, foi formulada acusação pelo Ministério Público quanto ao crime de ofensa à integridade física, p. e p. no art.º 143.º1 do Código Penal.
Em face das supra citadas exigências, analisando o requerimento de abertura da instrução rejeitado -  dirigido à posição assumida pelo MP relativamente ao crime indiciado nos autos e que o assistente reputa subsumível no tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificado, p. e p. nos art.ºs 143.º e 145.º 1ª) e 132.º 2 h) e j) do CP - não nos parece que o mesmo padeça de todas as deficiências que lhe assaca o despacho recorrido.
Assim, não estamos de acordo com o Mmº Juiz na afirmação de que o RAI não contém factos que integrem o crime de ofensa à integridade física qualificado.
O Mmº Juiz, aliás, no despacho a quo, refere-se (por duas vezes) ao “despacho de arquivamento do M. P.” e à necessidade de o assistente formular uma acusação alternativa como se, efectivamente, o encerramento do inquérito tivesse culminado com o arquivamento dos autos, o que não sucedeu.
Ora, no RAI, o assistente manifesta a pretensão de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública e transcreve os factos do libelo do Ministério Público, pelo que, na sua essência, os elementos objectivo e subjectivo do crime de ofensa estão inequivocamente presentes.

No que se refere aos factos que possam consubstanciar os elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime qualificado, o assistente alega no art.º 5.º a razão da sua discordância da acusação do M. P., porquanto, alegadamente, haveria que analisar e tentar objetivar o dolo daquelas condutas criminais em face:
           
a) Do instrumento utilizado e o modo corno foi operado na prática do crime; e
b) Das partes do corpo atingidas e a extensão qualitativa e quantitativa las lesões.
           
Mais alega, nos art.ºs 6, 7 e 8, que:
O instrumento utilizado pelo arguido é um obiecto particularmente perigoso, que pode mesmo ser considerado uma arma proibida.
E no art.º 9 e 10, refere as circunstâncias imediatamente anteriores para se concluir que teria havido premeditação.
Mais invocou, de seguida, o modo como o instrumento do crime foi usado e as partes do corpo do assistente que foram atingidas, bem como a extensão qualitativa e quantitativa das lesões, alegando que foi atingida zona vital do Assistente, onde se localiza o órgão mais sensível do corpo humano, que é o cérebro, protegido apenas pela caixa craniana, que é das estruturas ósseas mais frágeis do corpo humano.
Por fim, conclui o assistente que em face dos factos, é evidente que o arguido, “ao usar a moca de que se foi propositadamente munir, utilizou um "meio particularmente perigoso, e com uma óbvia "frieza de ânimo", demonstrativa de uma "reflexão sobre os meios empregados", "suscepível de revelar a especial censurabilidade" do agente e que o arguido incorreu na pratica de crime de ofensa à integridade física qualificado, p. e p. nos art.ºs 143.º e 145.º 1ª) e 132.º 2 h) e j) do CP.
Assim, em nossa opinião, o assistente contextualiza as alegadas circunstâncias da censurabilidade da agressão (concernentes ao instrumento utilizado na agressão, ao comportamento do arguido e parte do corpo atingida), assim como imputa ao arguido a actuação com dolo directo de causar as referidas lesões.”
Subscrevemos integralmente o teor destas doutas considerações.
Assim, não cabe, no caso dos autos abordar e tomar posição sobre a questão de saber qual a consequência a retirar relativamente a um RAI que não contém a descrição de factos que constituem o objeto do processo[3].
Na verdade, parece-nos que, no caso dos autos tal omissão não ocorre.
Consta, também do despacho em crise que, o RAI, embora remetendo para o teor da acusação, não explicitou quais foram as lesões sofridas em virtude da agressão descrita, sendo certo que do texto da acusação se remete para “as lesões descritas no relatório médico-legal de fls.56 a 59” onde não estão descritas as lesões e sua cura ou consolidação descritas no relatório pericial de fls.126 a 130.
Compulsados os autos verificamos que, a fls.56 a 59 consta um relatório de exame médico-legal provisório, elaborado, conforme consta do mesmo, quando a “situação ainda não se encontra estabilizada”, determinando novo exame em período não inferior a 15 dias, e solicitando elementos clínicos complementares.
A fls. 126 a 130 encontra-se o relatório final da perícia médico-legal, e do qual constam as respetivas conclusões com referência às lesões, nexo causal entre as mesmas e o episódio de agressão descrito, tempo de cura e consequências permanentes.
Teria sido melhor que na acusação fossem descritas as concretas lesões sofridas, contudo, tal não ocorreu e a remissão para o documento de fls.56 e 59 é manifestamente um lapso de escrita, tanto mais que aquando da indicação da prova, o relatório pericial de fls.126 a 130 é mencionado.
Portanto, parece-nos que apesar de o Assistente não ter descrito detalhadamente as concretas lesões sofridas (o que também não foi feito pelo Ministério Público na acusação que deduziu), nada impede o Mmº Juiz de proceder a essa correção, tendo em conta o teor da acusação na sua globalidade, caso venha a proferir despacho de pronúncia (matéria que não é objeto deste recurso).
Finalmente, afirma-se no despacho em crise, enquanto motivo de rejeição por inadmissibilidade legal do RAI, que “ainda que viesse a ser proferido despacho de pronúncia, o mesmo redundaria necessariamente numa alteração substancial do requerimento de abertura de instrução, e por isso, viciada pela nulidade prevista pelo n.º 1 do artigo 309.º, do Código de Processo Penal…”
Ora, a nulidade a que se reporta o artigo 309º nº1 (“A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”) refere-se às situações em que a decisão instrutória procede a alteração substancial do RAI. 
Precisamente, no caso dos autos, o RAI já contém tal alteração (factos atinentes às qualificativas do crime abrangidas pelo dolo do arguido, que, embora de forma imperfeita são descritos), pelo que a decisão que se pretende seja proferida – a acontecer -  não irá alterar a factualidade e enquadramento aí invocados, alterando, quando muito, os da acusação pública.
Ora, nos termos do disposto no artigo 287º n.º 1 alínea b) “A abertura da instrução pode ser requerida (…) pelo assistente se o procedimento criminal não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação». 
Tem razão o Recorrente quando diz que, se o Assistente estivesse impedido de requerer a abertura da instrução em casos como o dos autos, ficaria vedada a possibilidade judicial de fiscalização prévia à fase de julgamento relativamente a acusações deficientes, impedindo-se o Assistente de discordar da qualificação jurídica adotada pelo Ministério Público, nos casos em que os factos subsumíveis à qualificação jurídica que o Assistente propugna não foram descritos na sua totalidade ou mesmo quando o Ministério Público levou a cabo uma incorreta incriminação[4].
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 284º, n.º1 “Até 10 dias após a notificação da acusação do Ministério Público, o assistente pode também deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles.”
Assim, nos casos de procedimento por crime de natureza não particular, está vedado ao Assistente formular acusação que vá para além do conteúdo da proferida pelo MP.
Parece-nos que não terá sido intenção do legislador impedir que o Assistente, quando está em causa um crime de natureza não particular, discorde do teor da acusação proferida, restando-lhe, por isso, requerer a abertura da instrução.
Em suma, as “anomalias” acima assinaladas não constituem fundamento de rejeição do RAI, designadamente porque, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida, a peça processual rejeitada contém uma descrição suficiente e clara dos factos necessários a preencher, segundo a tese do assistente, todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do ilícito penal imputado ao arguido.
Assim, a aludida peça processual permite a prática dos atos de instrução que se revelarem necessários e, a final, uma decisão instrutória – de pronúncia ou de não pronúncia - produzida de acordo com a melhor técnica judicial, tendo por base o requerimento de abertura de instrução e as exigências formais e os requisitos substanciais previstas no artigo 308º do Código de Processo Penal.
Nestes termos, impõe-se julgar procedente o recurso.                  

III. DISPOSITIVO
           
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em, julgar provido o recurso do Assistente AA e, em consequência, revogar o despacho recorrido e ordenar que o mesmo seja substituído por outro que, na ausência de qualquer outro motivo impeditivo, admita a instrução requerida por aquele, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
           
Sem tributação em custas (artigo 515º, n.º 1, alínea b), a contrario, do Código de Processo Penal).

 (Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
           

Guimarães, 23-01-2023

Os Juízes Desembargadores
Fátima Sanches (relatora)
Anabela Varizo Martins (1º Adjunto)
Paulo Almeida Cunha (2º Adjunto)
           
(data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


[1] - Cf. arts. 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, do Código de Processo Penal, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª edição, Verbo, pág. 335, o acórdão do STJ de 28-04-1999, in Coletânea de Jurisprudência - Acórdãos do STJ, ano de 1999, tomo II, pág. 196, e o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[2] Processo nº0617070, Relator: Jorge França, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[3] Posição sufragada por Simas Santos e Leal Henriques, in “Código de Processo Penal – Anotado”, II, 2000, pág. 163, é a de que, se do próprio requerimento para abertura da instrução resultar falta de tipicidade da conduta, bem como ausência de queixa, prescrição do procedimento ou inimputabilidade do arguido, mesmo assim, a instrução não poderá nem deverá ser desde logo recusada por inadmissibilidade, servindo para analisar também essas questões.
No entanto, é claramente maioritário o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o requerimento de abertura de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, em termos de estes poderem integrar os elementos objetivos e subjetivos de um tipo de crime, deve ser objeto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos arts. 287º, n.ºs 2 e 3, e 283º, n.º 3, al. b).
Assim, na doutrina: Cfr. Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 9ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 540; Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 3ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 750, em nota 2 ao art. 286º; Vinício Ribeiro in “Código de Processo Penal – Notas e Comentários”, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 794.
Na Jurisprudência: entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-03-2017 (processo n.º 488/16.8T9LSB.L1-3), Relator: João Lee Ferreira; de 30-05-2006 (processo n.º 1111/06), Relatora: Margarida Blasco e de 03-10-2001 (processo n.º 61293/00), Relator: Rodrigues Simão; do Tribunal da Relação do Porto de 01-03-2006 (processo n.º 0413472), Relator: Ângelo Morais; também de 01-03-2006 (processo n.º 0515574), Relator: Augusto de Carvalho e de 15-12-2004 (processo n.º 034366), Relator: Luís Gominho; do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-01-2017 (processo n.º 2588/15.2T9VIS.C1), Relator: Inácio Monteiro e de 23-04-2008 (processo n.º 88/05.8TAACN.C1), Relator: Vasques Osório. Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
Neste sentido, também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-10-2019 [Proferido no processo n.º 41/18.1TREVR.S1 - 3.ª Secção, Relator: Conselheiro Nuno A. Gonçalves, sumariado em Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Sumários de Acórdãos, Criminal, Ano de 2019, in https://www.stj.pt.] e no acórdão de 12-03-2009 (processo n.º 08P3168), Relator: Conselheiro Arménio Sottomayor, disponível em http://www.dgsi.pt.
Ainda segundo uma outra posição assumida no Supremo Tribunal de Justiça, não estando legalmente prevista a consequência para a falta de narração dos factos no RAI, essa lacuna dever ser preenchida por recurso à analogia, aplicando a norma prevista para a acusação [art. 311º, n.º s 2, al. a), e 3, al. b)], o que conduz à rejeição do RAI, por ser manifestamente infundado – Cfr. acórdão do STJ de  19-06-2019, Proferido no processo n.º 51/17.6TRPRT.S1, Relator: Conselheiro Maia Costa, disponível em http://www.dgsi.pt.
Independentemente do fundamento utilizado (“inadmissibilidade legal da instrução” nos termos do nº 3 do art. 287º ou o recurso, por analogia, ao conceito de "manifestamente infundado"), é ponto assente que o RAI que não contenha a narração dos factos deve ser rejeitado.
[4] O entendimento de que o Assistente pode requerer a abertura da instrução, apenas com vista impor uma qualificação jurídica dos factos diferente da que foi levada a cabo pelo Ministério Público (sem qualquer alteração ao nível factual) não é consensual, mas existem decisões nesse sentido como, a título de exemplo, a constante do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-04-2014, proferido no âmbito do processo nº12/13.4GEVCT.G1, Relatora: Ana Teixeira da Silva, disponível para consulta em www.dgsi.pt