HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
ELEMENTO SUBJETIVO DO CRIME
Sumário

Tendo resultado provado que o arguido, exercia a condução imprimindo ao veículo que conduzia uma velocidade desajustada para o local e fazia-o desatento e de forma descuidada e imprudente e que não lhe permitia o respetivo controle; de tal sorte que, ao chegar ao km 119,900, local onde a via se apresenta em reta, o arguido não manteve a necessária distância de segurança do veículo que seguia imediatamente à sua frente e embateu com a frente direita da ambulância que conduzia na traseira esquerda do veículo de matrícula … (…); o arguido possui averbada na sua carta de condução a obrigatoriedade de fazer uso de óculos de correção para o exercício da condução, os quais, contudo, não utilizava no momento do embate; (…) o acidente ficou a dever-se, exclusivamente, à conduta do arguido que se dedicava ao exercício da condução, sem fazer uso dos óculos de correção que lhe estavam prescritos e agindo com total falta de cuidado, prudência, atenção e concentração que a condução de veículos automóveis requer e exige, como podia e devia ter feito, e, ainda, animado de velocidade que não lhe permitiu efetuar a correção da trajetória do veículo em espaço útil por forma a evitar o embate na viatura que seguia imediatamente à sua frente, forçoso é concluir que o arguido não parou o veículo no espaço livre e visível à sua frente), impondo-se-lhe um dever objectivo de cuidado, bem como a obrigação que lhe era imposta de fazer uso de óculos de correção para o exercício da condução.
E assim não só aceitou o risco inerente ao contexto em que os factos ocorreram, como, com a circulação naqueles termos, potenciou esse risco, elevando-o até à produção do evento lesivo.
Encontra-se, assim, patentemente demonstrado a violação do dever objectivo de cuidado que impendia sobre o arguido.
Nesta medida, é forçoso concluir que os factos dados como provados na decisão recorrida preenchem, e no que ora releva, os elementos subjectivos do crime de homicídio por negligência.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
No Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Competência Genérica do … - Juiz …, mediante acusação do Ministério Público, foi julgado em processo comum, perante o tribunal singular, com documentação das declarações oralmente prestadas em audiência, o Arguido a seguir identificado.

AA, solteiro, socorrista e motorista, nascido a … 1993, em …, filho de BB e de CC, residente na Rua …, ….

A final, foi decidido julgar a acusação procedente, e, em consequência:

a) Condenar o arguido AA, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 137.º n.º 1 e 2 na pena de um ano e oito meses de prisão.

b) Suspender a execução da pena de um ano e oito meses de prisão, aplicada ao arguido AA, por igual período – artigo 50.º n.º 5, do Código Penal.

c) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 12 meses nos termos do artigo 69.º n.º 1, al. a), do Código Penal.

Inconformado, o arguido AA interpôs recurso da referida decisão, que motivou formulando as seguintes conclusões:

“A – O arguido apresentou a sua contestação a qual foi admitida (despacho de 28/4/2021, ref. 86550972), em que alegou diversos factos com relevância para a sua defesa e para a boa decisão da causa – (cfr. art. 6º da motivação).

B. – Estes factos alegados na contestação não constam do rol da matéria de facto da sentença, sendo que tais factos são relevantes para a decisão da causa, até porque através dos mesmos se pode aferir pela responsabilidade ou não responsabilidade criminal do arguido.

C. - A enumeração de tais factos trata-se de uma garantia do arguido, de que o tribunal teve em conta os factos, as provas e os argumentos, tanto da acusação como da defesa, e, por outro lado, ao não enumerar os factos da contestação, o direito de defesa do arguido ficou limitado, pois limitou o âmbito de recurso, já que tais factos se tornam insindicáveis.

D. - A douta sentença padece de nulidade, por força dos arts. 379º, nº 1, al. a) e c) e 374º, nº 2, ambos do Cód. Proc. Penal, o que o arguido desde já invoca, para todos os efeitos.

E. – Da matéria de facto da sentença não consta a narração os elementos subjetivos do crime de homicídio por negligência, já que não é mencionado que o arguido sabia e tinha conhecimento de que teria que utilizar óculos de correção e que estava em excesso de velocidade; não é mencionado que que o arguido representou como possível a realização de um facto que preenche o crime ou, pelo menos, que não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto; não consta a atuação livre do arguido e a consciência da ilicitude. Pelo que, deverá o arguido ser absolvido.

F. – A prova pericial (fls. 86 a 89, 118 a 121 e 129 a 138) é nula e nunca deveria ter sido admitida, não podendo ser valorada. Esta foi ordenada por despacho de 5 de Novembro de 2018, do qual consta que deverá ser efetuada por técnico da …, pelo que, violou o art. 152º, nº 1 do CPP ao não ter sido nomeado um estabelecimento oficial ou um perito de entre a lista da comarca.

G. – Violou também o disposto no art. 160º-A, nº 1 do CPP e o art. 32º, nº 2 da CRP ao ter sido escolhido um técnico que tem interesse na decisão dos presentes autos, já que foi realizada pela empresa “…, Lda” representante da marca “…”, fabricante do veículo que o arguido conduzia no momento do acidente, pelo que não foi imparcial, já que a empresa teria muito pouco interesse em que houvesse qualquer deficiência e defeito que pudesse responsabilizar o fabricante.

H. - Finalmente, a perícia violou o art. 154º, nº 4 do CPP, uma vez que o arguido nunca foi notificado da realização da perícia.

I. – Os factos 4, 5, 6, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 não resultaram como provados, até porque não há nenhum meio de prova que os sustente.

J.– O Tribunal ad quo considerou que o arguido exercia a condução em excesso de velocidade e de forma desatenta, descuidada e imprudente (ponto 4), sendo tal facto mais não é do que um mero juízo conclusivo.

K. - Não consta da matéria de facto provada qual a velocidade máxima no local, nem qual a velocidade a que o veículo conduzido pelo arguido seguia.

L. – Na auto - estrada onde ocorreu o acidente a velocidade máxima é de 120km/h, sendo que, no local exato do embate esta diminui para 100km/h, havendo uma distância de apenas 20 metros entre a mudança de limite máximo de velocidade, pelo que se depreende que era impossível para o arguido diminuir a velocidade em apenas 20 metros.

M. – Assim, o ponto 4 da matéria de facto dada como provada foi incorretamente julgado e houve insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

N. – Em relação aos pontos 5, 6 e 13, os mesmos contradizem a prova testemunhal e documental.

O. – O arguido sempre disse que o embate apenas tinha ocorrido derivado a um problema no sistema de travagem que conduzia: “Conforme meto os pés no travão, o pedal estava, vinha acima e abaixo, e não reagia. (...)Depois nunca tive travão. Até porque faço 170m sem uma única travagem.(...) Ia a tentar abrandar quando me apercebo que não tenho travão.”, o que é totalmente compatível com o que se desenrolou no embate e, posteriormente, o que se verificou na via e nos veículos.

P. – As declarações da testemunha DD, militar da GNR, que elaborou o relatório final, comprovam que as marcas do pavimento são compatíveis com uma falha nos travões.

Q. – Se de facto, o arguido estivesse distraído e em excesso de velocidade (conforme refere o Tribunal ad quo), quando se apercebesse do obstáculo, a sua primeira reação seria travar repentinamente, deixando marcas de travagem no pavimento, contudo, não estavam presentes quaisquer marcas de travagem na via. (cfr. ponto 35 da matéria de facto provada).

R. – O veículo que o arguido conduzia, umas semanas antes do acidente, reprovou com deficiências no sistema de travagem, na Inspeção Periódica realizada às 11h47, sendo que, no mesmo dia, pelas 17h13, num Centro de Inspeção distinto, noutra localidade, o veículo aprovado, apresentando outras deficiências.

S. – Esta situação ora descrita causou estranheza, nomeadamente, às testemunhas, militar da GNR, DD e ao mecânico, EE, pois que, das regras da experiência comum, se depreende que é praticamente impossível arranjar um sistema de travagem em tão pouco tempo...

T. – O veículo em causa já tinha tido problemas com os travões, sendo que colegas de trabalho do arguido, que já o tinham conduzido, reportaram a situação à entidade patronal, conforme declarações da testemunha FF.

U. – Da prova documental infere-se ainda que o veículo em causa já tinha reprovado quatro vezes na Inspeção Periódica – relatório final da GNR (fls. 539 a 561).

V. - Ao contrário do que consta da perícia, nunca poderia ter sido efetuado um teste computorizado ao veículo, já que o mesmo não dispõe de sistema ABS, pois é que resulta do relatório final da GNR fls. 539 a 561) e das declarações da testemunha EE, mecânico, pelo que, não se entende como é que um perito efetuou um teste, que é impossível de fazer, ao veículo!! (fls. 120)

W. - Conforme consta das várias fotografias juntas aos autos (nomeadamente fls. 130 e 131), a dianteira do veículo ficou completamente destruída, pelo que, não poderia ter sido realizado qualquer teste com toda a credibilidade necessária, ao sistema de travagem do mesmo, aliás, a testemunha EE referiu isso mesmo.

X. - Assim, e porque esta perícia muitas dúvidas levanta, violando até as garantias de defesa do arguido e o princípio do in dúbio pro reo, a mesma deveria ter sido desconsiderada pelo Tribunal.

Y. Em relação aos pontos 5, 6 e 13 da matéria de facto, houve erro notório de apreciação de prova, foram incorretamente julgados e houve violação do princípio do in dúbio pro reo.

Z. – Quanto ao ponto 14 este foi incorretamente julgado, já que resultou de toda a prova de que o arguido não tinha necessidade de utilizar os óculos de correção para que pudesse executar a sua condução em segurança, tal como referiu nas suas declarações e como consta do documento ora junto pelo arguido no requerimento de 1.6.2021.

AA.– Em relação aos pontos 15, 16 e 17 houve erro notório na apreciação da prova e violação do princípio do in dúbio pro reo.

BB.– Antes do ofendido ter entrado no veículo do arguido, o mesmo tinha sofrido uma queda, ficando com as lesões constantes do diário clínico (fls. 90) e do relatório da autópsia consta “Podendo ter sido algumas devido ao acidente de viação e outras a queda”

CC.- Se um especialista médico não conseguiu concluir, com toda a certeza necessária, qual a causa principal para a morte do ofendido, e de acordo com o princípio do in dúbio pro reo, o Tribunal ad quo deveria ter decidido a favor do arguido e ter considerado que não ficou provado o nexo de causalidade, já que não há qualquer certeza de que a morte do arguido tenha resultado do embate.

DD.– Quanto ao ponto 1 da matéria de facto não provada, entendemos que houve erro notório na apreciação da prova e violação do princípio do in dúbio pro reo, já que deveria resultar como provado a probabilidade da queda nas escadas ter provocado a morte do ofendido.

EE. - Porque não há certezas de que o arguido tenha cometido qualquer crime, deve o mesmo ser absolvido, em honra do princípio do in dúbio pro reo.

FF. – É elemento essencial do crime de homicídio negligente a violação de um dever de cuidado, sendo que, o arguido cumpriu todas as suas obrigações e atuou sempre com toda a diligência necessária, não potenciando qualquer perigo para a vida da vítima.

GG.- O acidente ocorreu apenas e só devido a um problema no sistema de travagem, sendo que era à entidade patronal, e não arguido, que competia averiguar da parte mecânica do mesmo, pelo que, não há qualquer nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado que se verificou, sendo tal resultado imputável à deficiência no sistema de travagem, não se encontra preenchido o tipo legal de crime.

HH.- Por outro lado, e por mera cautela processual, sempre se dirá que a medida da sanção principal mostra-se desproporcional e exagerada, porquanto o arguido não tem antecedentes criminais, tem parcos rendimentos, e avultadas despesas, sendo que o arguido se encontra socialmente integrado, devendo quedar-se pelo mínimo legal.

II. - Quanto à pena acessória aplicada, o art. 65º, nº 1 do Cód. Penal estipula o princípio do carácter não automático dos efeitos das penas, pelo que, para que se justifique a aplicação de uma pena acessória é necessário “que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória”.

JJ. O arguido é socorrista e motorista, tendo a necessidade diária de utilizar os veículos da sua entidade patronal, é ainda Bombeiro Voluntário em …, o que exige que conduza veículos, de forma a ajudar a comunidade e mantendo-se a sanção prevista, o mais provável é mesmo que o arguido seja despedido.

KK. – A Constituição da República Portuguesa consagra o direito ao trabalho no art. 56º, e o interesse punitivo do estado não poderá limitar, para além do estritamente necessário, os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados (arts., 18º e 30º, nº 5 da CRP).

LL. - No caso concreto, o grau de ilicitude do facto e a censurabilidade da conduta do arguido foram moderados, o crime que lhe é imputado foi um episódio único na sua vida, o arguido não tem antecedentes, encontra-se inserido profissional e socialmente, pelo que deverá ser absolvido da pena acessória aplicada.

MM.– Sem prescindir, sempre se dirá, que o período de 12 meses é manifestamente excessivo, já que os fundamentos em que assentou a medida de sanção acessória não tiveram em atenção a ilicitude do facto (moderada), a inexistência de antecedentes criminais, as condições pessoais do arguido e a sua situação económica e profissional, devendo a medida da pena acessória deve ser reduzida para o seu limite mínimo (3 meses).

NN. – Em suma, foi violado o disposto nos arts. 152º, nº 1, 154º, nº 4, 155º, 160º-A, nº1, 379º, nº 1, al. a) e c) e 374º, nº 2, todos do Cód. do Proc. Penal, o art. 65º, nº 1 do Código Penal e os arts. 18º, 30º, nº 5, 32º, nº 1 e 2 e 56º, todos da Constituição da República Portuguesa.

Assim, e revogando-se a mui douta decisão em recurso, far-se-á ACOSTUMADA JUSTIÇA!”

O Ministério Público respondeu às motivações de recurso apresentadas pelo Arguido/Recorrente, pugnando pela improcedência do mesmo.

Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do não provimento do recurso.

O recorrente, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do CPP, quedou-se pelo silêncio, nada tendo vindo alegar.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art.º 419º do

CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS NA SENTENÇA RECORRIDA

São os seguintes os factos que a sentença recorrida indica como estando provados:

“Da A) Factos provados:

Da prova produzida e com interesse para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1- No dia 23 de julho de 2018, cerca das 06H25, o arguido conduzia o veículo ligeiro especial/ambulância com matrícula nº … pela Autoestrada nº… (A…), no sentido …/…, em área deste Juízo Local de Competência Genérica ….

2- Na ocasião, o arguido exercia as funções de motorista da ambulância acima referida e efetuava o transporte do doente GG do Hospital de … para o Hospital de …, o qual seguia no interior do veículo deitado na maca destinada aos doentes.

3- Nas circunstâncias acima descritas, na mesma autoestrada no sentido …/… e imediatamente à frente do veículo conduzido pelo arguido, circulava, na via da direita, o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula …, conduzido por HH.

4- O arguido, exercia a condução imprimindo ao veículo que conduzia uma velocidade desajustada para o local e fazia-o desatento e de forma descuidada e imprudente e que não lhe permitia o respetivo controle.

5- De tal sorte que, ao chegar ao km 119,900, local onde a via se apresenta em reta, o arguido não manteve a necessária distância de segurança do veículo que seguia imediatamente à sua frente e embateu com a frente direita da ambulância que conduzia na traseira esquerda do veículo de matrícula ….

6- Após, o veículo conduzido pelo arguido continuou a marcha desgovernada, já que aquele não conseguiu retomar a sua faixa de rodagem, e, após embater na guarda lateral de segurança, acabaria por se imobilizar a cerca de 172 metros do local onde havia embatido no veículo ….

7- A via no local onde ocorreu o embate configura uma reta onde se localiza um cruzamento desnivelado, existindo do lado direito uma faixa de abrandamento, correspondendo ao nó de saída/acesso à localidade de ….

8- A viatura conduzida pelo arguido saiu da faixa de rodagem por onde seguia acabando imobilizada no nó de saída/acesso à localidade da ….

9- No local onde se deu o embate a via encontrava-se em bom estado de conservação era constituída por duas faixas de rodagem, atento o sentido de marcha dos veículos.

10-A via tem 8,00 metros de largura, excluindo a faixa de abrandamento, e é ladeada por bermas pavimentadas.

11-O tempo apresentava-se bom, não havia nevoeiro e o pavimento estava seco e limpo.

12-No pavimento da faixa de rodagem direita, considerando a direção em que seguiam os veículos, por aqueles foram produzidos vários conjuntos de marcas de derrapagem.

13-Na ocasião em que ocorreu a colisão entre os veículos os mecanismos de travagem da ambulância conduzida pelo arguido encontravam-se em boas condições de funcionamento, não apresentando qualquer avaria ou anomalia no sistema de travagem.

14-O arguido possui averbada na sua carta de condução a obrigatoriedade de fazer uso de óculos de correção para o exercício da condução, os quais, contudo, não utilizava no momento do embate.

15-Em consequência do embate o doente transportado na ambulância, GG, foi projetado para a frente e depois novamente para trás, acabando por embater com a cabeça contra as rodas de uma cadeira que fazia parte integrante do equipamento da ambulância e que se encontrava localizada imediatamente atrás da cabeceira da maca onde aquele seguia deitado.

16-Do embate resultaram para o GG, lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares, designadamente fratura com colapso da C7 (tipo burst).

17-Tais lesões foram, direta e necessariamente, causadoras da morte de GG.

18-O acidente ficou a dever-se, exclusivamente, à conduta do arguido que se dedicava ao exercício da condução, sem fazer uso dos óculos de correção que lhe estavam prescritos e agindo com total falta de cuidado, prudência, atenção e concentração que a condução de veículos automóveis requer e exige, como podia e devia ter feito, e, ainda, animado de velocidade que não lhe permitiu efetuar a correção da trajetória do veículo em espaço útil por forma a evitar o embate na viatura que seguia imediatamente à sua frente.

19-Resulta do teor da documentação clínica e do relatório pericial junto aos autos que o ofendido apresentava ferida no supracilio esquerdo, ferida abrasiva na região parietal esquerda, hematoma na região malar direita e vários hematomas no couro cabeludo.

Dos factos inerentes à personalidade e situação familiar e social do arguido:

20-AA, natural de …, de … anos de idade, solteiro, detentor do 9.º ano de escolaridade, ativo profissionalmente como socorrista/motorista para a empresa “…, Lda.”, com sede em … vive com os progenitores de … e … anos de idade respetivamente, sendo que o pai trabalha por conta própria na construção civil e a mãe é doméstica, …, numa casa térrea, propriedade familiar, de tipologia T3, avaliada como disponibilizando de condições de habitabilidade, de conforto e de limpeza, situada numa zona calma, de caraterísticas rurais e residencial.

21-A dinâmica familiar é sentida como afetiva, coesa, com espírito de entreajuda e de proteção muito expressivos que se estende ao relacionamento positivo e próximo com a família alargada (irmão, tios, avós e primos) residentes na mesma localidade.

22-As condições materiais permitem a satisfação das suas necessidades básicas e secundárias, consubstanciadas no seu vencimento líquido de sensivelmente €875,00, incluindo os subsídios de férias e de natal, em duodécimos e no facto de viver com os pais.

23-O arguido entrega aos progenitores €150,00 para a ajuda das despesas e possui um crédito pessoal para aquisição de veículo motorizado que está a pagar às prestações mensais no valor de €100,00.

24-A família possui um terreno com horta, animais para consumo doméstico, árvores de fruto e oliveiras o que é uma mais valia e um apoio no economato.

25-AA presenta como caraterísticas pessoais mais relevantes a sua capacidade de trabalho, de responsabilidade, de disponibilidade, de relacionamento interpessoal ajustado, sendo reconhecido como um indivíduo sociável, generoso, honrado e estimado por todos.

26-Nos tempos livres ajuda os progenitores nas atividades agrícolas, cuida dos seus cães, faz alguns serviços nos Bombeiros Voluntários de …, vai ao ginásio e convive com os seus amigos que foram avaliados como pró sociais.

27-Em idade regular frequentou estabelecimento de ensino com adaptação ajustada, não revelando dificuldades de aprendizagem.

28-Reprovou no 4.º, 6.º e 9.º ano de escolaridade por pouco empenhamento nos estudos.

29-Aos 19 anos de idade desistiu dos estudos quando estava no último ano do curso profissional de design gráfico, com equivalência ao 12.º ano de escolaridade.

30-Enquanto estudante praticou a modalidade desportiva de futebol 11, em … e frequentou a catequese.

31-Aos 17 anos de idade iniciou-se como bombeiro voluntário, em … onde permaneceu até aos 21 anos de idade auferindo uma quantia fixa por cada serviço que fazia e que lhe dava para os seus gastos pessoais.

32-Durante esta fase obteve aproveitamento nos cursos básico de socorrismo e no curso de técnico de ambulância e socorro (TAS).

33-Aos 21 anos começou a trabalhar como socorrista e motorista na mesma empresa onde ainda hoje se encontra “…, Lda.”.

34-O Arguido não tem antecedentes criminais.

****

Dos Factos provados relativamente à contestação do Arguido:

35-Após o acidente não existiam quaisquer marcas de travagem no solo.

36-Antes de entrar no veículo, o ofendido sofreu uma queda nas escadas, na sua habitação, ficando ferido na cabeça.

FACTOS CONSIDERADOS NÃO PROVADOS

“O tribunal, com relevo para a decisão a proferir (não relevando, assim, toda a matéria conclusiva e de direito constante das diversas peças processuais), julga não provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:

1- A queda nas escadas sofrida pelo ofendido foi a causa da sua morte.”

A MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE MATÉRIA DE FACTO

PROFERIDA PELO TRIBUNAL “A QUO”

O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a sua convicção quanto aos factos que considerou provados:

“Para formar a sua convicção o tribunal atendeu à globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e da livre convicção que o Tribunal formou sobre a mesma, sendo que foi uma tarefa norteada pelo princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, em conjugação com as regras de experiência.

Assim, quanto à dinâmica do acidente e ao local, considerou-se o que, de acordo com as regras da experiência decorrentes quer da vivência, quer da análise de situações de circulação estradal, resultou da conjugação documentos juntos aos autos, designadamente, Prova Pericial: a resultante de fls. 86 a 89,118 a 121 e 129 a 138 (e 291 a 303 - originais).

Prova Documental: a constante dos autos, designadamente de fls. 6 a 9, 15 a 21 (fls.213 a 220), 24 a 26 (participação do acidente de viação), 41 a 43, 54 e 249 (aditamento à participação de acidente), 56, 59, 90 a 111 (documentação clinica), 184 (croqui do acidente elaborado pelo NICAV), 323 a 328, 361 a 378, 382 a 384, 408 e 409 (RIC do arguido), 411 e 412, 414 e 415, 434, 437 a 450 (documentação clínica do falecido), 481, 484 a 486, 490 (croqui), 492 a 533 (relatório fotográfico), 538 a 561(relatório final elaborado pelo NICAV e CRC do arguido.

No que diz respeito às declarações do Arguido, AA este admitiu que circunstanciou no tempo e no espaço os factos que lhe são imputados na Pronuncia, admitindo que circulava a uma velocidade entre os 105km/h e os 110 Km/h sendo que o limite máximo naquele local é de 100km/h. Explicou que a cerca de 50 metros tentou abrandar meteu o pé no travão, mas os mesmos não reagiram. Referiu ainda que estava a fazer a manobra de ultrapassagem e que bateu com a frente direita do seu veículo na traseira esquerda no veículo que circulava à sua frente. Adiantou que nunca teve travão e que aquando o embate circulava acerca de 10 a 15m sendo que andava a conduzir a ambulância desde a meia noite. Referiu que a ambulância apenas parou quando bateu no rail e aí ficou imobilizada. Por último, referiu que não pegava muito nesta ambulância e que não usava óculos quando conduzia.

A testemunha II, militar da GNR, num depoimento verdadeiro, e credível explicou com pormenor, a dinâmica do acidente e que do mesmo resultou uma vítima mortal. Explicou que no local estava uma viatura em plena autoestrada e a ambulância já fora da via. Atestou que o paciente que seguia na ambulância faleceu, que o tempo estava bom, não havia nevoeiro e que se trata de uma recta com uma lomba suave, sendo que depois tem a saída para ….. Por fim, referiu a existência no local de marcas de derrapagem.

DD, militar da GNR num depoimento contraditório entre si, relatou ao tribunal que exerce funções no NICAV da GNR de … e que o acidente ocorreu numa recta onde o limite máximo de circulação é de 100km/h. Explicou que no local foram encontradas marcas de derrapagem. Da análise à dinâmica do acidente explicou que houve uma manobra brusca por parte do condutor da ambulância, isto é, houve perda de controlo. Asseverou que apurou que o Arguido trabalha nos BV de … e ainda nas Ambulâncias …, sendo que no dia do acidente os turnos forma quase seguidos. A testemunha, com relevo para a decisão da causa, atestou que no local do acidente existe uma reta sendo que o limite máximo de velocidade permitida no local é de 100Km/h.

JJ, colega do Arguido, atestou que no dia do acidente seguia dentro da ambulância junto do doente. Explicou que estavam a fazer uma deslocação de um doente de … para … de madrugada, sendo que com o embate o doente sofreu uma queda, saltou fora da maca e bateu com a cabeça numa cadeira de rodas, tendo feito uma ferida muito grande na zona da cabeça.

EE primo do Arguido, mecânico de automóveis, num discurso pouco isento e parcial, no sentido de corroborar a versão do Arguido, relatou que quando se fica sem travões o travão ou fica mole ou duro. Relatou que o veículo da marca … não tem ABS, pois é um sistema todo mecânico, sendo que avarias ao nível hidráulico afectam o sistema de vácuo. A testemunha prestou um depoimento vacilante, desde logo, porque foi notório que, tentou de alguma forma “beneficiar” com o seu depoimento o Arguido, pois a versão aqui trazida, foi de imediato realçar categoricamente que o acidente se deu por causa de falha dos travões.

FF, colega de trabalho do Arguido, num depoimento verdadeiro e credível atestou que ninguém reportou nada relativamente aos travões no que diz respeito à ambulância acidentada e que caso alguém detetasse algo comunicava. Atestou que antes do acidente reparou que a ambulância precisava de travões, mas depois começou a travar.

KK, amigo e colega do Arguido explicou que enquanto trabalhou na empresa nunca teve problemas com a mesma e relativamente à ambulância em questão nunca ouviu nada relativamente a travões. Relativamente ao Arguido relatou que o mesmo sempre conduziu bem não excedendo os limites de velocidade.

LL, primo do arguido depôs quanto à sua personalidade, atestando que aquele é muito calmo, trabalhador, social e que conduz bem.

HH um depoimento verdadeiro, conciso e coerente, explicou a dinâmica do acidente, referindo que o mesmo ocorreu em Junho de 2018 na A13. Relatou que circulava no sentido norte/sul peãs 6h20m da manhã, não havia trânsito na estrada a mesma estava com boa visibilidade e não chovia. Relatou que vinha pela faixa da direita e que a certa altura olhou para o retrovisor esquerdo e sentiu logo o embate, foi tudo “muito instantâneo”. Atestou que a sua viatura foi projectada para a frente com bastante violência. Por fim, referiu que não havia motivo para o acidente ter ocorrido da forma como correu a não ser o cansaço, sono, telemóvel ou distração do condutor, pois não havia trânsito, nevoeiro nem razão para aquilo ter acontecido. Asseverou, que o condutor da ambulância não tinha necessidade de travar pois não havia trânsito bastava desvia a sua trajetória e teria evitado o acidente pois conseguia desviar a viatura se não viesse desatento.

Com efeito, decidimos afastar a tese aqui trazida aos autos pelo Arguido de que ficou sem travões no momento em que exercia a condução o que causou o acidente, por manifestamente ilógica e amplamente contrariada pelo teor da prova pericial junta aos autos e ainda pelas regras da experiência comum

Ora, para prova dos factos provados assumiu especial relevância o depoimento da testemunha HH, o qual com conhecimento direto dos factos atestou ao tribunal de forma verdadeiramente concisa e credível que o acidente não teria ocorrido se o Arguido não viesse desatento, pois, àquela hora, não havia trânsito, nevoeiro ou chuva.

Assumiu ainda especial relevância a prova pericial efectuada à viatura conduzida pelo Arguido de fls. 128 a 134 dos autos e bem assim a declaração subscrita pelo mecânico MM de fls. 121 no qual atesta que “(...) a mesma não apresentava quaisquer anomalias no sistema de travagem”.

Segundo o artigo 163º do CPP “1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”. Com bem refere Germano Marques da Silva “a presunção que o artigo 163º, nº 1 consagra não é uma verdadeira presunção no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, cientifica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento de juízo pericial”.

O artigo 163º do CPP, pese embora permitindo uma livre apreciação da factualidade pressuposta pelo perito, determina que o juiz “…só pode divergir do juízo contido no parecer do perito, fundamentando devidamente a divergência (…) se puder fazer uma apreciação também técnica, cientifica ou artística, ou se se tratar de um caso de inequívoco erro”, cfr. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 467. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para a valoração da prova, seria de todo incompreensível que admitisse depois que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância.

Note-se que das facturas junta aos autos de fls. 478 e 479 resulta que em 25/06/2018 foi reparado o sistema de travagem da viatura designadamente foi colocado um jogo de calços e tubos da frente dos travões.

Ora, os calços dos travões são material de desgaste pelo que como material de desgaste que é, procede-se à sua troca. Relativamente aos tubos de travão não sendo material de desgaste só se tocam se efectivamente existir uma fuga de óleo – o que efectivamente foi feito tal como resulta da factura junta aos autos a fls. 478. Como resulta da experiência comum, só uma fuga de óleo origina uma falha de travões, ou seja, havendo fuga de óleo no sistema de travagem terá que existir necessariamente resíduos de perda de óleo, assim como o copo de reserva do óleo da bomba terá necessariamente de estar vazio ou parcialmente vazio – o que neste caso não sucedeu – veja-se fotografia junta aos autos de fls. 132. Atente-se ainda nas fotografias relativas aos valores de travagem do eixo direito e esquerdo do veículo, os quais revelam inequivocamente a eficiência da travagem.

Ora, cumpre referir que, nem o Arguido nem o militar da GNR que esteve no local após o acidente, nem a testemunha HH, em sede de audiência de discussão e julgamento, referiram a existência de vestígios de óleo no local que indiciasse uma possível fuga de óleo nos travões e consequente falha dos mesmos, o que diga-se, terá que necessariamente improceder a tese do Arguido.

Assim, para dar como provados os factos acima transcritos, em 1) a 18)), o tribunal atendeu essencialmente ao depoimento das testemunhas II e HH, os quais de forma pormenorizada, credível e com conhecimento direto dos factos imputados ao Arguido descreveram ao tribunal a dinâmica do acidente.

Ademais, o arguido não negou que, nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas nos autos, ocorreu o embate entre a dianteira direita da ambulância que conduzia e a traseira esquerda do veículo de matrícula … que o precedia.

Por outro lado, é o próprio arguido que admite que a velocidade máxima permitida no local do embate ascende a 100Km/hora e que o mesmo imprimia ao veículo que conduzia – ambulância, uma velocidade de cerca de 105/110Km/hora.

A par, reconhece o arguido que possui averbada na sua carta de condução a obrigatoriedade de fazer uso de óculos de correção para o exercício da condução, reconhecendo que no momento do embate, não os usava, desvalorizando, contudo, a sua necessidade.

Note-se que a ausência de rasto de travagem no local do acidente traduz a distração do Arguido, que não se apercebeu da necessidade de travar e embateu à velocidade a que seguia, o que foi corroborado pela testemunha HH.

Diga-se que, caso o Arguido tivesse perdido a função de travagem, sempre sinalizaria tal perigo – o que de resto se lhe impunha.

Por outro lado, a testemunha JJ que seguia na ambulância junto do doente de nada se apercebeu, relativamente a uma eventual falha de travões.

Resulta assim, incompreensível a sua tese, pois era lógico que, apercebendo-se de uma falha no sistema de travões em face da inexistência de trânsito na via, sempre teria tempo de imobilizar a viatura em condições de segurança e sinalizar o perigo.

Aliás, a realização da perícia por representante da própria da marca do veículo afigura-se-nos absolutamente adequada.

Cumpre realçar também que o valor do juízo técnico ou científico, inerente à prova pericial, se presume subtraído à livre apreciação do julgador, só podendo ser refutado por prova da mesma natureza, quanto ao núcleo de cientificidade que lhe é inerente (artigo 163.º do Código Penal).

Facilmente se percebe que assim seja, porquanto se trata da apreciação dos factos que exigem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, os quais, não se encontram diretamente acessíveis ao tribunal, pelo que, não se pode colocar em crise as conclusões nela efectuadas.

De igual modo, diga-se que a testemunha EE, primo do Arguido e mecânico não possui atributos para afastar os resultados alcançados através do relatório pericial junto aos autos e que diz respeito à aferição das condições de travagem que a ambulância apresentava ao tempo da realização da perícia, uma vez que não efetuou qualquer diligência na ambulância conduzida pelo Arguido.

Ademais, diga-se que, apesar da testemunha ter referido possuir experiência como mecânico, nada resultou que lhe permita atribuir especiais conhecimentos técnicos relativamente ao veículo em questão nos autos, uma vez que o seu depoimento foi pouco isento e parcial e repleto de juízos conclusivos, uma vez que aquele não analisou a viatura nem demonstrou quaisquer especificidades suscetíveis de abalar a credibilidade do relatório pericial junto aos autos, o qual, aliás, reitera-se, só pode ser afastado por prova da mesma natureza.

A par, diga-se que testemunha em menção não presenciou os factos, não inspecionou a viatura, somente possuindo conhecimento a partir dos documentos dos autos que lhe foram disponibilizados e do que lhe foi dito pelo próprio arguido, sendo que notoriamente prestou um depoimento no sentido de favorecer a tese do Arguido.

Note-se também no depoimento da testemunha FF, colega de trabalho do arguido, o qual referiu que nunca ouviu nada relativamente aos tavões da ambulância que chegou a conduzir e que, nessa altura, se apercebeu de dificuldades relacionadas com o sistema de travagem da mesma, mas que tal ocorreu antes do já relatado episódio da realização das inspeções.

Posto isto, cumpre referir ainda que qualquer avaria nos travões foram objeto de reparação como resulta das facturas juntas aos autos.

Resulta ainda do relatório de autópsia que «As restantes lesões traumáticas descritas, não relacionáveis com procedimentos iatrogénicos, denotam haver sido por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido algumas devido ao acidente de viação e outras a queda, eventos referidos na informação».

Igualmente, do mesmo relatório resulta que «A morte de GG foi devida às lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares descritas. (…) Tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte. (…) Estas lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas a acidente, como consta da informação.»

Significa isto que, por um lado, as lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares são compatíveis com a descrição feita do acidente de viação e da sua dinâmica sobre a vítima, sendo causa adequada da sua morte.

Pelo que, resulta da materialidade dada como provada que a morte da vítima é compatível com a descrição feita do acidente de viação e da sua dinâmica sobre a vítima, sendo causa adequada da sua morte.

Ora, o Arguido pretende criar a dúvida acerca das condições que produziram a morte do ofendido, porém, tal como resulta do relatório de autópsia médico-legal de fls. 86 a 89, a morte do ofendido ocorreu devido às lesões traumáticas cranianas e raqimeningomedulares descritas, sendo que tais lesões traumáticas constituem causa adequada da sua morte.

Acresce que, do aludido relatório da autopsia resulta ainda que “As restantes lesões traumáticas descritas, não relacionáveis com procedimentos iatrogénicos, denotam haver sido por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido algumas devido ao acidente de viação e outras a queda, eventos referidos na informação”.

Com efeito, sempre se dirá que o Arguido pretende descontextualizar o acidente ocorrido, fazendo crer que a morte do ofendido ocorreu devido a uma queda, no entanto, se atentarmos no depoimento da testemunha JJ, colega do Arguido, que seguia dentro da ambulância junto do doente, no dia do acidente, percebemos que o embate ocorreu com violência, pois a testemunha refere que “com o embate o doente sofreu uma queda, saltou fora da maca e bateu com a cabeça numa cadeira de rodas, tendo feito uma ferida muito grande na zona da cabeça” e como resulta do mesmo relatório “A morte de GG foi devida às lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares descritas. (…) Tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte. (…) Estas lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas a acidente, como consta da informação.”

Ora, por um lado, as lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares são compatíveis com a descrição feita do acidente de viação e da sua dinâmica sobre a vítima, sendo causa adequada da sua morte. Por outro lado, e, relativamente às demais lesões traumáticas descritas (que não as lesões traumáticas craniana e raquimeningomedulares, pois que só essas são causa adequada da morte) e que não se relacionem com procedimentos iatrogénicos (ou seja, com a prestação dos cuidados de emergência como sejam, por ex., um hematoma provocado pela colocação de um acesso venoso, ou um hematoma causado por manobras de reanimação), somente essas restantes lesões traumáticas é que podem ser o resultado quer do acidente de viação, quer da queda antecedente.

De igual modo, se diga que se atentarmos nas fotografias juntas aos autos, designadamente a fls. 504, vemos o pormenor da roda da cadeira de rodas, local onde bateu a cabeça da vitima, o que também e consentâneo com as declarações da supra mencionada testemunha JJ.

Assim, conjugados tais elementos, e com base nas já referidas regras da normalidade e experiência, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, chegou o tribunal à convicção da ocorrência dos factos constantes da matéria de facto e nos termos em que aí constam, quanto à dinâmica do acidente.

Não restam, assim, dúvidas que foi em consequência do acto de condução do veículo por parte do arguido, da perda de controlo do mesmo e da colisão com o veículo que circulava à sua frente que causou as referidas lesões ao ofendido GG e que determinaram a sua morte - provando-se, assim, o nexo causal (de imputação objectiva) entre a conduta, as lesões e a morte.

Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido o tribunal fez fé nas suas declarações, as quais se apresentaram credíveis e verdadeiras neste particular e ainda ao relatório da DGRSP.

Quanto à inexistência de antecedentes criminais o tribunal valeu-se do CRC junto aos autos.

Ora, a descrição dos factos resultante da prova produzida e atenta a dinâmica do acidente, foram relevantes para a formação da convicção do Tribunal no sentido do acidente se ter devido a violação das regras rodoviárias por parte do arguido.

O Tribunal teve ainda em conta:

Prova Pericial: a resultante de fls. 86 a 89,118 a 121 e 129 a 138 (e 291 a 303 -originais);

Prova Documental: a constante dos autos, designadamente de fls. 6 a 9, 15 a 21 (fls. 213 a 220), 24 a 26 (participação do acidente de viação), 41 a 43, 54 e 249 (aditamento à participação de acidente), 56, 59, 90 a 111 (documentação clinica), 184 (croqui do acidente elaborado pelo NICAV), 323 a 328, 361 a 378, 382 a 384, 408 e 409 (RIC do arguido), 411 e 412, 414 e 415, 434, 437 a 450 (documentação clínica do falecido), 481, 484 a 486, 490 (croqui), 492 a 533 (relatório fotográfico), 538 a 561(relatório final elaborado pelo NICAV e CRCs do arguido.

****

No que respeita aos factos não provados, os mesmos não lograram a adesão da prova.

****

O OBJECTO DO RECURSO DO ARGUIDO

Perante os factos considerados provados pela 1ª instância, importa agora curar do mérito do recurso, tendo-se em atenção que é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer - Cfr. o Ac do STJ de 3.2.99 in BMJ 484, pág 271; o Ac do STJ de 25.6.98 in BMJ 478, pág 242; o Ac do STJ de 13.5.98 in BMJ 477, pág 263; SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal” cit., págs. 74 e 93, nota 108; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 335; JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363).«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal “ad quem” tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem).

As questões essenciais suscitadas pelo Recorrente (nas conclusões das suas motivações) são as seguintes:

1) Se a Sentença recorrida padece da nulidade prevista no art.º 379º, nº 1, al. c) do C.P.P. - omissão de pronúncia.

2) Nulidade da prova pericial.

3) Se a Sentença condenatória recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

4) Se a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova;

5) Se a Sentença condenatória recorrida valorou incorrectamente as provas produzidas, violando o princípio da livre apreciação de prova (art.º 127º do C.P.P.), e o princípio in dubio pro reo.

6) Omissão do elemento subjetivo do crime de homicídio por negligência.

7) Se a pena concreta aplicada é excessiva.

8) Excessividade da pena acessória aplicada pelo tribunal a quo.

O MÉRITO DO RECURSO DO ARGUIDO

1) A PRETENSA NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA, EX VI ART. 379º, nº 1, al. C) DO CPP.

Segundo o Recorrente, há omissão de pronúncia geradora de nulidade da sentença recorrida porquanto os factos alegados na contestação não constam do rol da matéria de facto da sentença, sendo que tais factos são relevantes para a decisão da causa.

Não assiste razão ao Recorrente.

Na verdade, e como bem observa a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal “ Sobre esta questão, foi já proferido Acórdão por este Tribunal da Relação, em 11.01.2022 (cfr. fls.), considerando-se aí que «Destarte, uma vez que a referida matéria alegada na contestação e discutida no julgamento reveste relevância para a decisão, a mesma deveria ter sido apreciada na sentença e levada ao elenco factual que, em função da ponderação probatória que efectuou, o julgador considerou provado ou não provado, pelo que tal omissão constitui fundamento de nulidade da sentença recorrida, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP. Nesta conformidade, torna-se imperioso salientar, que em consequência dessa apreciação deverá ser feito um completo e exaustivo exame crítico da prova relativamente à problemática da origem das lesões causais da morte de GG. (…)».

E assim decidiu «(…) conceder provimento ao recurso e, em consequência, declaram nula a sentença recorrida e determinam a sua substituição por outra, que supra a apontada nulidade, nos termos sobreditos.». Em obediência à decisão proferida pelo Tribunal da Relação, o Tribunal a quo proferiu nova sentença, adicionando na matéria de facto dada como provada e não provada, a seguinte factualidade: (negrito e sublinhado nosso)

«A) FACTOS PROVADOS:

(…)

19- Resulta do teor da documentação clínica e do relatório pericial junto aos autos que o ofendido apresentava ferida no supracílio esquerdo, ferida abrasiva na região parietal esquerda, hematoma na região malar direita e vários hematomas no couro cabeludo.

(…)

Dos Factos provados relativamente à contestação do Arguido:

35- Após o acidente não existiam quaisquer marcas de travagem no solo.

36- Antes de entrar no veículo, o ofendido sofreu uma queda nas escadas, na sua habitação, ficando ferido na cabeça.

B) FACTOS NÃO PROVADOS:

O tribunal, com relevo para a decisão a proferir (não relevando, assim, toda a matéria conclusiva e de direito constante das diversas peças processuais), julga não provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:

1- A queda nas escadas sofrida pelo ofendido foi a causa da sua morte.»

Deflui daqui que a sentença se debruçou pormenorizadamente quanto à problemática da origem das lesões causais da morte de GG. E quanto aos factos relacionados com o sistema de travagem do veículo automóvel envolvido no acidente, o tribunal a quo já havia conhecido e decidido esta questão na sentença recorrida, tendo dado como provado justamente o entendimento inverso do alegado pelo recorrente, inexistindo por isso aqui qualquer omissão».

Não é, assim, in casu, possível imputar-se à sentença recorrida a desconsideração de quaisquer factos alegados na contestação, por isso que nem um só dos factos relevantes para a decisão da causa alegado pelo arguido na respectiva contestação deixou de ser considerado na sentença ora sob censura (cfr. Os Factos Considerados Provados e Não Provados).

Não existindo assim qualquer nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia.

2) A PRETENSA NULIDADE DA PROVA PERICIAL.

Alega ainda o Recorrente, que a prova pericial junta aos autos a fls. 86 a 89, 118 a 121 e 129 a 138 é nula, não podendo ser valorada, por não ter sido realizada em estabelecimento oficial ou por um perito independente, uma vez que foi realizada por um técnico com interesse na decisão dos presentes autos, da empresa “…, Lda” representante da marca “…”, fabricante do veículo que o arguido conduzia no momento do acidente.

A questão que o Recorrente equaciona, é pertinente, pois que, mais que as palavras, importa o conteúdo dos actos praticados e, não raro, confunde-se perícia (e relatório pericial) com exame (e relatório ou auto de exame) e mesmo com os pareceres a que alude o n.º 3 do artigo 165.º do Cód. Proc. Penal.

Justifica-se, assim, uma breve incursão pelo regime jurídico das perícias e dos exames.

Apesar de estarmos perante figuras jurídicas conceptualmente bem definidas e demarcadas na lei (que as regula com algum pormenor), na prática, nem sempre é fácil determinar quando estamos perante uma perícia ou um exame.

Essa dificuldade agrava-se quando uma perícia exige a realização de exames.

Por isso, na prática judiciária, são relativamente frequentes as alusões a “exames periciais” e a “informações periciais”, figuras que a lei processual penal não acolhe e por isso não pode ser-lhes reconhecido o reforçado valor probatório das conclusões periciais.

O mesmo acontece com os pareceres elaborados por técnicos (normalmente apresentados sob a forma de “relatórios técnicos”), a que se refere o n.º 3 do art.º 165.º do Cód. Proc. Penal, mas a que não se aplica o art.º 163.º do Cód. Proc. Penal.

Pode dizer-se que a distinção entre perícia e exame assenta em quatro pontos: a natureza da diligência, quem a realiza, a finalidade e o valor probatório.

A perícia é considerada um meio de prova, ao passo que um exame é um meio de obtenção de prova (a distinção resulta, desde logo, da inserção sistemática das pertinentes normas que definem os respectivos regimes).

É ordenada, oficiosamente ou a requerimento, pela autoridade judiciária competente (Ministério Público, juiz de instrução ou juiz de julgamento, excepto a perícia sobre as características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, a que alude o n.º 3 do art.º 154.º, que é sempre ordenada por juiz).

Diferentemente do que acontece com o exame, só pode realizar uma perícia quem tenha especiais conhecimentos técnicos, artísticos ou científicos (art.º 151.º) e para tanto seja especialmente nomeado para cada caso por despacho da autoridade judiciária (que indica, de forma sumária, o respectivo objecto).

Os exames podem ser realizados por qualquer pessoa, sem especiais exigências de conhecimento ou preparação técnica. Por isso são, em regra, efectuados por órgãos de polícia criminal.

No entanto, um exame pode ser realizado (e pode mesmo exigir que seja feito) por quem tenha especiais conhecimentos técnicos, artísticos ou científicos quando a detecção de vestígios requeira esses conhecimentos.

A perícia tem uma finalidade valorativa (o perito interpreta e avalia os vestígios da prática do crime).

Por seu turno, o exame tem uma finalidade descritiva: visa a inspecção e detecção de vestígios da prática de um crime e a sua descrição em auto, ou seja, é, essencialmente, uma actividade de recolha de meios de prova, sejam pessoais ou reais. Como ensina o Professor G. Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 5.ª edição, 281), “a finalidade do exame é fixar documentalmente ou permitir a observação directa pelo tribunal de factos relevantes em matéria probatória” e, mesmo quando efectuado por pessoa com especiais conhecimentos, “o exame distingue-se da perícia porquanto aquele apenas descreve o que o examinador observa…”.

A actividade dos peritos culmina com a elaboração de um relatório, no qual são formuladas conclusões devidamente fundamentadas. Nas conclusões, os peritos emitem uma opinião, tiram dos vestígios as ilações que eles consentem, apreciam ou qualificam os factos que são objecto da perícia à luz dos conhecimentos técnicos ou científicos que possuem.

As conclusões periciais podem não ser claras e/ou serem incompletas e quando assim aconteça podem ser pedidos esclarecimentos aos peritos. Esses esclarecimentos podem ser solicitados em qualquer momento do processo, mas, geralmente, são prestados em audiência, para a qual devem ser convocados os peritos.

Como é bom de ver, apenas quem tenha realizado a perícia (ou participado na sua realização, se for uma perícia colegial) pode prestar esclarecimentos.

A perícia tem um reforçado valor probatório, estando o respectivo juízo técnico, científico ou artístico, em princípio, subtraído à livre apreciação do julgador.

Já o resultado de um exame é livremente apreciado pelo tribunal.

As conclusões periciais podem não conter um juízo seguro sobre os factos e os meios de prova, ou pode haver várias perícias com conclusões divergentes ou mesmo contraditórias.

Quando as conclusões da perícia são apresentadas em termos dubitativos, ou seja, quando o resultado da perícia é inconclusivo, o julgador não está vinculado ao juízo técnico-científico nele expresso e aprecia livremente esse resultado.

Havendo duas ou mais perícias com resultados divergentes ou contraditórios, o tribunal não viola o comando do art.º 163.º se adere às conclusões de uma dessas perícias, ou se rejeita todas.

Debruçando-nos sobre o caso concreto, constata-se que o objecto da (assim designada) perícia é, em substância um exame/relatório solicitado a um técnico da empresa “…, Lda” representante da marca “…, elaborado por solicitação do tribunal, não sendo, na sua essência, - como bem notou a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal – “uma perícia em sentido técnico-jurídico. E nessa medida, o seu conteúdo não está abrangido pelo particular regime previsto no art. 163º do CPP, donde se segue que as conclusões nele alcançadas não se presumem subtraídas à livre apreciação do julgador, contrariamente ao estatuído para o regime das perícias pelo nº 1 do art. 163º. Não podemos, contudo, olvidar que este documento traduz verdadeiramente uma assessoria técnica ao tribunal, mobilizando conhecimentos de natureza técnico-científica e simulações computacionais efetuadas em programa adequado para o efeito, que permitem ao julgador formular as suas conclusões sobre a prova de uma forma cientificamente estruturada. Deve, pois, ser encarado como um parecer técnico (cfr. art. 165º, nº 3) incidindo sobre matéria de prova, elaborado com recurso a especiais conhecimentos de natureza técnica e a métodos cientificamente comprovados, e como tal submetido ao crivo do julgador no âmbito da livre apreciação da prova como coadjuvante da decisão. E nesta linha, afigura-se que o tribunal recorrido atendeu corretamente aos seus fundamentos e às conclusões constantes desse documento, designadamente quanto a matéria de facto que se mostra essencial para a decisão.”

Na verdade, pese embora o Tribunal recorrido tenha afirmado a especial relevância da prova pericial efectuada à viatura e consignado que: “Segundo o artigo 163º do CPP “1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”. Com bem refere Germano Marques da Silva “a presunção que o artigo 163º, nº 1 consagra não é uma verdadeira presunção no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, cientifica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento de juízo pericial”.

O artigo 163º do CPP, pese embora permitindo uma livre apreciação da factualidade pressuposta pelo perito, determina que o juiz “…só pode divergir do juízo contido no parecer do perito, fundamentando devidamente a divergência (…) se puder fazer uma apreciação também técnica, cientifica ou artística, ou se se tratar de um caso de inequívoco erro”, cfr. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 467. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para a valoração da prova, seria de todo incompreensível que admitisse depois que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância”, - ainda assim, não deixou de considerar outras provas que permitiram as conclusões constantes desse documento. Por isso mesmo, não sendo um juízo pericial está confirmado, designadamente, pelo depoimento da testemunha HH.

Acresce que, ainda que assim não fosse, a lei não comina com nulidade a violação do preceituado nos arts. 152º, 154º e 160º A do C.P.P., pelo que, atento o disposto no art. 118º, nºs 1 e 2, do mesmo Código, estar-se-ia perante uma mera irregularidade, que, no caso vertente, teria ficado sanada, nos termos do art. 123º, nº 1, do CPP, porque não arguida atempadamente.

O recurso improcede, portanto, quanto a este específico fundamento.

3) A PRETENSA INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA PARA A DECISÃO.

Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade dada como provada na sentença não permite, por exiguidade, uma decisão de direito, ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dito de outra forma, existe o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito porque o tribunal, desrespeitando o

princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., pág. 69).

O vício tem que existir no contexto da própria sentença, não podendo ser demonstrado através do confronto desta com a concreta prova produzida, a não ser que esta ali conste. A não ser assim, resta apenas, verificados os respectivos pressupostos, lançar mão da impugnação ampla da matéria de facto, prevista no art.º 412º do C. Processo Penal.

No caso sub judicio, sustenta o Recorrente que a sentença recorrida enferma do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão por isso que, “O Tribunal ad quo considerou que o arguido exercia a condução em excesso de velocidade e de forma desatenta, descuidada e imprudente (ponto 4), sendo tal facto mais não é do que um mero juízo conclusivo. Não consta da matéria de facto provada qual a velocidade máxima no local, nem qual a velocidade a que o veículo conduzido pelo arguido seguia.”.

É manifesto o erro de perspectiva em que labora o Recorrente, ao confundir o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão com uma pretensa insuficiência da prova produzida. Ainda mesmo que, porventura, as provas produzidas fossem insuficientes para o tribunal recorrido poder dar como provados todos os factos que considerou assentes – incluindo aqueles concretos factos que o recorrente considera indevidamente dados como provados -, não se trataria de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, mas, quando muito, erro de julgamento, que não se verifica.

O recurso improcede, portanto, quanto a este específico fundamento.

4) O INVOCADO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA

Nas conclusões da motivação o recorrente invoca ainda, a existência do vício previsto na al. c), nº 2 do art.º 410º do C. Processo Penal.

É conveniente começar por sublinhar que estes vícios são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir, tanto ao nível da matéria de facto, como de direito.

Tais vícios não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambas as situações se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.

O modo de valoração das provas, e o juízo resultante dessa mesma valoração, efectuado pelo” tribunal a quo”, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa, e consequências que daí derivam, não traduz qualquer vício da decisão.

Aqueles (vícios decisórios) examinam-se, indagam-se, através da análise do texto da sentença; esta (a errada apreciação e valoração das provas), porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas, do que resulta a formulação de um juízo que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício não se estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto (cfr. acórdão do STJ, de 15.09.2010, www.dgsi.pt/jstj; Cons. Fernando Fróis).

Numa formulação de síntese, pode dizer-se que o “erro notório na apreciação da prova” é uma deficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação do homem médio.

No caso dos autos, porém, não se detecta, na matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, nenhuma irrazoabilidade patente aos olhos de qualquer observador comum, por se opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum. Na verdade, o que a sentença recorrida indica como estando provado em nada ofende o sentimento que o homem médio (e este homem médio é que serve de referência para o efeito de aferir da existência do falado erro notório) pode ter sobre a realidade ou irrealidade desses factos.

Por outras palavras, do texto da sentença recorrida (por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum) não resulta que se apreciou de forma visivelmente descabida a prova, isto é, que os factos que vêm dados como tendo acontecido não podiam ter acontecido (ou não podiam ter acontecido do modo como o despacho diz que aconteceram).

Efectivamente, o que se relata na sentença sob censura como tendo atinentemente ocorrido não é incompatível com a realidade das coisas.

É, assim, patente que a sentença recorrida não padece de qualquer erro notório na apreciação da prova.

O recurso improcede, portanto, também quanto a este específico fundamento.

5) A PRETENSA AVALIAÇÃO INCORRECTA DA PROVA PRODUZIDA

No caso sub judicio, o ora recorrente considera incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto:

a) No elenco dos factos considerados provados:

“4- O arguido, exercia a condução imprimindo ao veículo que conduzia uma velocidade desajustada para o local e fazia-o desatento e de forma descuidada e imprudente e que não lhe permitia o respetivo controle.

5- De tal sorte que, ao chegar ao km 119,900, local onde a via se apresenta em reta, o arguido não manteve a necessária distância de segurança do veículo que seguia imediatamente à sua frente e embateu com a frente direita da ambulância que conduzia na traseira esquerda do veículo de matrícula ….

6- Após, o veículo conduzido pelo arguido continuou a marcha desgovernada, já que aquele não conseguiu retomar a sua faixa de rodagem, e, após embater na guarda lateral de segurança, acabaria por se imobilizar a cerca de 172 metros do local onde havia embatido no veículo ….

13-Na ocasião em que ocorreu a colisão entre os veículos os mecanismos de travagem da ambulância conduzida pelo arguido encontravam-se em boas condições de funcionamento, não apresentando qualquer avaria ou anomalia no sistema de travagem.

14-O arguido possui averbada na sua carta de condução a obrigatoriedade de fazer uso de óculos de correção para o exercício da condução, os quais, contudo, não utilizava no momento do embate.

15-Em consequência do embate o doente transportado na ambulância, GG, foi projetado para a frente e depois novamente para trás, acabando por embater com a cabeça contra as rodas de uma cadeira que fazia parte integrante do equipamento da ambulância e que se encontrava localizada imediatamente atrás da cabeceira da maca onde aquele seguia deitado.

16-Do embate resultaram para o GG, lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares, designadamente fratura com colapso da C7 (tipo burst).

17-Tais lesões foram, direta e necessariamente, causadoras da morte de GG.

18-O acidente ficou a dever-se, exclusivamente, à conduta do arguido que se dedicava ao exercício da condução, sem fazer uso dos óculos de correção que lhe estavam prescritos e agindo com total falta de cuidado, prudência, atenção e concentração que a condução de veículos automóveis requer e exige, como podia e devia ter feito, e, ainda, animado de velocidade que não lhe permitiu efetuar a correção da trajetória do veículo em espaço útil por forma a evitar o embate na viatura que seguia imediatamente à sua frente.”

Porquanto, segundo o Recorrente “…não há nenhum meio de prova que os sustente”.

Alega ainda o ora recorrente que existem dúvidas sobre a existência do nexo de causalidade entre a conduta do arguido e o óbito da vítima, que antes de ser transportada de ambulância, sofreu uma queda da qual resultaram lesões no crânio, pelo que tais dúvidas deveriam ter sido valoradas a favor do arguido.

Na sua tese, o Tribunal a quo teria de concluir pela absolvição do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo.

Vejamos:

In casu, o Tribunal a quo não se limitou a indicar, explicita e claramente, os meios de prova (isto é, declarações do arguido; depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento; participação do acidente de viação; aditamento à participação de acidente; documentação clinica; croqui do acidente elaborado pelo NICAV; RIC do arguido; documentação clínica do falecido; croqui; relatório fotográfico; relatório pericial; relatório final elaborado pelo NICAV e CRC do arguido), fundamentadores da convicção do julgador, antes procedeu a um rigoroso exame crítico das provas que serviram para formar essa convicção. E fê-lo, aliás, de modo absolutamente satisfatório, explicitando cristalinamente todos os critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal recorrido se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova produzidos em audiência, dando assim escrupuloso cumprimento às exigências que, em sede de fundamentação de facto, são actualmente colocadas pelo art.º 374º-2 do CPP.

Efectivamente, após enumerar os factos provados e os não provados, o Tribunal recorrido passou a expor a motivação da decisão de facto, elencando, por um lado, as provas que serviram para formar a respectiva convicção, quer as de natureza documental, quer testemunhal, revelando em que medida umas e outras contribuíram para a formação da sua convicção.

O Tribunal recorrido explicitou do seguinte modo o processo lógico que conduziu à sua convicção quanto aos factos assentes por provados:

“ …. Com efeito, decidimos afastar a tese aqui trazida aos autos pelo Arguido de que ficou sem travões no momento em que exercia a condução o que causou o acidente, por manifestamente ilógica e amplamente contrariada pelo teor da prova pericial junta aos autos e ainda pelas regras da experiência comum.

Ora, para prova dos factos provados assumiu especial relevância o depoimento da testemunha HH, o qual com conhecimento direto dos factos atestou ao tribunal de forma verdadeiramente concisa e credível que o acidente não teria ocorrido se o Arguido não viesse desatento, pois, àquela hora, não havia trânsito, nevoeiro ou chuva.

Assumiu ainda especial relevância a prova pericial efectuada à viatura conduzida pelo Arguido de fls. 128 a 134 dos autos e bem assim a declaração subscrita pelo mecânico MM de fls. 121 no qual atesta que “(...) a mesma não apresentava quaisquer anomalias no sistema de travagem”.

Ora, segundo o artigo 163º do CPP “1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”.

Com bem refere Germano Marques da Silva “a presunção que o artigo 163º, nº 1 consagra não é uma verdadeira presunção no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, cientifica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento de juízo pericial”.

O artigo 163º do CPP, pese embora permitindo uma livre apreciação da factualidade pressuposta pelo perito, determina que o juiz “…só pode divergir do juízo contido no parecer do perito, fundamentando devidamente a divergência (…) se puder fazer uma apreciação também técnica, cientifica ou artística, ou se se tratar de um caso de inequívoco erro”, cfr. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 467. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para a valoração da prova, seria de todo incompreensível que admitisse depois que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância.

Note-se que das facturas junta aos autos de fls. 478 e 479, resulta que em 25/06/2018 foi reparado o sistema de travagem da viatura, designadamente foi colocado um jogo de calços e tubos da frente dos travões.

Ora, os calços dos travões são material de desgaste pelo que como material de desgaste que é, procede-se à sua troca. Relativamente aos tubos de travão não sendo material de desgaste só se tocam se efectivamente existir uma fuga de óleo – o que efectivamente foi feito tal como resulta da factura junta aos autos a fls. 478.

Como resulta da experiência comum, só uma fuga de óleo origina uma falha de travões, ou seja, havendo fuga de óleo no sistema de travagem terá que existir necessariamente resíduos de perda de óleo, assim como o copo de reserva do óleo da bomba terá necessariamente de estar vazio ou parcialmente vazio – o que neste caso não sucedeu – veja-se fotografia junta aos autos de fls. 132.

Atente-se ainda nas fotografias relativas aos valores de travagem do eixo direito e esquerdo do veículo, os quais revelam inequivocamente a eficiência da travagem.

Ora, cumpre referir que, nem o Arguido nem o militar da GNR que esteve no local após o acidente, nem a testemunha HH, em sede de audiência de discussão e julgamento, referiram a existência de vestígios de óleo no local que indiciasse uma possível fuga de óleo nos travões e consequente falha dos mesmos, o que diga-se, terá que necessariamente improceder a tese do Arguido.

Assim, para dar como provados os factos acima transcritos, em 1)) a 18)), o tribunal atendeu essencialmente ao depoimento das testemunhas II e HH, os quais de forma pormenorizada, credível e com conhecimento direto dos factos imputados ao Arguido descreveram ao tribunal a dinâmica do acidente.

Ademais, o arguido não negou que, nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas nos autos, ocorreu o embate entre a dianteira direita da ambulância que conduzia e a traseira esquerda do veículo de matrícula … que o precedia.

Por outro lado, é o próprio arguido que admite que a velocidade máxima permitida no local do embate ascende a 100Km/hora e que o mesmo imprimia ao veículo que conduzia – ambulância, uma velocidade de cerca de 105/110Km/hora.

A par, reconhece o arguido que possui averbada na sua carta de condução a obrigatoriedade de fazer uso de óculos de correção para o exercício da condução, reconhecendo que no momento do embate, não os usava, desvalorizando, contudo, a sua necessidade.

Note-se que a ausência de rasto de travagem no local do acidente traduz a distração do Arguido, que não se apercebeu da necessidade de travar e embateu à velocidade a que seguia, o que foi corroborado pela testemunha HH.

Diga-se que, caso o Arguido tivesse perdido a função de travagem, sempre sinalizaria tal perigo – o que de resto se lhe impunha.

Por outro lado, a testemunha JJ que seguia na ambulância junto do doente de nada se apercebeu, relativamente a uma eventual falha de travões.

Resulta assim, incompreensível a sua tese pois era lógico que, apercebendo-se de uma falha no sistema de travões em face da inexistência de trânsito na via, sempre teria tempo de imobilizar a viatura em condições de segurança e sinalizar o perigo.

Aliás, a realização da perícia por representante da própria da marca do veículo afigura-se-nos absolutamente adequada.

Cumpre realçar também que o valor do juízo técnico ou científico, inerente à prova pericial, se presume subtraído à livre apreciação do julgador, só podendo ser refutado por prova da mesma natureza, quanto ao núcleo de cientificidade que lhe é inerente (artigo 163.º do Código Penal).

Facilmente se percebe que assim seja, porquanto se trata da apreciação dos factos que exigem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, os quais, não se encontram diretamente acessíveis ao tribunal, pelo que, não se pode colocar em crise as conclusões nela efectuadas.

De igual modo, diga-se que a testemunha EE, primo do Arguido e mecânico não possui atributos para afastar os resultados alcançados através do relatório pericial junto aos autos e que diz respeito à aferição das condições de travagem que a ambulância apresentava ao tempo da realização da perícia, uma vez que não efetuou qualquer diligência na ambulância conduzida pelo Arguido.

Ademais, diga-se que, apesar da testemunha ter referido possuir experiência como mecânico, nada resultou que lhe permita atribuir especiais conhecimentos técnicos relativamente ao veículo em questão nos autos, uma vez que o seu depoimento foi pouco isento e parcial e repleto de juízos conclusivos, uma vez que aquele não analisou a viatura nem demonstrou quaisquer especificidades suscetíveis de abalar a credibilidade do relatório pericial junto aos autos, o qual, aliás, reitera-se, só pode ser afastado por prova da mesma natureza.

A par, diga-se que testemunha em menção não presenciou os factos, não inspecionou a viatura, somente possuindo conhecimento a partir dos documentos dos autos que lhe foram disponibilizados e do que lhe foi dito pelo próprio arguido, sendo que notoriamente prestou um depoimento no sentido de favorecer a tese do Arguido.

Note-se também no depoimento da testemunha FF, colega de trabalho do arguido, o qual referiu que nunca ouviu nada relativamente aos tavões da ambulância que chegou a conduzir e que, nessa altura, se apercebeu de dificuldades relacionadas com o sistema de travagem da mesma, mas que tal ocorreu antes do já relatado episódio da realização das inspeções.

Posto isto, cumpre referir ainda que qualquer avaria nos travões foram objeto de reparação como resulta das facturas juntas aos autos.

Resulta ainda do relatório de autópsia que «As restantes lesões traumáticas descritas, não relacionáveis com procedimentos iatrogénicos, denotam haver sido por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido algumas devido ao acidente de viação e outras a queda, eventos referidos na informação».

Igualmente, do mesmo relatório resulta que «A morte de GG foi devida às lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares descritas. (…) Tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte. (…) Estas lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas a acidente, como consta da informação.»

Significa isto que, por um lado, as lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares são compatíveis com a descrição feita do acidente de viação e da sua dinâmica sobre a vítima, sendo causa adequada da sua morte.

Pelo que, resulta da materialidade dada como provada que a morte da vítima é compatível com a descrição feita do acidente de viação e da sua dinâmica sobre a vítima, sendo causa adequada da sua morte.”

Ora, ouvida a prova gravada, há que reconhecer, que a versão dada como provada tem apoio nos meios probatórios produzidos em julgamento, apresentando-se a fundamentação exarada pelo tribunal a quo consistente com os elementos de prova e as regra da experiência comum, não merecendo credibilidade as declarações do arguido no segmento em que refere que a causa do acidente foi uma falha no sistema de travagem do veículo que conduzia, que se mostraram contraditórias com os restantes elementos de prova existentes nos autos.

Efectivamente, o argumento - esgrimido pelo arguido/Recorrente – segundo o qual o Tribunal a quo não apurou factos suficientes para se poder dizer que o arguido exercia a condução em excesso de velocidade e de forma desatenta, descuidada e imprudente, não merece acolhimento, porquanto, na decisão recorrida expressamente se consignou - nos factos considerados provados - que o acidente se ficou a dever, exclusivamente, ao facto de o arguido não manter a necessária distância de segurança do veículo que seguia imediatamente à sua frente, e em cuja traseira embateu, por circular desatento, de forma descuidada e imprudente, a partir dos vários meios de prova levados a cabo, nomeadamente do depoimento da testemunha HH, (cujo depoimento contribuiu de forma decisiva para fundar a convicção do Tribunal a quo, já que, como bem se observou na decisão sob censura, o mesmo prestou um depoimento credível, e conciso com conhecimento direto dos factos que relatou) e da prova documental de conteúdo incontornável, tudo analisado criticamente e apreciado de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade das coisas.

De resto – e como bem salientou o Ministério Público (na sua resposta á motivação do arguido) -, « Importa referir, quanto ao argumento avançado pelo arguido de que o acidente se deveu exclusivamente a uma falha no sistema de travagem, que se o problema tivesse sido efectivamente uma falha de travões e não uma desatenção, o arguido facilmente teria forma de atempadamente mudar para a faixa da esquerda, que se encontrava livre, e realizar a manobra de ultrapassagem, que apenas requeria o uso do acelerador e não do travão.

(…)

A este propósito o Tribunal valorou ainda a prova pericial efectuada à viatura conduzida pelo arguido, de fls. 128 a 134 dos autos, e bem assim a declaração subscrita pelo mecânico MM de fls. 121 no qual atesta que “(...) a mesma não apresentava quaisquer anomalias no sistema de travagem”.

(…)

Resulta assim, incompreensível a sua tese pois era lógico que, apercebendo-se de uma falha no sistema de travões em face da inexistência de trânsito na via, sempre teria tempo de imobilizar a viatura em condições de segurança e sinalizar o perigo”.

Por outro lado, no que respeita ao nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas pela vítima GG que determinaram a sua morte, considerou o Tribunal a quo que «… as lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares são compatíveis com a descrição feita do acidente de viação e da sua dinâmica sobre a vítima, sendo causa adequada da sua morte. Pelo que, resulta da materialidade dada como provada que a morte da vítima é compatível com a descrição feita do acidente de viação e da sua dinâmica sobre a vítima, sendo causa adequada da sua morte. Ora, o Arguido pretende criar a dúvida acerca das condições que produziram a morte do ofendido, porém, tal como resulta do relatório de autópsia médico-legal de fls. 86 a 89, a morte do ofendido ocorreu devido às lesões traumáticas cranianas e raqimeningomedulares descritas, sendo que tais lesões traumáticas constituem causa adequada da sua morte.

Acresce que, do aludido relatório da autopsia resulta ainda que “As restantes lesões traumáticas descritas, não relacionáveis com procedimentos iatrogénicos, denotam haver sido por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido algumas devido ao acidente de viação e outras a queda, eventos referidos na informação”.

(…)

Ora, por um lado, as lesões traumáticas craniana e raquimeningomedulares são compatíveis com a descrição feita do acidente de viação e da sua dinâmica sobre a vítima, sendo causa adequada da sua morte. Por outro lado, e, relativamente às demais lesões traumáticas descritas (que não as lesões traumáticas craniana e raquimeningomedulares, pois que só essas são causa adequada da morte) e que não se relacionem com procedimentos iatrogénicos (ou seja, com a prestação dos cuidados de emergência como sejam, por ex., um hematoma provocado pela colocação de um acesso venoso, ou um hematoma causado por manobras de reanimação), somente essas restantes lesões traumáticas é que podem ser o resultado quer do acidente de viação, quer da queda antecedente.»

Ora, sendo a decisão recorrida, em matéria de facto, plausível e racionalmente entendível, face às regras da experiência da vida e, estando de acordo com a prova que examinou critica e fundamentadamente, a decisão de 1ª instância mostra-se inatacável, porque produzida de acordo com a livre convicção do julgador e sem que o recorrente mostrasse que outra apreciação se impunha como única aceitável, de acordo com tais regras já que a 1ª instância teve a oralidade e imediação, factores essenciais de apreensão da verdade, de que a instância de recurso não dispõe.

Nestes termos, ao contrário do que defende o recorrente, a prova produzida, articulada na sua globalidade, impõe que se conclua como o fez a Mm. ª Juiz do Tribunal a quo.

Deste modo, nada obstava, pois, a que se tivesse dado como assente aquilo que se encontra exarado na matéria de facto constante da sentença recorrida, designadamente que: - O acidente ficou a dever-se, exclusivamente, à conduta do arguido que se dedicava ao exercício da condução, sem fazer uso dos óculos de correção que lhe estavam prescritos e agindo com total falta de cuidado, prudência, atenção e concentração que a condução de veículos automóveis requer e exige, como podia e devia ter feito, e, ainda, animado de velocidade que não lhe permitiu efetuar a correção da trajetória do veículo em espaço útil por forma a evitar o embate na viatura que seguia imediatamente à sua frente. Em consequência do embate o doente transportado na ambulância, …, foi projetado para a frente e depois novamente para trás, acabando por embater com a cabeça contra as rodas de uma cadeira que fazia parte integrante do equipamento da ambulância e que se encontrava localizada imediatamente atrás da cabeceira da maca onde aquele seguia deitado. Do embate resultaram para o GG, lesões traumáticas cranianas e raquimeningomedulares, designadamente fratura com colapso da C7 (tipo burst). Tais lesões foram, direta e necessariamente, causadoras da morte de GG.

Pelo que, se torna forçoso referir que a sentença em crise não violou o princípio in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência, isto pela simples razão de que ao tribunal jamais se colocou uma situação de dúvida insanável sobre os factos relevantes para a decisão.

Tanto basta para que improceda a alegada violação do princípio in dubio pro reo.

Em conclusão, não tendo merecido acolhimento a tese propugnada pelo arguido/Recorrente quanto à pretensa avaliação incorrecta da prova produzida pelo tribunal a quo e, considerando a factualidade assente como provada na sentença sob censura, é manifesto que o enquadramento jurídico-penal feito pelo tribunal recorrido, ao condenar o arguido/Recorrente pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, não merece censura.

O presente recurso improcede, portanto, quanto à impugnação da matéria de facto (por violação do princípio da livre apreciação da prova) que se contém na motivação do Recorrente.

6) A PRETENSA OMISSÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO DO CRIME DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA.

Nas conclusões da motivação o recorrente alega que, da matéria de facto da sentença não consta a narração os elementos subjetivos do crime de homicídio por negligência, já que não é mencionado que o arguido sabia e tinha conhecimento de que teria que utilizar óculos de correção e que estava em excesso de velocidade; não é mencionado que que o arguido representou como possível a realização de um facto que preenche o crime ou, pelo menos, que não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto; não consta a atuação livre do arguido e a consciência da ilicitude.

Vejamos:

Preceitua o artigo 15° do C. Penal, que "age com negligência quem, por não proceder com. o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; b) não chegar sequer a representar a possibilidade da realização do facto".

Negligência é, por conseguinte, a violação de um dever objectivo de cuidado, ou seja, consiste na omissão de uma precaução reclamada pela prudência, cuja observância teria evitado o facto correspondente ao tipo de crime (cfr. Luís Osório, Notas ao Código Penal Português, Volume III, Pág. 150).

Para existir negligência é necessário, desde logo, que se esteja perante uma situação em que é objectivamente previsível o perigo de uma determinada acção ou omissão.

Na verdade, apenas a previsibilidade objectiva do perigo da acção ou da omissão pode criar no agente um determinado dever de agir ou de se abster.

Torna-se, pois, necessário que uma pessoa de capacidade medianamente diligente, perante a mesma situação, pudesse prever o perigo de determinada acção ou omissão, ou seja, a chamada previsibilidade objectiva,

No entanto, tal não basta para existir negligência.

Como é manifesto, ela pressupõe a inobservância do cuidado adequado a impedir a ocorrência do resultado típico.

Destarte, é necessário, para que se esteja perante uma conduta negligente, a ausência do cuidado que efectivamente poderia impedir o evento que a própria norma pretende evitar.

Também este cuidado deve ser entendido como o cuidado objectivamente adequado e idóneo a impedir a ocorrência do evento.

O critério delimitador do tipo de ilícito negligente é constituído pelo princípio da confiança que assume, in casu, especial relevância, por força do seu relevo no direito rodoviário.

Ora, segundo este princípio "(...) quem se comporta no tráfico de acordo com as normas deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros, salvo se tiver razão concretamente fundada para pensar de outro modo." (cfr. "Comentário Conimbricense do Código Penal", Parte Especial, Tomo I, Artigos 131° a 201°, Coimbra Editora, 1999, página 109).

Nestes termos, contrária ao cuidado é só a superação do risco permitido, pois, se o agente ultrapassa o limite do risco permitido e faz subir as probabilidades de certo evento, pode-se tornar juridicamente responsável pela produção desse evento - cfr., neste sentido, Claus Roxin, "Violação do Dever e Resultado nos Crimes Negligentes", in Problemas Fundamentais do Direito Penal, Colecção Vega Universidade, 3.ª Edição - 2004, Pág. 256 e seg.).

Ora, segundo este autor, para se saber se determinada conduta pode ou não ser imputada ao agente como violadora do dever de cuidado a que está obrigado e em virtude da qual se produziu o resultado, há que averiguar se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta concreta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido.

Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente.

Contrariamente, se não houver aumento de risco, o agente não poderá ser responsabilizado.

As condutas realizadas ao abrigo do risco permitido não são negligentes (não chegam a preencher o tipo de ilícito negligente), se o agente não criou ou incrementou qualquer perigo juridicamente relevante, não existindo sequer a violação de um dever de cuidado.

A negligência exclui-se se o agente se contém nos limites do risco permitido, maxime se, por exemplo, num atropelamento não criou nem potenciou um risco para a vida ou para a integridade física da vítima.

No entanto, actua negligentemente quem causa um resultado típico através de uma acção que aumenta o risco acima da medida permitida, potenciando o risco da produção do resultado, como seja, conduzir desatento às condições do trânsito e às condições do local.

Em muitos domínios a negligência começa, assim, segundo este critério, quando se ultrapassam os limites do risco permitido. Considere-se a condução automóvel que, como muitas outras actividades, comporta riscos que, em certas ocasiões, nem mesmo com o maior cuidado se podem evitar.

No que se reporta a tais actividades, põe-se a questão da sua necessidade social ou da sua utilidade social, sendo que, por isso mesmo, o Direito as aceita, não as proibindo, pese embora os perigos que lhe estão associados.

Evidencia-se que ambos os critérios referidos conduzem a um mesmo resultado, porquanto, sempre que o agente, com o seu comportamento, tenha criado um perigo não permitido, tal parece bastar para que se possa comprovar a violação do dever de cuidado a que estava obrigado.

Desta forma, apesar do legislador nada dizer acerca da medida de cuidado exigível do agente, esta deverá coincidir com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico

A doutrina tem entendido que a violação do dever de cuidado deve ser analisada, não tanto em termos de cuidado exigível a uma pessoa média, mas em termos de cuidado exigido àquela pessoa em concreto.

E dizemos isto porque o Prof. Eduardo Correia (in Direito Criminal, Volume I, Págs. 421 e seg.) define a negligência como a omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência.

O dever cuja violação a negligência supõe, consiste antes de mais em o agente não ter usado aquela diligência exigida, segundo as circunstâncias concretas, para evitar o evento.

Escreve ainda que é necessário que a produção do evento seja previsível, não sendo essa previsibilidade absoluta, mas determinada de acordo com as regras gerais da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem (cfr. autor e obra supra citados, Pág. 426).

Aliás, conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, a negligência consiste na falta de cuidado, em não se prever o que se deveria ter previsto, não se tomando as precauções devidas para evitar o resultado (cfr. B.M.J. 67°, Pág. 480).

O dever objectivo de cuidado decorre das circunstâncias particulares do caso em análise, das normas jurídicas que regulam comportamentos existentes, designadamente das que visam limitar ou diminuir os riscos próprios de certas actividades, como são, a título de exemplo, as disposições relativas à circulação rodoviária.

A violação de uma norma deste teor constituirá sempre um indício forte de responsabilidade penal do agente.

Nesta perspectiva, a circulação rodoviária vem sendo considerada, desde há muito, doutrinal e jurisprudencialmente, como actividade perigosa, do que se terão de extrair consequências, por um lado, jurídico-normativas, por outro lado, subjectivo-psicológicas, e que resultam num maior grau de atenção e na exigibilidade de um específico dever de prudência, no sentido de serem adoptados os deveres de cuidado que resultem de obrigações legais ou regulamentares ou que sejam adequados a evitar certos resultados, associado à previsão da produção de mais do que um evento lesivo como consequência da sua não observância ou da sua observância defeituosa (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.03.2004, disponível em www.dgsi.pt).

Isto é, embora a circulação rodoviária não consubstancie uma actividade proibida, a mesma oferece uma razoável probabilidade de lesão dos bens jurídicos, maxime a vida humana, e é por isso que constitui uma actividade tida como perigosa, afigurando-se o veículo automóvel - especialmente no contexto histórico-social hodierno - como uma "arma" potencialmente letal.

Em conclusão, a culpabilidade negligente, elemento essencial para o preenchimento do tipo de crime, é um juízo de imputação, ao agente, de uma atitude ético-pessoal de descuido, displicência ou simplesmente de excesso de confiança levianamente optimista, no sentido de que aquele evento não se iria produzir, perante um dever ser jurídico-penal.

Deve-se, assim, indagar quais são os comportamentos que a ordem jurídica exige numa determinada situação - só assim se poderá medir a conduta do agente, saber se ela corresponde à do homem avisado e prudente na situação concreta do agente.

Inexistem, pois, dúvidas de que a medida do cuidado exigível coincidirá com a que for necessária para evitar a produção do resultado típico.

Nesta conformidade, para concretizar a medida de cuidado objectivamente devido, no caso em apreço, há que partir, como ponto de referência., do condutor medianamente cauteloso.

Indiscutivelmente, as normas legais que regulam o trânsito podem constituir um importante ponto de partida para aferir da existência, no caso concreto, de um dever objectivo de cuidado.

De qualquer forma, é sempre necessária a comprovação, face às circunstâncias do caso concreto, de que o cumprimento das regras de circulação rodoviária em causa, era adequado a evitar o resultado produzido, o qual deve corresponder à concretização do risco típico nelas contido (cfr. Eduardo Correia, obra citada, Pág. 425).

Terá, por isso, que existir um nexo de causalidade adequada entre a violação do dever de cuidado, de origem legal, e a produção do resultado típico.

Por conseguinte, torna-se forçoso salientar, no caso sub judice, que regras violou o arguido AA que lhe impunham um determinado dever objectivo de cuidado.

Dispõe o artigo 24º, nº 1 do Código da Estrada que “ O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”

Preceitua o Artigo 86º, nº 1 do Código da Estrada que “O condutor a quem tenha sido averbado no seu título de condução o uso de lentes, próteses ou outros aparelhos deve usá-los durante a condução.”

Nestes termos, tendo em conta os factos considerados como provados:

4- O arguido, exercia a condução imprimindo ao veículo que conduzia uma velocidade desajustada para o local e fazia-o desatento e de forma descuidada e imprudente e que não lhe permitia o respetivo controle.

5 - De tal sorte que, ao chegar ao km 119,900, local onde a via se apresenta em reta, o arguido não manteve a necessária distância de segurança do veículo que seguia imediatamente à sua frente e embateu com a frente direita da ambulância que conduzia na traseira esquerda do veículo de matrícula …

(…)

14- O arguido possui averbada na sua carta de condução a obrigatoriedade de fazer uso de óculos de correção para o exercício da condução, os quais, contudo, não utilizava no momento do embate.

(…)

18. O acidente ficou a dever-se, exclusivamente, à conduta do arguido que se dedicava ao exercício da condução, sem fazer uso dos óculos de correção que lhe estavam prescritos e agindo com total falta de cuidado, prudência, atenção e concentração que a condução de veículos automóveis requer e exige, como podia e devia ter feito, e, ainda, animado de velocidade que não lhe permitiu efetuar a correção da trajetória do veículo em espaço útil por forma a evitar o embate na viatura que seguia imediatamente à sua frente.

Forçoso é concluir que o arguido AA violou a supra referida regra do Código da Estrada (fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente), a qual lhe impunha um dever objectivo de cuidado, bem como a obrigação que lhe era imposta de fazer uso de óculos de correção para o exercício da condução.

E assim não só aceitou o risco inerente ao contexto em que os factos ocorreram, como, com a circulação naqueles termos, potenciou esse risco, elevando-o até à produção do evento lesivo.

Encontra-se, assim, patentemente demonstrado a violação do dever objectivo de cuidado que, por força da referida norma, impendia sobre o arguido.

Nesta medida, é forçoso concluir que os factos dados como provados na decisão recorrida preenchem, e no que ora releva, os elementos subjectivos do crime de homicídio por negligência.

O recurso improcede, portanto, também quanto a este específico fundamento.

7) Se a pena concreta aplicada é excessiva.

Sustenta o Arguido/Recorrente que o Tribunal a quo não teria tomado em consideração, na escolha da pena concreta aplicada, determinadas circunstâncias atenuantes, designadamente, a sua inserção social, o seu bom comportamento anterior e posterior aos factos, os seus parcos rendimentos e as suas avultadas despesas.

Quid juris?

Relativamente às condições pessoais do arguido ora recorrente, a sentença recorrida deu como provado:

“ 20-AA, natural de …, de … anos de idade, solteiro, detentor do 9.º ano de escolaridade, ativo profissionalmente como socorrista/motorista para a empresa “… Lda.”, com sede em … vive com os progenitores de … e … anos de idade respetivamente, sendo que o pai trabalha por conta própria na construção civil e a mãe é doméstica, …, numa casa térrea, propriedade familiar, de tipologia T3, avaliada como disponibilizando de condições de habitabilidade, de conforto e de limpeza, situada numa zona calma, de caraterísticas rurais e residencial.

21-A dinâmica familiar é sentida como afetiva, coesa, com espírito de entreajuda e de proteção muito expressivos que se estende ao relacionamento positivo e próximo com a família alargada (irmão, tios, avós e primos) residentes na mesma localidade.

22-As condições materiais permitem a satisfação das suas necessidades básicas e secundárias, consubstanciadas no seu vencimento líquido de sensivelmente €875,00, incluindo os subsídios de férias e de natal, em duodécimos e no facto de viver com os pais.

23-O arguido entrega aos progenitores €150,00 para a ajuda das despesas e possui um crédito pessoal para aquisição de veículo motorizado que está a pagar às prestações mensais no valor de €100,00.

24-A família possui um terreno com horta, animais para consumo doméstico, árvores de fruto e oliveiras o que é uma mais valia e um apoio no economato.

25-Rúben Silva presenta como caraterísticas pessoais mais relevantes a sua capacidade de trabalho, de responsabilidade, de disponibilidade, de relacionamento interpessoal ajustado, sendo reconhecido como um indivíduo sociável, generoso, honrado e estimado por todos.

26-Nos tempos livres ajuda os progenitores nas atividades agrícolas, cuida dos seus cães, faz alguns serviços nos Bombeiros Voluntários de …, vai ao ginásio e convive com os seus amigos que foram avaliados como pró sociais.

27-Em idade regular frequentou estabelecimento de ensino com adaptação ajustada, não revelando dificuldades de aprendizagem.

28-Reprovou no 4.º, 6.º e 9.º ano de escolaridade por pouco empenhamento nos estudos.

29-Aos 19 anos de idade desistiu dos estudos quando estava no último ano do curso profissional de design gráfico, com equivalência ao 12.º ano de escolaridade.

30-Enquanto estudante praticou a modalidade desportiva de futebol 11, em … e frequentou a catequese.

31-Aos 17 anos de idade iniciou-se como bombeiro voluntário, em … onde permaneceu até aos 21 anos de idade auferindo uma quantia fixa por cada serviço que fazia e que lhe dava para os seus gastos pessoais.

32-Durante esta fase obteve aproveitamento nos cursos básico de socorrismo e no curso de técnico de ambulância e socorro (TAS).

33-Aos 21 anos começou a trabalhar como socorrista e motorista na mesma empresa onde ainda hoje se encontra “…, Lda.”.

34-O Arguido não tem antecedentes criminais.”

Quid juris?

Os factos indiciam elevadas exigências de prevenção geral, já que este tipo de crime provoca elevado e crescente grau de alarme e insegurança social, com prementes necessidades de prevenção e de sensibilização para com a gravidade da conduta, bem como de prevenção especial, necessárias para que o recorrente consiga interiorizar a pena concretamente aplicável, fazendo-lhe sentir que o seu comportamento é grave e tem de ser punido de forma a que se possa redimir.

Assim, atenta a moldura penal abstracta aplicável ao crime praticado pelo arguido (moldura penal abstrata de prisão até 5 anos), nenhum reparo merece a pena concreta aplicada pelo Tribunal a quo ao arguido ora recorrente ( um ano e oito meses de prisão), pena essa que, foi encontrada, precisamente, por terem sido consideradas as circunstâncias atinentes à vida pessoal, familiar e profissional do arguido que ele, infundadamente, reputa de desconsideradas pela sentença recorrida.

8) Excessividade da pena acessória aplicada pelo tribunal a quo.

Insurge-se o recorrente quanto à pretensa excessividade da pena acessória aplicada pelo Tribunal “a quo”, porquanto: o grau de ilicitude do facto e a censurabilidade da conduta do arguido foram moderados, o crime que lhe é imputado foi um episódio único na sua vida, o arguido não tem antecedentes, encontra-se inserido profissional e socialmente, pelo que deverá ser absolvido da pena acessória aplicada.

A medida da pena acessória aplicável ao caso concreto vai de três meses a três anos (cfr. Art.º 69º, n.º 1, alínea a) do C. Penal).

Verifica-se que o tribunal a quo aplicou ao recorrente uma pena acessória de 12 (doze) meses de proibição de conduzir, pugnando este, todavia, pela sua absolvição da pena acessória aplicada ou, sem conceder, pela sua redução para 3 meses.

Com a revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, voltaram a ser introduzidas, no ordenamento jurídico criminal, normas dirigidas especificamente para a criminalidade no domínio estradal, tendo então surgido a proibição de conduzir veículos motorizados estabelecida no artigo 69º do Cód. Penal de 1995, que já não tem, contudo, a natureza de medida de segurança, mas sim a de pena acessória, como o Código expressamente a qualifica (cfr. a própria epígrafe do Capítulo III do Título III do Livro I do Código Penal onde aquele art. 69º está inserido).

De sorte que, à condenação pelo crime de homicídio por negligência deverá seguir-se a condenação na pena acessória estabelecida no artº 69º do Código Penal.

Impunha-se, pois, condenar o arguido em tal sanção acessória, conforme o foi não merecendo nesta parte qualquer censura a decisão recorrida.

Será então a pena dos autos exagerada e excessiva, violadora da “proibição de excesso”, princípio que significa que a medida da pena não pode exceder a medida da culpa?

Relativamente à pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, importa dizer, que a mesma pode ser proporcionalmente diferente da pena principal encontrada, uma vez que cada uma delas visa objectivos diversos, sendo certo que a pena acessória tem em vista a recuperação do comportamento estradal do condutor imprudente.

Todavia, não restam dúvidas de que, também, no que concerne à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados se deve ter em conta os critérios definidos no Art.º 71° do C. Penal.

Como ensina Figueiredo Dias, a pena acessória de proibição de conduzir tem como pressuposto material “a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável” - (in Direito Penal Português, Consequências jurídicas do crime, p. 165).

Do compulsar dos autos, resulta que o arguido/recorrente não tem antecedentes criminais isto, para além, de se encontrar familiar e socialmente integrado.

Porém, não podemos ignorar que, num país (como o nosso) onde se registam elevadíssimos índices de sinistralidade rodoviária, comparativamente com outros países europeus, daí decorrendo, todos os anos, numerosas perdas irreparáveis de vidas humanas com importantes danos e custos sociais, a realização do fim de prevenção geral só pode ser conseguido pela imposição de medidas sancionatórias persuasivas de que os Tribunais podem e, sobretudo, têm, forçosamente, de lançar mão, sob pena de poderem eles próprios estar, também, a contribuir para a elevada sinistralidade rodoviária que ocorre nas estradas do nosso país.

Por conseguinte, concatenando todo o circunstancialismo fáctico dado como assente com o direito aplicável, nada mais nos resta senão afirmar que, também nesta parte, carece o Recorrente de razão, na medida em que se considera necessária, adequada, proporcional e suficiente a pena acessória imposta.

Ainda na tese do arguido/recorrente a aplicação automática, no caso sub judice, da pena prevista no artº 69 do C. Penal, consequência que aquele perde o direito de exercer a profissão de socorrista e motorista, o que viola o artº 65 do C. Penal e o artº 30, nº 5 da C.R.P..

Desde já cumpre referir que, não se provou que o arguido fique com os seus direitos profissionais automática e irremediavelmente restringidos pelo simples facto de ter ficado inibido de conduzir.

Acresce que, o que a Constituição proíbe no seu art. 30, n.º 4, é apenas que a perda de direitos profissionais seja um efeito necessário de uma pena, o que não se verifica in casu. Proíbe-se ali a automaticidade da perda, sem mais, mas já não a sua restrição. A restrição terá de ser ponderada com os limites da proibição do "excesso" e numa perspectiva de proporcionalidade entre valores conflituantes, optando-se pelo que predomine, seja superior ou preponderante.

O corolário lógico da tese argumentativa do recorrente, seria o de que, a norma do artº 69 do C. Penal seria apenas residualmente aplicável, já que, com base naquele “falso” argumento constitucional nunca alguém poderia sofrer a inibição de conduzir.

Eis por que o presente recurso irá improceder in totum.

DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se na íntegra a Sentença final recorrida.

Fixa-se a taxa de justiça devida pelo Recorrente em 4 (quatro) UCs.

Évora, 24 / 01 / 2023