CRÉDITO AO CONSUMO
PROTECÇÃO DO CONSUMIDOR
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário


I. Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, determina o artigo 27º do D.L. n.º 74-A/2017, de 23.6 que o mutuante só pode invocar a perda do benefício do prazo (nos termos do artigo 781.º do Código Civil) ou a resolução do contrato (nos termos do artigo 801.º, n.º 2) se, cumulativamente, ocorrer a falta de pagamento de três prestações sucessivas e a concessão, pelo mutuante, de um prazo suplementar mínimo de 30 dias para que o consumidor proceda ao pagamento das prestações em atraso, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato, sem que este o faça;
II. Se na missiva enviada ao consumidor, o mutante não lhe concede um prazo suplementar mínimo de 30 dias para que o mesmo proceda ao pagamento das prestações em atraso, estava-lhe vedado invocar a perda do benefício do prazo pelo que não lhe poderia exigir na execução contra ele instaurada a totalidade do capital em dívida referente ao mútuo, faltando uma das condições processuais de prosseguimento da acção executiva.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


I. RELATÓRIO
1. Por apenso aos autos de execução ordinária para pagamento de quantia certa que Caixa Geral de Depósitos, S.A intentou contra AA., veio o executado deduzir oposição à execução por embargos, alegando que:
- o executado aceitou um plano de reestruturação dos pagamentos que, por razões que desconhece, não chegou a ser formalizado, mas tentou sempre contactar o gestor de cliente para concretizar esse acordo;
- após informar o executado que pretendia cobrar a totalidade da dívida, o exequente continuou a remeter referências para pagamento das prestações dos contratos, o que o executado cumpriu;
- o que significa que os contratos não foram resolvidos e continuaram em vigor;
- o executado solicitou esclarecimentos sobre a situação mas não obteve resposta do exequente;
- acresce que o exequente não observou o art. 27º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de Junho, não estando preenchidos os pressupostos para a resolução dos contratos.
Conclui pela extinção da execução.
Regularmente notificado, o exequente contestou, alegando que:
- em 18.11.2016, o Banco integrou os créditos em PERSI;
- posteriormente e como se mantinha a mora, remeteu carta de interpelação em 24.08.2021;
- o executado não regularizou a dívida no prazo concedido, pelo que ocorreu a resolução por incumprimento;
- as mensagens dirigidas ao executado são meros alertas automáticos para pagamento, não contrariando a resolução ocorrida;
- em 14.12.2018 existiu uma aprovação de reestruturação de responsabilidades, mas o executado só remeteu parte da documentação solicitada e não cumpriu todas as condições aprovadas, pelo que o despacho de aprovação de reestruturação caducou;
- ao longo do tempo existiram novas tentativas de negociação, com uma nova proposta de reestruturação em Junho de 2021, a qual veio a ser recusada em 19.09.2021 por incapacidade financeira do executado;
- o Banco respondeu aos esclarecimentos solicitados pelo executado;
- o executado foi interpelado sem nunca questionar os valores devidos, pretendendo agora exonerar-se das suas responsabilidades, o que configura uma actuação abusiva.
Concluiu pela improcedência dos embargos.
*
Foi proferido despacho saneador-sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“Em face de tudo o exposto e conhecendo de imediato do mérito dos presentes embargos de executado, julgo-os parcialmente procedentes e, em consequência:
a) Determino a extinção da execução quanto aos contratos de mútuo com hipoteca celebrados em 20.10.2004 e em 16.06.2005 (operação PT… e operação PT…), e
b) Determino o prosseguimento da execução em relação ao contrato de consolidação de dívida celebrado em 22.02.2013 (operação PT…).”.

2. É desta decisão que recorre a exequente CGD formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

“Não crê a Recorrente que estivessem reunidas as condições para que fosse proferida decisão final, sem a realização de audiência e discussão de julgamento, para audição da prova testemunhal carreada aos autos pela Recorrente;

A audição da prova testemunhal determinaria decisão diferente da proferida;

A testemunha poderia provar, que a resolução contratual operou nos contrato de mútuo com hipoteca;

Constitui-se, assim, nulidade processual, nos termos e para os efeitos do artigo 195.º n.º 1 CPC, a não não audição da prova testemunhal em sede de audiência;

Proferir saneador sentença, sem audição da prova testemunhal cujo depoimento era susceptível de influir na decisão da causa, encontramo-nos perante uma violação de um preceito legal, nulidade essa que desde já se invoca, devendo os doutos Juízes Desembargadores, determinar ao Tribunal a quo, pelo agendamento da audiência e discussão de julgamento para audição da prova testemunhal;

O tribunal a quo proferiu sentença de embargos considerando provada a inexistência de comunicação para resolução dos contratos de mútuo com hipoteca;

A comunicação de resolução dos contrato de consolidação da dívida, assim como nos contrato de mútuo foi feito através da mesma carta de 24/08/2021;

Se o Tribunal a quo considerou a resolução contratual para o contrato de consolidação da dívida, necessariamente teria que o considerar para os contratos de mútuo com hipoteca n.º … e PT…;

O artigo 781.º do Código Civil refere “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.

Este normativo legal tem sido interpretado, pela doutrina e jurisprudência, no sentido da exigibilidade imediata da dívida, com consagração do “vencimento automático” da obrigação creditícia, sem necessidade de interpelação do devedor;

Não existe qualquer cláusula contratual que preveja a obrigatoriedade de comunicação por escrito da Recorrente ao Recorrido para vencimento antecipado dos créditos;

Os contratos prevêem a sua resolução e o vencimento imediato das dívidas no caso de incumprimento das obrigações assumidas pelos embargantes, o que ocorreu in casu;

No documento complementar dos supra indicados contratos de mútuo, no seu artigo 16.º refere « A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento, designadamente, no caso de: a) Incumprimento pela parte devedora de quaisquer obrigações decorrente deste contrato;

Discorre do contrato, sem necessidade de qualquer extra comunicação, que os contratos de mútuo se consideram automaticamente resolvidos, assim que o incumprimento contratual operar;

O que, como já ficou provado em sede de audiência e julgamento ocorreu;

Sem conceder, a interpelação sempre ocorreria com a citação dos executados para os presentes autos, devendo considerar-se o vencimento total na data de incumprimento dos contratos, nas datas indicadas pela Exequente no requerimento executivo;

Assim, outra decisão se impunha ao analisar a matéria de facto e de direito carrada aos autos.

Termos em que, e nos demais de direito que V. Exas suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença Recorrida, assim se fazendo a costumada Justiça!

3. Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – as questões cuja apreciação as mesmas convocam, são as seguintes:
- Se o estado dos autos comportava o conhecimento do mérito dos embargos no saneador;
- Se as dívidas emergentes dos contratos de mútuo com hipoteca celebrados em 20.10.2004 e em 16.06.2005 (operação PT… e operação PT…) são exigíveis.


II. FUNDAMENTAÇÃO

4. É o seguinte o quadro fáctico dado como assente na 1ª instância:
1. Em 04.11.2021, o exequente intentou contra o ora embargante a execução com processo ordinário de que estes autos são apenso, com vista ao pagamento de quantia certa (€ 334.980,45 de capital, acrescido de juros no valor de € 95.431,87, no total de € 430.412,32) assim discriminada:

Total em divida: €430.412,32 correspondente a
Operação PT …: €272.173,61:
- €221.139,08 de capital,
- €47.533,21 de juros à taxa contratada 2,384%, acrescida da sobretaxa de 3% ao ano até 12/10/2021,
- €3.501,32 correspondente a comissões.
Operação PT …: €121.428,62:
- €97.926,88 de capital,
- €21.761,59 de juros à taxa contratada 2,287%, acrescida da sobretaxa de 3% ao ano até 12/10/2021,
- €1.740,15 correspondente a comissões.
Operação PT …: €36.810,09:
- €15.914,49 de capital,
- €19.622,97 de juros à taxa contratada 15,000%, acrescida da sobretaxa de 3% ao ano até 12/10/2021,
- €1.272,63 correspondente a comissões.
O Exequente tem ainda direito aos juros vincendos e respectivo imposto de selo até efectivo e integral pagamento.
2. Foram dados à execução os seguintes contratos:

i) contrato de mútuo com hipoteca outorgado em 20.10.2004, e respectivo documento complementar, nos termos do qual o Banco concedeu ao embargante (e à sua mulher) um empréstimo no montante de €270.000,00 (destinado à construção no imóvel hipotecado para habitação secundária), de que aquele logo se confessou devedor, obrigando-se ao seu reembolso em prestações de capital e juros no prazo de 26 anos - operação PT…;

ii) contrato de mútuo com hipoteca outorgado em 16.06.2005, e respectivo documento complementar, nos termos do qual o Banco concedeu ao embargante (e à sua mulher) um empréstimo no montante de € 120.000,00 (com a mesma finalidade), de que aquele logo se confessou devedor, obrigando-se ao seu reembolso em prestações de capital e juros no prazo de 25 anos - operação PT…;

iii) contrato de empréstimo para consolidação de dívida celebrado em 22.02.2013, resultante de operações de crédito pessoal ao consumo (saldo devedor de conta bancária e de cartão de crédito), no montante de € 16.143,05 a reembolsar em 180 prestações mensais de capital e juros - operação PT….

3. Para garantia do pontual pagamento e liquidação dos contratos de mútuo indicados em i) e ii), o embargante constituiu hipotecas a favor do Banco sobre o prédio composto por terreno para construção urbana, designado por lote …, sito em …, freguesia …, concelho de Sesimbra, inscrito na matriz sob o artigo n.º … (actual …) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º … - AP. … e AP. ….

4. No contrato de mútuo indicado em i), foi convencionado, além do mais, que:

Cláusula 15.ª – À credora fica reconhecido o direito de (…) d) considerar o empréstimo vencido (…) se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes deste contrato.
5. No contrato de mútuo indicado em ii), foi convencionado, além do mais, que:

Cláusula 15.ª – À credora fica reconhecido o direito de (…) d) considerar o empréstimo vencido (…) se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes deste contrato.
Cláusula 16.ª – A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento, designadamente, no caso de: a) Incumprimento pela parte devedora de qualquer obrigação decorrente deste contrato (…).
6. Os referidos contratos foram objecto de alteração em 26.04.2012, na sequência de partilha por divórcio do embargante e com vista à desvinculação do mútuo da sua ex-mulher.

7. No âmbito dessa alteração, aquela cláusula 15.ª dos contratos passou a ter a seguinte redacção: “(…)”;

8. No contrato de consolidação de dívida, indicado em iii), as partes previram, além do mais, o seguinte:

Cláusula 20.ª- 1 – A CGD poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente: a) Incumprimento pelo Cliente ou por qualquer dos restantes contratantes de qualquer obrigação decorrente deste contrato (…).
9. O executado deixou de pagar as prestações do contrato indicado em i), em 20.04.2014.

10. O executado deixou de pagar as prestações do contrato indicado em ii), em 16.02.2014.

11. O executado deixou de pagar as prestações do contrato indicado em iii), em 22.12.2013.

12. Em 18.11.2016, o exequente integrou os créditos em PERSI.

13. Em 22.02.2019, o PERSI foi extinto por motivo de “Contrato Renegociado”, na sequência da aprovação, em 14.12.2018, de reestruturação de responsabilidades.

14. Todavia, a referida reestruturação não foi concretizada.

15. Por carta datada de 24.08.2021, o exequente interpelou o embargante para, em 10 dias, proceder à regularização dos seguintes valores, sob pena de ser instaurada acção judicial com vista à cobrança da totalidade da dívida: (…)
16. Nos meses posteriores, nomeadamente Setembro, Outubro e Novembro de 2021, o embargante continuou a receber mensagens com referências para pagamento das prestações dos dois créditos à habitação.
17. Em 29.11.2021, o embargante solicitou ao exequente esclarecimentos sobre a situação e a instauração de execução, conforme documento n.º 13 junto com o requerimento inicial e cujo teor se dá por reproduzido.

18. Em 31.12.2021, o exequente respondeu mediante carta endereçada ao ilustre mandatário do embargante, conforme documento n.º 4 junto com a contestação e cujo teor se dá por reproduzido.

5. Do mérito do recurso

5.1. Do conhecimento do mérito dos presentes embargos no saneador

Insurge-se a apelante contra tal conhecimento prematuro com o argumento de que foi privada de produzir prova testemunhal que no seu entender era susceptível de influir na decisão da causa.

Todavia, não impugna qualquer dos factos dados como assentes nem refere ter(em) sido omitido(s) no quadro enunciado algum ou alguns com relevo para o conhecimento do mérito dos embargos.

Ora, entendeu-se na decisão recorrida que o estado dos autos comportava o conhecimento do mérito da acção no saneador, opção que a alínea b) do nº1 do art.º 595º do CPC (aplicável ex vi art.º 732º, nº2 do mesmo código) contempla quando não haja necessidade de produzir mais provas.
Como proficientemente se afirma no Acórdão da Relação de Coimbra de 21.1.2014 (proferido à luz do revogado CPC mas que neste conspecto mantém perfeita actualidade) o “conhecimento do mérito em sede de despacho saneador pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisão - afinal quando as partes só discordem da solução jurídica da questão a dirimir -, mas não se coaduna com decisões que, em nome de pretensas celeridades – que, depois, dão em vagares –, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura - apresentando-se a audiência de julgamento como o momento processual propício à clarificação da factualidade invocada.
Por isso, tal conhecimento só deve ocorrer se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.”.

Não tendo ocorrido impugnação da matéria de facto, nem havendo factos controvertidos relevantes para decidir o objecto dos embargos, já que todos os alegados foram contemplados, não se enxerga qualquer necessidade de o processo prosseguir para julgamento para aí ser produzida prova testemunhal.
Estavam, pois, reunidos os pressupostos do julgamento imediato dos embargos no saneador o que, como salienta Paulo Ramos de Faria[1], “não é apenas um poder do tribunal de primeira instância. É um dever tributário do princípio da economia processual.”.
E explanando esta sua afirmação acrescenta o mesmo autor: “É absolutamente despropositado e inaceitável sujeitar os intervenientes processuais a uma actividade instrutória demorada e onerosa – envolvendo testemunhas, peritos e profissionais forenses, por exemplo –, quando o juiz dispõe de total jurisdição (definitiva) para fazer valer a sua abordagem firme e escrupulosa da questão de direito, se para a resolução do caso de acordo com esta abordagem é totalmente irrelevante tal actividade.”.

No caso subjudice o ganho em economia processual – com tudo o que a aplicação de tal princípio determina – não ficou comprometido, porque o estado dos autos comportava o conhecimento do mérito dos embargos no saneador, como bem se decidiu.

5.2. Se as dívidas emergentes dos contratos de mútuo com hipoteca celebrados em 20.10.2004 e em 16.06.2005 (operação PT… e operação PT…) são exigíveis.

A apelante assesta toda a sua argumentação recursiva na suposição de que o Tribunal “a quo” havia considerado não ter ocorrido interpelação do apelado para os efeitos do disposto no art.º 781º do Cód. Civil que rege sobre a perda de benefício do prazo (para o mutuário) em consequência do não pagamento de uma das prestações do capital (mutuado).
Tal disposição confere ao credor o direito de exigir de imediato a totalidade do capital (cujo reembolso estava outrora convencionado ser fraccionado em prestações) mas, para tanto, é necessário que tal direito (potestativo) seja pelo mesmo exercido.
Na verdade, o citado normativo ao determinar o vencimento imediato das restantes prestações tem de ser interpretado no sentido de que o inadimplemento do devedor gera o direito do credor de exigir dele a satisfação daquelas prestações e não no sentido de que o não pagamento de uma das prestações no prazo acordado determina, por si só, a entrada em mora do devedor quanto ao cumprimento das demais.
Por isso, querendo exercer tal direito o credor terá de comunicar tal vontade ao devedor, interpelando-o para cumprir a totalidade da obrigação, com exclusão dos juros remuneratórios incorporados nas prestações vincendas.
É que não nos podemos olvidar que o credor pode, ao invés, optar por aguardar pelo decurso temporal convencionado de acordo com o programa contratual inicialmente estabelecido, procedendo então à cobrança da integralidade das prestações em dívida, i.e. incluídos os juros remuneratórios, já que nessa hipótese se mantém a disponibilidade de capital que deverá ser remunerada nos termos ajustados.

Ora, o Tribunal “a quo” entendeu, e bem, que através da comunicação da exequente, ora apelante, de 24.8.2021, a mesma havia exercido o direito ao vencimento antecipado nos termos do art.º 781º do Cód. Civil relativamente a todos os contratos em apreço.

Porém, considerou também, que relativamente aos contratos de mútuo com hipoteca a exequente não teria dado cumprimento ao disposto no D.L. 74-A/2017, de 23.6[2]. e, por isso mesmo, as obrigações por eles tituladas não eram exigíveis.

Cumpre indagar se assim é.

O D.L. n.º 74-A/2017, de 23.6 veio transpor parcialmente[3] para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 2014/17/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Fevereiro de 2014, relativa aos contratos de crédito aos consumidores para imóveis destinados a habitação. Porém, o seu âmbito de aplicação excede o da Directiva, já que para além de abranger o crédito a consumidores para aquisição de imóveis de habitação, nele estão contemplados, também, contratos de crédito a consumidores para a aquisição de imóveis para fins não habitacionais e ainda contratos de crédito que, “independentemente da finalidade, estejam garantidos por hipoteca ou por outra garantia equivalente habitualmente utilizada sobre imóveis, ou garantidos por um direito relativo a imóveis” (artigo 2.º, n.º 1, c) do Decreto-Lei n.º 74-A/2017).

A primeira conclusão a alcançar, perante o vertido supra em 2., é que os mútuos em apreço estão objectivamente abrangidos por este diploma.

E o facto de terem sido celebrados antes da entrada em vigor do mesmo diploma (1.1.2008) não os exclui do âmbito temporal da sua aplicação por via do disposto no art.º 12º do Código Civil.

Como proficientemente se refere no Ac. do STJ de 30.11.2021: “De acordo com o art. 12.º, n.º 1, a lei só dispõe para o futuro, quando lhe não seja atribuída eficácia retroativa pelo legislador. Mas mesmo quando o legislador confere eficácia retroativa à lei nova, presumem-se ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
Por seu turno, o art. 12.º, n.º 2, distingue entre as leis ou normas que dispõem sobre os requisitos de validade – formal e substancial - de quaisquer factos jurídicos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (1.ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2.ª parte). Enquanto as primeiras apenas se aplicam a factos novos, as segundas aplicam-se a situações jurídicas constituídas antes da entrada em vigor da lei nova, mas que subsistem nessa data. Além disso, a lei nova pode regular o conteúdo das relações jurídicas atendendo aos factos que lhes deram origem, que é o que se verifica no domínio dos contratos, via de regra, quando as disposições da lei nova se revistam de natureza supletiva ou interpretativa e, por isso, não se lhes aplicando.
O “estatuto do contrato” (da autonomia privada) é determinado perante a lei vigente ao tempo da sua celebração. Todavia, a lei nova que, inter alia, respeite à organização da economia ou vise a tutela da parte mais vulnerável, limita o domínio da autonomia da vontade e será de aplicação imediata.”

Ora, “o artigo 35.º do Decreto-Lei 74-A/2017 determina a imperatividade do regime. O consumidor não pode renunciar aos direitos que lhe são conferidos pelo Decreto-Lei, sendo nula qualquer convenção que os exclua ou restrinja. Caso tal aconteça, o consumidor pode optar pela manutenção do contrato de crédito mesmo que algumas das suas cláusulas sejam nulas, passando a vigorar, na parte afetada, as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras da integração dos negócios jurídicos. Se esta faculdade não for exercida, ou sendo-o, conduzir a um desequilíbrio das prestações gravemente atentatório da boa fé, vigora o regime da redução dos negócios jurídicos[4].”.

Tendo as disposições de tal diploma natureza imperativa, não podem, por via do disposto no 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do Cód. Civil deixar de aplicar-se imediatamente às relações jurídicas por ele abrangidas que subsistam à data do seu início de vigência, na medida em que tais normas contendem com o conteúdo de relações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem.

Ora, no que concerne ao “Incumprimento do contrato de crédito” dispõe o art.º 27º do diploma em análise o seguinte:
“1 - Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o mutuante só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se cumulativamente ocorrerem as circunstâncias seguintes:
a) A falta de pagamento de três prestações sucessivas;
b) A concessão, pelo mutuante, de um prazo suplementar mínimo de 30 dias para que o consumidor proceda ao pagamento das prestações em atraso, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato, sem que este o faça.
2 - O incumprimento parcial da prestação não é considerado para os efeitos previstos no número anterior, desde que o consumidor proceda ao pagamento do montante em falta e dos juros de mora eventualmente devidos até ao momento da prestação seguinte.

Por conseguinte, “em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, determina o artigo 27.º que o mutuante só pode invocar a perda do benefício do prazo (nos termos do artigo 781.º do Código Civil) ou a resolução do contrato (nos termos do artigo 801.º, n.º 2) se, cumulativamente, ocorrer a falta de pagamento de três prestações sucessivas e a concessão, pelo mutuante, de um prazo suplementar mínimo de 30 dias para que o consumidor proceda ao pagamento das prestações em atraso, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato, sem que este o faça”[5].

A missiva de 24.8.2021 não respeita os requisitos estabelecidos no citado art.º 27º para que o exequente possa invocar a perda do benefício do prazo: nem sequer lhe concedeu um prazo suplementar mínimo de 30 dias para que o executado procedesse ao pagamento das prestações em atraso; concede-lhe o “prazo de 10 dias para proceder à regularização dos valores vencidos, reservando-se a Caixa Geral de Depósitos, sem mais aviso, proceder à cobrança judicial da totalidade do seu crédito”,

Tal norma é, aliás como todo o regime, imperativa.

Estando-lhe vedado invocar a perda do benefício do prazo, não poderia a exequente, ora apelante, exigir na presente execução a totalidade do capital em dívida referente a estes dois mútuos.

A exigibilidade é um dos requisitos da obrigação exequenda – cfr. art.º713ºdo CPC – o que significa que só se pode executar uma obrigação que se encontre vencida ou que seja passível de ser vencer mediante simples interpelação do devedor, sendo que neste caso a sua citação equivale a interpelação judicial (art.º 805º nº1 do Cód. Civil) vencendo-se a obrigação no momento da citação.

No caso, o credor, o Banco exequente, no requerimento executivo manifestou a sua vontade de exigir ao devedor a totalidade do capital em dívida.

Porém, a obrigação em causa não é passível de se vencer mediante simples interpelação do devedor posto que, como vimos, o citado nº1 do art.º 27º do Decreto-Lei 74-A/2017 condiciona a interpelação admonitória para perda do benefício do prazo à concessão prévia, pelo mutuante, de um prazo suplementar mínimo de 30 dias para pagamento das prestações em atraso.

Acompanhamos, por isso, a decisão recorrida quando rejeita que “a citação para a execução possa valer como interpelação nos termos do citado preceito legal, dado que não contém os requisitos exigidos, não só porque o prazo é inferior ao legalmente exigido (20 dias) mas ainda porque o exequente limitou-se a indicar no requerimento executivo o valor global em dívida (ainda que discriminado em capital e juros), e não o valor das concretas prestações vencidas à data da instauração”.

Admitir-se tal expediente seria consentir a entrada pela janela do que o Decreto-Lei 74-A/2017 impede pela porta.

Por conseguinte, o crédito reclamado referente aos contratos de mútuo não é exigível nem se tornou exigível com a citação do executado o que significa que falta uma das condições processuais de prosseguimento da acção executiva instaurada.

Não merece, pois, a menor censura o decidido que a extinguiu relativamente aos mútuos em causa.

III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a presente apelação e, em consequência, manter a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Évora, 25 de Janeiro de 2023
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente

__________________________________________________
[1] In “ Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito” in Julgar Online, outubro de 2019, pag. 11
[2] Que contempla o “REGIME DOS CONTRATOS DE CRÉDITO RELATIVOS A IMÓVEIS”.
[3] De facto, a Directiva 2014/17/UE foi transposta para o direito português através de dois diplomas: pelo Decreto-Lei n.º 81-C/2017, de 7 de julho, que regula as atividades de intermediação de crédito e de prestação de serviços de consultoria e pelo que estamos a analisar, o D.L.nº 74-A/2017.
[4] Sandra Passinhas in “O NOVO REGIME DO CRÉDITO AOS CONSUMIDORES PARA IMÓVEIS DE HABITAÇÃO, consultável em https://www.fd.uc.pt/~sandrap/pdfs/edc14.pdf
[5] Idem, Sandra Passinhas in “ O NOVO REGIME DO CRÉDITO AOS CONSUMIDORES PARA IMÓVEIS DE HABITAÇÃO” consultável em https://www.fd.uc.pt/~sandrap/pdfs/edc14.pdf