PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
AUDIÊNCIA PRÉVIA
CASO JULGADO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
Sumário


I - O princípio do contraditório tem evoluído para uma visão mais ampla, abrangendo o direito de influenciar a decisão, desde há muito sufragada pelo Tribunal Constitucional, e observada em inúmeros arestos dos tribunais superiores, mesmo quanto a questão de direito, quando a decisão seja baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
II – Pode, porém, ser afastado relativamente a questões cuja decisão não tenha, ainda que reflexamente, qualquer repercussão sobre o desenvolvimento da instância e consequentemente sobre a decisão do litígio, ou seja, quando se verifique a “manifesta desnecessidade” da sua observância.
III – O caso em presença, é exemplo óbvio da dita “manifesta desnecessidade”, porque a questão que motivou a audição prévia é a mesma que justificou a decisão: a preclusão do direito que a Autora pretende ver reconhecido por via da presente ação, por não ter sido invocado anteriormente, quando devia ter sido convocado, pelo que, não se verifica a invocada violação do princípio do contraditório, não configurando decisão-surpresa o facto de o tribunal ter considerado na decisão recorrida que a preclusão se verificara, mas em momento posterior àquele que havia referido na notificação.
IV – Tendo sido reconhecido o direito de propriedade sobre um imóvel e decretada a sua peticionada entrega, existe caso julgado relativamente a este segmento da decisão proferida, confirmada pelo acórdão desta Relação que julgou improcedente a pretensão das RR. de se oporem à restituição do prédio dos AA.
V – Acresce que, quanto à decisão da decretada entrega, não pode igualmente a Autora vir agora esgrimir com a existência de um contrato de arrendamento escrito, porque a tal obsta, não o caso julgado, que não abrange factos que não hajam sido alegados num processo anterior, mas os efeitos da preclusão, que pode atuar independentemente do caso julgado e, consequentemente, também independentemente da verificação daquela tríplice identidade.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Processo n.º 2444/20.2T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal[1]

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. AA, Autora no processo acima identificado, notificada do despacho saneador-sentença que absolveu da instância os Réus BB e CC[3], e não se conformando com tal decisão, apelou, formulando as seguintes conclusões:
«a) O Tribunal a quo proferiu uma decisão-surpresa, porquanto é incontroverso que as partes não foram previamente notificadas da possibilidade do Tribunal decidir com base nestes outros fundamentos: preclusão do direito invocado pela Autora, pela sua não dedução na contestação apresentada no processo n.º 1348/12.7TBSTB (primeiro processo) e a conclusão que esta ação não é o meio idóneo para que a A. logre uma decisão obstativa da eficácia de uma outra decisão transitada em julgado, o que é impeditivo ao conhecimento do mérito, pois o facto impeditivo da obrigação declarada por sentença só poderá / poderia ser deduzido em sede de oposição à execução e não num outro processo qualquer (vd. art.º 729, al. g), do CPC).
b) Com a notificação do despacho de 18-02-2022, o Tribunal a quo deu oportunidades às partes para se pronunciarem apenas sobre o seguinte: o facto de o argumento da A. de que só posteriormente ao trânsito em julgado da decisão proferida no pº que correu termos no Juízo Central Cível – J2, sob o n º 1348/12.7, é que teve conhecimento da existência do contrato de arrendamento escrito que apresentou, só poder ser invocado em sede de recurso de revisão, nos termos do disposto no artº 696º, al. c) do CPC, a ser apresentado junto do processo onde foi proferida a decisão já transitada em julgado.
c) Proferida decisão-surpresa, com violação do princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído no art. 3º, nº 3, do CPC, incorre-se numa nulidade da própria decisão por excesso de pronúncia, nos termos do disposto nos art.s 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º, todos do CPC.
d) Nulidade que se invoca, desde já, para todos os efeitos legais.
e) O Tribunal a quo violou de forma clara a lei processual, por erro de interpretação e de aplicação de determinados preceitos legais e de determinados princípios, nomeadamente dos constantes nos art.ºs 564º, al. c), 573º, 576º, n.º 2, 729º, al. g), 728º e ss., todos do CPC, e do Princípio da preclusão e concentração dos meios de defesa.
f) As ações de simples apreciação são meios de tutela de direitos em que não é posta em causa a sua violação, quer efetiva, quer receada. Versam, pois, situações em que se visa, apenas, a certificação do direito. Nas ações de simples apreciação, a apreciação é o fim único da atividade jurisdicional (sublinhado e negrito nossos) (Artur Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, 1981, pp. 126 – 127).
g) Dos autos resulta que a Recorrente intentou uma ação de simples apreciação sob a forma positiva, visando obter unicamente a declaração da existência de um facto, consistente no contrato de arrendamento rural sobre o prédio misto de que os Recorridos são os proprietários.
h) A presente ação é apenas uma ação de simples apreciação positiva, que tem como único objetivo pôr termo a uma situação de incerteza quanto à existência ou inexistência do contrato de arrendamento.
i) A presente ação tem como causa de pedir o Contrato de Arrendamento Rural em vigor entre a Autora e os Réus (pelo menos desde data anterior a 1960), o qual não foi objeto de discussão, nem de facto nem de direito, no Proc. n.º 1348/12.7, apesar de aí ter sido reconhecido e aceite por ambas as partes (cfr. n.ºs 4 e 6 dos Factos Provados, in Douta Decisão Recorrida).
j) Com a instauração dos presentes autos a Autora pretende obter unicamente uma decisão judicial de reconhecimento da validade e vigência do Contrato de Arrendamento em causa.
k) O reconhecimento da existência e validade do referido contrato, depende, desde logo, da existência e da exibição do respetivo contrato escrito.
l) A alegação da existência e validade do contrato de arrendamento rural deve ser acompanhada de um exemplar escrito do contrato, sob pena de extinção da instância nessa parte (cfr. art.º 35º, n.º 5 do RAR).
m) Só após a localização do Contrato de Arrendamento escrito (o que aconteceu posteriormente ao transito em julgado da sentença proferida no Proc. n.º 1348/12.7) foi possível invocar a sua existência, validade e vigência.
n) O reconhecimento da existência, validade e vigência do Contrato de Arrendamento em causa não obsta em nada ao efeito da decisão proferida no âmbito do Proc. n.º 1348/12.7, pois em nada colide com o reconhecimento dos ora Réus (então Autores) como os únicos e exclusivos proprietários da Quinta ....
o) A decisão tomada no Processo n.º 1348/12.7 não poderá ser diretamente afetada por qualquer decisão que venha a ser tomada nos presentes autos, sendo imutável relativamente a esta.
p) O referido processo teve como causa de pedir a escritura pública de justificação notarial por usucapião, celebrada pelas então Rés (ora Autora) e junta à p.i. dos referidos autos como Doc. 1 (cfr. Certidão Judicial com o Código de Acesso: ..., junta aos autos com o Requerimento com a Ref.ª 39136923, em 11.06.2021).
q) No Processo n.º 1348/12.7 TBSTB (Ação de Impugnação de Justificação Notarial por Usucapião) discutiu-se, pois, exclusivamente o direito de propriedade sobre a Quinta em causa, a Quinta ..., tendo o Tribunal decidido que os então Autores eram os seus únicos e exclusivos proprietários.
r) No Processo n.º 1348/12.7 TBSTB não se discutiu nem se analisou, nem tinha que se discutir e analisar, o contrato de arrendamento existente e em vigor entre a ora Autora (Ré no Proc. n.º 1348) e os ora Réus (Autores no Proc. n.º 1348), já que se tratava exclusivamente de uma ação de justificação notarial por usucapião, estando apenas em causa o direito de propriedade sobre o prédio.
s) A sentença proferida no Proc. n.º 1348/12.7, que reconheceu os ora Réus como únicos e exclusivos proprietários do prédio em causa, não deixará, pois, de produzir os seus efeitos após ser proferida decisão nos presentes autos de reconhecimento da existência, validade e vigência do Contrato de Arrendamento em causa (cujo respetivo documento escrito só foi localizado posteriormente ao transito em julgado da sentença proferida no Proc. n.º 1348/12.7).
t) Os processos em causa são totalmente distintos, têm pedidos, causas de pedir e efeitos jurídicos distintos, pelo que os efeitos jurídicos da decisão a proferir nos presentes autos não impede nem obsta aos efeitos jurídicos da decisão que foi proferida no Proc. n.º 1348/12.7.
u) Com a instauração dos presentes autos, onde é junto o Contrato de Arrendamento escrito e invocado que o mesmo só foi localizado/obtido e conhecido posteriormente ao trânsito em julgado da decisão proferida no Proc. n.º 1348/12.7, a Autora (ora Recorrente) pretende apenas e só o reconhecimento da existência, validade e vigência do referido contrato.
v) A presente ação não representa uma reação da Autora, ora Recorrente, à execução contra si instaurada, pelos ora Réus e Recorridos, com base na sentença proferida no Processo n.º 1348/12.7TBSTB.
w) Não tem qualquer razão o Tribunal a quo quando conclui que o seguinte: “Mas ainda assim, estando em causa um facto extintivo da obrigação declarada por sentença, o mesmo só poderá / poderia … ser deduzido em sede de oposição à execução e não num outro processo qualquer …”
x) O Tribunal a quo acaba por concluir, e bem, que dos autos não constam elementos que permitam concluir pela preclusão do direito da Autora.
y) De acordo com o estabelecido no art.º 573º do CPC, na contestação devem ser esgotados todos os argumentos de defesa de que se dispunha àquele momento, ficando-se impedido de invocar, mais tarde, no próprio ou noutro processo, meios de defesa que tenham sido omitidos na contestação (sublinhado e negrito nossos).
z) No caso concreto, aquando da contestação deduzida no Processo n.º 1348/12.7TBSTB a Recorrente não dispunha nem tinha conhecimento do Contrato de Arrendamento Rural escrito, pelo que não o omitiu voluntariamente no primeiro processo. Só em momento posterior é que a Recorrente obteve e teve conhecimento do Contrato de Arrendamento Rural escrito. À data da apresentação da contestação no Processo n.º 1348/12.7 TBSTB, a Recorrente (então Ré) desconhecia e não tinha ao seu alcance um exemplar escrito do referido contrato de arrendamento.
aa) Tendo em conta o pedido deduzido na p.i. do Processo n.º 1348/12.7 TBSTB, não era relevante para a defesa da então Ré a alegação da existência e validade do contrato de arrendamento em causa (vd. Blog do IPPC (https://blogippc.blogspot.pt/), Paper 199, de 03.05.2016, pág. 3, sob o título “Preclusão e caso julgado”, do Professor Teixeira de Sousa).
bb) Como é reconhecido na Douta Sentença Recorrida, “não está verificada a exceção de caso julgado: quer na vertente negativa, de restrição à posterior apreciação dos fundamentos ali invocados (no primeiro processo), quer na vertente positiva, de imposição da decisão ali proferida.” Por conseguinte, não se mostra impedido o prosseguimento da presente ação, por via da autoridade de caso julgado projetada pela decisão transitada em julgado na primeira ação (Processo n.º 1348/12.7 TBSTB).
cc) Contrariamente ao concluído pelo Tribunal a quo, na situação em apreço a existência e validade do contrato de arrendamento não teria que ter sido excecionada na contestação à ação n.º 1348/12.7 TBSTB, até porque a então Ré não disponha de um exemplar escrito do contrato para juntar à dita contestação.
dd) Com os presentes autos, a Autora, ora Recorrente, pretende obter unicamente uma decisão judicial de reconhecimento da existência, validade e vigência do Contrato de Arrendamento Rural em causa. Pelo que, a presente ação é o meio idóneo para que a Autora logre obter a referida decisão judicial de reconhecimento.
ee) A presente ação não corresponde à oposição à execução por embargos. A oposição à execução por embargos será deduzir no âmbito do processo executivo n.º 4420/19.9 T8STB, a correr termos pelo Juiz 2 do Juízo de Execução de Setúbal, Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, logo que a Recorrente seja citada para o efeito (cfr. Doc. 13 junto à p.i.).
ff) A presente ação é, pois, o meio idóneo para apreciar e decidir o pedido deduzido na p.i. pela Autora.
gg) Não se verifica qualquer exceção dilatória inominada que obste ao conhecimento do mérito dos presentes autos.
hh) In casu, não se verifica a violação do Princípio da Preclusão e da Concentração da Defesa consagrado no art.º 573º do CPC, nem se verifica a exceção dilatória inominada invocada pelo Tribunal a quo na Douta Decisão Recorrida, pois com a presente ação a Autora logra obter unicamente uma decisão judicial de reconhecimento da existência, validade e vigência do Contrato de Arrendamento Rural junto à p.i..
ii) O Tribunal a quo errou na interpretação e aplicação dos art.ºs 564º, al. c), 573º, 576º, n.º 2, 729º, al. g), 728º e ss., todos do CPC, bem como do Princípio Preclusão e Concentração da Defesa».

2. Os Réus não apresentaram contra-alegações.

3. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, as únicas questões a apreciar no presente recurso, consistem em saber se a decisão recorrida é nula por excesso de pronúncia, por ter sido proferida com violação do princípio do contraditório; e se enferma de erro de interpretação e de aplicação dos princípios da preclusão e da concentração da defesa.
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III – O mérito do recurso
III.1. – Da nulidade arguida
Como primeiro fundamento do recurso, a Apelante invoca o facto de o Tribunal a quo ter proferido uma decisão-surpresa, em virtude de as partes não terem sido previamente notificadas da possibilidade de o julgador decidir com base nos fundamentos que considerou: a preclusão do direito invocado pela Autora, pela sua não dedução na contestação apresentada no processo n.º 1348/12.7 TBSTB (primeiro processo), e a conclusão que esta ação não é o meio idóneo para que a A. logre uma decisão obstativa da eficácia de uma outra decisão transitada em julgado, o que é impeditivo ao conhecimento do mérito, pois o facto impeditivo da obrigação declarada por sentença só poderia ter sido deduzido em sede de oposição à execução e não num outro processo qualquer (vd. art.º 729, al. g), do CPC).
No despacho em que admitiu o recurso, a Senhora Juíza pronunciou-se nos seguintes termos:
“Nas alegações de recurso a A. invocou a nulidade da sentença, por enfermar do vício previstos no artº 615, nº 1, al. d) e artº 3º, nº 3 do CPC, alegando que se verifica excesso de pronúncia e bem assim por não ter tido oportunidade de se pronunciar sobre o sentido da decisão proferido.
No que concerne ao primeiro segmento, entendemos que apesar de os fundamentos que decretaram a absolvição da instância não terem sido apresentados pelo R., e conforme é referido na última parte da decisão, os mesmos integram uma exceção dilatória inominada que é de conhecimento oficioso.
No que respeita à circunstância de a decisão ter sido uma surpresa, salienta-se que na audiência prévia que ocorreu em 21.12.2021 e no despacho aí proferido (fls. 360), foi referido que se equacionava ser possível verificar-se a exceção da preclusão do direito à invocação do contrato de arrendamento, pela sua não dedução como matéria de exceção na contestação apresentada no referido processo.
É certo que o sentido da decisão foi de preclusão do direito por se entender que o mesmo deveria ter sido invocado na oposição à execução, e não na contestação da ação, mas ainda estamos no âmbito da preclusão do direito, pelo que se entende que inexistem os vícios indicados”.
Vejamos.
Dispõe o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, que «[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
O princípio do contraditório consagrado neste preceito da codificação processual civil, postulado pelo direito a um processo equitativo que decorre do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, é um princípio estruturante e basilar que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, encontrando-se intimamente ligado ao princípio da igualdade das partes previsto no artigo 4.º do CPC, derivando aquele deste. Por seu turno, «ambos os princípios, assim conexionados, derivam em última instância, do princípio do Estado de direito», encerrando «uma particular garantia de imparcialidade do tribunal perante as partes»[5].
«Segundo o Tribunal Constitucional, do conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta, prima facie, que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes do tribunal decidir questões que lhe digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de uma e de outras (Acórdãos nºs 1185/96 e 1193/96)»[6].
Deste modo, «no plano das questões de direito, é expressamente proibida, desde a revisão de 1995-1996 do CPC de 1961, a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes. Esta vertente do princípio do contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado».
Assim, «antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso)», sendo que «a omissão do convite às partes para tomarem posição sobre a questão oficiosamente levantada gera nulidade, a apreciar nos termos gerais do art. 195»[7].
Porém, nos casos em que tal nulidade processual decorrente da violação do princípio do contraditório se encontra coberta por uma decisão judicial que admite recurso, aquela é consumida pela nulidade da sentença por excesso de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, porquanto, sem a prévia audição das partes, o tribunal conhece de questão que não podia conhecer, por outras palavras, “o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão”.
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA tem reiteradamente enfatizado que «o vício decorrente da falta da audição prévia das partes é – como é indiscutível e indiscutido – o proferimento de uma decisão-surpresa; há, assim, uma decisão-surpresa, mas não uma "nulidade-surpresa"; basta este aspecto linguístico para justificar que o vício não é a nulidade processual, mas antes a decisão-surpresa; esta expressão indicia um desvalor da decisão, pelo que não é compreensível desconhecer este desvalor e recorrer ao da nulidade processual (e menos ainda pretender duplicar o desvalor da decisão-surpresa com o da nulidade processual); acresce que o CPC trata diferentemente as nulidades processuais (arts. 186.º ss.) e as nulidades da decisão (arts. 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º), pelo que fica por justificar como é que, contra a sistemática do CPC, uma decisão viciada é uma nulidade processual; O objecto do recurso é (sempre) uma decisão (não pode ser outra coisa); há uma decisão recorrida, mas não uma "nulidade recorrida"; logo, o objecto do recurso é a decisão-surpresa, o que significa que o recorrente tem de fundamentar a interposição do recurso num vício dessa decisão; em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia, dado que conhece de matéria que, perante a omissão da audição das partes, não podia conhecer (arts. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC)»[8].
Na espécie, verificamos que na petição inicial com que introduziu o feito em juízo, a Autora pediu que seja declarada a existência, validade, e vigência, do contrato de arrendamento rural do prédio misto designado Quinta ..., que identificou, e que seja declarado que ao referido contrato, se aplica o regime jurídico do arrendamento rural.
Por seu turno os Réus, na respetiva contestação, invocaram a exceção de caso julgado, aduzindo que, no âmbito do processo n.º 134/12.7TBSTB, a ora Autora, ali Ré, invocou a existência de um arrendamento verbal, que não foi reconhecido.
Em 18.02.2022, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Ao elaborar o despacho saneador e na correlação dos argumentos apresentados, com o respetivo enquadramento jurídico, verifico que existe exceção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa (artº 576º, nº 2 do CPC) e que consiste no facto de o argumento da A. de que só posteriormente ao trânsito em julgado da decisão proferida no pº que correu termos no Juízo Central Cível – J2, sob o n º 1348/12.7, é que teve conhecimento da existência do contrato de arrendamento escrito que apresentou, só poder ser invocado em sede de recurso de revisão, nos termos do disposto no artº 696º, al. c) do CPC, a ser apresentado junto do processo onde foi proferida a decisão já transitada em julgado.
É que uma exceção com virtualidade a obstar ao efeito de uma decisão transitada em julgado, não pode ser conhecida fora do processo onde tal decisão foi exarada.
Mas as partes não tiveram oportunidade de se pronunciar a este propósito, pelo que é necessário dar-lhes a oportunidade de o fazerem.”
Diz a Recorrente que o Tribunal a quo apenas deu a oportunidade de as partes se pronunciarem a este respeito.
Porém, tal afirmação não corresponde ao que os autos espelham, só por desatenção se compreendendo a arguição da violação do princípio do contraditório.
Efetivamente, na primeira data designada para a audiência prévia, que teve lugar no dia 21.12.2021, na presença dos Ilustres mandatários de ambas as partes, a Senhora Juíza proferiu o seguinte despacho:
“Sem prejuízo de entendimento diverso face à junção de certidão dos documentos para que remetem os factos provados da decisão proferida no processo nº 1348/12.7TBSTB, por que se irá diligenciar, entende-se não se verificar nos presentes autos a exceção do caso julgado invocada, quer na sua vertente negativa quer positiva.
Equaciona-se, contudo, ser possível verificar-se a exceção da preclusão do direito à invocação do contrato de arrendamento, pela sua não dedução como matéria de exceção na contestação apresentada no referido processo, perspetivando-se duas possibilidades nesta sede: ou o conhecimento imediato da exceção, ou a necessidade de produção de prova a tal propósito em ordem a apurar a superveniência do conhecimento pela A. do contrato de arrendamento vertido nos documentos junto a fls. 351 a 355 e bem assim do momento em que este veio à sua posse.
Dando desde já a possibilidade aos Ilustres Mandatários, designadamente à Ilustre Mandatária da A., para se pronunciar a este propósito”.
Portanto, na audiência prévia, as partes – e concretamente a Ilustre Mandatária da Autora, ora Recorrente –, foram notificadas não só de que o tribunal entendia não se verificar a arguida exceção de caso julgado, como equacionava a possibilidade de verificação da preclusão do direito da Autora à invocação do contrato de arrendamento, caso a julgadora viesse a verificar que a mesma não tinha efetuado tal alegação na contestação apresentada no referido processo.
Ora, pese embora a decisão se tenha reportado à preclusão do direito, por referência a momento processual diverso do mencionado na notificação, considerando agora o tribunal a quo que o contrato cuja existência se pretende ver declarada por via desta ação, devia ter sido invocado na oposição à execução, e não na contestação da ação, como referira na notificação efetuada na audiência prévia, a verdade é que as partes, e concretamente a Autora, foram notificadas para se pronunciarem sobre a possibilidade de o tribunal decidir que o direito da Autora a invocar o contrato de arrendamento, mais precisamente, atento o pedido formulado, a ver reconhecida a sua existência, se encontrava precludido por não ter sido invocado em ação anterior.
Como é sabido, o princípio do contraditório «é hoje entendido como a garantia dada à parte de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussão no objecto da causa»[9].
Dando nota da evolução do princípio do contraditório no sentido desta visão mais ampla, abrangendo o direito de influenciar a decisão, como desde há muito vem sendo sufragado pelo Tribunal Constitucional, LEBRE DE FREITAS[10] salienta que à conceção tradicional do contraditório enquanto garantia do desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações das partes, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, «entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo fundamental do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia para passar a ser a influência no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo».
Esta visão ampla do princípio do contraditório tem sido acolhida e observada em inúmeros arestos dos tribunais superiores[11], mesmo quanto a questão de direito, quando a decisão seja baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
Acontece que, na situação presente, o tribunal deu às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a hipótese, por si colocada, de considerar que havia preclusão do direito de invocação do contrato de arrendamento porque o mesmo devia ter sido convocado aquando da contestação da ação. Como se afigura evidente, a determinação desta notificação para que as partes, e concretamente a autora, se pronunciassem sobre a possível preclusão decorrente da não invocação da existência do contrato de arrendamento em momento anterior do litígio que as mesmas têm mantido a respeito do imóvel em causa, tornou manifestamente desnecessária uma nova notificação, desta feita para se pronunciarem sobre a verificação da preclusão em virtude de a Autora não ter invocado a existência do contrato aquando da oposição à execução.
Com efeito, sendo pacífico que a lei impõe que a desnecessidade da audição seja manifesta, indicando portanto, que o princípio do contraditório deve ser cumprido mesmo quando possa apresentar-se aparentemente como desnecessária a audição, só podendo ser afastado relativamente a questões cuja decisão não tenha, ainda que reflexamente, qualquer repercussão sobre o desenvolvimento da instância e consequentemente sobre a decisão do litígio, como se afirmou no Acórdão deste Tribunal da Relação de 28.03.2019[12] impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” tendo presente que casos existem em que, não obstante se tratar de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, estas tinham obrigação de prever que o tribunal podia decidir tais questões em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que se não as suscitaram e não cuidaram em as discutir no processo, sibi imputet, não podendo razoavelmente considerar-se que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configure uma decisão-surpresa”.
O caso em presença é exemplo óbvio da dita “manifesta desnecessidade”. A questão que motivou a audição prévia é a mesma que justificou a decisão: a preclusão do direito que a Autora pretende ver reconhecido por via da presente ação, por não ter sido invocado anteriormente, quando devia ter sido convocado.
Estamos, portanto, perante uma situação em que uma nova audição se configuraria como um verdadeiro ato inútil, não consentido por lei (artigo 130.º do CPC).
Portanto, sendo a preclusão o fundamento da notificação efetuada, e tendo a Autora sido notificada para se pronunciar a tal respeito, não se verifica a invocada violação do princípio do contraditório, não configurando decisão-surpresa o facto de o tribunal ter considerado na decisão recorrida que a preclusão se verificara, mas em momento posterior àquele que havia referido na notificação.
Pelo exposto, improcede a arguida violação do princípio do contraditório, e consequentemente a nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia.
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III.2. – Da preclusão
O segundo fundamento do presente recurso, consiste na invocação pela Apelante de que o Tribunal a quo não fez uma interpretação e aplicação correta das normas legais aplicáveis, tendo violado a lei processual, por erro de interpretação e de aplicação dos preceitos legais que indicou e dos princípios da preclusão e da concentração dos meios de defesa.
Vejamos.
Como se refere no início da decisão recorrida, a exceção de caso julgado foi arguida pelos réus na contestação, aduzindo “que no âmbito do processo 134/12.7TBSTB, a ora A., ali Ré, invocou a existência de um arrendamento verbal que não foi reconhecido”.
Com relevo para a decisão da referida exceção, na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos, com base nas certidões juntas aos autos:
«1 - Correu termos no Juízo Central Cível – J2 sob o n.º 1348/12.7TBSTB, uma ação comum intentada pelos ora RR. contra a ora A. e outra, onde forma deduzidos os seguintes pedidos:
a) Que se considere impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura celebrada no dia 7 de maio de 2010, publicada no dia 20 de maio de 2010, referente à invocada aquisição pelas RR. (ora A.), por usucapião, do indicado prédio misto…;
b) Que se declare a ineficácia da escritura de justificação notarial, não podendo a mesma produzir quaisquer efeitos, por as RR., não terem adquirido o identificado prédio misto por usucapião, e por forma a que as RR. não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o indicado prédio…;
c) Que se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados a favor das RR. com base na escritura aqui impugnada;
d) Que se ordene a ineficácia de quaisquer averbamentos de titularidade nas matrizes dos artigos … operadas a favor das RR., com base na escritura aqui impugnada;
e) Que se declare que o indicado prédio misto …, pertence aos AA., por aquisição, por sucessão hereditária;
f) Que se condene as RR. a entregar o prédio às AA. devoluto de pessoas e bens;
g) (…)"
2. Devidamente citadas, as Rés apresentaram articulado de contestação no qual arguíram a exceção da ineptidão da petição inicial por ocorrer contradição entre o pedido e a causa de pedir, pois os AA. aludem a um contrato de arrendamento mas não pedem a sua resolução e pedem a entrega do prédio livre e devoluto de pessoas e bens. Por impugnação referem, em síntese, que, em data anterior a 1962, o prédio foi entregue a DD[13] ... na sequência de um acordo verbal e com vista à celebração de um contrato de arrendamento escrito que nunca chegaram a celebrar, porquanto, em janeiro de 1962, EE e FF, que viviam na Alemanha e não pretendiam regressar a Portugal, venderam verbalmente o prédio a DD e mulher a ora Ré AA, tendo recebido o preço. E, desde então, o DD e mulher a ora Ré AA, passaram a utilizar o prédio em questão, ininterruptamente, à vista de todos, de forma pública, pacífica, sem oposição de ninguém, sempre convictos que eram os donos que não lesavam direitos de terceiros, sendo reconhecidos como donos por toda a gente.
3. Em reconvenção alegaram, em síntese, que, desde 1962, tem sido o DD e as Rés a manter, conservar o prédio, procederam a várias obras de reparação e ampliação que descriminam suportando o respetivo custo no valor total de 182.555,28€. Tratando-se de benfeitorias necessárias e úteis que não podem ser levantadas sem detrimento do imóvel, tem direito a ser ressarcidas do valor despendido e ainda da valorização do prédio no valor de €150.000,00, em consequência da incorporação das referidas benfeitorias.
4. Na Réplica apresentada os então AA. (ora RR.) requereram a ampliação do pedido nos seguintes termos: “Que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento em incumprimento por mora superior a três meses no pagamento da renda e por realização de obras ilícitas que, pela sua gravidade e consequências, torna inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”.
5. Essa ampliação não foi conhecida.
6. Por requerimento junto aos autos, na véspera da audiência de julgamento, vieram as Rés reconhecer que o prédio denominado Quinta foi dado de arrendamento verbal a DD.
7. Na ponderação dos seguintes factos provados: (…)
7 – Em data anterior a 1960, EE e FF, celebraram um acordo verbal com DD nos termos do qual cederam, para exploração agrícola e agro pecuária, o prédio identificado no ponto 1) mediante o pagamento de uma retribuição anual de 10.000$00.
8 – EE e FF eram filhos de GG a qual, por sua vez, era filha de HH.
9 – No dia 29 de junho de 1960, FF, na qualidade de cabeça de casal da herança indivisa de GG, requereu no Tribunal Judicial de Setúbal a notificação judicial avulsa de, entre outros, DD nos termos constantes do documento n.º 5, junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido, interpelando-o para, a partir de junho de 1960, proceder ao depósito na Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Providência, Delegação de Setúbal, das rendas da propriedade que explorava, pertencente a herdeiros de HH, pois, até aí, era o irmão, EE, que se apresentava a cobrar, receber e dar quitação das rendas, mas não era cabeça de casal da herança aberta por óbito de HH e seus sucessores.
10 - A notificação para o referido fim foi levada, com êxito. (…)
14 – Em novembro de 1994, DD dirigiu a FF a carta junta com a petição inicial como documento n.º 9, cujo teor aqui se dá por reproduzido, nos termos da qual consta, além do mais, que “que no dia 09/11/94, depositei no Banco Português do Atlântico a importância de quarenta mil escudos (conforme fotocopia em anexo) referente ao pagamento de quatro anos de rendas (…) Sr. FF junto anexo um impresso da Direção Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais para o Sr. Assinar, pois todas as pessoas que tenham um poço ou furo estão obrigados a registá-los (…)”.
15 – No impresso comprovativo do depósito das rendas, a que se alude na missiva referida no ponto 14), junto com a petição inicial como documento n.º 9, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, consta na parte inferior na referência o ordenante a assinatura de II.(…)
17 – A partir do ano de 1994 o DD deixou de pagar a renda anual nos moldes acordados de 10.000$00, hoje equivalente a €50,00.
18 – No dia 25 de março de 2011, os Autores desconhecendo a escritura de justificação notarial celebrada pelas Rés, enviaram, através do seu representante em Portugal, JJ, a carta junta com a petição inicial como doc. N.º 19, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida, intimando as Rés a entregar o prédio com fundamento na falta de pagamento das rendas.
19 – No dia 20 de outubro de 2011, os Autores enviaram, através do seu representante em Portugal, JJ, nova carta junta com a petição inicial como doc. N.º 23, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida solicitando, mais uma vez, a entrega do prédio livre e devoluto de pessoas e bens, com fundamento na falta de pagamento das rendas.
20 – As Rés responderam a estas cartas, nos termos constantes do documento de fls. 20 e 27, cujo teor aqui se dá por reproduzido, sem terem questionado a denúncia e a qualidade de proprietário invocada pela herança aberta por óbito de FF. (…)
27 – No âmbito do acordo a que se alude no ponto 7), o DD ocupou a parte urbana do referido prédio para habitação.
28 – Nessa habitação o DD e mulher a ora Ré AA acolheram o agregado familiar da ora Ré II.
29 – A parte rústica destinou a exploração agrícola e agro-pecuária, nela cultivou os produtos agrícolas tradicionais que vendia no mercado e criou gado bovino destinado à produção de leite, ovinos e suínos.
30 – No prédio identificado no ponto 1) já não se faz qualquer atividade agrícola ou agro-pecuária.
31 – As instalações e edifícios de apoio à atividade agrícola ou agro-pecuária não estão em funcionamento e estão desativados há algum tempo.
32 – Em data não concretamente apurada DD e mulher AA procederam a reparação do telhado da moradia.
33 – Em data na concretamente apurada DD e mulher AA realizaram obras de modificação e ampliação na moradia ao nível da construção de uma casa de banho, incluindo o fornecimento e aplicação das loiças e torneiras, de um quarto e do corredor da entrada.
34 – Desde o ano de 1962, que o DD e, posteriormente, as Rés AA e II cederam o gozo da construção denominada casa velha a terceiros, mediante o pagamento de contrapartida monetária fazendo seus esses rendimentos.
35 – Em data não concretamente apurada o DD e mulher procederam a obras na denominada casa velha que consistiram na construção de uma casa de banho, que não possuía, instalação da rede elétrica, substituição de janelas, vigamento de suporte do piso para permitir a utilização por terceiros.
36 – Nesses trabalhos despenderam quantia não concretamente apurada mas os mesmos foram avaliados em €8.566,44.
37 – Após o óbito de DD e depois da atuação levada a cabo pela Ré AA a que se alude em 3), as Rés AA e II decidiram levar a efeito obras de demolição do edifício da moradia, nada restando do mesmo para além das paredes exteriores.
38 – A moradia de construção antiga, com estrutura em madeira, incluindo pisos, tectos e telhado, paredes interiores em tabique e areia, janelas e portas em madeira, sofreu desgaste com o passar dos anos.
39 – Foram as Rés AA e II que decidiram quais as obras a ser efetuadas e realizadas no seu interesse.
40 – Ambas as Rés contribuíram financeiramente para a realização da obra de reconstrução da moradia.
41 – A moradia era um edifício de 90 m2, atualmente, apresenta uma área de 115 m2 ao nível do rés-do-chão e de 90m2 ao nível da cave, correspondendo a área de construção de 205 m2.
8 – Foi proferida decisão com o seguinte teor:
a) Declarar nula e ineficaz a escritura pública de justificação notarial, celebrada a 7 de maio de 2010, a que se alude no ponto 5 dos factos provados, relativa à aquisição, por usucapião, por parte das Rés do prédio ali identificado.
b) Ordenar o cancelamento dos registos de aquisição a favor das Rés.
c) Declarar a inutilização do artigo matricial do prédio a favor das Rés.
d) Condenar as Rés a reconhecerem os Autores como únicos e exclusivos proprietários, por o terem adquirido por sucessão hereditária, do prédio, com a área de quarenta e um mil seiscentos e vinte cinco metros quadrados, a confrontar do norte, sul e poente com caminho público, e de nascente com KK, LL, MM, NN OO, e antiga Unicervi, prédio misto inscrito na matriz predial rústica sob o art.º ...12 da secção V da freguesia de Palmela e matriz predial urbana sob o art.º ...13 da freguesia de Palmela.
e) Condenar as Rés a entregar o prédio aos Autores livre e devoluto de pessoas e bens.
Declarar improcedente a reconvenção, por não provada e, em consequência, decide-se:
f) Absolver os reconvindos do pedido.
g) Condenar as Rés, como litigantes de má fé, na multa de 8UCS, para cada uma.
9 – Foi interposto recurso para o TRE, o qual não foi provido, antes se tendo mantido a decisão recorrida.
10 - No acórdão proferido no TRE, foi, além do mais referido
"Em sede de alegação de direito, as Recorrentes sustentam que aos AA não assiste o direito à restituição do prédio, pois que à AA assiste o direito de recusar a entrega do imóvel de que é arrendatária.
Alegam que ficou provado o seguinte: - os AA são proprietários e senhorios do imóvel versado nos autos; - a R é arrendatária do imóvel; - entre as partes vigora um contrato de arrendamento rural, que não cessou por denúncia ou resolução. Ora, como se deixou já consignado em sede de questão prévia, a qualidade de arrendatária da AA não foi por esta trazida à liça na contestação apresentada, enquanto exceção à pretensão deduzida pelos AA no âmbito da ação de reivindicação. Extravasa o âmbito da ação, atentos os contornos dados ao litígio pelas partes por via dos articulados apresentados e, bem assim, o âmbito do presente recurso. Para além disso, e como exarado na sentença recorrida, as RR "alegaram expressamente factos incompatíveis com a existência de um contrato de arrendamento (...) Para além de ser imperioso que as RR invocassem, em sede de contestação, a existência e validade do contrato de arrendamento rural, impunha-se ainda que acompanhassem tal alegação de um exemplar escrito do contrato, sob pena de extinção da instância nesse âmbito — cfr art.º 35.º, n.º 5 do RAR...
7- A sentença transitou em julgado em 02-05-2019».
Ponderando o disposto nos artigos 580.º e 581.º do CPC, e convocando os ensinamentos da doutrina a respeito da exceção de caso julgado e da autoridade de caso julgado, o tribunal a quo concluiu que «[n]a situação em análise verifica-se que na decisão invocada como fundamento do caso julgado, não foi apreciado a existência/validade do arrendamento que a A. invoca na presente ação.
E como refere o prof. Antunes Varela (in "Manual de Processo Civil", 2 a ed., p. 307"), o caso julgado consiste "na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário".
Assim sendo, não está verificada a exceção do caso julgado: quer na vertente negativa, de restrição à posterior apreciação dos fundamentos ali invocados, quer na vertente positiva, de imposição da decisão ali proferida.
Não obstante, prosseguiu, afirmando que «[q]uestão distinta é a preclusão do direito invocado pela A, pela sua não dedução na contestação apresentada no processo acima identificado.
É que de acordo com o art.º 573.º do CPC «1. Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado. 2. Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente».
Decorre da enunciada regra que na contestação devem ser esgotados todos os argumentos de defesa de que se dispunha àquele momento, ficando-se impedido de invocar, mais tarde, no próprio ou noutro processo, meios de defesa que tenham sido omitidos na contestação2.
No mesmo sentido pronunciou-se o ac. do TRL, de 27-05-2021, pº n.º 4171/20.1T8LSB.L1-2, em www.dgsi.pt/", nos seguintes termos: "Em analogia com o caso julgado, surge ainda a figura do efeito preclusivo, decorrente das normas constantes dos artigos 564.º, alínea c), e 573.º do CPC, impondo ao demandado o ónus da oportuna dedução de todos os meios de defesa que considere ter ao seu dispor no confronto da pretensão do autor, sob pena de lhe ficar vedada a possibilidade de colocar questões não abordadas e decididas em ações futuras que corram entre as mesmas partes".
Na situação em apreço a existência do contrato de arrendamento deveria ter sido excecionada na contestação àquela ação, como se referiu no excerto da decisão do TRE acima sumariado"».
Pese embora se verifiquem algumas imprecisões, cremos que, com os concretos contornos dos autos a decisão recorrida não merece a censura que lhe é dirigida, porque o caso julgado formado pela decisão proferida no processo n.º 1348/12.7TBSTB, a respeito da entrega do imóvel, preclude a possibilidade de em outro processo se alegarem e demonstrarem novos factos.
Vejamos.
In casu, a referida ação comum, intentada pelos ora Recorridos contra a ora Recorrente e outra, visou impugnar o facto justificado na escritura de justificação notarial celebrada no dia 7 de maio de 2010, publicada no dia 20 de maio de 2010, referente à invocada aquisição pelas RR. (ora A.), por usucapião, do prédio em litígio.
Nessa ação, para além dos pedidos concernentes à impugnação e declaração de ineficácia da referida escritura, para que a mesma não pudesse produzir quaisquer efeitos, por as ali RR. e aqui A., não terem adquirido o identificado prédio misto por usucapião, e por forma a que as RR. não pudessem, através dela, registar quaisquer direitos sobre o indicado prédio, ou fossem os mesmos cancelados, pediram ainda os ali AA., aqui RR.:
«e) Que se declare que o indicado prédio misto …, pertence aos AA., por aquisição, por sucessão hereditária;
f) Que se condene as RR. a entregar o prédio às AA. devoluto de pessoas e bens».
Tendo estes pedidos sido julgados procedentes, o caso julgado assim formado abrange a decisão de entrega, o que significa que a ora A. já não pode opor aos RR., qualquer direito que à mesma possa obstar.
Com efeito, decorre do disposto no artigo 1311.º, n.º 1, do CC, que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
Como resulta da decisão, transitada em julgado, que dirimiu o litígio entre as partes sobre a qual delas pertencia o direito de propriedade que ambas se arrogavam ter sobre o imóvel em questão, os ali AA. e aqui RR., lograram demostrar o seu invocado direito, tendo sido determinada à ali R. e ora A., a consequente restituição do imóvel.
A Autora pretende agora, e por via desta ação, que seja declarada a existência, validade e vigência de um contrato de arrendamento rural sobre o referido imóvel, com a finalidade, declarada no artigo 61.º da petição inicial, “de impedir a entrega da referida Quinta ... aos RR.”, no âmbito do processo executivo n.º 4420/19.9T8STB, dizendo que ainda não foi ali citada mas pretende lá defender-se com base na existência deste contrato, ainda vigente, para que dúvidas não subsistam sobre a validade do mesmo (artigos 58.º e 59.º).
Diz ainda a Recorrente que a existência do contrato de arrendamento não foi apreciada na identificada ação declarativa, nem podia tê-lo sido, pois que só o encontrou em finais de maio/início de junho de 2019, numa arrecadação, mas tal não releva na economia do litígio em questão.
Com efeito, apreciados os fundamentos daquela ação verificamos que os ali AA., visando impugnar a factualidade declarada, também pela ora A., na escritura de justificação notarial, como fundamento para a aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel, por usucapião, invocaram na petição inicial, designadamente o facto que veio a ser dado como provado no transcrito ponto 7, ou seja, que entre os antecessores das partes existiu um acordo verbal, anterior a 1960, nos termos do qual foi efetuada a cedência do prédio em litígio a DD, para exploração agrícola e agropecuária, mediante o pagamento de uma retribuição anual.
Ora, perante esta alegação (subsequentemente demonstrada), as Rés apresentaram articulado de contestação no qual arguíram a exceção da ineptidão da petição inicial por ocorrer contradição entre o pedido e a causa de pedir, pois os AA. aludem a um contrato de arrendamento mas não pedem a sua resolução e pedem a entrega do prédio livre e devoluto de pessoas e bens. Por impugnação referiram, em síntese, que, em data anterior a 1962, o prédio foi entregue a DD na sequência de um acordo verbal e com vista à celebração de um contrato de arrendamento escrito que nunca chegaram a celebrar, porquanto, em janeiro de 1962, EE e FF, que viviam na Alemanha e não pretendiam regressar a Portugal, venderam verbalmente o prédio a DD e mulher a ora Ré AA, tendo recebido o preço. E, desde então, o DD e mulher a ora Ré AA, passaram a utilizar o prédio em questão, ininterruptamente, à vista de todos, de forma pública, pacífica, sem oposição de ninguém, sempre convictos que eram os donos que não lesavam direitos de terceiros, sendo reconhecidos como donos por toda a gente.
A factualidade invocada pelos RR. respeitante à dita compra verbal do imóvel em questão, e à sua utilização com a convicção de exercerem um direito próprio, veio a ser julgada não provada nos factos constantes das alíneas A) e B) da decisão da matéria de facto daquela ação, e a respeitante ao arrendamento verbal, foi julgada provada, como consta no referido facto 7.
Mas mais, ao contrário do que refere a Apelante, já naquela ação, em claro venire contra factum proprium, veio a mesma confessar a existência de um arrendamento verbal, tentando por via da apelação ver reconhecido que era arrendatária do prédio.
Sem sucesso, como não podia deixar de ser, já que no aresto deste Tribunal foi logo afirmado, como questão prévia, que “as Recorrentes pretendem agora ver reconhecida a Recorrente AA como arrendatária, como forma de obstar à condenação na entrega do imóvel; pretensão que, por constituir matéria de exceção em face do pedido reivindicativo da propriedade deduzido pelos AA., tinha que ser formulada na contestação. E manifestamente, não foi. (…)
Termos em que se conclui que não integra o objeto do presente recurso a referida questão, que não foi trazida à liça na contestação apresentada em 1.ª Instância, como se impunha”.
Assim é, sem sombra de dúvida.
Efetivamente, como decorre do n.º 2 do citado artigo 1311.º do CC, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, “[o] que vale por dizer que, enquanto sobre o reivindicante recai o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do réu, este tem o ónus da prova de que é titular de um direito (real ou de crédito) que legitima a recusa da restituição”[14].
Ora, um dos casos que a lei prevê como obstando à restituição da coisa ao proprietário, é a existência de um título válido para a sua ocupação, como é o contrato de arrendamento. Portanto, a contestação deduzida na ação de impugnação da escritura de justificação notarial, era o momento próprio para que a Autora, não só alegasse a existência do contrato de arrendamento, como desse facto extraísse a necessária consequência de o mesmo obstar à restituição decorrente do reconhecimento do direito de propriedade a favor dos ali AA.
Justifica agora a Autora a presente ação com o facto de que então não dispunha de contrato escrito. Mas tal alegação não é relevante. Como vimos, na contestação foi expressamente afirmado, em síntese, que, em data anterior a 1962, o prédio foi entregue a DD na sequência de um acordo verbal e com vista à celebração de um contrato de arrendamento escrito que nunca chegaram a celebrar, porquanto, em janeiro de 1962, EE e FF, que viviam na Alemanha e não pretendiam regressar a Portugal, venderam verbalmente o prédio a DD e mulher a ora Ré AA, tendo recebido o preço. Sibi imputet se na ação e momento próprio, a autora não invocou que tinha a seu favor um contrato de arrendamento, mas antes invocou a aquisição do prédio por usucapião. Trata-se de factos pessoais, dos quais a ora A. não podia deixar de ter conhecimento, e que optou por trazer àqueles autos em versão que, não só não demonstrou, como obsta a que venha posteriormente invocar como forma de obstar à decretada entrega do imóvel, em virtude de não ter cumprido oportunamente o ónus de ter alegado e provado os factos que agora invoca.
Aliás, como a Autora bem sabe, o seu comportamento processual foi sancionado, tendo a condenação por litigância de má-fé decretada em primeira instância sido por si impugnada, sem sucesso, já que o acima mencionado aresto deste Tribunal a confirmou.
Acresce ainda que, como a ora Apelante não desconhece, não só a sentença proferida nesses autos, como o acórdão, apreciaram esta questão, que a mesma suscitou nessa apelação como falta de fundamento para a sua condenação, enquanto ali R., na entrega do prédio, invocando ter ficado provado que é arrendatária do imóvel, e que entre as partes vigora um contrato de arrendamento rural, que não cessou por denúncia ou resolução. Essa questão veio a ser decidida (págs. 57 e 57v.º do acórdão), concluindo-se naquele aresto nos seguintes termos: “Para além de ser imperioso que as RR. invocassem, em sede de contestação, a existência e validade do contrato de arrendamento rural, impunha-se ainda que acompanhassem tal alegação de um exemplar escrito do contrato, sob pena de extinção da instância nesse âmbito – Cfr. art. 35.º n.º 5 do RAR.
Inexiste, portanto, fundamento processual e substancial para afirmar a existência de um contrato de arrendamento rural que vincule os AA e qualquer uma das RR, pelo que improcede a pretensão destas de se oporem à restituição do prédio aos AA.”
Ora, diz-nos o artigo 619.º do CPC, que transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º do CPC. Regem estes artigos sobre os conceitos e requisitos da litispendência e do caso julgado, que constituem exceções previstas na lei processual civil para evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior, sendo nesta perspetiva seu pressuposto a repetição da causa pela existência da tríplice identidade nas duas ações: quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
Porém, nem sempre tal tríplice identidade é exigível, importando ter presente a diferença assinalada na decisão recorrida entre a exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, porquanto quando esta funciona e, ainda que não se verifique aquela tríplice identidade, também a autoridade de caso julgado obsta a que se defina de modo diverso situação já anteriormente julgada. No caso, tendo a entrega do imóvel sido decretada por sentença transitada em julgado, não importa que então não tenha sido apreciada a existência, validade e subsistência do agora convocado contrato de arrendamento escrito, ou, aliás de qualquer outro título que obstasse à decretada entrega.
Por isso acima referimos que, ao invés da decisão recorrida, consideramos que existe realmente caso julgado relativamente a este segmento da decisão proferida no processo n.º 1348/12.7TBSTB, confirmada pelo acórdão desta Relação que julgou improcedente a pretensão das RR. de se oporem à restituição do prédio dos AA..
Acresce que, quanto à decisão da decretada entrega, não pode igualmente a Autora vir agora esgrimir com a existência de um contrato de arrendamento escrito, porque a tal obsta, não o caso julgado, que não abrange factos que não hajam sido alegados num processo anterior, mas os efeitos da preclusão, que pode atuar independentemente do caso julgado e, consequentemente, também independentemente da verificação daquela tríplice identidade.
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, no intróito do estudo intitulado “Preclusão e caso julgado”[15], acentua precisamente que «[a]s reflexões seguintes pretendem demonstrar que a preclusão pode actuar independentemente do caso julgado e que o caso julgado não constrói nenhuma preclusão de um facto não alegado num processo anterior. O objectivo final da exposição é a demonstração de que a função de estabilização que é habitualmente atribuída ao caso julgado é realmente produzida pela preclusão».
Com efeito, «[a] preclusão é sempre correlativa de um ónus da parte: é porque a parte tem o ónus de praticar um acto num certo tempo que a omissão do acto é cominada com a preclusão da sua realização».
Adiante, explicando a distinção entre as posições de autor e réu na ação, em moldes que espelham porque não é correta a conclusão da ora Recorrente no sentido de que pode nesta ação aduzir os factos obstativos da entrega do imóvel, que não alegou oportunamente na contestação, aduz o Ilustre processualista que:
«a) Quando referida à alegação de factos pelas partes, a preclusão é correlativa de um ónus de concentração ou de exaustividade: de molde a evitar a preclusão da alegação posterior do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado. (…) A referida correlatividade entre a preclusão e o ónus de concentração significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado, mas também exprime que, quanto à alegação de factos, a preclusão só pode ocorrer se e quando houver um ónus de concentração. Apenas a alegação do facto que a parte tem o ónus de cumular com outras alegações pode ficar precludida. Se não for imposto à parte nenhum ónus de concentração, então a parte pode escolher o facto que pretende alegar para obter um determinado efeito e, caso não consiga obter esse efeito, pode alegar posteriormente um facto distinto para procurar conseguir com base nele aquele efeito».
Postos perante estes claros ensinamentos, torna-se evidente a falta de fundamento da pretensão da Recorrente, atento o ónus de concentração da defesa imposto no caso pelos artigos 573.º, n.ºs 1 e 2, e 576.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, conjugados com o disposto no artigo 1311.º, n.º 2, do CC, do qual decorre que havendo reconhecimento do direito de propriedade, como foi o caso, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.
Assim, perante o pedido formulado pelos AA. na ação, para obstar à decretada entrega do imóvel, a ora A., tinha o ónus de ali ter alegado, enquanto Ré, os factos consubstanciadores da exceção perentória, ou seja, os que eram aptos para impedir aquele efeito jurídico pretendido pelos AA., e determinar a sua absolvição do pedido.
Não o tendo feito, a ora Autora incumpriu o ónus que sobre si impendia naquele momento processual, enquanto Ré, e, por tal, não pode subsequentemente, nem em sede desta ação nem em oposição à execução, procurar conseguir com base em nova alegação e prova aquele efeito que ali não logrou obter, desde logo, por não ter ali alegado a factualidade que agora invoca e os meios de prova que ora convoca. Incumprido oportunamente tal ónus, precludiu a possibilidade de alegação posterior dos factos que oportunamente não foram alegados, e é por causa desse efeito da preclusão que nesta ação lhe podia ser oposta, como foi, a exceção de caso julgado, que neste caso, como dito, nem sequer depende da tríplice identidade a que alude o artigo 581.º do CPC.
De facto, conforme cristalinamente explica aquele Ilustre Professor, «poder-se-ia pretender concluir que, se a preclusão intraprocessual é independente de qualquer caso julgado, a preclusão extraprocessual – isto é, a preclusão da prática do acto omitido num processo posterior – estaria dependente do caso julgado da decisão proferida na primeira acção. Noutros termos: poder-se-ia pensar que a preclusão extraprocessual necessitaria do caso julgado da decisão do processo anterior para poder operar no processo posterior. No entanto, não é assim. (…) A chamada preclusão extraprocessual é independente do caso julgado, porque opera mesmo que o processo no qual se produziu a correspondente preclusão intraprocessual não esteja terminado com sentença transitada em julgado. Sendo assim, pode concluir-se que a preclusão não necessita do caso julgado para produzir efeitos num outro processo».
Perguntar-se-á, então, como opera a preclusão?
Responde o aludido Mestre: «depois de haver no processo uma decisão transitada em julgado, a preclusão extraprocessual opera através da excepção de caso julgado».
Dito de outro modo, reconhecido o direito de propriedade a favor dos aqui RR., pela sentença proferida no processo primeiramente deduzido, e decretada a restituição do imóvel, o caso julgado formado por esta decisão, obsta a que seja deduzida nova ação ou oposição para discutir a existência de fundamento para a recusa da restituição, mesmo que os factos agora invocados não tenham ali sido conhecidos, por haver precludido a possibilidade de “corrigir” por via de tal invocação, o incumprimento de ónus de alegação e prova oportunamente não cumpridos.
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do presente recurso, sendo de confirmar, ainda que por estes fundamentos, a decisão recorrida.
Vencida, a Apelante, suporta as custas do recurso, na vertente de custas de parte, de harmonia com o princípio da causalidade e o vertido nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
*****
Évora, 25 de janeiro de 2023
Albertina Pedroso [16]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

__________________________________________________
[1] Juízo Central Cível de Setúbal - Juiz 3.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] A Ré ELISABETH MARGARETHE ASMUSSEN LIMA DE WALTER, havia falecido em 19.09.2012, sendo os identificados Réus os seus únicos e universais herdeiros.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC.
[5] Cfr. Ac. TC n.º 499/98, citado por LOPES DO REGO, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª edição, ALMEDINA, 2004, pág. 14.
[6] JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, in Constituição Portuguesa Anotada, COIMBRA EDITORA, Tomo I, pág. 194.
[7] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª edição, ALMEDINA, 2018, págs. 31 e 32.
[8] Post publicado no Blog do IPPC, no dia 19.05.2020. Trata-se de posição que tem vindo a ser reiteradamente expressa pelo Ilustre processualista, acolhida, inter alia, no Acórdão do STJ, de 23-06-2016 (processo n.º 1937/15.8T8BCL.S1), onde se afirmou que «Tal solução foi reforçada pelo mesmo processualista em comentário ao Ac. da Rel. do Porto, de 2-3-15 (www.dgsi.pt), concluindo que “o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afecta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual) ”. Com efeito, como aí se refere, até esse momento, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”, e que “o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria” (em blogippc.blogspot.pt, em escrito datado de 23-3-15).
Na verdade, em tais circunstâncias a parte é confrontada com uma decisão, sem que lhe tenha sido proporcionada a oportunidade de exercer o contraditório e sem que tenha disposto da possibilidade de arguir qualquer nulidade processual por omissão de um acto legalmente devido, sendo a interposição de recurso o mecanismo apropriado para a sua impugnação (no mesmo sentido cfr., Abrantes Geraldes, Recursos no NCPC, 3ª ed., pág. 25, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 52)». Mais recentemente, cfr. JOÃO CASTRO MENDES/MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, MANUAL DE PROCESSO CIVIL, VOLUME II, AAFDL EDITORA, Lisboa 2022, páginas 83 e 84, a respeito das nulidades processuais consumidas pelas nulidades de julgamento.
[9] Cfr. PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, ALMEDINA, 2014, pág. 31.
[10] In Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, COIMBRA EDITORA, págs. 96 e 97.
[11] Cfr. a título meramente exemplificativo, os Acórdãos deste Tribunal da Relação de 28.03.2019, processo n.º 208/10.0TBRDD-B.E1, de 02.05.2019, processo n.º 532/16.9T8ABT.E1, e o Acórdão TRP de 02.12.2019, processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1, com comentário no Blog do IPPC, em 19.04.2019, que, tal como o primeiro dos indicados arestos deste Tribunal, segue de perto o Acórdão do TRG de 19.04.2018, abaixo identificado.
[12] Proferido no processo n.º 208/10.0TBRDD-B.E1, seguindo o entendimento já vertido no citado Acórdão do TRG de 19.04.2018, proferido no processo n.º 533/04.0TMBRG-K.G1, que se louvou na doutrina expressa por LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 1999, págs. 10, 33 e 34.
[13] Harmoniza-se o nome com o que consta nos documentos.
[14] Cfr. Acórdão STJ de 07.03.2017, proferido no processo n.º 3585/14.0TBMAI.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Disponível em:
https://www.academia.edu/22453901/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M._Preclus%C3%A3o_e_caso_julgado_02.2016, que desenvolve o tema em título e que, conforme o autor assinala, «serviu de base à intervenção realizada no Colóquio Luso-Brasileiro de Direito Processual Civil, que ocorreu em Coimbra nos dias 24 e 25/2/2016».
[16] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três desembargadores desta conferência.