IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS IRRELEVANTES
ACESSÃO DA POSSE
FORMALIDADES ESSENCIAIS
POSSE TITULADA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


I - Só a matéria de facto que se possa considerar indispensável (mesmo no sentido mais lato e instrumental), isto é, quando se revele necessária/imprescindível à decisão de direito que se vai tomar na Relação e àquele que pode vir a ser tomada, eventualmente, pelo Supremo é que deve ser tomada em consideração, quando seja objeto de impugnação em recurso.
II - Para se poder aceder na posse não é imprescindível que a transmissão se tenha operado por ato formalmente válido. Mas se não o for, estaremos perante posse não titulada.
III - O STJ pode, ao abrigo dos n.ºs 2 e 3 do art. 682.º do CPC, ordenar ex officio a ampliação da matéria de facto se existirem factos (principais, complementares e instrumentais) alegados e contra-alegados de manifesta relevância, carecidos de investigação, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.
IV - Sendo alegados factos nos articulados e sendo relevante apurar se os bens já haviam sido transferidos para a esfera jurídica e patrimonial de terceiro, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, deve ordenar-se a baixa dos autos para apuramento dessa matéria de facto.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.

1. AA e mulher BB, residentes em ..., intentaram ação declarativa contra BCP-BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A., com sede no ..., peticionando que:

1) seja declarado que o autor é o legítimo dono e proprietário, por usucapião, e por doação, da parcela de terreno ... do prédio identificado em 1º com a exacta delimitação área e configuração ocupada pelas benfeitorias urbanas de “habitação” compostas por moradia com arrumos garagem e piscina, sitas na dita parcela de terreno com a área de construção de 695m2, configuração e confrontações como está delimitada pelas construções nela implantadas e com utilidade e valor económico autónomo, a destacar do prédio urbano de terreno e armazém amplo descrito no artigo ...º deste petitório, com a consequente rectificação da descrição e inscrição predial quanto à sua área e/ou outros elementos que sejam desconformes com a aludida propriedade do autor;

2) caso assim não se entenda, deve o réu ser condenado a reconhecer a propriedade dos autores, por acessão industrial imobiliária, com a aludida delimitação, confrontações e área da envolvente, das benfeitorias urbanas realizadas (casa com arrumos, garagem e piscina), em comunhão e sem determinação de parte, pelos autores, e, consequentemente, a rectificar e corrigir todos e quaisquer registos e seus averbamentos, lavrados ou que tenham entretanto pendente, dos quais resulte qualquer ocupação ou “propriedade” da parcela de terreno (solo) sita a ... do prédio identificado em 1º.;

3) deve o réu, cumulativamente, ser condenado a: a) reconhecer e respeitar o direito de propriedade e o direito de uso, gozo e habitação dos autores e a absterem-se da prática de qualquer acto que colida e/ou afecte este direito; b) cessar de imediato a intromissão e a prática de qualquer acto que viole o direito de propriedade dos autores sobre aquela habitação (composta de casa com arrumos, garagem e piscina); c) promover o destaque da parcela de terreno ... ocupada pelas ditas benfeitorias urbanas e a respectiva correcção da área, delimitação e confrontações do artigo matricial urbano ...86 da freguesa de ... e da descrição predial ...74 da dita freguesia, do concelho ..., para efeitos dos autores procederem à correspondente inscrição e registo predial; d) pagar aos autores a indemnização que se relega para execução, pelos prejuízos causados e que vierem a causar na quantia que se vier a liquidar;

4) deve o réu ser condenado a pagar aos autores, na qualidade de possuidores e donos das aludidas benfeitorias urbanas, a quantia não inferior a 458.000 € correspondente à valorização incorporada pelos autores no imóvel dos autos, inerente às construções e trabalho nelas realizadas, de raiz, com a edificação da casa de habitação (com 695 m2) dois arrumos, garagem e piscina, que os autores realizaram e incorporaram no aludido prédio urbano matricial 986, da freguesia ..., com a descrição predial ...74, sob pena de tal valorização e incorporação (em obras e trabalhos de construção civil da casa de habitação com piscina no prédio identificado em 1º) configurar um enriquecimento sem causa do réu;

5) condenação do réu no pagamento de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até integral pagamento.

Os autores alegaram, em suma, que são os donos de uma parcela de terreno e de casa de habitação, composta de arrumos, garagem e piscina, edificada em parte do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...86º da freguesia ..., por a terem adquirido por usucapião ou por doação verbal dos pais do autor.

Que foram os autores que construíram tal casa de habitação, com autorização dos pais, e que a mesma constitui um incremento comercial significativo ao dito prédio. Mencionam que vivem na casa, tendo, por isso, direito à habitação. Referem, ainda, que a casa de habitação configurará uma benfeitoria, o que reclamam. Daí que entendam que o réu não é proprietário da casa, pese embora tenha adquirido o prédio com o art. 986º, numa venda executiva, aos terceiros compradores desse prédio, mas sem a aludida parcela.

O réu contestou a acção, referindo, em síntese, que ainda não decorreu o prazo de usucapião, que uma doação verbal é nula, que não há acessão, porque houve a comparticipação do anterior proprietário da coisa e que as benfeitorias integram o imóvel adquirido em sede executiva, sendo que na hipoteca que constituiu, para garantir mútuo aos aludidos terceiros executados, estipulou que a mesma abrangeria todas as construções, benfeitorias e acessões. Mais pediu a condenação dos autores como litigantes de má-fé.

Em resposta, os autores disseram que a dita casa de habitação não pertencia aos terceiros executados, que não compraram a mesma, nem a parcela de terreno onde ela foi implantada, pelo que tal bem é alheio ao réu, por não ter sido por ele adquirido na execução, propugnando pelo já referido na p.i. e afastando a litigância de má-fé suscitada.

Respondeu o réu, dizendo que quer os terceiros executados, quer ele, Banco, adquiriram o dito prédio art. 986º com tudo o que o compunha, designadamente a aludida casa de habitação.


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Foi, a final, proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo o R. dos ... e, condenou os AA como litigantes de má-fé na multa de 10 UC.

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Os AA recorreram de apelação sendo, após deliberação, decidido:

“Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida”.


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Novamente inconformados com o decidido pela Relação, interpõem recurso de Revista para este STJ o autores, e formulam as seguintes conclusões:

“1.O presente recurso vem interposto como de revista normal, como lho permitem os arts 629º-1 e 2. d), 674º-1. a), b), c), 2 e 3, in fine, do CPC, com fundamento na violação do preceituado no art. 662º nº 2, c) e d) do CPC em que o douto acórdão revidendo se mostra incurso, ao reapreciar a sentença proferida na 1ª instância, entendeu não apreciar, valorar e, consequentemente, alterar a matéria de facto dada como não provada na sentença e impugnada nas alegações recursivas e pretendida alterar, pode entender, em suma, ser inútil conhecer da impugnação da matéria de facto (referente aos factos não provados 2, parte do 4, 5, 11, 17 a 35, 40, 54, 55, 58 a 65, 73, 74, 80 a 86 e 115) quando a solução jurídica não permitir a alteração, assim tendo decidido sem ter dali colhido (através da valoração e ponderação da matéria de facto impugnada e pretendida alterar por alegada insuficiência para o recurso) as inerentes ilações e consequências decorrentes do circunstancialismo fático- concreto subjacente e especificadamente impugnado pelos autores para a boa e correcta decisão.

2. Senão vejamos, os recorrentes impugnaram no seu recurso os factos não provados 2., 4., 5., 11., 17. a 35., 40., 54., 55., 58. a 65., 68., 73., 74, 80., 81. e 82, 85., 86., 107, 111., 115., 116. e 117 e 118., pretendendo que passem a provados, com fundamento em prova por declarações do A., e prova testemunhal e documental que especificam (cfr. as respectivas conclusões de recurso 15º a 63º e 73º), como o Acórdão em crise enuncia e bem percepcionou, porém decide não conhecer da matéria de facto impugnada (atinente aos atos materiais da posse e da doação) por considerar que não tem importância ou insuficiente para o seu recurso e para a solução jurídica da causa (doação verbal não titulada).

3. Por outro lado, refere o Acórdão ora recorrido que em conclusões que contenham fundamentos ou razões não expostas nas alegações existe uma impossibilidade legal de “convidar o recorrente a ampliá-las”, pelo que, conclui o Venerando Tribunal a quo, deve “considerar-se não impugnada, nessa parte, a decisão recorrida com a consequente impossibilidade de conhecimento, nesse segmento, do objecto de recurso (…)” – cfr as pág.s. 18 e 19 do acórdão recorrido.

4. O Aresto recorrido conclui ainda no segmento em que se refere ao “facto 118” (ou seja a conclusão nº73) que, “(…) não encontrando as ditas conclusões sobre este aspecto, apoio algum, por mínimo que seja, na motivação de recurso, é como se não houvesse formulação. Pelo que necessariamente não é cognoscível essa parte do recurso, arguida pela R/Recorrente”.

5. Ora, discordando do decidido, o Acórdão em crise é ininteligível, pois no mesmo segmento decisório em que se refere aparentemente apenas ao “facto 118” (conclusão 73) que considera ser conclusivo refere-se também a “as ditas conclusões” referindo que “não é cognoscível essa parte do recurso”.

6. Donde, o aresto recorrido é ininteligível, na justificação para o não conhecimento, afinal, dos factos não provados na sentença e impugnados pelos Recorrentes, importando tal entendimento abstrato, vago, deficiente e ambíguo quanto à amplitude dessa decisão de não cognoscibilidade dos factos impugnados pelos recorrentes no seu recurso, em nulidade do Acórdão em crise.

7. Para o não conhecimento da matéria de facto especificadamente impugnada pelos recorrentes e pretendida alterar, refere-se ainda no aresto em crise que “mesmo que tal factualidade passasse a provada acabaria por não ter influência na solução de direito e no mérito do recurso”, concluindo que se “o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante ou insuficiente para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento (…)”.

8. Assim, de forma liminar, o Tribunal recorrido entendeu genericamente não conhecer de todos os factos impugnados pelos recorrentes, que refere serem “os factos não provados 2, 4, 5, 11, 17 a 35, 40, 54. 55, 58 a 65, 68, 73 e 74” e ainda os factos não provados “80, 81 e 82”, “85, 86, 107”, “111, 115, 116 e 117” em que os recorrentes sustentam que devem ser passar a “provados”, considerando consubstanciar “irrelevância ou insuficiência jurídica” para a solução de direito.

9. Ora, discordam os recorrentes do repúdio liminar da valoração e apreciação da matéria de facto impugnada e pretendida alterar feito pelo Venerando Tribunal a quo.

10. Desde logo, as conclusões 15 a 63 do recurso dos recorrentes decorrem da motivação das alegações de recurso dos recorrentes, nelas se referindo inclusive a prova que é susceptível de determinar a alteração dos respectivos factos pretendidos alterar pelos Recorrentes quanto aos factos não provados na sentença 2., 4., 5., 11., 17. a 35., 40., 54., 55., 58. a 65., 68., 73., 74, 80., 81. e 82, 85., 86., 107, 111., 115., 116. e 117, que os recorrentes entendem deverem ser julgados provados.

11. Por outro lado, mal andou o Tribunal a quo quanto ao “direito de propriedade dos AA sobre a aludida parcela de terreno e da construção (…) com fundamento em doação verbal dos pais do A.”, ao concluir, com manifesta simplicidade de análise e decidindo não conhecer da factualidade material impugnada no recurso, que “tal pretensão não pode proceder, pois tal doação (a ter ocorrido) é nula, por falta de forma (…)”.

12. Ora, diversamente do decidido, na esteira do decidido no douto Acórdão da Relação de Lisboa em 12/17/2009, e ora se transcreve “Resulta directamente de lei expressa que a doação verbal de imóvel é nula, por falta de forma, pois a doação de coisa imóvel só é válida se for celebrada por escritura pública – art º 947º, nº 1, do Código Civil. Porém, em tese geral, se a essa doação, embora inválida, se sucederem todas as acções e situações que possam ilustrar a aquisição por usucapião, e se se verificarem todas as restantes condições para a constituição da propriedade horizontal, pode a pretensão daí decorrente ser válida, ou seja, também uma situação possessória poderá conduzir à propriedade horizontal.” – vd Ac. Da RL de 12/17/2009, proc nº 1.720/2006.1TBTVD-B.L1-8, in .

13.Acresce que, a alegação do facto constitutivo do direito pode ser feita mediante a junção do documento em que ele conste.

 14. No caso, os AA. juntaram aos autos elementos documentais relevantes como o projecto de construção da moradia na C.M. ... que foi aprovado em Abril de 2004 em nome dos pais do A. apenas por os pais do A. não lograrem, à data, efectuar o destaque da parcela em virtude de incidir sobre a mesma um ónus de não fracionamento pelo período de 10 anos (conclusões 29 a 33 do recurso), no qual é visível a planta de implantação da parcela de terreno e a implantação da moradia, a qual é o resultado dos “estudos prévios” ao projecto de construção apresentado na CM em 04/2004, os quais foram acordados e discutidos entre o A. e o arquitecto – elementos documentais de que resulta a posse pelos autores ainda antes de 04.2004 e que o Venerando Tribunal a quo sequer valorou ou apreciou pois entendeu não apreciar a totalidade da matéria de facto impugnada no recurso!

15. Mais, como foi alegado pelos AA/Recorrentes e, entendem, provado unanimemente por todas as testemunhas, funcionários de entidades públicas, arquitecto, vizinhos, familiares e amigos, todos sabiam que a parcela de terreno a ... do prédio onde foi implantada e edificada a moradia estava a ser idealizada, concebida, projectada, implantada e edificada pelo A., sabendo ainda, por conhecimento directo e pessoal, quer da impossibilidade de destaque da parcela doada ao A. por existir sobre o prédio um ónus de não fracionamento decorrente de um destaque anterior, quer da intervenção do A. nos estudos prévios e na concepção e implantação da moradia, tendo sido o A. que deu instruções para a arquitectura e a elaboração dos desenhos da moradia (ampla, moderna, com grande impacto visual e com uma estética actual de linhas direitas, com grandes aberturas) – conclusões 51, 52 e 59 do recurso -, a qual não compatível com o conceito tradicional e a idade dos pais do A..

16. Como declarou, inequivocamente, o Arquitecto da moradia, em audiência de julgamento, tais desenhos, plantas e descrição foram apresentados na Câmara Municipal conforme a vontade e a concepção arquitetónica ousada e arrojada do A./Recorrente, sabendo ainda as ditas testemunhas, como relataram em julgamento, que os pais do A. só não lograram fazer a escritura de doação da parcela de terreno doada ao A., sita no topo ... do prédio, por incidir sobre o prédio um “ónus de não fracionamento” pelo “período de 10 anos”.

17. Também a construção da moradia em 2004/2005 na parcela de terreno (a ... do prédio) - de tipologia ..., com área de construção de 695m2 e composta ainda de arrumos, garagem e piscina - obedeceu à concepção e à implantação constante dos “estudos prévios” e do projecto de arquitectura, como foi ab initio projectada pelo A. para ser a sua casa de habitação, ao seu “gosto” e segundo a sua vontade.

18. Tais elementos documentais constantes dos autos conforme certidão camarária junta aos autos que integra, inclusive, o projecto de arquitectura, plantas, especialidades e a memória descritiva, e em que deles resulta, clamorosa e notoriamente, que tais linhas arquitectónicas não compatíveis com o estilo e o modo de pensar “tradicional” que os pais do A. tinham, como declarou a testemunha CC, são relevantes para se percepionar, através destas acções e situações concretas, que tal doação, embora inválida, permitem ilustrar a aquisição do A. por usucapião e uma situação possessória susceptivel de conduzir à propriedade.

19. Salienta-se que como foi ainda alegado pelos AA/Recorrentes no seu recurso, DD, arquitecto, precisou em julgamento que “mais para o final do ano” de 2007 a casa de habitação “já estava habitável”, referindo que a mesma foi edificada segundo o gosto e interesse dos AA., inclusive na escolha dos materiais, das cores, da qualidade (neste sentido, as conclusões 55, 56, 57, 59 das alegações de recurso dos recorrentes), no que foi corroborado pelo depoimento claro e com conhecimento directo e pessoal de CC (as conclusões 62 e 63 das alegações recursivas).

20. Não obstante tudo o alegado pelos Recorrentes no seu recurso inerente aos atos e situações subsequentes praticados pelos AA. desde a doação verbal pelos pais do AA. da dita parcela (ainda antes da apresentação do projecto de construção à Câmara em 04.2004), conforme as conclusões 31 a 33, 42 e 50 a 52 do recurso, quer quanto ao programa da construção e da escolha dos materiais da moradia pelos AA, quer quanto à sua construção até a dotarem de condições de habitabilidade (conclusão 59), casa de morada de família que, como entendem foi provado, os AA passaram a habitar a partir de meados de 2007 (conclusões nº 55, 56, 61 do recurso), tal como, salientam, habitam e ocupam até à presente data, o Tribunal a quo nada valorou, não ponderando quaisquer dos factos não provados impugnados pelos Recorrentes, limitando-se a referir que “a doação verbal de imóvel é nula”, quando, entendem os Recorrentes, conforme se em também pronunciando a Jurisprudência Superior, assim não se pode concluir, com tal omissão de pronúncia e de apreciação ou valoração dos factos concretos e objectivos impugnados pelos Recorrentes!

21. No caso, é manifesto o erro de interpretação dos factos e atos materiais de posse dos autores quando se refere no aresto em crise que o prazo dos autores para usucapir inicia-se em 2005, com a construção, quando, ao invés, as testemunhas DD (Arquitecto), EE (Vereador à data) e FF (funcionária da Conservatória), declaram que antes da construção, na fase dos “estudos prévios” ao projecto de construção e, portanto, da implantação da moradia na parcela de terreno já delimitada, foi o A. que definiu a implantação da projectada construção.

22. Resulta, pois, dos elementos documentais dos autos que o projecto de construção foi apresentado à CM em Abril de 2004, sendo que já anteriormente era já o A. quem intervinha nos “estudos prévios” do projecto a apresentar à Câmara Municipal.

23. Destarte, entendem os Recorrentes que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na interpretação da prova produzida, como resulta manifesto do projecto de construção dado aos autos, em que a parcela de terreno pretendida destacar surge já delimitada no prédio, com a construção nela implantada, em coerência com as declarações do arquitecto e autor do projecto e ainda do vereador que apreciou o projecto e da funcionária dos registos, que anteriormente sabiam já da aludida parcela de terreno pretendida destacar para a construção da moradia dos autores, como estes a implantaram na dita parcela.

24. Contudo, entendendo o Venerando Tribunal não ser a matéria de facto impugnada suficiente para decisão a proferir quanto à solução de direito do caso, sempre teria e tem o dever de apurar em que data ou período ocorria já a discussão dos “estudos prévios” entre o arquitecto e o A. e em que data e como foi delimitada a aludida parcela de terreno com os A., o que o Venerando Tribunal não fez, nem ordenou, designadamente ordenando o esclarecimento destes factos para decidir em conformidade com o declarado pelas testemunhas.

25. De facto, é o próprio Tribunal da Relação a evidenciar a essencialidade dos factos para a prova da posse, sendo que agora são considerados insuficientes ou inúteis, não cuidando, contudo, de apurar e valorar ou ordenar a produção de prova sobre quando e como foi efectivamente delimitada a dita parcela de terreno pelos autores, na qual foi definida, projectada e implantada pelo autor a referida moradia, ainda antes da apresentação do projecto de construção na Câmara Municipal (em 04/2004), pois que foi provado que antes do projecto de construção dar entrada na CM era já o autor que discutia e preparava os “estudos prévios” da implantação com o arquitecto autor do projecto.

 26. Assim, não tendo tal factualidade sido apurada essencial para determinar o inicio da posse dos autores antes da construção e portanto ainda aquando da implantação da moradia e o período em que ocorreu e os contornos, o Tribunal da Relação decidiu mal e sem fazer usos dos seus poderes pois desconhecendo a parte que apresenta o articulado a insuficiência/deficiência da alegação dos factos principais que invoca na causa de pedir por não ter sido suscitada por qualquer dos intervenientes processuais ou não obstante a prova realizada em julgamento através dos elementos documentais e das testemunhas não tendo sidos apurados os factos da posse antes da construção, concretamente aquando da delimitação da parcela e da implantação da moradia dos autores, não é admissível que a falha do de dever de gestão processual do processo que incumbe ao juiz recaia sobre a parte que a desconhecia.

27. Por outro lado, no que respeita à construção da moradia, foi documentalmente provado que o processo de concessão de crédito pelo R./Recorrido a terceiros atinente ao prédio inscrito na matriz com o artigo ...86 e descrito na CRP ... sob o número ...74/..., sem qualquer deslocação do R/Recorrido ao prédio para efectuar qualquer avaliação para a concessão de crédito – como foi provado - e sem qualquer contacto com os AA/Recorrente que ocupavam à data a parcela e habitavam a moradia;

28. E foi provado que a mãe do A./Recorrente vendeu a GG e a HH por escritura pública outorgada em 2010, pelo preço de 50.000,00€, unicamente e como dela consta expressamente um prédio composto de “armazém amplo e logradouro”, tudo conforme a mesma declarou e resulta também da descrição predial, além do aludido preço ser compatível com um armazém amplo e logradouro como resulta das regras da experiência comum.

29. Foi ainda provado que tal ato de transmissão do prédio constituído por armazém amplo e logradouro ocorrido depois de construída a moradia pelo A. na aludida parcela de terreno ... (tipologia T4, moderna, ampla com piscina, arrumos e garagem) e desta estar habitada pelos AA/Recorrentes e pelo seu agregado familiar desde 2007 (como resulta dos factos provados 14 e 15 da sentença e das conclusões 16 e 56 do recurso), não podendo os adquirentes do prédio ignorar que em tal descrição predial e na dita escritura não constava a aludida moradia, arrumos, garagem e piscina.

30. Como não podiam os adquirentes do prédio (terceiros executados) que os recorrentes e o seu agregado familiar, incluindo os pais do A. vendedores, ocupavam a parcela e habitavam a moradia nela edificada pelos AA/Recorrentes, á vista de todos, notória e publicamente, nem o seu valor (porquanto resultou provado nos autos que a moradia tem um valor superior a 400.000,00€, que os adquirentes do prédio não pagaram aos pais do A./Recorrente), não compatível com o preço que pagaram pelo armazém com logradouro, tudo sob pena de despudorado abuso de direito.

31. O abuso de direito e a despudorada má fé dos terceiros adquirentes do prédio relativamente á dita parcela de terreno ocupada pelos AA. inquina qualquer negócio jurídico realizado pelos terceiros sobre a mesma, no caso com o réu (Banco), sob pena de enriquecimento sem causa, questão alegada pelos recorrentes e que o Venerando Tribunal a quo não valorou, nem ponderou ou decidiu no aresto em crise.

32. Por outro lado os Recorrentes alegaram e entendem foi provado também que os terceiros nunca ocuparam o referido “armazém amplo e logradouro” pois, logo após a aquisição do prédio aos pais do A./Recorrente, os terceiros comodataram o dito armazém e logradouro ao aqui A./Recorrente para a instalação de uma indústria de ... – em cujo prédio ainda funciona o estabelecimento industrial de ... do A./Recorrente, o qual é, ainda actualmente, a sede social da sociedade “A..., Unipessoal Ldª” (conforme prints do google junto aos autos a fls…).

33. Mais alegaram nas suas alegações recursivas, ter decorrido a acção executiva do R/Recorrido contra os terceiros (GG e HH) sem que o R/Recorrido procedesse, no auto de penhora, ou em qualquer outra diligência realizada no processo executivo (previamente ao anúncio da venda do prédio) à descrição da existência de uma moradia ..., com área de construção de 695m2, composta ainda de arrumos, garagem e piscina (a qual não estava registada ou não consta do registo predial do prédio descrito no art. ...74/... e inscrito no art. matricial 986 da freguesia ...).

34. Por outro lado entendem os Recorrentes que foi provado, como sustentam no recurso interposto, que os AA. sempre ocuparam a parcela, por si e seus antepossuidores, e que habitam a moradia por eles edificada, desde Agosto de 2007, construída conforme o projecto de construção apresentado na Câmara Municipal em Abril de 2004, sendo que foi também o A. que interveio ainda nos “estudos prévios” da implantação e da delimitação da moradia na dita parcela de terreno, antes mesmo da apresentação do projecto da moradia à Câmara (em 2004).

35. Da aludida factualidade material impugnada e que os recorrentes entendem provada (conforme resulta do pedido de alteração da matéria de facto que a Veneranda Relação entendeu não conhecer), resulta que ofende as regras da experiencia comum, nem é aceitável, que o R/Recorrido concedesse aos terceiros um mútuo com hipoteca no montante de 350.000,00€ sem ter avaliado o prédio no local e, consequentemente, verificado a situação da ocupação e habitação própria pelos AA. da aludida parcela de terreno.

36. Como ofende as regras da experiencia comum, que o R/Recorrido tivesse concedido o mútuo com hipoteca a GG e a HH sem sequer se ter deslocado ao prédio sobre o qual seria constituída hipoteca a fim de verificar da efectiva existência e do estado do prédio.

37. Como ainda ofende as regras da experiencia comum que o Réu, Banco, não se tivesse deslocado ao prédio pretendido hipotecar pelos terceiros e assim verificasse que quem ocupava o referido “armazém amplo e logradouro” com um estabelecimento industrial de ..., tendo nele todos os bens móveis sujeitos a registo (veículos, carrinhas, empilhadores, etc…) e equipamentos, e exercendo nele actividade económica com o estabelecimento “A... Unipessoal Ldª” era o Autor, aqui recorrente.

38. Neste sentido, foi declarado em audiência de julgamento, que GG e HH nunca tiveram as chaves do prédio composto de “armazém e logradouro” por o terem comodatado ao A./Recorrente após a escritura de aquisição do armazém, sendo, pois, o aqui A./Recorrente quem ocupava o armazém e o logradouro tendo nele instalado um estabelecimento de ..., à data do mútuo a GG e a HH.

39. No caso, entendem os Recorrentes que, como resulta das imagens do prédio juntas aos autos, provou-se que o estabelecimento industrial de ... do Recorrente e o exercício da sua actividade económica naquele prédio, composto de “armazém amplo e logradouro”, era notória além de reputada e conhecida publicamente, sendo, inclusive, o domicilio e a sede social da sociedade comercial do aqui A/Recorrente, “A... Unipessoal Ldª”, como era também conhecida pelas agências bancárias do R. e outras agências bancárias do concelho e resulta também da prova documental careada nos autos (prints do google e CRC) pelos AA/Recorrentes.

40. Destarte, em suma, ofendem ainda as regras da experiencia comum, a normalidade do comércio jurídico e a mais elementares regras e princípios da boa fé e a estabilidade das relações familiares dos autores que a ocupam e que nela habitavam anteriormente ao mútuo com hipoteca dos terceiros adquirentes do prédio celebrado em 2010, que o R/Recorrido tivesse concedido um mútuo de 350.000,00€ com hipoteca de um prédio composto de armazém amplo e logradouro e adquirido pelos mutuários por 50.000€, sem nunca o R/Recorrido se ter deslocado ao prédio e ter interpelado os Recorrentes para facultar o acesso ao dito prédio (o qual, aliás, foi inequivocamente provado estar inserido “numa quinta” murada conforme resulta dos fotogramas do google junto aos autos e foi declarado, unanimemente, pelas testemunhas (neste sentido as conclusões 18 a 29, 34, 36 a 39 do recurso dos AA/Recorrentes).

41. Donde, atenta a relevância dos atos e usos dos Recorrentes após a doação verbal da parcela ... do prédio, como quiseram implantar a moradia e foi projectada e edificada pelos AA, passando a ter nela a sua habitação própria permanente até à presente data, mantendo o gozo, ocupação e a fruição da moradia e de todas as suas valências (divisões, arrumos, garagem e piscina) na dita parcela de terreno ... do prédio, de forma pacifica, reiterada e continuadamente, como se mantém até à presente data, sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente dos terceiros adquirentes do armazém amplo com logradouro ou do R/recorrido, é manifesto que os AA/RR além dos atos possessórios exercidos, adquiriram a dita parcela ... do prédio.

42. De facto, todo o referido período de ocupação pelos AA da dita parcela de terreno ... do prédio, por si e seus antepossuidores pais e avós paternos (conforme as conclusões 18 a 29, 34, 36 a 39 do recurso), seja da moradia que nela implantaram e projetaram (conforme as conclusões do recurso 30 a 33 e 35), e que edificaram e habitam com o seu agregado familiar,– antes mesmo do processo de concessão de crédito do R/Recorrido aos terceiros executados GG e HH (o qual, como entendem foi provado, não teve qualquer avaliação do imóvel pois que este estava já exclusivamente ocupado pelos AA (moradia) e pela ... do A.) –, de boa fé, pública e pacificamente (sem qualquer oposição dos terceiros ou do R/Recorrido até à alegada adjudicação do prédio composto de armazém amplo e logradouro na dita acção executiva), é relevante para os actos de posse e da situação possessória concreta pelos AA, que o fruíam, gozavam, habitavam, ocupavam, tinham e tem nele os seus veículos estacionados no logradouro, limpando-o, conservando-o, continuando nele a efectuar benfeitorias, substituindo o telhado do armazém, continuando a construção da moradia, ocupando a piscina, garagens e arrumos e deles beneficiando, entre outros atos possessórios da vida corrente decorrentes da sua ocupação, pacifica e continuadamente, até à presente data, tudo como resulta dos ficheiros de imagem - das fotografias e dos prints do motor de busca Googlemaps, entre outros elementos documentais - que os AA. juntaram aos autos, desde a construção da moradia.

43. Também no que respeita à questão do direito de propriedade dos AA sobre a aludida parcela de terreno e da construção, contrariamente ao entendimento vertido no acórdão em crise, não basta concluir-se e referir que a doação de coisa imóvel é nula por falta de forma, assim não se conhecendo da matéria de facto impugnada e pretendida alterar.

44. Discordando do decidido, nem são despiciendos, nem é irrelevante, a impugnação da matéria de facto em recurso, nomeadamente se os Autores tiverem invocado a usucapião, como é o caso da presente acção e das alegações recursivas (e das suas conclusões).

45. Diversamente do decidido, tal factualidade material concreta alegada pelos AA. na acção - dos atos concretos por eles exercidos ao longo do tempo, da traditio, da sucessão na transmissão pelos anteriores possuidores -, que integra a figura ou o instituto da usucapião, como pugnaram também no objecto do recurso por eles interposto, não é inútil de conhecer pela Veneranda Relação (1º instância de recurso) ainda que o negócio – da doação verbal – possa ser nulo por falta de forma!

46. No caso, contrariando o Acórdão recorrido (que não ponderou ou sopesou os factos concretos impugnados pelos Recorrentes), os AA. não alegaram somente que “a edificação em questão começou a ser construída em 2005”. Mais alegaram e entendem provaram que antes mesmo da construção e da aprovação do projecto de construção pela Câmara Municipal ... em Abril de 2004, já era o A. que, na posse da parcela de terreno, elaborou e intervém nos “estudos prévios” do projecto de construção.

47. Portanto, antes mesmo da elaboração do projecto de construção, foi o A./Recorrente que instruiu o arquitecto como pretendia ver implantada a moradia na parcela de terreno, dando instruções ainda sobre a sua volumetria, a sua configuração no terreno, “puxando-a mais para aqui ou mais para ali” no terreno, sendo que o projecto de construção ou de arquitectura foi apresentado na Câmara Municipal em Abril de 2004 (conforme resulta das conclusões 42, 51 e 52 das alegações de recurso).

48. Contrariamente ao entendimento vertido no Acórdão recorrido e melhor resulta da factualidade dada como não provada e impugnada pelos AA. nas alegações recursivas, conforme resulta também das sobreditas conclusões 42, 51 e 52 do recurso, os AA tinham um corpus antes de 2005, existindo já o objecto desse corpus antes de 2005, ou seja, a parcela de terreno no topo ... do prédio pretendida destacar, como aliás a mesma foi objectivamente delimitada e definida nas plantas de localização, nos estudos prévios e nas plantas de implantação do projecto de construção ou de arquitectura apresentado à C.M de ....

49. Foi sobre essa parcela de terreno concretamente definida e delimitada na implantação do projecto de construção– e não sobre a totalidade do prédio inscrito no artigo matricial urbano ...86 - que, como resulta dos factos dados como não provados na sentença e pretendidos alterar conforme a motivação vertida pelos AA nas suas alegações de recurso, o A./Recorrente delimitou, concebeu e projectou a implantação da construção como declarou, de forma clara, isenta e com conhecimento de facto, o arquitecto autor do projecto de construção, Arquitecto DD, em coerência com as declarações do então vereador da Câmara Municipal, Engº EE, que conheceu o projecto e o local definido para a implantação da moradia na dita parcela ... do prédio (conclusões 33 a 35 do recurso), mas também a mãe do A., em coerência com as declarações da funcionária dos registos e notariado, FF, que declarou que tal parcela de terreno – correspondente á implantação da moradia do autor – era já prevista ser a destacar do prédio pela mãe do Autor, logo que terminasse o prazo de 10 anos do ónus de não fracionamento que pendia sobre o prédio (conclusões 30 a 32 do recurso dos autores).

50. A função do instituto da usucapião é não só atribuir o direito de propriedade ao possuidor, mas também consolidar, afirmar e determinar com rigor os limites materiais do objecto sobre o qual se praticam os actos materiais, reveladores do direito real de gozo em causa, ou, aquele que o animus possidendi revelar, nos termos do art° 1251° do CC.

51. No caso, a situação dos AA. configura posse não titulada, uma vez que o negócio jurídico é nulo por falta de forma sendo que, decorrido o prazo da usucapião, constituiu-se, de modo definitivo.

52. Ora, quando uma das partes invoca a usucapião não pode exigir-se-lhe que prove essa alegação unicamente com base em documentos, vedando-lhe a possibilidade de recorrer à prova testemunhal, factos materiais da doação verbal e da posse continuada, pacifica e de boa fé que os AA. entendem foram provados e resulta das conclusões de recurso 15 a 63, emergente dos factos dados como não provados que objectiva e concretamente impugnou nas suas alegações de recurso.

53.Destarte, diversamente do decidido, os factos inerentes à usucapião dados como “não provados” na sentença recorrida e impugnados em recurso da matéria de facto, não são despiciendos, irrelevantes ou inócuos para a solução de direito do caso, devendo, portanto, ser apreciados, valorados e alterados, para assim se assim se poder decidir.

 54. Sendo a usucapião assente num poder de facto, a prova testemunhal é aquela que melhor permite ao julgador apreciar a atuação das partes, não havendo qualquer razão para a considerar inadmissível ou para não valorar todos os factos que com ela contendam ou susceptiveis de provar tal actuação.

55. Estando em causa a prova de actos reveladores de posse tendente à aquisição por usucapião – para cuja verificação a prova testemunhal assume um papel fundamental –, há que distinguir uma tal realidade da observância, ou não, de formalismos legais próprios de certos actos, pois o que sobreleva, em tal contexto, é a prática dos mesmos.

56. O apossamento traduz-se na aquisição unilateral da posse por via do exercício de um poder de facto, ou seja, pela prática reiterada, com publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito (artigo 1263º alínea a) do Código Civil).

57. Resultando da decisão pretendida alterar e da ponderação da impugnação da matéria de facto do recurso, que os AA exercem nos últimos 15 anos poderes de facto sobre a parcela de terreno em questão, tanto mais que sobre a mesma os AA. implantaram a sua casa há, pelo menos, 15 anos e foram estes que a ocuparam e fruiram e nela executaram a construção de uma moradia, dos anexos, da garagem e da piscina e lá residiam, como continuando a utilizar e a habitar, até à presente data, sendo que a moradia está murada, não podem o R/Recorrido, adquirente em acção executiva (por ter requerido a adjudicação do prédio em que a dita casa não está descrita ou registada) ser declarado proprietário da casa.

58.Acresce que, diversamente do aresto em crise, foram os AA/recorrentes que intentaram a presente acção reivindicativa da propriedade da parcela de terreno ... do prédio e da benfeitoria por eles nela edificada, em conformidade com a implantação e o projecto que conceberam para a dita parcela de terreno concreta e objectivamente delimitada, e que habitam até à presente data, praticando nela todos os atos materiais inerentes ao gozo e habitação própria permanente, pelo que, todo o decurso do tempo deste a posse da parcela de terreno, ainda antes de Abril de 2004 (data da apresentação do projecto da implantação da moradia na Câmara Municipal), até à presente data conta como prazo da usucapião.

 59. Mais, os AA/Recorrentes nunca foram citados pelo R/Recorrido para qualquer acção de reconhecimento do direito de propriedade do R/Recorrido sobre a aludida parcela ... do terreno do prédio, sendo que apenas a citação faria cessar a boa fé do possuidor e interrompe o prazo de usucapião dos AA/Recorrentes – a qual, no caso, não existiu pois que a acção em causa foi proposta pelos AA./Recorrentes.

60. Pelo que, entendem os AA/Recorrentes, provou-se que a ocupação do imóvel por eles levada a efeito é, inequivocamente, anterior a Abril de 2004 (data da apresentação do projecto na CM com a planta de implantação da moradia já definida, delimitada e decidida pelo A.).

61. E provou-se, no entender dos Recorrentes como invocam nas suas alegações recursivas, que tal posse era pública e pacífica, pois era exercida à vista de toda a gente e foi obtida pacificamente (cfr. artºs 1261º e 1262º do C.Civil).

62. Por outro lado, provou-se ainda, como pugnam os AA/Recorrentes, que tal parcela de terreno a ... do prédio pertencia anteriormente aos pais do A./Recorrente e, anteriormente, aos avós do A./Recorrente, sendo, pois, tal posse, por si e seu antepossuidores, de boa fé.

63. A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (art. 1259º do C.C), sendo manifesto que atenta a posse anterior titulada pelos pais e avós do A/Recorrente,lograram ilidir a presunção legal da sua posse não titulada, como resulta também da factualidade material constante das conclusões 18 a 29, 34, 36 a 39 das sua alegações recursivas.

64. No caso, a posse mantém-se até aos dias de hoje (a tutela judicial que tenha por objecto a propriedade não interrompe a posse).

65. Por outro lado, na acção proposta pelos Autores, o R. limitou-se a pedir que a acão seja julgada improcedente por não provada, nada peticionando para efeitos do reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno pretendida autonomizar e destacar e/ou sobre a benfeitoria da moradia nela edificada pelos Autores e omissa quer na escritura de aquisição dos terceiros adquirentes do prédio composto, unicamente, de um armazém amplo e logradouro, quer na descrição predial.

66. Como vem sendo decidido superiormente, o possuidor atual pode juntar (acessão da posse do art. 1256.º do C. Civil) a sua posse à posse do seu antecessor, caso tenha adquirido a posse deste por qualquer um dos modos de transmissão da posse que o direito reconhece (a tradição e o constituto possessório), independentemente da validade (formal e substantiva ou apenas formal) do título de transmissão.

67. Destarte, é manifesto o fundamento legal dos Autores em contar até ao presente o prazo para a usucapião iniciado antes de Abril de 2004 (data da apresentação do projecto de construção à Câmara Municipal), sendo o mesmo de 15 anos, por se tratar de posse de boa fé, pelo que usucapiram quanto à aludida parcela de terreno reivindicada pelos AA. no topo ... do prédio.

68. Assim, contrariamente ao entendimento vertido no aresto em crise, impõe-se julgar procedente o fundamento da usucapião, também e logo em relação delimitação e à implantação da construção na dita parcela de terreno ainda antes da apresentação do projecto de construção à Câmara Municipal conforme entendem os AA. foi provado (e, por isso, pretendem ver alterada a factualidade dada como não provada e objectivamente impugnada) que o A. interveio ainda nos “estudos prévios” da implantação do projecto de construção da moradia, como o A. a definiu, estudou e projectou conforme também a concepção e arquitectura da construção moderna que concebeu, implantou e edificou na dita parcela de terreno e que vem gozando e ocupando, de boa fé, continuada e pacificamente, e que habita, com o seu agregado, até aos dias de hoje.

69. Acresce que, os AA. alicerçaram o direito arrogado na aquisição da posse da dita parcela de terreno, ainda que por doação inválida dos anteriores possuidores, na sequência do que ocorreu uma prática reiterada, com publicidade, de uso e fruição do referido prédio, dele retirando todas as utilidades, até à presente data, nomeadamente demarcando-o, limpando-o, conservando-o, continuando a beneficiação e as obras na construção da moradia, arrumos e piscina (inacabada), sem oposição de ninguém e na convicção de que não lesava direitos de outrem.

70. Incide a controvérsia em causa, não sobre a titularidade do prédio inscrito com o artigo matricial urbano ...86 e descrito sob o número ...74/..., mas, mais propriamente, sobre a sua precisa delimitação física, em consequência de ambas as partes se arrogarem a propriedade de determinada parcela de terreno pretendida destacar pelos pais do A. e da qual os AA/Recorrentes se afirmam e reconhecem proprietários.

71. A acção de reivindicação só poderá proceder na totalidade se puder considerar-se processualmente adquirido, como verdadeiro facto essencial, que o efectivo exercício de actos possessórios pelos AA e seus antecessores, susceptível de conduzir à usucapião, incidiu também sobre a aludida parcela de terreno (e benfeitoria) cuja titularidade é controvertida.

72. O quadro factual da composição do litígio, relevante para operar a respectiva subsunção normativa, não se circunscreve assim apenas às respostas aos quesitos, pois estas serão complementadas e esclarecidas pela fundamentação ou motivação do julgador.

73. Incumbe às instâncias decisórias sopesar, valorar, desenvolver e integrar toda a matéria factual relevante, para assim poder complementar o quadro fáctico através da formulação de presunções judiciais ou naturais, assentes nas regras de experiência, que permitirá inferir factos que, constituindo lógico desenvolvimento dos que constam das respostas aos quesitos, contribuem para delinear de forma completa e integrada a matéria litigiosa.

74. No aresto em crise, a Relação entendeu não valorar, sopesar ou extrair da factualidade pretendida alterar pelos Autores para ser por ela reapreciada, e consequentemente interpretar a matéria de facto impugnada no recurso interposto em acção de reivindicação, com vista a decidir se determinados actos possessórios dos demandantes, tidos por não provados na sentença recorrida, abrangeram ou não determinada parcela de terreno do prédio, reivindicada, desde logo por ter entendido que a transmissão dos seus antepossuidores (pais) para os autores/recorrentes (filho e conjuge) por doação verbal ocorreu por ato formalmente inválido, logo, não tendo interesse útil para o Tribunal a quo a apreciação ou valoração da concreta factualidade material impugnada.

75. Contudo, diversamente do decidido, entendem os Recorrentes que é jurisprudência e doutrina pacífica que quando está em causa, numa acção de reivindicação, o direito de propriedade de uma das partes (ou de ambas, quando cada uma delas reivindica para si esse direito) sobre uma determinada parcela de terreno e se essa parcela pertence (faz parte integrante) ao prédio de uma ou de outra delas devem ser apurados e valorados os atos ou situações concretas integrativos da propriedade e/ou da posse.

76. Efectivamente, o conceito de propriedade (ou de proprietário) deve ser traduzido em factos integradores do modo de aquisição desse direito invocado pelo reivindicante – o mesmo se diga quanto á impugnação pelo réu desse direito (em obediência ao ónus de impugnação especificada).

77. No caso, o Aresto em crise também nada valorou, apreciou ou sopesou quanto à matéria de facto dada como não provada na sentença e impugnada nas alegações recursivas atinente ao destaque da parcela de terreno delimitada e com a configuração em que veio a ser aprovado o projecto de construção, e/ou em que data foi tal destaque pretendido efectuar pelos pais do A. e pelos AA. na respectiva Conservatória de Registo Predial ... antes da implantação da moradia nas plantas de implantação, desenhos e elementos do projecto de construção e da aludida construção da benfeitoria, a qual só não lograram por impender sobre o aludido prédio um ónus de não fracionamento por 10 anos (neste sentido, vejam-se as conclusões 30 a 36 do recurso dos recorrentes, as declarações das testemunhas EE (Vereador à data da aprovação do projecto de construção), FF (funcionária da conservatória) e DD (arquitecto e autor do projecto da moradia implantada na parcela) todos com conhecimento directo dos factos quanto à localização e implantação e limites da concreta parcela de terreno pretendida destacar ainda antes da construção e na qual foi implantada a moradia e os concretos pedidos formulados na petição inicial).

78. A definição e a delimitação física da parcela de terreno a destacar tal qual foi apresentada à Câmara Municipal para nela ser aprovada a construção e a data em que tal ocorreu é, por si só, relevante para a prova da propriedade, não sendo tal facto despiciendo, inócuo ou irrelevante para a solução jurídica a dar.

79. Reitera-se, o litigio em causa não versa sobre a titularidade do prédio inscrito com o artigo matricial urbano ...86 e descrito sob o número ...74/..., mas, antes, sobre a sua precisa delimitação física de uma parcela de terreno pretendida destacar do prédio pelos pais do A. e da qual os AA/Recorrentes se afirmam e reconhecem proprietários.

80. No caso, a aludida parcela de terreno foi concreta e objectivamente delimitada pelos autores na acção, objecto de perícia quanto à mesma delimitação, configuração e confrontações (e quanto ao valor da construção), como também foram as testemunhas arroladas pelo AA/Recorrentes confrontados com as plantas de implantação da parcela de terreno sita no topo ... do prédio que, inequivocamente, identificaram como sendo aquela que era a destacar do prédio e como sendo propriedade dos Autores/Recorrentes e que lhes foi doada pelos pais do Autor.

81. Destarte, é relevante o conhecimento da matéria de facto apurada/impugnada sobre factos materiais atinente à propriedade/posse e seus contornos no caso concreto, designadamente atinente à doação verbal não titulada aos autores e à data da delimitação da parcela de terreno a usucapir (e pretendida á data destacar do prédio) na qual foi implantada, em plantas e nos desenhos técnicos do projecto, a construção dos autores.

82. Salienta-se que, caso o Venerando Tribunal entenda ou considere que é exígua factualidade dada como assente e que esta não permite perspectivar ou avaliar, ainda que com grau mínimo de concretização, a extensão, profundidade, relevo e repercussões na vida dos autores nem discernir em que medida os réus perdem valor consubstanciado nessa dita parcela de terreno – pois que resulta provado nos autos que nem os terceiros, nem o réu procederam a qualquer ato de construção na dita parcela pretendida autonomizar – então deve promover e ordenar a produção dessa prova, inclusive podendo mandar completar e esclarecer essa factualidade concreta em julgamento.

83. De facto, o tribunal da Relação pode alterar a matéria de facto apurada pelo tribunal da 1ª instância nos apertados limites da previsão dos nº 1 e 4 do art. 712º do C.P.C..

84. É lícito ao Supremo Tribunal sindicar o bom ou mau uso pelo Tribunal da Relação dos poderes supra referidos mas também se impõe aos superiores interesses da realização do direito e da justiça que a justificação de que a alteração da matéria de facto é “insuficiente” não seja banalizada ou generalizada, designadamente fazendo o “salto” para soluções de direito acríticas e despidas dos factos materiais que lhes devem estar subjacentes numa interpretação dinâmica do direito, em obediência ao principio da efectiva tutela jurisdicional.

85. É sabido que os conceitos jurídicos da usucapião, posse e da propriedade devem ser integrados e densificada nos atos materiais que os revelam e enformam, sendo relevante apurar e fazer o exame critico dessa factualidade para a boa decisão, designadamente quando se trata da casa de morada de família, no caso, dos autores, avaliada nos presentes autos em valor superior a 400.000,00€ (quatrocentos mil euros), preço que os terceiros adquirentes do prédio (executados pelo aqui réu7recorrido) comprovadamente não pagaram no ato de aquisição do artigo matricial ...86 e da descrição predial ...74/..., o que sempre configuraria abuso de direito e enriquecimento sem causa do Réu que se locupleta da benfeitoria dos autores sem a pagar (pois limitou-se a pedir a adjudicação do prédio cuja venda requereu e promoveu na acção executiva sem nunca demandar os terceiros ocupantes, aqui autores), actuando com má fé, questões que a Veneranda Relação não conheceu.

86. Consequentemente, o aresto em crise decidiu, com erro, de que a indemnização da benfeitoria aos autores deve ser feita pelos terceiros executados (e expoliados da benfeitoria) e não contra aquele que a recebeu, quando a moradia e, consequentemente, “os melhoramentos” continuam a ser executados pelos Autores na dita parcela de terreno, mesmo depois da escritura de mútuo do prédio, da acção executiva e para além da adjudicação do prédio requerida pelo Réu.

87. Assim, atento o mal andou o tribunal a quo ao decidir como decidiu, entendendo não conhecer da totalidade da matéria de facto impugnada por ser alegadamente insuficiente para a solução de direito a proferir atento um conceito restritivo da aquisição da propriedade (de que a doação verbal não titulada não é válida omitindo que “se a essa doação, embora inválida, se sucederem todas as acções e situações que possam ilustrar a aquisição por usucapião, (…) pode ser válida”, sendo manifesto que a valoração dos factos “não provados” e impugnados pelos recorrentes nas suas alegações, e pretendidos alterar em recurso, é relevante para a efectiva tutela jurisdicional e para a boa decisão das soluções de direito a proferir que deve ser conforme com a realidade dos atos e dos factos materiais em causa vividos pelos autores.

88. Mais, também sobre a Relação impende o dever imposto pelo nº 4 do art. 590º imposto e como decorrência do disposto no art. 662, nº2, al c), do CPC, ao abrigo e no uso e exercício dos seus poderes, que lhe cumpre determinar “oficiosamente” como foi intenção do legislador e decorre também do principio da jurisdição efectiva, pelo que nunca o Acórdão recorrido pode ter fundamento no entendimento de que a falta de um dever processual do juiz incumbe à parte (ainda que esta não conheça da nulidade processual por a insuficiência ou deficiência da alegação do articulado inicial não ter sido notada antes à prolação de Acórdão que a invoca para não decidir).

89.Como entende a recorrente, não pode ser-lhe atribuída a omissão de ato imposto por lei com repercussão negativa na regularidade formal do acórdão que proferiu e que só agora a conheceu.

 90. Como resulta do acórdão fundamento, o vício de insuficiência da decisão de facto é equacionável com base no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), parte final, do CPC, sendo de conhecimento oficioso e suscetível de implicar a prática do ato omitido, ou seja, a formulação do convite vinculado nos termos do disposto no art. 590º nº2, 3 e 4 do CPC, sob pena da decisão proferida no Acórdão atentar contra princípios estruturantes do direito processual civil, como seja o principio do exercício do contraditório e o principio da tutela da jurisdição efectiva, tudo como ora pugna a recorrente com a alteração do decidido no Acórdão recorrido, assim se fazendo

91. O acórdão recorrido está afetado pela violação de normas que lhe é imputada pela recorrentes, no entendimento que o acórdão recorrido sufragou, pelo que a presente revista deve ser julgada procedente, alterando o acórdão recorrido, decidindo do convite de aperfeiçoamento à autora da petição inicial quanto aos factos atinentes à posse dos autores, concretamente, quanto à definição da implantação da construção na parcela de terreno (constante já do projecto de construção), a data em que foram discutidos os “estudos prévios” com o arquitecto e como ocorreu a delimitação física da parcela de terreno a destacar ou desanexar do prédio, a fim da contraparte e do julgamento se poder realizar sobre a factualidade tida por insuficiente/deficiente, porém essencial e determinante à prova dos factos face aos elementos documentais careados e às declarações das testemunhas (conclusões 15 a 63), ou bem assim decidindo da ampliação da matéria de facto e/ou da repetição do julgamento para a prova dos factos essenciais e relevantes supra elencados, atos processuais omitidos e indispensáveis à melhor e correcta decisão das soluções de direito no caso concreto, tudo em obediência e realizando cabalmente o principio da jurisdição efectiva.

Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, recebida presente revista, deve a mesma ser julgada procedente por provada, e o acórdão recorrido anulado e substituído por outro que corrigindo o erro de julgamento sobre o inicio da posse dos autores (ainda antes da implantação da moradia, anexos, garagem e piscina na parcela de terreno, como foi fisicamente delimitada e apresentada no projecto de construção), convide a autora/recorrente a suprir e a aperfeiçoar a petição inicial quanto á factualidade tida pela Relação com deficiente ou insuficiente para a decisão de direito a proferir atenta a factualidade material especificadamente impugnada nas alegações e constante das conclusões 15 a 63 do recurso (e decidida na sentença recorrida), devendo ainda apurar os factos atinentes aos “melhoramentos” que continuam e continuam a ser executados pelos Autores na dita parcela de terreno, ou bem assim, decidindo da ampliação da matéria de facto e/ou da repetição do julgamento para a prova dos factos essenciais e relevantes supra elencados, atos processuais omitidos e indispensáveis à melhor e correcta decisão das soluções de direito no caso concreto, tudo em obediência e realizando cabalmente o principio da jurisdição efectiva, tudo com as legais consequências”.

Responde o réu, concluindo:

“I.A interposição deste recurso se pretende protelar o desfecho da acção, adiando uma decisão perfeitamente justa.

II. Os Recorrentes não cumprem o ónus de alegar, conforme dispõe o art. 639.º do C.P.Civ., deixando à Recorrida e a esse Venerando Tribunal o dever de destrinçar as razões do recurso.

III. Fazendo da sua tese factos provados, pretendem que o Tribunal decida em conformidade com estes, sem qualquer fundamento, sendo que imputam ao Tribunal a quo o poder-dever de investigação dos elementos probatórios que entenda necessários para o sucesso da acção, ao arrepio do ónus da prova estabelecido e do princípio da auto-respondabilidade das partes, o que é inadmissível.

IV. Sendo, pelo contrário, o trabalho meticuloso do Tribunal a quo evidente, não deixando margem para dúvidas que inexiste qualquer erro na apreciação da impugnação da matéria de facto, devendo ser mantida a decisão.

V. No que ao direito concerne, a motivação do douto Acórdão posto em crise é tão clara e pormenorizada que só por si bastaria para persuadir os AA., ora Recorrentes, a interpor o presente recurso, pois bem sabem que não lhe assiste razão.

Termos em que, nos melhores de Direito e com o douto suprimento de Vossas Excelências, não deve o presente recurso ser admitido por não se mostrarem verificados os requisitos previstos para a sua admissibilidade ou, caso assim não se entenda, julgado improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA!”.


*


O recurso foi admitido.

Cumpre apreciar e decidir.


*


Nas Instâncias foram julgados como provados e não provados, os seguintes factos:

“1º Encontra-se edificada uma casa de habitação composta de arrumos, garagem e piscina numa parcela do topo ... do prédio urbano composto de terreno e armazém amplo, situado Rua ..., ..., ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ...             sob o número ...12 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...86 da dita freguesia ... [art1pi].

2º O edifício de “casa de habitação” é constituído por ... e ... andar, com garagem e piscina, sendo de tipologia ..., com área de construção de cerca de 695 m2 [art3pi].

3º A empresa “M..., Ld.ª” atravessava dificuldades económico-financeiras [art15pi].

4.º A moradia pese embora esteja quase acabada e reúna as necessárias condições de habitabilidade, faltando apenas os últimos acabamentos finais, permanece, até à presente data, sem ter sido emitida a respetiva licença de utilização [art34pi].

5º O A. contratou financiamentos juntos de instituições bancárias [art35pi].

6.º O A. outorgou um financiamento bancário junto do Banco Popular, no montante de 10.000,00€ [art36pi].

7.º Mais outorgou um financiamento bancário junto do Banco Santander, no montante de 10.000,00€ [art37pi].

8.º Mais contraiu um financiamento junto do Finibanco, no montante de 160.000,00€ [art38pi].

9.º Procedeu ao registo da hipoteca, inerente ao mútuo id. em 38), sobre o artigo matricial urbano ...70 da freguesia ..., em nome do A e sua cônjuge, descrito na Conservatória de Registo Predial ..., na ficha nº ...19 [art39pi].

10.º Na aludida habitação residem os AA. e residem também dois filhos menores, bem como o irmão, a avó e os pais do A. [art44pi]

11.º O A. exerce ainda a sua atividade profissional de ... num armazém sito no aludido prédio identificado em 1º deste petitório, que constituem as instalações do estabelecimento industrial montado pela firma “A..., Unipessoal Ldª” [art45pi].

12.º O A. contraiu matrimónio com a A., BB, no regime de comunhão geral de adquiridos, tendo dois filhos menores, respetivamente, II (nascido em .../.../2008) e JJ (nascido em .../.../2011) [art46pi]

13.º O imóvel composto de casa de habitação de ... e ... andar, tipologia ..., com área total de 695m2, com dois arrumos, garagem e piscina, tem um valor não inferior a 430.000,00€ (quatrocentos e trinta mil euros).

14º os AA. passaram a habitar nela, como vem habitando com o seu agregado familiar, pelo menos desde 08.2007 [art57pi].

15.º. Nela confecionando as refeições, fazendo a sua higiene, dormindo, diariamente [art75pi].

16º Por escritura pública celebrada a 31 de Maio de 2007, A Ré concedeu aos mutuários GG e HH, um empréstimo no montante de 350.000,00 €, quantia essa que foi integralmente utilizada pelos mutuários através de várias tranches que foram sendo creditadas na conta de depósitos à ordem dos mesmos e de que se confessaram e que destinaram aos fins que bem entenderam, cf. Doc. 1 que agora se junta e aqui dá por reproduzido e integrado para os devidos e legais efeitos [art3contestação]

17º Para garantia do bom e pontual pagamento do empréstimo concedido, os mutuários constituíram a favor da Ré, na mencionada escritura, hipoteca sobre o seguinte bem imóvel:

Prédio urbano composto de armazém amplo e logradouro, situado em ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...86, descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o número ...74/... e aí registado a favor dos executados pela inscrição G, apresentação ... de 29 de Janeiro de 2007 [art5contestação].

18º Os mutuários não cumpriram as obrigações a que estavam adstritos, nomeadamente, o pagamento das prestações, tendo a Ré promovido a competente acção executiva, processo que corre termos sob o n.º 278/11...., no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo de Execução ... - Juiz ..., cf. Doc. 2 que agora se junta e aqui dá por reproduzido e integrado para os devidos e legais efeitos [art7contestação].

19º O referido processo correu os seus termos tendo o Banco Réu apresentado proposta de adjudicação do imóvel a 21.12.2012, após frustração da venda do imóvel por propostas em carta fechada, vide decisão sobre a modalidade de venda, de 02.12.2011, auto de abertura de propostas e consequente determinação de venda por negociação particular, de 08.03.2012 - Docs. 3 e 4, que agora se juntam e aqui dão por reproduzidos e integrados para os devidos e legais efeitos [art8contestação].

20º O prédio urbano composto de armazém amplo e logradouro, situado em ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...86, descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o número ...74/... foi declarado vender ao réu que aceitou comprar pelo preço de 334.000€ no âmbito da ação executiva nº278/11... em que figurava como exequente o réu e como executados GG e HH [art2contestação].


*


Factos não provados:

- Da petição inicial:

2º. …por ter sido por eles edificada,…

4º …após acordo da família, os pais do A. autorizaram a construção numa parcela … que, para tanto, doaram verbalmente ao A., em 2005, tendo então o A. passado a desenvolver os procedimentos tendente à construção da casa de habitação na aludida parcela do prédio urbano …

5.º Para tanto, o A. promoveu pela execução dos necessários projectos de arquitectura e das especialidades,

(…)

11.º Como os pais do A. se comprometeram, em reunião de família, a doar igual quantia aos irmãos, KK e LL, logo que os mesmos viessem a contrair matrimónio, como “prenda de casamento”.

(…)

17.º Assim, entre finais de 2006 e 2008, os AA., …, pagaram as obras e os materiais de construção civil inerente às aludidas construções de moradia com garagem, arrumos e piscina – vd. Doc nº21 a 29.

18.º Designadamente, inerente á colocação da betonilha, da tijoleira, 19.º À execução dos trabalhos de alvenarias,

20.º E com o isolamento térmico.

21.º Mais mandou executar toda a instalação elétrica da moradia, arrumos, garagem e arranjos exteriores junto à piscina,

22.º E mandou executar a colocação de telha nas aludidas construções. 23.º O A. mandou, ainda, executar os pavimentos e cerâmicas,

24.º E, conjuntamente com os seus familiares, procedeu á execução parcial das pinturas exteriores, estando, nessa parte, apenas parcialmente concluída a obra. 25.º Tendo, ainda, mandado executar a terceiros as pinturas interiores e todos os acabamentos em geral (vernizes e outros) e, ainda, os muros envolventes,

26.º Mais, mandou executar e suportou as despesas inerentes ao assentamento da pedra e cerâmicos da piscina e sua envolvente.

27.º E mandou executar e suportou as despesas com a colocação da caixilharias de alumínio, janelas e estores.

28.º O A. procedeu, ainda, à colocação de estuque, massas aplicadas e gessos na moradia, garagem, arrumos e piscina anexa à habitação.

35.º Acresce que, no intuito de suportar as despesas inerentes à edificação da moradia, anexos e piscina,…

40.º O valor global do investimento dos AA. na aludida construção da moradia, garagem, arrumos e piscina, ascende ao total de €400.000,00 (quatrocentos mil euros).

(…)

54º … que as projetou, edificou e vem edificando, desde, pelo menos 2005, e anteriormente pelo A.

55.º e que pagaram e vem pagando todas as benfeitorias urbanas realizadas, constituídas por tais construções (moradia com garagem, arrumos e piscina)

(…)

58º Os AA. investiram e vêm investindo, com a sua força e instrumentos de trabalho e os seus rendimentos, deles se servindo, para fazer face às despesas inerentes à empreitada de construção civil da edificação

59.º nomeadamente nela executando o A. os trabalhos de construção civil e ..., durante anos, meses e dias seguidos,

60.º e, conjuntamente com a sua cônjuge e familiares, que o auxiliam nas tarefas de construção e limpeza,

61.º executando e assentando, também, todo o mobiliário e rodapés,

62.º auxiliando nos trabalhos de assentamento dos pisos de madeira e de tijoleira, 63.º no carregamento e transporte de ferramentas e equipamentos de construção civil para as obras,

64.º escolhendo os materiais a aplicar e os fornecedores,

65.º executando e fornecendo todos os materiais de ..., nomeadamente para apoio e vigamento, entre outros.

68º Direito de uso e habitação própria permanente dos AA. e do agregado familiar como é reputado e do conhecimento de todos os vizinhos, amigos e entidades locais (…)

73.º Os AA, e o seu agregado familiar … por si e em continuação dos respectivos antecessores, edificaram, têm utilizado e fruído, e gozam da propriedade e posse da referida “habitação” [para o caso de se entender que tem algum conteúdo fáctico]. 74 …ininterruptamente,

(…)

80.ºE recebendo os ascendentes do A. e a sua avó, e nela deles cuidando, dando residência e um lar, e deles tratando, assegurando todas as necessárias condições condignas de vivencia, alimentação e pernoita,

81º. tudo á vista de todos e com o conhecimento geral, de forma pública e notória, 82.º sem oposição de quem quer que fosse e como se de coisa sua se tratasse e com a convicção de quem exerce um direito próprio, como seu dono.

85º. Tendo sido o A. que fez tramitar os procedimentos necessários à construção da mesma, á vista de todos, de forma pública e pacifica, tendo

86º. para tanto, promovido e logrado a aprovação do projecto de obras e obtido o indispensável licenciamento da construção.

(…)

107.º É, consequentemente, o A. e os seus antepossuidores que sempre tiveram uso, gozo e fruição daquela parcela ... de terreno onde foi implantada a habitação (casa, garagem e piscina), publica e ininterruptamente, há mais de 15, 20, 25 e 30 anos.

(…)

111.º e, mais tarde, limpando a aludida parcela de terreno para a construção da habitação (com arrumos e garagem),

(…)

115.º que os AA. e seus familiares foram construindo, continuada e paulatinamente, na aludida parcela de terreno (situada na parte ... do artigo matricial urbano ...86º),

116.º sempre à vista de todos, de boa fé e sem oposição de quem quer que fosse, 117.º gozando, fruindo, limpando, tratando e edificando aquela dita parcela de terreno, de forma própria e autónoma, sempre na convicção de pertencer aos AA., como pertence.

118º…o que criou e cria nos AA. uma profunda frustração e mágoa, além de discussões”.


*


Conhecendo:

São as questões suscitadas pelo recorrente e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 608º, 635º, nº 3 a 5 e 639º, nº 1, do C.P.C. No caso em análise questiona-se:

Matéria de facto:

1-Não apreciação pelo Tribunal recorrido dos factos não provados 2, parte do 4, 5, 11, 17 a 35, 40, 54, 55, 58 a 65, 73, 74, 80 a 86 e 115, que haviam sido impugnados no recurso de apelação, por entender ser inútil conhecer da impugnação dessa matéria de facto.

2-Não apreciação da impugnação do facto 118 dos não provados, por inexistir apoio algum, por mínimo que seja, na motivação do recurso de apelação.


*


Nos presentes autos a sentença julgou a ação improcedente, absolveu o réu dos pedidos e, condenou os autores como litigantes de má-fé na multa de 10 UC.

No que interessa ao objeto do recurso, que se relaciona com a eventual posse dos autores iniciada após uma doação verbal, compete averiguar se essa posse é suscetível de provocar a aquisição por usucapião, quer por si, ou em conjunto com a posse dos antecessores. É referido na sentença: “No caso não ficou provada a alegada doação verbal, nem sequer factos que permitam concluir que os autores, por si e seus ante possuidores tenham exercido sobre o imóvel que reivindicam posse pacífica, publica, de forma continuada, de boa-fé, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, em nome próprio e exclusivo até á presente data, na convicção de usufruírem coisa sua e própria.

Impugnando os autores a decisão da matéria de facto, nomeadamente em relação aos pontos dos factos provados suprarreferidos, foi decidido pelo acórdão recorrido que o decurso do prazo da posse pelos autores, da parcela de terreno em causa, era insuficiente para fundamentar a aquisição por usucapião e, no caso não havia lugar a acessão da posse porque os autores alegaram que a parcela de terreno lhes foi doada verbalmente, o que não preenche o requisito legal de forma exigida para ser válida. Refere o acórdão recorrido: “Portanto, há que concluir que os AA não podem somar à sua eventual posse a dos pais do A. e seus antecessores, pelo que permanecendo como início eventual da posse a data de 2005 o período legal para aquisição por usucapião não decorreu.

E, de novo, se relembrando, o porquê de acima se ter expresso que era inútil conhecer a impugnação da matéria de facto referente, nesta situação, aos factos não provados 4., em parte, 107., 111., 115. a 117.

De qualquer modo, mesmo que se entendesse que as ditas posses se podiam somar deparávamo-nos com um obstáculo conexionado à eventual posse dos antepossuidores do A. É que neste âmbito apenas temos como relevante o apontado facto não provado 107., que dado a sua generalidade e carácter conclusivo não permite traçar que actos possessórios, afinal de contas, os antepossuidores do A. terão praticado na controvertida parcela para efeitos de usucapir.

Na perspetiva do acórdão recorrido, aqueles factos objeto de impugnação pelos autores são irrelevantes porque não são suscetíveis de alterar a situação jurídica verificada.

A enunciação dos temas da prova deverá ser balizada somente pelos limites que decorrem da causa de pedir e das exceções invocadas.

E se os factos cujo julgamento é impugnado não forem suscetíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação da decisão proferida pela 1ª instância, no plano dos factos.

Só a matéria de facto que se possa considerar indispensável (mesmo no sentido mais lato de instrumental), isto é, quando se revele necessária/imprescindível à decisão de direito que se vai tomar na Relação e àquele que pode vir a ser tomada, eventualmente, pelo Supremo é que deve ser tomada em consideração, quando seja objeto de impugnação em recurso.

Importa, pois, analisar se, no caso concreto, a matéria de facto impugnada na apelação tem a relevância/imprescindibilidade como alegam os autores, ou não tem, como sustenta o acórdão recorrido.

E fulcral é saber se no caso concreto se pode verificar a acessão na posse.

Na declaração de voto no acórdão recorrido é referido: “(…) No caso, a questão acaba por não assumir relevância, porquanto a Ré adquiriu a propriedade da totalidade do prédio, incluindo a parte aqui reivindicada pelos Autores, às pessoas de quem os Autores pretendem aceder na posse.

Como os antepossuidores a quem os Autores dizem ter acedido na posse transmitiram, coativamente, é certo, em processo executivo, o direito de propriedade ao Réu, também lhe transmitiram a posse inerente a esse direito de propriedade e daí que não haja posse acessível para os Autores, pois essa posse, repete-se, foi transmitida à Ré ao adquirir o direito de propriedade.

Aqui entendemos a questão de outra maneira, ou seja, quando os antepossuidores a quem os autores dizem ter acedido na posse transmitiram o direito de propriedade, poderiam fazê-lo/fizeram-no em relação à parcela de terreno que haviam doado?

Se, para efeitos de aquisição por usucapião, alguém quer somar a sua posse à posse dos antepossuidores é porque se verificou uma alteração na titularidade da posse, uns foram possuidores e deixaram de ser e outros não eram e passaram a ser possuidores.

Com a transmissão, por doação, do direito de propriedade ocorre a transferência da posse para o donatário, novo proprietário, com a consequente perda pelo transmitente.

A Jurisprudência do STJ vai no sentido de que para se poder aceder na posse não é imprescindível que a transmissão se tenha operado por ato formalmente válido. Estaremos é, perante posse não titulada.

Refere o Ac. do STJ de 02-12-2014, no Proc. nº 94/07.8TBSCD.C1.S1 que: “(…) para que a acessão da posse, a que alude o art. 1256.º do CC, se verifique, basta que o actual possuidor tenha adquirido a posse derivada do antecessor através da entrega ou tradição da coisa, sem que seja de exigir que a transferência se baseie em acto (translativo) formalmente válido. Neste caso, essa posse não será titulada e de má fé pelo que, caso o actual possuidor queira beneficiar da acessão na posse, dada a natureza da sua posse (não titulada e de má fé), a posse (do antecessor) valerá (somente) como não titulada (posse de “menor âmbito”).

Que sintetiza assim: “Se a posse for conferida ao actual possuidor através da entrega do bem mas sem que a transferência dela se faça por negócio formalmente válido, a consequência será (somente) a de se ter a posse como não titulada e de má fé (arts. 1259º nº 1 e 1260º nº 2). Nestas circunstâncias, caso o actual possuidor queira beneficiar da acessão, dada a natureza da sua posse (não titulada e de má fé), a posse (do antecessor) valerá (somente) como não titulada (posse de «menor âmbito»).

E o Ac. do STJ de 29-11-2016, proferido no Proc. nº 322/13.0TBTND.C1.S1, refere: “A existência ou não de título da posse, bem como a boa ou a má fé, influem apenas na determinação do prazo necessário à usucapião, mas não impedem a sua verificação. Deste modo, e atenta a sua finalidade, a acessão da posse não exige a validade do título justificativo da transmissão da posse.”

E no mesmo sentido o Ac. do STJ de 02-05-2012, no Proc. nº 1588/06.8TCLRS.L1.S1 e de 08-02-2018, no Proc. nº 642/14.7T8GRD.C1.S1 e, o Ac. da Rel. de Co., de 10-12-2020, no Proc. nº 1757/17.5T8CVL.C1.

Verifica-se que a nossa jurisprudência mais recente tem vindo a afastar-se da posição tradicional (que exigia um vínculo jurídico válido entre o atual e o anterior possuidor), passando a considerar que a acessão da posse não exige que a transferência da posse se baseie em ato formalmente válido.

E igualmente na doutrina. Esta posição é defendida por Abílio Vassalo Abreu, in  Revista da Ordem dos Advogados. – Lisboa, (Out./Dez. 2012) «Necessidade de uma Mudança Jurisprudencial em Matéria de Acessão de posse», onde afirma em relação à acessão na posse, que se verifica “uma fusão-confusão entre a fórmula restritiva «título diverso da sucessão por morte» de que fala ambiguamente o nº 1 do art. 1256º, onde, como vimos, se exige, para haver posse titulada, um requisito negativo – o de que o negócio-título (titulus adquirendi) legítimo ou idóneo, em abstracto, para adquirir o direito real nos termos do qual se visa possuir (ist est: o requisito positivo) não enferme de um vício de forma ad substantiam”, acrescentando que “na verdade, nada no preceito legal analisado (art. 1256.º) inculca a ideia de que tenha de existir um vínculo jurídico válido entre o novo e o antigo possuidor, cingindo apenas à observância de uma formalidade ad substantiam a acessão na posse; i.e., à posse titulada. Por outro lado, sendo possível a usucapião baseada na posse não titulada e de má fé, tal como decorre dos arts. 1296.º e 1299.º do CC, não se alcança qualquer razão para desaplicar, em tais casos, a acessão da posse”. E conclui este autor que “se a posse for adquirida através da entrega ou tradição real e houver inobservância de uma forma ad substantiam, apenas sucede que essa posse é não titulada (cf. a parte final do art. 1259.º, n.º 1, a contrario sensu) e, em consequência, presumida juris tantum (cf. art. 350.º, n.º 2) de má fé (cf. art. 1260.º, n.º 2). Donde deflui, tão-só, que se a posse do antecessor (tradens) for titulada e o actual possuidor (accipiens) quiser beneficiar da acessão, aquela posse valerá como não titulada (e, logo, presumida iuris tantum de má fé), cumprindo-se, assim, o requisito de «menor âmbito» (cf. art. 1256.º, n.º 2). É o que a nossa lei exige – e não mais nem menos do que isso”.

E no mesmo sentido Soares do Nascimento in Cadernos de Direito Privado nº 21, Janeiro/Março de 2008 e Menezes Cordeiro in «A Posse, Perspectivas Dogmática Actuais».

Segue-se, como supra se disse, a tese de que para que a acessão na posse, a que alude o art. 1256º, se verifique, basta que o atual possuidor tenha adquirido a posse derivada do antecessor através da entrega ou tradição da coisa, sem que seja de exigir que a transferência se baseie em ato (translativo) formalmente válido.

No ponto 11º da contestação diz a ré que “Por outro lado, estranha-se a posição dos AA. porquanto, quer o edital da penhora em 23.08.2011, quer o edital de venda em 11.02.2012, foram afixados no imóvel e estes nunca reagiram”.

Mas também se estranha que tendo a mãe do autor vendido aos mutuários da ré (e de quem esta houve o prédio) em 29-01-07 (sendo a escritura efetuada em 31-05-2007), os autores continuassem a fazer obras na construção (casa de habitação) em causa, posteriormente nela fossem habitar e aí continuem, como consta da matéria de facto provada, nomeadamente:

-10º Na aludida habitação residem os AA. e residem também dois filhos menores, bem como o irmão, a avó e os pais do A.

-14º os AA. passaram a habitar nela, como vem habitando com o seu agregado familiar, pelo menos desde 08.2007.

-15º Nela confecionando as refeições, fazendo a sua higiene, dormindo, diariamente.

 E na matéria de facto não provada, mas impugnada na apelação, nomeadamente:

-17.º Assim, entre finais de 2006 e 2008, os AA., …, pagaram as obras e os materiais de construção civil inerente às aludidas construções de moradia com garagem, arrumos e piscina.

Pelo que pode ter relevância conhecer da matéria dos factos impugnados e saber se se verificou ou não a acessão da posse.

Assim como terá relevância apurar outra matéria, nomeadamente a abrangência do que a mãe do autor vendeu aos mutuários da ré.

A venda excluía a parcela onde foi implantada a casa de habitação, como replicam os autores ou, “adquiriram o imóvel descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o número ...74/..., com tudo o que a compõe”, como treplica a ré?

É que consta dos articulados (réplica), sem que conste da matéria de facto apurada, nomeadamente:

-6ºPor outro lado, como alegam os AA. na sua petição inicial, a casa de habitação dos AA. (e antes dos pais do A.) não foi vendida a GG e a HH.

-18º Mantendo, portanto, os AA. e conservando tudo até á delimitação constituída pelo muro de delimitação da piscina, contiguo ao terreno vendido pelos pais do A. a GG e HH.

-21º …área da implantação da casa e logradouro com piscina só não foi desanexada na indicada data da escritura publica a GG e HH por existir um ónus de não fracionamento por 10 anos, não permitindo nessa data o aludido destaque da dita parcela.

-25º … à data do dito empréstimo a GG e HH – alegadamente mobilizado em tranches, já a moradia dos AA. estava edificada e construída,

-26º Não tendo os ditos GG lá entrado ou sido permitido o acesso á Ré ou a terceiros a pedido dos mesmos para o alegado empréstimo a estes.

-37º Aliás, por os pais do A. apenas terem vendido um prédio composto de terreno e armazém amplo a GG e a HH, os ditos adquirentes nunca procederam ao averbamento na descrição predial ou na matriz da moradia edificada pelos AA. como deles e/ou como pertencendo ao aludido prédio.

E não deixa de ser estranho, como alegam os autores recorrentes que mantenham a posse da casa de habitação até aos dias de hoje e a ré se limite a pedir a improcedência da ação, não deduzindo reconvenção, ou por outra forma formulasse pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade incluindo a parcela onde foi edificada a casa de habitação.

Tendo em conta os factos constantes dos autos, verifica-se, in casu, uma divergência entre a realidade jurídica e a situação matricial e registal, (como se lhe refere o Ac. da Rel. de Co. de 09-05-2017, no Proc. nº 54/14.2T8SAT.C1), pois que, constando do registo predial e inscrição na matriz que se trata de “prédio urbano composto de armazém amplo e logradouro”, na realidade aí se encontra edificada uma casa de habitação composta de arrumos, garagem e piscina, com autonomia económica, situada numa parcela do topo ... e que, conforme alegado pelos autores é o que dá valor ao prédio.

Pelo que, em primeira linha interessará averiguar, na medida do possível, se a mãe do autor quis vender/vendeu aos mutuários da ré o prédio tal como se encontrava ao tempo da venda (com todas as construções que existiam) ou, se quis excluir da venda a casa de habitação composta de arrumos, garagem e piscina, numa parcela no topo ..., delimitada fisicamente do restante, tudo na tentativa de uma melhor interpretação do objeto da declaração negocial.

E consoante a resposta que for dada, poderá haver necessidade de averiguar a matéria de facto impugnada no recurso de apelação (e não conhecida pelo Tribunal recorrido), a fim de se saber se poderá somar-se a posse dos autores à dos antepossuidores que lhes doaram a parcela de terreno.

A resposta do Tribunal aos factos que responderão às questões referidas permitirá que seja feita uma melhor justiça material.

Concluímos, como concluiu o Acórdão deste STJ proferido no Proc. 642/14.7T8GRD.C1.S1, já supra referido, “… é no âmbito da relação jurídica que se estabeleceu entre o transmitente da posse e o respectivo adquirente que se encontrará a resposta à questão de saber se, além da posse, também foi transferido o respectivo direito”.

Ou seja, os autores adquiriram a posse da parcela supra identificada, mas tal posse só acresce à posse da antepossuidora (doadora), em termos de acessão de posse no caso de a venda aos mutuários da ré não incluir a dita parcela.

É que a transmissão aos autores pelo ato de doação só incluiu a posse, não foi transmitido aos autores o respetivo direito de propriedade, na medida em que o ato (doação verbal) pelo qual se pretendeu efetuar essa transferência, é nulo por inobservância da forma legalmente prescrita (exigência de escritura pública) e, como tal, não tinha idoneidade para operar a transferência daquele direito.

Assim que há necessidade de averiguar, previamente, o concreto objeto da relação jurídica estabelecida entre a dona do prédio e os mutuários da ré, dos quais esta houve o prédio, ou seja, se essa transação abrangia a totalidade do prédio ou, se ficou excluída a parcela de terreno, objeto da doação, onde está implantada a casa, como alegam os autores.

Pelo que, além da matéria de facto impugnada no recurso de apelação e sobre a qual o Tribunal recorrido entendeu não necessitar de conhecer para aplicar o direito, há necessidade de ampliação da matéria de facto a fim de tentar apurar-se o objeto da venda referida.

Concluiu o Ac. deste STJ de 07-10-2010, no Proc. nº 1364/05.5TBBCL.G1 que, “O Supremo pode, ao abrigo do n.ºs 2 e 3 do art.º 729.º do CPC [682º do CPC vigente], ordenar ex officio a ampliação da matéria de facto se existirem factos (principais, complementares e instrumentais) alegados e contra-alegados de manifesta relevância, carecidos de investigação, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito”.

Pode ler-se nesse aresto: “Em princípio, o Supremo Tribunal de Justiça limita-se a aplicar «definitivamente o regime jurídico que julgue adequado» aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido» (art.º 729.º, n.º 1, do CPC). Isto porque «a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada pelo Supremo em sede de recurso de revista (seja «por erro na apreciação das provas», seja na fixação dos factos materiais da causa), salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do art.º 722.º (violação de qualquer norma de direito probatório material) - art.º 729.º, n.º 2, do CPC.

O processo só volta ao tribunal recorrido em duas situações: a)- quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito»; b)- quando o Supremo entenda que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito» (art.º 729.º, n.º 3, do CPC).

Na hipótese vertente – adianta-se desde já - verifica-se a situação contemplada na alínea a) citada: a decisão de facto pode/deve ser ampliada, já que existem factos (principais, complementares e instrumentais) alegados e contra-alegados de manifesta «relevância, carecidos de investigação, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito»; daí que - sem pôr em causa os poderes soberanos das instâncias em sede factual, designadamente o não uso (pela Relação) dos seus poderes de modificação/alteração da matéria de facto nas diversas hipóteses contempladas no art.º 712.º do CPC –, este Supremo deva oficiosamente ordenar essa baixa para os fins propostos”.

Assim que, com estes fundamentos, deve ser revogado o acórdão recorrido, por necessidade de ampliação da matéria de facto e/ou conhecimento pelo Tribunal recorrido da matéria de facto impugnada no recurso de apelação.

Só depois da proposta indagação, dos factos suprarreferidos (e outros correlacionados que eventualmente tenham sido alegados e não objeto de pronuncia) poderá vir a constituir-se base suficiente para uma criteriosa decisão de direito, pelo que, deve o mesmo ser submetido a julgamento em harmonia com o regime jurídico supra enunciado, se possível pelos mesmos juízes, conforme o nº 1 do art. 683º, do CPC, ou, se se mostrar necessário ser determinada a baixa dos autos à primeira instância.


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Em consequência do decidido, fica prejudicado o conhecimento doutras questões suscitadas.

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Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I- Só a matéria de facto que se possa considerar indispensável (mesmo no sentido mais lato e instrumental), isto é, quando se revele necessária/imprescindível à decisão de direito que se vai tomar na Relação e àquele que pode vir a ser tomada, eventualmente, pelo Supremo é que deve ser tomada em consideração, quando seja objeto de impugnação em recurso.

II- Para se poder aceder na posse não é imprescindível que a transmissão se tenha operado por ato formalmente válido. Mas se não o for, estaremos perante posse não titulada.

III-O STJ pode, ao abrigo dos n.ºs 2 e 3 do art. 682º do CPC, ordenar ex officio a ampliação da matéria de facto se existirem factos (principais, complementares e instrumentais) alegados e contra-alegados de manifesta relevância, carecidos de investigação, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.

IV- Sendo alegados factos nos articulados e sendo relevante apurar se os bens já haviam sido transferidos para a esfera jurídica e patrimonial de terceiro, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, deve ordenar-se a baixa dos autos para apuramento dessa matéria de facto.

Decisão:

Em face do exposto acordam, no STJ e 1ª Secção, em:

Julgar procedente (ainda que, em parte, por diferentes fundamentos) o recurso de revista e revoga-se o acórdão recorrido e, ordenar a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para que seja providenciado pela ampliação da matéria de facto nos termos e dentro dos parâmetros sobreditos e, em função do que se apurar, tomar conhecimento, ou não, da matéria de facto impugnada no recurso de apelação.

Custas nos termos a decidir a final.

Lisboa, 17-01-2023


Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo – Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua – Juiz Conselheiro 2º adjunto