DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTOS PÚBLICOS
REGULAMENTO (CE) 2016/1191
6 DE JULHO DE 2016
Sumário


1. No actual Código de Processo Civil, na sua contraposição com o anterior (mormente o então estabelecido nos artigos 285º e 291º do CPC) eliminou-se a figura da interrupção da instância e o prazo para a deserção da instância foi agora fixado em seis meses e um dia, não se suspendendo durante as férias judiciais (cfr. art. 138.º, n.º 1).
2. Acresce que ao invés do que resultava do artº 291º do CPC anterior, a deserção da instância já não ocorre “independentemente de qualquer decisão judicial”, antes carece de ser julgada por despacho do juiz que aprecie se a falta de impulso processual, por prazo superior a seis meses, se ficou a dever a um comportamento negligente da parte.
3. A deserção da instância executiva prevista no art. 281º do Código de Processo Civil tem dois pressupostos cumulativos:
- um de natureza objectiva – a demora (inércia da parte) superior a 6 meses – por ter sido omitida, nesse prazo, a necessária prática do ato de que dependia o seu prosseguimento (respeitante ao próprio processo, ou a incidente de que dependia o prosseguimento da ação principal);
- outro de natureza subjectiva - a imputação de tal delonga à inércia de alguma das partes, que tinha o ónus da sua prática, isto é, dever o ato ser praticado por si - e não pela parte contrária, pela secretaria, pelo juiz, ou por terceiro - e ter a sua omissão um carácter censurável.
4. O comportamento omissivo da parte a quem incumbe a prática do acto não se confunde, nem importa, de forma automática, a sua imputação a título de negligência, já que para além de ter de estar em causa uma paragem relativa à falta de um acto imposto pelo cumprimento de um ónus, que impeça o normal prosseguimento dos autos; tem tal omissão que, em concreto, evidenciar uma atitude negligente da parte, ou seja, uma atitude omissiva reveladora da falta de diligência normal e exigível em face das circunstâncias do caso concreto, a qual deve ser aferida em face dos dados conferidos pelo processo.
5. O Regulamento (CE) 2016/1191, 6 de julho de 2016, tem por objetivo simplificar a circulação de certos documentos públicos cuja finalidade principal seja comprovar entre outros os seguintes factos: nascimento, vida, óbito, nome, casamento, visando reduzir a burocracia e os custos para os cidadãos que tenham de apresentar num país da UE documentos públicos emitidos por outro país da UE, suprimindo a exigência da apostila e simplificando as formalidades referentes às cópias autenticadas e às traduções (cfr. artigos 1º , 2º n.1 al.a) e 4º, do Regulamento).
6. A fim de eliminar a necessidade de tradução, o regulamento introduz igualmente formulários multilingues, os quais deverão ser utilizados nos outros Estados-Membros como auxiliares de tradução apensos aos documentos públicos (cfr. art. 1º n.2, 7º e 8º, do Reg. CE). Todavia, o formulário multilingue é, tão só, um mero auxiliar de tradução que se destina a ajudar a autoridade de receção a compreender um documento público redigido numa língua que não seja aceite pelo país de acolhimento da UE, podendo os cidadãos solicitar à autoridade do país da UE onde o documento público for emitido (ou a outra autoridade competente desse país da UE) que o emita para acompanhar o documento público, visando evitar a sua tradução.
7. Mostrando-se as certidões de nascimento e óbito certificadas e traduzidas nos termos legais, e constituindo esta certificação e tradução um “plus”, um requisito superior, relativamente ao formulário multilingue (que visava tão só a dispensa daquela), não se verificava fundamento legal para não as considerar válidas e os autos prosseguirem sua normal tramitação.

Texto Integral


ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

AA, casado, residente na 56 ... ..., instaurou em 28.04.2021, o presente inventário para partilha da herança aberta por óbito de seu pai BB, falecido em .../.../2011, tendo indicado como herdeiros e interessados:
a) CC, cônjuge do falecido, residente na Rua ..., ... ...;
b) DD, filha do falecido, maior, nacionalidade ..., solteira, natural de ...;
c) EE, maior, filha do falecido, casada com FF, sob o regime de comunhão de adquiridos, natural de ..., onde reside em 182 Rue ..., ..., 59150 ...;
d) GG, solteira, maior, filha do falecido, natural de ..., residente em 622 A HH 6, 5 Rue ..., 78000 ...;
e) AA, maior, requerente e filho do falecido, casada com II, sob o regime de comunhão de adquiridos, natural de ..., onde reside em 56 ... ....

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Como cabeça-de-casal foi designada a viúva, CC.
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Com data de 27.09.2021 – ref.ª elect. ...59- foi a cabeça de casal notificada para em 20 dias, juntar aos autos certidão da conservatória do registo predial atinente à verba n.º 7 e certidão negativa atinente à verba n.º 8 e indicar nos autos a data de óbito da interessada JJ; devendo esclarecer que caso tal data seja posterior à data do óbito do inventariado, qual o estado civil da JJ à data do óbito e, caso fosse casada, identificar o cônjuge bem como o regime de bens do casamento e bem assim para, juntar aos autos certidão dos assentos de nascimento de KK e LL.
Mais se alertou a cabeça de casal de que certidões emitidas por entidades estrangeiras deverão ser devidamente legalizadas nos termos previstos no art. 440.º CPC e que alternativamente, poderão ser obtidas certidões internacionais (quer de óbito, quer de nascimento) nos termos do Reg. (EU) 2016/1191.
Tal despacho foi notificado à cabeça de casal por carta enviada em 29.09.2021.
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Na sequência da referida notificação veio a cabeça de casal apresentar em 19.10.2021 o requerimento referência ...23, no qual, para além de prestar algumas das informações solicitadas, veio requerer o prazo de 80 dias para juntar a documentação pertinente, justificando tal prazo com a circunstância de os herdeiros cuja certidão de nascimento terá que juntar aos autos terem nacionalidade ..., não estarem registados no consulado português sendo necessária a requisição das certidões de à Câmara Municipal ..., dificuldade de contacto com os mesmos e necessidade de tradução dos documentos em questão.
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Sobre o referido requerimento foi proferido em 25.10.2021 – ref.ª ...95- o despacho com o seguinte teor, notificado à parte por carta de 26.10.2021:
«Informe a cabeça-de-casal e o requerente do inventário que os autos ficarão a aguardar o necessário impulso processual, sem prejuízo do decurso do prazo de deserção (art. 281.º/1 CPC).»
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Por requerimento da cabeça de casal de 20.12.2021, foram juntos aos autos o assento de nascimento de MM e NN (herdeiros na partilha por óbito de DD) e assento de óbito da Sra. DD traduzidos.
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Com data de 11.01.2022 foi proferido o seguinte despacho, notificado à parte em 12.01.2022:
«As certidões de nascimento de KK e LL não se encontram legalizadas nos termos previstos no art. 440.º CPC nem correspondem a certidões emitidas nos termos do Reg (UE) 2016/1191 – sendo certo que a cabeça-de-casal foi expressamente alertada para essa necessidade no despacho proferido em 27.09.2021.
Como tal, informe a cabeça-de-casal que os autos continuarão a aguardar o decurso do prazo de deserção da instância.
Dê conhecimento deste despacho ao requerente do inventário.»
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Em resposta à notificação apresentada foi apresentado em 27.01.2022 requerimento com o seguinte teor:

«CC, cabeça de casal nos autos em epígrafe, notificada que foi do despacho de V. Exa., datado de 11/01/2022 (Referência citius ...48), em que V. Exa. refere que as certidões de nascimento traduzidas de NN e MM, juntas aos autos pela cabeça de casal, “não se encontram legalizadas nos termos previstos no art. 440.º CPC nem correspondem a certidões emitidas nos termos do Reg (UE) 2016/1191”, vem dizer o seguinte:

1. Salvo devido respeito, na nossa humilde opinião, as traduções remetidas (Referência citius ...39) encontram-se em conformidade com a lei.
2. O artigo 6.º n.º 2 do Regulamento 2016/1191 prevê que “São aceites em todos os Estados-Membros as traduções certificadas feitas por pessoas habilitadas para esse efeito ao abrigo do direito de um dos Estados-Membros.”
3. Pelo que, as mesmas encontram-se em consonância com a lei, porque foram traduzidas por pessoa habilitada, requerendo-se, assim, que sejam admitidas por V. Exa.
4. Termos em que, mui respeitosamente, se requer novamente a V. Exa. se digne admitir a junção aos autos das traduções das certidões de nascimento de NN e MM e que as mesmas sejam consideradas no processo.»
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Este requerimento mereceu do tribunal o seguinte despacho datado de 8.2.2022 e notificado em 9.2.2022: «O tribunal já se pronunciou sobre a questão da documentação emitida por estado estrangeiro, pelo que como tal se esgotou o seu poder jurisdicional sobre a questão (art. 613.º/1 e 3 CPC), nada mais havendo a ordenar.
Continuem os autos a aguardar nos termos anteriormente determinados.
Dê conhecimento do presente despacho à requerente do inventário.»
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Nada tendo sido dito, em 5.05.2022 foi proferida a seguinte decisão- ref.ª .... ...91:
«Por despacho datado de 27.09.2021, a fls. 41, a cabeça-de-casal foi notificada para proceder à junção aos autos de certidões dos assentos de nascimento de KK e LL, tendo sido expressamente advertida de que as certidões emitidas por entidades estrangeiras deveriam ser legalizadas nos termos previstos no art. 440.º CPC ou emitidas nos termos do Reg. (EU) 2016/1191.
Como a cabeça-de-casal não procedesse à junção aos autos das certidões em causa nos termos legais, foi notificada em 29.10.2021 que os autos ficariam a aguardar o necessário impulso processual, sem prejuízo do decurso do prazo de deserção (cfr. fls. 45 a 47).
A cabeça-de-casal juntou aos autos certidões emitidas por entidades estrangeiras não legalizadas, tendo por isso sido alertada de que os autos permaneceriam a aguardar o decurso do prazo de deserção, ante o não cumprimento das regras legais.
A cabeça de casal nada fez.
Assim, ao abrigo do disposto no art.281.º/1 CPC julgo a instância deserta e, consequentemente, extinta (art. 277.º/al. c) CPC).
Custas pela cabeça-de-casal.
Notifique.
Fixo à presente acção o valor de €135.690,07 (art. 302.º/3 CPC).»
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Não se conformando com tal decisão, vieram a cabeça de casal e o requerente interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. Foi requerido o inventário para partilha da herança aberta por óbito de BB.
2. Foi nomeada cabeça de casal a interessada CC.
3. No dia 20/09/2021, a recorrente, cabeça de casal, informa o tribunal que uma das herdeiras em linha direta faleceu em ..., e que iria necessitar mais prazo para poder juntar a certidão de óbito da mesma (referência citius ...17),
4. A recorrente, no dia 19/10/2021 requer ao Douto Tribunal a concessão de um prazo total de 80 dias para juntar aos autos a documentação pedida. (referência citius ...23)
5. No seguimento deste requerimento de 19/10/2021, e somente 5 dias após o mesmo, o douto tribunal entendeu que não havia impulso processual, o que se estranha.
6. No dia 20/12/2021, a recorrente, junta os devidos assentos de nascimento de MM e NN (herdeiros na partilha por óbito de DD) bem como o assento de óbito da mesma. (referência citius ...39)
7. Em 11/01/2022, por despacho, o douto tribunal entende que as traduções e certificações dos assentos de nascimento e de óbito não são válidas. (referência citius ...48)
8. Não obstante a este despacho, a recorrente dia 27/01/2022 não concordando com a decisão, apresentar o contraditório e requer a junção aos autos dos documentos pedidos. (referência citius ...29)
9. Em 08/02/2022, o tribunal diz-nos o seguinte: “O tribunal já se pronunciou sobre a questão da documentação emitida por estado estrangeiro, pelo que como tal se esgotou o seu poder jurisdicional sobre a questão (art. 613.º/1 e 3CPC), nada mais havendo a ordenar.” (referência citius ...36)
10. No dia 05/05/2022, o douto tribunal notifica as partes da sentença, que julga a instância deserta e consequentemente extinta, pelo facto de a cabeça de casa não ter juntado os documentos pretendidos pelo douto tribunal. (referência citius ...91)
11. A única razão para o processo não ter conhecido o devido avanço, foi a pretensão do douto tribunal em receber os assentos de nascimento do LL e do KK.
12. Interpretou erradamente o Regulamento Europeu 2016/1191, e não aceitando documentos legais, entregues pela recorrente.
13. Os assentos de nascimento e óbito que foram anexados no requerimento do dia 20/12/2021 (referência citius ...39), estão abrangidos por este regulamento já que podemos encontra-los no artigo nº2, n.º1 al. a) e c).
14. Estes tipos de documentos públicos, estão dispensados de todas as formas de legalização e de formalidade análoga nos termos do artigo 4.º do Regulamento Europeu 2016/1191.
15. O douto tribunal, deu um parecer de que os documentos públicos de países estrangeiros, pertencentes à União Europeia só seriam legais em Portugal se devidamente acompanhados pelo formulário multilingue previsto nos artigos 7º e seguintes do Regulamento.
16. Ora isto está completamente desvirtuado de verdade, o artigo 6.º nº1 alínea b) do regulamento diz-nos o seguinte “ Não é exigida uma tradução nos casos em que (…) O documento público relativo ao nascimento, à prova de vida, ao óbito, ao casamento (incluindo a capacidade matrimonial e o estado civil), à parceria registada (incluindo a capacidade para estabelecer uma parceria registada e o estatuto de parceria registada), ao domicílio e/ou à residência, e à inexistência de registo criminal, seja acompanhado, nas condições previstas no presente regulamento, de um formulário multilingue, desde que a autoridade a quem o documento público é apresentado considere que as informações incluídas no formulário multilingue são suficientes para a análise do documento público.”
17. Como é de fácil entendimento, este formulário bilingue é apenas uma alternativa às traduções convencionais, usadas durante muito tempo neste tipo de situações.
18. O n. º2 do artigo 6º refere expressamente que “São aceites em todos os Estados- Membros as traduções certificadas feitas por pessoas habilitadas para esse efeito ao abrigo do direito de um dos Estados-Membros.”
19. A legislação portuguesa prevê no artigo 38º nº1 do Decreto-Lei n. º76-A/2006, de 29 de Março “…os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos, nos termos previstos na lei notarial, bem como certificar a conformidade das fotocópias com os documentos originais e tirar fotocópias dos originais que lhes sejam presentes para certificação, nos termos do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de Março.”, o mesmo artigo no n.º2 refere ainda que “Os reconhecimentos, as autenticações e as certificações efetuados pelas entidades previstas nos números anteriores conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais atos tivessem sido realizados com intervenção notarial.”
20. In casu, os assentos remetidos pela recorrente ao douto tribunal estavam traduzidos e certificados por advogado, não sendo por isso necessário o preenchimento do formulário multilingue.
21. Não obstante ao facto de não concordar com a interpretação da norma do douto tribunal e por uma questão de celeridade processual, os filhos da falecida, herdeira legítima em linha direta foram novamente contactados para que remetessem os assentos acompanhados pelo formulário multilingue.
22. Ora esses documentos, só chegaram aqui a Portugal em finais de maio, como já foi explicado anteriormente, o contacto com eles é sempre complicado, não tendo sido possível agilizar a documentação pretendida num lapso temporal mais curto.
23. Não há, nem nunca houve falta de impulso processual, houve sim uma rejeição infundamentada por parte do douto tribunal, dos documentos remetidos pela recorrente, que apesar de não concordando, sempre tentou diligenciar o mais rapidamente possível os documentos reclamados numa atitude colaborante e para que o processo prosseguisse nos seus trâmites normais.
24. Ora analisando o processo, facilmente se chega a conclusão que não existe negligência por parte da recorrente.
25. O douto tribunal contrariou assim o disposto no artigo 7.º nº4 do Código de Processo Civil.
26. Não teve o tribunal uma atitude colaborante e prudencial.
27. A recorrente por diversas vezes requereu prazos explicandos as dificuldades às quais se enfrentava com vista a obtenção dos documentos, mas o tribunal nunca respondeu aos mesmos.
28. Não existiu por parte da recorrente, uma efetiva omissão da diligência normal em face das circunstâncias do caso concreto, não podendo, assim, vingar uma qualquer responsabilidade automática/objectiva suscetível de abranger a mera paralisação.
29. No caso em concreto, a recorrente/cabeça de casal colaborou sempre com o tribunal, juntou documentos, pediu prazos e tudo fez para que a instância não fosse declarada deserta.
30. Tendo efetuado contraditório no dia 27/01/2022, tendo passado apenas 4 meses, e em 05/05/2022 o douto tribunal considerou a instância deserta, proferindo a respetiva sentença.
31. O que não se concorda, por não estar deserta a instância pelo período de tempo, nem existir negligência da cabeça de casal que tudo fez e todos os documentos juntou ao processo.
32. Documentos que não estavam na sua posse, nem ao seu alcance.
33. O que demonstra a atitude colaborante da recorrente/ cabeça de casal em todo o processo.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao recurso e ser a sentença revogada e substituída por outra que determine a continuidade do processo nos seus termos normais.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II. Objecto do recurso
 As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou relativas à qualificação jurídica dos factos, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b) e 5º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil (C.P.C.).
Face às conclusões da motivação do recurso, a questão a decidir reside em saber se estão verificados os pressupostos para que a instância fosse julgada deserta.
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III – Fundamentação fáctica.
Os factos constantes do relatório.
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IV - Fundamentação de Direito

Na presente apelação está em causa aferir se se encontravam reunidos, à data em que foi proferida, os requisitos para que fosse declarada a extinção dos presentes autos de inventário por deserção, nos termos do artigo 281º n.1 do CPC, como decidido na decisão recorrida.
Aos presentes autos de inventário é aplicável o Novo Código de Processo Civil (Lei 41/2013 de 26 de Junho) mormente na redacção conferida pela Lei n.º 117/2019 de 13.09.
Os apelantes sustentam não se mostrarem verificados os requisitos legais da deserção e, designadamente, sustentam não ter ainda decorrido o prazo de seis meses sem que existisse impulso processual da parte sobre a qual impende o respectivo ónus, considerando que apresentaram os documentos traduzidos e certificados e não obstante a posição do tribunal quanto à falta de requisitos dos mesmos, com a qual não concordam, encontravam-se à data do despacho recorrido a encetar diligências para resolver a situação, o que apenas poderia ser feito em ....
Vejamos:
Uma das formas de extinção da instância, prevista no elenco das causas indicadas do art. 277º do C.P.C., é a deserção (cfr. alínea c).
Com efeito, diz-nos o artigo 281º do C.P.C., que:
«1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. (…)
4 - A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.(…)
No actual Código de Processo Civil, na sua contraposição com o anterior (mormente o então estabelecido nos artigos 285º e 291º do CPC) eliminou-se a figura da interrupção da instância e o prazo para a deserção da instância foi agora fixado em seis meses e um dia, não se suspendendo durante as férias judiciais (cfr. art. 138.º, n.º 1).
Acresce que ao invés do que resultava do artº 291º do CPC anterior, a deserção da instância já não ocorre “independentemente de qualquer decisão judicial”, ope legis, antes carece de ser julgada por despacho do juiz que aprecie se a falta de impulso processual, por prazo superior a seis meses, se ficou a dever a um comportamento negligente da parte.
Da leitura do artigo 281º, nº 1 do NCPC, é inquestionável que “a deserção da instância” se assume como uma sanção que se aplica à parte que devendo dar impulso processual, por negligência o não faz, determinando a paragem do processo por mais de seis meses, sanção que encontra justificação princípio da autorresponsabilidade das partes, mas também no interesse público de não duração indefinida dos processos judiciais[i].
Assim, atentando no normativo citado, podemos concluir que a deserção da instância executiva prevista no art. 281º do Código de Processo Civil tem dois pressupostos cumulativos[ii]:
- um de natureza objectiva – a demora (inércia da parte) superior a 6 meses – por ter sido omitida, nesse prazo, a necessária prática do ato de que dependia o seu prosseguimento (respeitante ao próprio processo, ou a incidente de que dependia o prosseguimento da ação principal);
- outro de natureza subjectiva - a imputação de tal delonga à inércia de alguma das partes, que tinha o ónus da sua prática, isto é, dever o ato ser praticado por si - e não pela parte contrária, pela secretaria, pelo juiz, ou por terceiro - e ter a sua omissão um carácter censurável[iii].
A propósito deste último requisito defendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[iv]  “a conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um ato ou atividade unicamente dependente da sua iniciativa, sendo o caso mais flagrante o da suspensão da instância por óbito de alguma das partes, a aguardar a habilitação dos sucessores”.
Como se refere elucidativamente no Ac. do STJ de 20.04.2021, processo 27911/18.4T8LSB.L1.S1 in www.dgsi.pt «Para apurar da ocorrência de negligência das partes, ao juiz compete analisar o comportamento processual das partes no âmbito do processo, isto é, se a parte (ou partes) demonstraram no processo as dificuldades em impulsionar os autos, as diligências necessárias para remover os eventuais obstáculos com que se tem deparado para afastar a causa que levou à suspensão, e, inclusive, solicitar o contributo do tribunal para que as razões impossibilitadoras do prosseguimento normal dos autos sejam afastadas ou se a parte (ou partes) se manteve numa inação total, desinteressando-se do prosseguimento normal dos autos.
De facto, o comportamento omissivo da parte a quem incumbe a prática do acto não se confunde, nem importa, de forma automática, a sua imputação a título de negligência, já que para além de ter de estar em causa uma paragem relativa à falta de um acto imposto pelo cumprimento de um ónus, que impeça o normal prosseguimento dos autos; tem tal omissão que, em concreto, evidenciar uma atitude negligente da parte, ou seja, uma atitude omissiva reveladora da falta de diligência normal e exigível em face das circunstâncias do caso concreto, a qual deve ser aferida em face dos dados conferidos pelo processo.
Aqui chegados e reportando à situação dos autos, perante a evidenciada tramitação processual no que se refere à junção dos documentos em falta pela cabeça de casal entendemos, contrariamente ao decidido, não se mostrarem reunidos os requisitos legais previstos no artigo 281º do CPC, para a declaração da deserção da instância.
Estava em causa a junção pela cabeça de casal das certidões de nascimento de dois interessados no inventário e da certidão de óbito de uma das interessadas, filha pré falecida do inventariado.
Atentando na enunciada tramitação processual, temos que a cabeça de casal após notificada por despacho de 29.09.2022 para prestar diversas informações e juntar os referidos documentos, veio logo aos autos, por requerimento de 19.10.2021, prestar as informações solicitadas e informar que relativamente à certidão dos assentos de nascimento dos interessados NN e MM, tendo estes nacionalidade ... e não estando registados no consulado português, teria de encetar diligências para as obter, requerendo por isso o prazo de 80 dias para a sua junção aos autos.
Sucede que, sem que se pronunciasse concretamente sobre o que havia sido requerido quanto à concessão de prazo para a junção de tal documentação, o tribunal limitou-se a proferir despacho datado de 25.10.2021 que determinou que os autos aguardassem o necessário impulso processual, sem prejuízo do decurso do prazo de deserção (art. 281.º/1 CPC).
Não obstante, veio a parte onerada, em 20.12.2021, juntar aos autos as certidões de nascimento e assento de óbito de uma das interessadas, certificados e traduzidos.
Por despacho de 11.01.2022, considerou-se, no entanto, que as referidas certidões de nascimento (de KK e LL) não se encontravam legalizadas nos termos previstos no art. 440.º CPC nem correspondiam a certidões emitidas nos termos do Reg (UE) 2016/1191 – advertindo que a cabeça-de-casal foi expressamente alertada para essa necessidade no despacho proferido em 27.09.2021- determinando que os autos continuassem a aguardar o decurso do prazo de deserção da instância.
Na sequência do referido despacho, veio a cabeça de casal em 27.01.2022 requerer que sejam consideradas no processo as certidões traduzidas, por observado o disposto no artigo 6.º n.º 2 do Regulamento 2016/1191.
Sobre tal requerimento o tribunal proferiu o despacho datado de 8.02.2022 a considerar anteriormente decidida tal questão e considerando esgotado o poder jurisdicional, determinou que os autos continuassem a aguardar nos termos anteriormente determinados.
Notificada a cabeça de casal de tal despacho com data de 9.02.2022, nada tendo sido requerido, veio o tribunal em 5.05.2022 a julgar deserta a instância nos termos do artigo 281º n.1 do CPC.
Que dizer:
É pacífico que perante o despacho de 29.09.2022 e considerando o disposto pelo artigo 1102º do C.P.C. cabia à cabeça de casal praticar nos autos os actos processuais necessários à marcha do processo, e, designadamente, prestar as informações indicadas no dito despacho e juntar as certidões de nascimento dos filhos da pré-falecida filha do inventariado, bem como a certidão de óbito desta.
E atentando na tramitação dos autos subsequente a tal despacho verifica-se que a cabeça de casal assim fez, procurando dar resposta e praticar os actos que se lhe impunham na sequência da notificação efectuada, tendo aliás, dando conta e justificando a dificuldade de junção de alguns dos ditos elementos solicitado prazo para o efeito ( n.2 do artigo 1102º do CPC), sem que, no entanto, obtivesse por parte do tribunal, como se impunha, pronuncia concreta sobre o deferimento ou não do prazo requerido, limitando-se o tribunal a determinar que os autos aguardassem nos termos do artigo 281º do CPC .
Não obstante e antes que o prazo requerido tivesse decorrido, veio a C.C. aos autos juntar as certidões de nascimento no pressuposto de se mostrar cumprido o dever que sobre a mesma impendia.
Apesar disso e sem que se explicasse a razão concreta pela qual não se mostrava cabalmente cumprido o dever que incumbia à requerente, limitou-se o tribunal a afirmar que as certidões juntas não se mostravam legalizadas nos termos previstos no artigo 440º do CPC nem correspondiam a certidões emitidas nos termos do Reg. (EU) 2016/1191 (porquê?), determinando que os autos continuassem a aguardar o decurso do prazo de deserção da instância, arguindo, perante a insistência da cabeça de casal do cumprimento do disposto pelo artigo 6º n.2 do Regulamento 2016/1191, que o poder jurisdicional se mostrava esgotado e que nada mais havia a determinar, devendo os autos continuar a aguardar nos termos determinados.
Com todo o respeito, ao abrigo do dever de fundamentação das decisões, gestão processual e cooperação na justa e célere composição do litígio a que aludem os artigos 6º, 7º e 154º, todos do C.P.C., cabia ao tribunal fundamentar em concreto a razão pela qual as certidões juntas aos autos pela cabeça de casal, já certificadas e traduzidas, não cumpriam, no entendimento deste, os requisitos exigidos, já que a mera referência feita de forma genérica aos termos previstos no artigo 440º do CPC e ao Reg. (UE) 2016/1191, quando para além do mais a aplicação do disposto no artigo 440º do CPC expressamente ressalva o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, não cumpre o exigido dever de fundamentação da decisão sobre questão que foi suscitada, dever este que não sendo cumprido, não permite à parte impugná-lo e exercer os direitos que a lei lhe confere, o que significa outrossim, que não tendo sido concretamente apreciada a questão, nem sequer existia qualquer esgotamento do poder jurisdicional sobre a questão.
Sem prejuízo, sempre se dirá que vista a tramitação dos autos, de modo algum se evidencia uma inércia da parte na prossecução da instância, e, muito menos, uma omissão censurável, já que a cabeça de casal foi apresentando requerimentos no sentido de dar cumprimento ao solicitado, o que significa que não se pode extrair do despacho que determinou que os autos ficassem a aguardar « o necessário impulso processual, sem prejuízo do decurso do prazo de deserção (artigo 281º/ 1 do CPC», o efeito que a instância declarou.
De facto, e como resulta do que acima ficou exposto, a expressão negligência da parte a quem incumbia a prática do acto reflecte a ideia de inércia no impulso processual, de abandono injustificado e voluntário da lide no impulso que se imponha no prosseguimento da instância, abandono que, in casu, manifestamente não ocorre.
Pois, para além da parte ter vindo sucessivamente a dar resposta tempestiva às notificações do tribunal, esta explicou as dificuldades que tinha, considerando a necessidade de requisitar tais documentos no estrangeiro e o prazo acrescido de que necessitava para dar cumprimento ao que era devido para o impulso dos autos, e, procurando dar resposta ao solicitado, juntou as certidões de nascimento e óbito em falta, certificadas e traduzidas. Todavia o tribunal, sem que apreciasse as justificações apresentadas e julgasse de forma concretizada e fundamentadamente a validade da referida junção, limitou-se a contabilizar continuamente (desde o despacho proferido em 25.10.2021, não obstante os actos praticados após o mesmo) o prazo para a deserção dos autos, de forma que, por isso, não poderá deixar de se considerar, com todo o respeito, incorrecta e indevida.
Na senda do que vem exposto, e ainda que se considerassem correctos os despachos proferidos em 11.01.2022 e 8.02.2022, a contagem do prazo de deserção, a iniciar-se, apenas poderia ocorrer a partir do último despacho proferido com data de 8.2.2022 e sua notificação à parte, já que, independentemente da bondade do mesmo, até esse momento não se pode afirmar que a parte tenha tido uma conduta processual passiva e muito menos negligente, nos actos que lhe cabia praticar para o impulso dos termos do processo.
Basta tal para linearmente concluirmos que não se mostravam verificados os requisitos pressupostos para que fosse declarada a deserção da instância, mormente, porque não se mostrava ainda, à data em que foi proferida a decisão de extinção da instância por deserção- 5.05.2022 -, decorrido o prazo de seis meses sem que houvesse impulso da parte.
Sem prejuízo, dir-se-á ainda, que com a junção pela cabeça de casal das certidões de nascimento a fls. 50 a 53, certificadas e traduzidas nos termos do artigo 38º do DL n.º 76-A/2006 de 29.03 e da Portaria n.º 657-B/2006 de 29.06, mostra-se cumprido o requisito da sua legalização, como defende o apelante, contrariamente ao que foi expresso pelo tribunal recorrido (veja-se para além do mais o disposto no artigo 24º n.1 als a), b) c), e) e f) do Regulamento)[v].
Na verdade, o disposto no artigo 440º do CPC não é aplicável à situação dos autos considerando o que se mostra estabelecido no Regulamento (CE) 2016/1191, 6 de julho de 2016, aplicável a partir de 16 de fevereiro de 2019, e que tem por objetivo simplificar a circulação de certos documentos públicos cuja finalidade principal seja comprovar entre outros os seguintes factos: nascimento, vida, óbito, nome, casamento, visando reduzir a burocracia e os custos para os cidadãos que tenham de apresentar num país da UE documentos públicos emitidos por outro país da UE, suprimindo a exigência da apostila e simplificando as formalidades referentes às cópias autenticadas e às traduções (cfr. artigos 1º , 2º n.1 al.a) e 4º, do Regulamento) .
A fim de eliminar a necessidade de tradução, o regulamento introduz igualmente formulários multilingues, os quais deverão ser utilizados nos outros Estados-Membros como auxiliares de tradução apensos aos documentos públicos (cfr. art. 1º n.2, 7º e 8º, do Reg. CE). Todavia, o formulário multilingue é, tão só, um mero auxiliar de tradução que se destina a ajudar a autoridade de receção a compreender um documento público redigido numa língua que não seja aceite pelo país de acolhimento da UE, podendo os cidadãos solicitar à autoridade do país da UE onde o documento público for emitido (ou a outra autoridade competente desse país da UE) que o emita para acompanhar o documento público[vi], visando evitar a sua tradução.
Deste modo e com a entrada em vigor do regulamento (CE) 2016/1191, deixou de ser necessário a obtenção de um carimbo comprovativo da autenticidade dos mesmos (a chamada «apostila»), a sua cópia autenticada e uma tradução do documento público em causa.
Ou seja, os documentos públicos (por exemplo, uma certidão de nascimento/casamento ou uma sentença) e as respetivas cópias autenticadas emitidas pelas autoridades de um país da UE devem ser aceites como autênticos pelas autoridades de outro país da UE sem que seja necessário o carimbo de autenticidade (ou seja, a apostila); eliminando igualmente a obrigação de o cidadão apresentar uma tradução do documento público. Se o documento público não estiver redigido numa das línguas oficiais do país da UE que o solicitou, o cidadão pode solicitar às autoridades um formulário multilingue, disponível em todas as línguas da EU, que pode ser anexado ao documento público para evitar a exigência de tradução. Se um cidadão apresentar um documento público juntamente com um formulário multilingue, a autoridade que o recebe só poderá exigir a tradução do documento público em circunstâncias excecionais.
E, se as autoridades do país de acolhimento da UE exigirem uma tradução certificada do documento público apresentado, são obrigadas a aceitar uma tradução certificada efetuada em qualquer país da UE (vide Portal Europeu da Justiça – artigos 24º n.1 e 5 do Regulamento as comunicações aí estabelecidas feitas por Portugal), introduzindo o Regulamento igualmente salvaguardas contra eventuais documentos públicos fraudulentos: se a autoridade do país de acolhimento tiver dúvidas fundadas quanto a um documento público que lhe tenha sido apresentado, poderá verificar a sua autenticidade junto das autoridades emissoras do outro país da UE através da plataforma informática existente, o Sistema de Informação do Mercado Interno (IMI)[vii].
Daí ser de concluir, sem necessidade de maiores considerações, que, mostrando-se as ditas certidões de nascimento e óbito certificadas e traduzidas nos termos legais, e constituindo esta certificação e tradução um “plus”, um requisito superior, relativamente ao formulário multilingue ( que visava tão só a dispensa daquela), não se verificava fundamento legal para não as considerar válidas e os autos prosseguirem sua normal tramitação.
 Aqui chegados, teremos de concluir que não se verificando os requisitos da extinção da instância por deserção nos termos do artigo 281º n.1 do CPC, a apelação terá de proceder impondo-se, pois, a revogação da decisão que julgou deserta a instância, devendo os autos prosseguir seus ulteriores termos.
*
V. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida e determinando-se a remessa dos autos à 1ª instância a fim de aí ser dado prosseguimento aos presentes autos.
As custas do recurso ficam a cargo da herança.
Guimarães, 19 de janeiro de 2023

Elisabete Coelho de Moura Alves
Fernanda Proença Fernandes
Anizabel Sousa Pereira
(assinado digitalmente)

                                                                                                                                                                                      
[i] Como se salienta no Ac. R.P. de 5.04.2022, in www.dgsi.pt
[ii] Acórdão do STJ, de 05.07.2018 (processo nº 105415/12.2YIPRT.P1.S1) in www.dgsi.pt
[iii] Como se salienta no Ac. R.P. de 5.04.2022, in www.dgsi.pt
[iv]   Código de Processo Civil Anotado - Volume I, págs. 328/329
[v] Portal Europeu da Justiça,
 https://e-justice.europa.eu/561/PT/public_documents?PORTUGAL&member=1
[vi] Portal Europeu da Justiça, https://e-justice.europa.eu/35981/PT/public_documents_forms.
[vii] Portal Europeu da Justiça, https://e-justice.europa.eu/551/PT/public_documents?clang=pt