SERVIDÃO LEGAL DE PASSAGEM
COMUNICAÇÃO INSUFICIENTE COM A VIA PÚBLICA
PASSAGEM FORÇADA MOMENTÂNEA
Sumário


1. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).
2. Não existe encrave relativo traduzido em comunicação insuficiente com a via pública (art.º 1550º, n.º 2, do CC) se, nomeadamente: o prédio urbano da A. se situa numa região com características rurais e de alguma dificuldade de acesso direto à via pública rodoviária; ao longo dos anos, tal acesso tem-se processado a pé; não se divisa nem a A. demonstra que o mencionado acesso a pé tenha restringido, de modo essencial, a fruição normal das utilidades proporcionadas pelo prédio em causa; não se alega e demonstra a emergência de novas condições habitacionais que o façam supor; é uma habitação não predisposta para acesso com automóvel; a A. não provou nem tão pouco alegou necessidade de transporte de pessoas com dificuldades de mobilidade (e a eventual necessidade de acesso a serviços de ambulância ou de bombeiros, de natureza esporádica, pode ser satisfeita, conforme as circunstâncias, por via de medidas pontuais de passagem forçada momentânea, à semelhança dos casos previstos no art.º 1349º do CC).

Texto Integral


Relator: Fonte Ramos
1.º Adjunto: Alberto Ruço
2.º Adjunto: Vítor Amaral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                

           

            I. Banco 1..., S. A., intentou a presente ação declarativa comum contra AA e BB, pedindo que seja constituída uma servidão de passagem pelo prédio dos Réus com 22 metros de comprimento e 3 metros de largura.

            Alegou, em síntese: é proprietária da fração autónoma que identifica, que se encontra encravada; existem duas alternativas de acesso ao imóvel da A., uma, pelo móvel contíguo, a nascente, que contempla as duas frações às quais correspondem os n.ºs de polícia ... e ...0 e que seria efetuado através da Travessa ..., passando por uma faixa de logradouro a norte do edificado, e, a outra, através da Rua ..., no lado oposto da Travessa ..., atravessando o logradouro de um imóvel; a segunda alternativa é a adequada, uma vez que a passagem da primeira alternativa é demasiado estreita (não cumpre a função de passagem); a pretendida constituição da servidão é a que representa menor prejuízo e maior utilidade - é a menos prejudicial aos Réus porque é o trajeto viável mais curto e com menor prejuízo para os mesmos.

            Os Réus contestaram, por exceção, invocando a exceção dilatória de ilegitimidade ativa e a exceção perentória de falta de requisitos legais, e por impugnação. Alegaram, nomeadamente: a A. não é dona de todo o edifício - a fração autónoma ... não lhe pertence -, pelo que desacompanhada dos titulares desta fração, é parte ilegítima; o prédio de que faz parte a fração ... tem comunicação com a via pública e os seus habitantes sempre acederam sem dificuldade à via pública, percorrendo uma faixa de terreno com cerca de 17 metros de comprimento por 1 metro de largura; o prédio da A. não é composto por três anexos e garagem, e os arrumos são compartimentos edificados no logradouro e que reduziram a largura da faixa de terreno que serve a fração; ainda que a fração da A. estivesse encravada, a solução de constituir a servidão pelo logradouro do prédio dito do lado nascente, junto à Travessa ..., seria a mais viável por representar menor prejuízo e causar menos inconvenientes ao prédio onerado, sendo que a servidão a constituir no prédio dos Réus ocuparia quase todo o seu logradouro sito nas traseiras.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção dilatória, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

            Realizada a audiência de julgamento - então, a A. reduziu o pedido para a constituição de uma servidão de passagem pelo prédio dos Réus com 22 metros de comprimento e 2 metros de largura[1] -, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, por sentença de 02.8.2022, julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo os Réus do pedido.

            Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Está em causa se deverá ser constituída uma servidão legal de passagem a favor da A. pelo prédio dos Réus com 22 metros de comprimento e 2 metros de largura.

            2ª - Os temas de prova reconduzem-se essencialmente na averiguação do encrave do prédio da Recorrente e da possibilidade de acesso ao mesmo, nomeadamente, se o acesso que agora se peticiona, pelo prédio dos Réus, é a passagem menos inconveniente para os seus proprietários.

            3ª - O Tribunal a quo confunde a existência de uma eventual passagem para a via pública com a possibilidade real de por lá se passar, importando, por isso, saber se o caminho atualmente existente obsta à constituição da servidão que se peticiona.

            4ª - A Meritíssima Juiz a quo errou no julgamento da matéria de facto já que não se descortinam quais os elementos probatórios que levaram o Tribunal a quo à conclusão fáctica de que o imóvel Recorrente não se encontra numa situação de encrave absoluto ou, pelo menos, relativo.

            5ª - Não só foi dado como provado que a fração autónoma pertencente à Recorrente não confronta com nenhum caminho público – facto 42 como, na inspeção ao local, foi negado o acesso ao Tribunal pelo caminho da Travessa ....

            6ª - Importa também ao desfecho da causa atender que o edifício onde se insere a fração da Recorrente foi outrora pertencente à mesma pessoa e que por isso, os anteriores habitantes da fração autónoma ... sempre acederam à mesma pelo caminho da Travessa ..., o que fizeram ao longo de mais de 20 anos, reiteradamente, à vista de toda a gente.

            7ª - A Recorrente pretende dar como provados determinados factos, em especial, a impossibilidade de aceder ao imóvel pela via pública através da Travessa ....

            8ª - A este respeito, é claro o depoimento das testemunhas CC e DD, do qual resulta que a proprietária EE sempre dificultou o acesso e ultimamente, tem negado o mesmo, conforme depoimentos transcritos e, claro está, pelo que foi experienciado no local, pelo Tribunal, que no dia da inspeção ao local, viu negado o acesso à fração da Recorrente.

            9ª - Razão pela qual deverá constar dos factos provados que “atualmente a proprietária da Fração ... não permite o acesso pela Travessa ...” ou, caso assim não se entenda, “a proprietária da Fração ... não tem permitido o acesso pela Travessa ..., tendo recusado o acesso ao Tribunal no dia 31/5/2022”, o que se pretende ver aditado.

            10ª - Daqui se concluiria que o encrave é absoluto, na medida em que existe o acesso à via pública por um caminho que é inultrapassável.

            11ª - Caso assim não se entenda, não há dúvidas que esse encrave é relativo.

            12ª - Conforme bem salientou o Tribunal a quoatentas as características do caminho referido no ponto n.º 29) (…) não se mostra fisicamente possível a passagem de um veículo automóvel para este prédio”, conclusão corroborada pelos factos 27), 28), 40 e 41).

            13ª - Donde se concluir que a considerar-se existir acesso ao imóvel pela Travessa ..., este acesso é pedonal e feito por escadas, impossibilitando a passagem de veículos, independentemente da largura do mesmo (sensivelmente, de um metro).

            14ª - Atendendo a que este facto é extremamente relevante para a integração do conceito legal “comunicação insuficiente com a via pública” deve constar como facto provado que “atentas as características do caminho referido no ponto n.º 29) não se mostra fisicamente possível a passagem de um veículo automóvel para este prédio”.

            15ª - Por outro lado, foi dado como provado que o caminho é estreito devendo ser acrescentado que o caminho não permite a passagem de pessoas e bens de dimensões modernas, conforme resulta do depoimento da testemunha FF, que residiu na fração há perto de 50 anos.

            16ª - Também a testemunha CC, confirmou que era impossível passar por ali com móveis ou eletrodomésticos ou mesmo uma maca, por exemplo.

            17ª - Assim, deve ser dado como provado que “o acesso ao imóvel referido em 2) pela Travessa ... é estreito não permitindo a passagem de pessoas e bens de dimensões modernas”.

            18ª - Acresce que, não menos importante é o facto de ter sido dado como provado que as frações ... e ... foram pertença da mesma pessoa e, por isso, a passagem para a fração que agora é da Recorrente, quer pela Travessa ... quer pelo acesso da Rua ... e logradouro que une as frações era sempre possível e de “fácil” acesso pois os proprietários eram os mesmos.

            19ª - Diz o senso comum, que sendo necessária a passagem de grandes volumes ou veículos automóveis, o acesso não se faria pela Travessa ... antes sim pelo caminho no qual a Recorrente pretende ser constituída a servidão, facto que foi corroborado pelas testemunhas CC e GG.

            20ª - Assim, não se compreende que o Tribunal a quo não tenha valorizado que o acesso também se fazia pela Rua ..., pelo imóvel dos Réus.

            21ª - Por outro lado, a Mm.ª Juiz entendeu que a Recorrente não provou que não exista outra passagem possível para a via pública através de outros prédios confinantes, porém, este raciocínio não é conforme à realidade demonstrada pelas fotografias e plantas e pelos Levantamento Topográfico juntos aos Autos.

            22ª - Acresce que é o próprio Tribunal a quo que conclui que a passagem da fração para a via pública através da faixa de terreno que confronta com o logradouro seria sempre feita pela Travessa ....

            23ª - Ora, como se deixou supra exposto e decorre da prova testemunhal, o acesso por esta via é impossível ou, pelo menos, muito dificultado a pessoas e bens.

            24ª - Resulta também, pelas plantas e fotografias que o único acesso viável à via pública é pelo terreno dos Réus, sendo este o mais curto, sendo no entender da testemunha CC, a única alternativa.

            25ª - Deste modo, conclui-se que os pontos c), d) e e) devem ser dados como provados.

            26ª - É assim manifesto o erro na apreciação da prova pois, dos depoimentos das testemunhas e demais elementos de prova constantes dos autos, em especial, dos documentos juntos, não pode sustentar-se a convicção formada, pois claramente, não

tem suporte razoável naquilo que a prova demonstra, sendo que a Recorrente fica com a nítida sensação que a improcedência da ação está sustentada numa mera perceção –

injustificada, do Tribunal, que não resulta da prova feita em audiência de julgamento.

            27ª - Consequentemente, deve esse Tribunal de recurso modificar a matéria de facto, aditando aos factos provados:

            1. “Atualmente a proprietária da Fração ... não permite o acesso pela Travessa

das Escadinhas” ou, caso assim não se entenda, “a proprietária da Fração ... não tem permitido o acesso pela Travessa ..., tendo recusado o acesso ao Tribunal no dia 31.5.2022.”

            2. O acesso ao imóvel referido em 2) pela Travessa ..., é estreito,

apenas pedonal e feito por escadas, impossibilitando a passagem de veículos e a passagem de pessoas e bens de dimensões modernas.

            3. O trajeto da Rua ... à fração autónoma descrita em 2), passando pelo logradouro do prédio aludido em 18), é aquele que, dos possíveis de construir, é o mais curto.

            4. Não é possível construir outro caminho, para além daquele referido em c), que seja mais curto que esse, nos demais prédios que confiam com a fração autónoma mencionada em 2).

            5. Os caminhos referidos 29) são os únicos dois acessos possíveis existentes e

passíveis de construir para aceder à fração autónoma referida em 2).

            28ª - Tendo em conta os factos supra descritos, e que correspondem à matéria de facto que deve ser tida como provada, é manifesto que a ação devia ter sido julgada procedente, constituindo-se servidão através da Rua ..., no lado oposto da Travessa ..., mas atravessando o logradouro do imóvel dos Recorridos já que esta é a única que representa viabilidade.

            29ª - E é isto que resulta, claramente, da prova realizada, ainda que não seja alterada a matéria de facto, o que só por mera cautela de patrocínio se avança, tanto mais porque foi possível ao Tribunal a quo perceber in loco que a proprietária da Fração ... nega e impede o acesso pela Travessa ....

            30ª - O Tribunal parte do princípio que o prédio não está encravado, ao arrepio do que pôde verificar no local e dos factos que dá como provados.

            31ª - Ficou demonstrada a impossibilidade ou dificuldade séria do acesso ao imóvel da Recorrente pela Travessa ..., sendo certo que esse acesso não permite a fruição normal do imóvel.

            32ª - E não se diga que a A. não cumpriu o ónus da prova que lhe está adstrito, pois a prova realizada permite concluir, inequivocamente, que a servidão se deverá constituir pelo prédio dos Réus com 22 metros de comprimento e 2 metros de largura.

            33ª - Em primeiro lugar, o prédio da Recorrente não tem comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la através da Travessa ....

            34ª - Esse acesso foi utilizado desde sempre, é verdade, mas apenas porque os proprietários das frações ... e ... eram os mesmos, sendo certo que, quando havia necessidade, aqueles utilizavam a passagem pela Rua ..., local onde a Recorrente defende dever ser feita atualmente.

            35ª - Hoje, o acesso pela Travessa ... é negado pela proprietária pelo que se o acesso não é inexistente é inconveniente, pois a passagem pelo caminho está na disposição de terceiro.

            36ª - Por outro lado, decorre dos documentos fotográficos e das plantas que o acesso que se peticiona é o mais curto e menos inconveniente, tendo em conta as características da passagem da Travessa ..., que será sempre pedonal, estreito e sem possibilidade de fruição do prédio por critérios atuais.

            37ª - Ainda que se aceitasse que o encrave é relativo, teria o Tribunal a quo que

concluir que a comunicação com a via pública pela Travessa ... é, deveras

insuficiente, já que não permite o suprimento das normais necessidades do prédio relativamente à sua afetação, isto é, a habitação.

            38ª - Este o entendimento da jurisprudência que vai no sentido de que a integração do conceito e natureza das servidões legais de passagem foi evoluindo devendo ser à luz da atualidade, sendo certo que a comunicação à via pública será insuficiente se o acesso de que dispõe não permite a normal utilização e exploração do prédio, tendo em conta a sua afetação e a concreta exploração que dele está a ser efetuada.

            39ª - O que manifestamente é o caso em apreço, já que o imóvel se destina a habitação e a comunicação com a via pública é inexistente ou, pelo menos, insuficiente não permitindo a sua normal fruição.

            40ª - A sentença recorrida porque não aplicou corretamente o direito aos factos dados como provados, violou o disposto nos art.ºs 1550º e 340º do Código Civil (CC) e, de igual forma, violou o n.º 2 do art.º 9º do mesmo diploma, já que as exigências interpretativas plasmadas na fundamentação não têm o mínimo de correspondência nas normas putativamente violadas.

            Remata pedindo a revogação da sentença recorrida, alterando-se e aditando-se a matéria de facto provada, com a consequente procedência da ação e a condenação no pedido.

            Não houve resposta.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar/decidir: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito (cuja modificação depende, sobretudo, do sucesso daquela impugnação, importando saber se estão preenchidos os requisitos para a constituição de uma servidão de passagem, nomeadamente, por pretenso encravamento relativo/comunicação insuficiente).


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1) Por documento escrito, certificado por solicitador, datado de 11.01.2016 e intitulado “CONTRATO DE COMPRA E VENDA” (documento n.º ... junto com a petição inicial/p. i.) HH, na qualidade de Encarregado da Venda por negociação particular, no processo de execução com o n.º 323/14...., que corre termos na Instância Local ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., e II, na qualidade de procuradora substabelecida com poderes para representar o Banco 1..., S. A., declararam, designadamente, que:

            “É celebrado o presente contrato de compra e venda, que se rege pelas cláusulas seguintes:


Primeira

(Objecto)


            Pelo presente contrato o Primeiro Contraente, no uso dos poderes conferidos pela nomeação proferida no processo de execução com o número 323/14...., vende ao Segundo Contraente, na qualidade em que intervém, a fração autónoma identificada pela letra ..., destinada a habitação, correspondente a rés-do-chão com três anexos para arrumos e uma garagem, todos identificados pela letra ... e logradouro, sita na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...94 “A” e inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...55 “A”, atualmente correspondente à União das Freguesas de ... e ..., com o artigo matricial ... (…)”.

            2) A propriedade da fração autónoma designada pela letra ..., do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) da ..., sob o n.º ...23..., da freguesia ..., encontra-se registada, pela Ap. ...96 de 2016/01/11, a favor da A. Banco 1..., S. A..

            3) A fração autónoma discriminada em 2) encontra-se inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...88º.

            4) Por escritura pública lavrada pela Notária JJ, no Cartório Notarial ..., datada de 27.7.2002 (doc. n.º ..., junto com a p. i.), KK e marido LL e MM e mulher NN, declararam, nomeadamente:

            “PELOS OUTORGANTES KK E MM FOI DITO:

            Que são donos e legítimos possuidores, do seguinte:

            Prédio urbano composto de rés-do-chão, primeiro andar e sótão e logradouro, com a superfície coberta de noventa e quatro metros quadrados sito no ..., na freguesia ... deste concelho, a confrontar de norte com OO, do Sul com PP, do nascente com QQ e do poente com RR, omisso na respectiva matriz, mas pedida a sua inscrição em onze de Junho de dois mil e dois, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número zero, zero novecentos e noventa e quatro, da freguesia ..., registado em comum e sem determinação de parte ou direito pela inscrição G-um, apresentação número dois de vinte e três de Maio de dois mil e um.

            Que atribuem ao citado prédio o valor de TRINTA E NOVE MIL E NOVECENTOS EUROS.

            Que pela presente escritura submetem ao regime de propriedade horizontal o referido prédio com as seguintes frações autónomas:

            Fração ... – Fração autónoma localizada no rés-do-chão com três divisões assoalhadas, uma cozinha, despensa e uma instalação sanitária, com três anexos para arrumos e um anexo para garagem, todos identificados pela mesma letra ..., e logradouro com oitenta metros quadrados, a que atribuem o valor de DEZANOVE MIL NOVECENTOS E CINQUENTA EUROS, correspondente a cinquenta por cento do valor total do prédio.

            Fração ... – Fração de habitação localizada no ... andar com três divisões assoalhadas, uma coxinha, despensa, um arrumo, uma instalação sanitária e varanda, com sótão dividido em seis compartimentos para arrecadações, também identificado pela mestra letra ..., a que atribuem o valor de DEZANOVE MIL E NOVECENTOS E CINQUENTA EUROS, correspondente a cinquenta por cento do valor total do prédio.

            Que desta forma ficou constituída, no mencionado prédio, a propriedade horizontal, com as frações independentes e isoladas entre si e cada uma delas com entrada própria.[2]

            Fica comum às duas frações o logradouro com cinquenta e quatro metros quadrados (…)”.

            5) Em 27.5.2002, a Câmara Municipal ... emitiu uma certidão, na qual consta, designadamente, que:

            “CERTIFICA, a requerimento de KK E OUTRO, datado 2002/05/22, e em cumprimento do despacho genérico datado de 22/1/2002, do Ex.mo Senhor Presidente da Câmara Municipal, de que o prédio urbano sito em ... OU ..., freguesia ..., deste Concelho, confrontando a Norte com OO, a Sul com PP, a Nascente com QQ e a Poente com RR, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...72º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...94, reúne os requisitos exigidos pelos artigos 1414º e seguintes do Código Civil, para constituição de regime de propriedade horizontal das frações autónomas referidas e descritas no requerimento anexo a presente certidão (…).

            6) A fração autónoma aludida em 2) situa-se em ..., freguesia ..., concelho ....

            7) A fração autónoma referida em 2) é composta, designadamente, por rés-do-chão e um logradouro privativo com a área de 80 m2.

            8) O logradouro referido em 7) confronta com uma faixa de terreno que, por sua vez, confronta com a via pública.

            9) A fração autónoma aludida em 2) é ainda composta por um logradouro comum a outras frações, com a área de 54 m2.

            10) A fração autónoma descrita em 2) é afeta à habitação.

            11) O logradouro mencionado em 7) situa-se a sul do edifício que compõe a fração mencionada em 2).

            12) O prédio no qual se encontra inserida a fração autónoma referida em 2) foi construído em data não concretamente apurada, mas há mais de 40 anos.

            13) O edifício no qual se encontra a mesma fração autónoma é uma construção única, tendo o mesmo telhado, os mesmos caleiros e encontra-se interligado.

            14) O edifício referido em 13) foi outrora pertencente à mesma pessoa.

            15) O prédio referido em 13) é composto por quatro frações autónomas.

            16) A fração autónoma identificada em 2) situa-se no lado sudoeste do edifício no qual se encontra integrada e aludido em 13), na parte mais afastada da Travessa ....

            17) A nascente da fração autónoma referida em 2) existem duas frações autónomas contíguas àquela, que têm acesso às mesmas através da Travessa ... e a que correspondem os n.ºs de polícia ... e ...0.

            18) A propriedade do prédio urbano situado em ..., descrito na CRP ..., sob o n.º ...05, encontra-se registada, pela Ap. ...4 de 1996/03/05, a favor de AA e BB.

            19) A titularidade da propriedade plena do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana, da freguesia de União de Freguesias de ... e ... sob o artigo 1432 (que teve origem no artigo 1813) consta na respetiva caderneta predial como sendo do Réu AA.

            20) O logradouro descrito em 9) confronta com o logradouro do prédio aludido em 18).

            21) A fração autónoma mencionada em 2) confronta com outros prédios para além daquele aludido em 18).

            22) O logradouro do prédio aludido em 18) tem acesso à Rua ....

            23) O logradouro descrito em 22) encontra-se murado e fechado.

            24) O logradouro elencado em 22) tem uma largura de 3,98 metros e o comprimento, desde o seu portão à fração autónoma referida em 2) de 17,17 metros.

            25) No logradouro referido em 22) encontra-se entulho, areia e uma árvore.

            26) A fração autónoma elencada em 2) não tem atualmente e nunca teve anteriormente acesso à Rua ... através do logradouro mencionado em 22).

            27) Desde a construção da fração autónoma referida em 2) que o seu acesso à via pública sempre se fez pelo lado nascente, para a Travessa ..., que na altura era um caminho de terra a que os antepassados chamavam “canada”.

            28) O caminho, sito no lado nascente, que hoje é a Travessa ..., tinha muito declive, tendo sido intervencionado pela autarquia, dando lugar a uma escadaria pública.

            29) A norte do edifício referido em 13) existe um caminho que dá acesso à Travessa ..., passando por uma faixa de um logradouro aí existente, situada na parte frontal do prédio referido em 13).

            30) Para aceder ao caminho referido em 29), tem de se aceder a uma escadaria, que é comum às frações autónomas ... e ....

            31) No caminho referido em 29) encontram-se edificados “compartimentos/construções”, de pequena dimensão, não concretamente apurada.

            32) Os “compartimentos/construções” referidos em 31) reduzem a largura do caminho aludido em 29).

            33) Parte dos “compartimentos/construções” referidos em 31) pertencem à fração autónoma aludida em 2).

            34) Os anteriores habitantes da fração autónoma descrita em 2) sempre acederam à mesma pelo caminho referido em 29), através da Travessa ....

            35) O que fizeram ao longo de mais de 20 anos, reiteradamente, à vista de toda a gente.

            36) O caminho e o logradouro referidos em 29) sempre permitiu a passagem, nesse local, que se encontrava fechado por um portão, tendo o mesmo pelo menos 1 metro de largura.

            37) O caminho referido em 29) tem cerca de 17 metros de comprimento.

            38) O caminho aludido em 29) pertence ao lote de terreno no qual foi edificado o prédio onde se localizada a fração autónoma mencionada em 2).

            39) É possível o acesso pedonal e por animais da Travessa ... para a fração autónoma aludida em 2), através do caminho referido em 29).

            40) Nunca na fração autónoma descrita aludida em 2) entrou ou saiu um veículo automóvel ou outra viatura.

            41) No caminho referido em 29) nunca transitaram veículos automóveis ou carroças puxadas por animais.

            42) A fração autónoma aludida em 2) não confronta com nenhum caminho público.

            43) Com a constituição de uma servidão de passagem no prédio referido em 18), o mesmo seria desvalorizado, em valor não concretamente apurado.

            2. E deu como não provado:

            a) A fração autónoma descrita em 2) é composta por uma garagem.

            b) O lote no qual se encontra integrada a fração autónoma aludida em 2) tem uma área total de cerca de 456 m2.

            c) O trajeto da Rua ... à fração autónoma descrita em 2), passando pelo logradouro do prédio aludido em 18), é aquele que, dos possíveis de construir, é o mais curto.

            d) Não é possível construir outro caminho, para além daquele referido em c), que seja mais curto que esse, nos demais prédios que confiam com a fração autónoma mencionada em 2).

            e) Os caminhos referidos 29) e em c) são os únicos dois acessos possíveis existentes e passíveis de construir para aceder à fração autónoma referida em 2).

            f) Os “compartimentos/construções” referidos em 31) serviam de galinheiro.

            g) Foram edificados sem obedecer a qualquer projeto arquitetónico, sem respeitarem as dimensões regulamentares e sem obedecer ao PDM ....

            h) E foram construídos pelos anteriores donos das frações autónomas ... e ....

            i) O caminho referido em 29) encontra-se sem utilização, desde data não concretamente apurada, mas há vários anos, sem manutenção e com algum lixo nele depositado, aparentando não ser transitável.

            j) O caminho referido em c) retira tranquilidade e qualidade de vida aos Réus.

            k) Poderia ser criado um caminho a sul do prédio dos Réus, transcorrendo o logradouro e faixa de terreno referidos em 8), em direção à Travessa ....

            l) A fração autónoma descrita em 2) tem as seguintes confrontações: - a Norte com OO; - a Sul com PP; - a Nascente com QQ; - a Poente com RR.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            A A./recorrente insurge-se, principalmente, contra a decisão sobre a matéria de facto, sendo que da sua eventual modificação poderá resultar a constituição do direito de servidão configurado na ação.

            Importa, assim, averiguar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo, pugnando a A. pela resposta indicada nas “conclusões 9ª, 14ª, 17ª e 27ª”, ponto I., supra [nesta última conclusão indica cinco factos que diz pretender ver aditados, três dos quais relativos à factualidade das alíneas c), d) e e) que a 1ª instância teve como não provada], baseando-se, para o efeito, principalmente, no “relatório técnico” de fls. 11 verso e seguintes e nos depoimentos de quatro testemunhas.

b) Esta Relação procedeu à audição integral da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental incluída no dito “relatório técnico” e o apurado na inspeção judicial (fls. 48 e seguintes).

c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efetivação do princípio da imediação[3], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que se verifique se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[4], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

            d) Partindo da motivação da decisão de facto e tendo em atenção o objeto do recurso, destacamos os seguintes excertos:

            «(...) o Tribunal formou, desde logo, a sua convicção com base na perceção direta advinda da inspeção judicial ao local, conforme resulta do respetivo auto (...). Com efeito, foram visualizados, designadamente, os prédios e logradouros em dissídio, a existência da escadaria, a confrontação entre o logradouro/terraço da fração autónoma referida no ponto n.º 2) e o prédio mencionado no ponto n.º 18), as dimensões do logradouro deste prédio e bem assim o que nele se encontra, e bem assim foram visualizados o caminho existente e “compartimentos/construções” existentes no mesmo.

            Em conjugação com a perceção direta do Tribunal advinda da inspeção judicial ao local, valorou-se o teor do documento n.º ... junto com a petição inicial, que corresponde a “RELATÓRIO TÉCNICO/Levantamento Topográfico Perimetral”, mormente nas plantas e fotografias constantes do mesmo (cf. fig. 2, 3, 8, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, do relatório mencionado). Note-se, pois, que o documento que ora se cura é composto por fotografias aéreas do local no qual se encontram inseridos os prédios descritos nos pontos n.ºs 2) e 18) (cf. fig. 3 e 19), fotografias do prédio mencionado no ponto n.º 2) (cf. fig. 18) e plantas do mesmo (cf. fig. 2, 8, 11, 15 e 20) – não havendo razões para colocar os mesmos em crise, porquanto se mostram coerentes com a demais prova carreada para os autos, mormente com o visualizado no local.

            Das aludidas fotografias e plantas, extrai-se a existência de dois logradouros que compõem o prédio referido no ponto n.º 2), sendo que um dos mesmos – aquele com uma dimensão mais reduzida – confronta com o logradouro do prédio mencionado no ponto n.º 18) (cf. fig. 3, 8, 11, 15, 18, 19 e 20), e o outro confronta com outra parcela de terreno que por sua vez confronta com a via pública (o que é patente nas fig. 3 e 19). Mais, das aludidas fotografias e plantas é percetível a localização do prédio descrito no ponto n.º 2), as suas caraterísticas e as suas confrontações – sendo de salientar que o mesmo confronta com outros prédios para além daquele referido no ponto n.º 18). É ainda visível nas mesmas o prédio no qual a mesma se encontra integrada, a existência dos “compartimentos/construções” – que na fig. 12, se encontram mencionados como “arrumos” –, bem como a existência de uma passagem (cf. fig. 8, 11, 12 e 18) que se situa a norte do edifício no qual se encontra inserido a fração mencionada no ponto n.º 2).

            Ademais, no aludido relatório vem mencionada a existência dos logradouros e sua dimensão, ao acesso às frações existentes no prédio contíguo, com os números de polícia ... e ...0, ser efetuado pela Travessa ..., bem como a alternativa do acesso à fração discriminada no ponto n.º 2)pelo imóvel contíguo, a nascente, que contempla as duas frações às quais correspondem os números de polícia ... e ...0. Neste caso seria feito através da Travessa ..., passando por uma faixa de logradouro a norte do edificado”.

            Concretamente quanto à redução da largura do caminho pelos “compartimentos/construções” existentes, o Tribunal para além dos elementos probatórios acima mencionados, ateve-se nas regras da experiência comum conjugadas com a fig. 12 junta com o citado documento n.º ... junto com a petição inicial, porquanto das mesmas decorre que a supressão dos mesmos alargaria o caminho que ora se cura.

            A par, o Tribunal valorou as fotografias juntas com a petição inicial como documento n.º ..., mormente no que tange à fotografia aérea e bem assim a planta junta com a referência ...93 – esta designadamente quanto às dimensões do logradouro do prédio mencionado no ponto n.º 18).

            Paralela e conjugadamente, o Tribunal valorou o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC, GG, SS, FF e DD.

            Com efeito, a testemunha CC, responsável das obras e legalização da Autora, mencionou conhecer a fração autónoma descrita no ponto n.º 2), tendo acedido à mesma, duas vezes em 2017, através da Travessa ..., descrevendo o acesso (mormente as suas dimensões – 1,10 - 1,20 metros de largura), confirmando, desta feita, a existência de um caminho que dá acesso à Travessa ... (e mencionado no ponto n.º 29). De notar que, o depoimento desta testemunha se revelou credível, porquanto não obstante a sua relação profissional com a Autora, depôs de forma a que se afigurou objetiva, descrevendo, com coerência, o prédio em causa e o que visualizou aquando da sua deslocação ao local, relatando os factos de que tinha conhecimento mesmo aqueles que não fossem integralmente favoráveis à Autora (´v. g.` que os anteriores proprietários utilizavam as escadinhas e o corredor a “pé” e que a ideia era fazer mais um acesso, para transportar as coisas grandes).

            Outrossim, as testemunhas GG, SS, FF e DD descreveram, de forma consentânea e por tal credível, a existência de umas escadas e do caminho em causa e referido no ponto n.º 29, tendo a testemunha DD ainda precisado que foi o mesmo que fez aos portões e a escadaria.

            No que concerne à factualidade vertida nos pontos n.ºs 12), 13), 14), 15), o Tribunal estribou a sua convicção com base no teor do documento n.º ... junto com a petição inicial, (...) mormente na descrição histórica efetuada no mesmo e dos elementos que a acompanham e a fundamenta, bem como nas fotografias e plantas constantes daquele documento e acima aludidas – nas quais são percetíveis as características do prédio que ora se cura. Teve-se, ainda, em consideração as fotografias juntas com a petição inicial, como documento n.º ..., mormente no que tange à fotografia aérea do prédio identificado no ponto n.º 2) e no qual é visível as caraterísticas do mesmo.

            O Tribunal valorou ainda o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas FF e DD, que identificaram as pessoas que residiram no prédio em causa e as características deste. De salientar que, estas testemunhas prestaram depoimentos não só coerentes entre si e com a demais prova produzida, como depuseram de forma clara e desinteressada no desfecho da lide, pelo que se relevaram credíveis.

            (...)

            Relativamente aos factos vertidos nos pontos n.ºs 26), 27), 34), 35), 36), 39), 40), 41), o Tribunal formou a sua convicção com base na conjugação dos depoimentos prestados pelas testemunhas [todas].

            Efetivamente, a testemunha CC (...) mencionou que acedeu ao prédio identificado no ponto n.º 2), por duas vezes, em 2017, através do caminho ora em dissídio, e bem assim que os anteriores “proprietários” do prédio acediam a “pé” por esse caminho e que o mesmo tem 1,10 - 1,20 metros de largura.

            Também a testemunha GG – o qual presta serviços para uma empresa que por sua vez presta para a Autora – referiu – de forma a que se afigurou clara e objetiva – que acedeu ao prédio em causa através da Travessa ..., descendo umas escadas e pelo caminho que ora se cura, não obstante considerasse o mesmo estreito.

            De especial relevância mereceu o depoimento prestado pela testemunha FF (...), porquanto a mesma residiu na fração autónoma mencionada no ponto n.º 2), tendo descrito como acedia à mesma – entrava pelo portão da canada e ia por trás da casa, por uma passagem estreita. Confirmando a passagem pelos moradores da fração autónoma em dissídio pelo caminho em questão e dando coerência ao depoimento desta testemunha, depuseram, igualmente, SS, TT, UU e DD – depoimentos estes que mereceram a credibilidade do Tribunal atenta a forma congruente e objetiva com que foram prestados.

            Ademais, não se poderá olvidar que da escritura pública junta aos autos como documento n.º ... com a petição inicial, é mencionado queQue desta forma ficou constituída, no mencionado prédio, a propriedade horizontal, com as frações independentes e isoladas entre si e cada uma delas com entrada própria”, referindo-se à fração autónoma discriminada no ponto n.º 2), dando sustentação ao que decorre dos elementos probatórios acima mencionados, ´i. e.` que a fração tinha acesso à via pública, ainda que pedonalmente e pelo caminho referido.

            Por outro lado, atentas as características do caminho referido no ponto 29) e considerando que a parcela de terreno pertencente ao prédio mencionado no ponto 18) não era utilizada pelos moradores da fração autónoma descrita no ponto 2) – conforme descreveram as testemunhas acima aludidas – não se mostra fisicamente possível a passagem de um veículo automóvel para este prédio. Acresce que, não obstante na planta junta aos autos como fig. 12, constante do documento n.º ... junto com a petição inicial (...) constar a existência de uma “garagem” e na certidão predial permanente do prédio junta (...) referir na “composição” a existência de garagem, certo é que através da inspeção judicial ao local não se visualizou a existência da aludida garagem, tanto mais que, as entradas do prédio – visíveis na imagem n.º 1 junta com o auto de inspeção (...) são compostas por duas portas para acesso de pessoas – que não possibilitam a passagem de veículos.

            (...)

            No que concerne à factualidade consignada por não provada, o Tribunal considerou que não foi carreada para os autos prova suficiente para sustentar a convicção sobre a sua verificação ou pelo menos um juízo de certeza razoável quanto à sua verificação ou bem assim não foi produzida qualquer prova quanto à mesma.

            (...)

            No que tange aos factos vertidos nos pontos c), d) e e), importa mencionar que os elementos probatórios carreados para os autos não se mostram suficientes para considerá-los como provados.

            Com efeito, ficou demonstrado que a fração autónoma elencada no ponto n.º 2) confronta com outros prédios para além daquele mencionado no ponto n.º 18 [cf. ponto n.º 21)], sem que tivesse sido demonstrado que esses prédios não permitem a passagem para a via pública, porquanto nenhuma prova foi produzida a esse respeito.

            Acresce que, apesar de no documento n.º ... junto com a petição inicial (...) ser mencionado que existem apenas duas alternativas para “constituição de servidão de Acesso ao imóvel do banco”, nada consta do referido documento que fundamente tal conclusão, não se mostrando no mesmo equacionada a passagem pelos demais prédios que confrontam com a fração autónoma que ora se cura. Note-se, inclusive, que não foi equacionada a passagem da fração autónoma referida no ponto n.º 2) para a via pública através da faixa de terreno mencionada no ponto n.º 8), sendo certo que das fig. 3 e 19, constantes do aludido documento, verifica-se que o mesmo também confronta com a “Travessa ...”, i. é, com a via pública. Importa não olvidar ainda que, no ponto 4.4 do aludido relatório é referido que “o acesso ao imóvel foi facultado pela moradora da habitação com o n.º de polícia ...3, que não se quis identificar nem tão pouco comentar a situação atual do imóvel”, donde se induz que ainda existe uma possibilidade de “entrada” para a fração autónoma em dissídio que não aquelas consideradas nos presentes autos. (...)»         

e) Atentando, agora, na prova testemunhal especialmente indicada em sede de recurso, destacamos:

            - CC (fls. 61):

            Como funcionário da A. é “responsável de obras e legalização - (...) os excessos de casas que são entregues ao banco (...), e eu tenho que as regularizar, (...) de modo que possam alienadas normalmente no mercado. (...) não conheço o imóvel do banco, mas já andei lá às voltas, (…) na visita (…); foi-nos referido que o imóvel do banco não tinha acessos e, como tal eu fui lá para ver (…) porque é que não havia acesso, uma vez que em termos de propriedade horizontal o prédio dizia que confrontava com a rua. (...) Fui ver, confirmei que, de facto, aquele prédio tem essa, digamos, particularidade, o acesso que é utilizado, digamos, mais fácil, é através de umas escadas, portanto, tem que se caminhar 20 m / 30 m por umas escadas, passa-se um logradouro (...) passam pessoas, (...) não se pode levar nada, não é? para ir para o prédio do banco. Por outro lado, tem ali em frente, um logradouro do outro (...)”.

            Acedeu ao imóvel da A. através da “Travessa ...”; “(...) confirmei, de facto, que os acessos por ali são um bocado difíceis para… se não for para pessoas, não é?, para levar móveis ou assim, (...) uma vez que estava o portão fechado…; (...) a senhora (proprietário doutro imóvel) acabou por deixar passar. (...) Os trabalhadores (passaram) só duas ou três vezes (...), são empresas prestadores de serviço para o banco. (...) depois acabaram por deixar passar, (...) um casal já com alguma idade (...). Tanto quanto sei, uma das vezes as coisas maiores foram retiradas por esse tal portão fechado (...), conseguiu abrir (...) e pronto, no caso (...) conseguiu tirar a maior parte dos móveis que tinham (...); aquilo tem (...) em baixo um largozinho, cerca de 20 m pelas escadas, entra-se por um portão à esquerda, é um portão esguio, que vai (...) a casa desse casal da frente, (...) contorna-se a casa (...) desse casal (...), e depois tem um corredor pequenino, (...) terá no máximo um 1,10 m, 1,20 m, (...) não sei se será tanto, mas estou a falar assim, de cabeça. (...) Ao fundo, depois, à saída da casa propriamente dita, no logradouro, (...) que é à esquerda (...), consegue-se entrar na casa. Esse portão (...) depois na casa do Sr. é em frente (...), está ao nível da casa de banho. (...) aquilo tem (...) uns alpendres ou uns anexos do lado (...) à casa, (...) e da parte de trás são da casa de banho. E lembro-me que há pelo menos uma fotografia em que as pessoas da frente fecharam aquele lado com umas madeiras, umas grades (...) a tapar a passagem. (...) não me lembro de alguns dos fornecedores (...) que não tinha maneira de passar, tinha alguma dificuldade em passar, aquilo não é fácil nem acessível. (...) Existe um portãozinho entre a Travessa ..., (...) existia na altura em que lá fui, as duas vezes, eu fui lá, dentro do espaço, digamos assim, do tal casal que vivia na frente da casa de banho, tinha colocado um portão baixinho, com também um muro assim baixinho (...). E depois passava para o corredor. (...) A alternativa (...) foi o portão de trás, o portão de escada, uma vez que (...) permite também o acesso à garagem e ao logradouro do prédio, e no fundo, (...) o acesso não só para o prédio, mas também para aquela casa, uma vez que aquela casa não tem outro acesso possível ou alternativa, para (...), por exemplo, se for os móveis (...) não conseguem passar pelo corredor; (...) Aquilo (...) terá um 1,10 m, 1,20 m, no máximo, (...) não sei ao certo, não medi, (...), mas é preciso passar uma maca (...) por ali não consegue. Passar móveis, não acredito que passe. (...).

            O logradouro do prédio dos Réus “(...) tinha pouca utilização, (...) estava tudo fechado, a garagem não era utilizada, (...) não posso dizer que estava ao abandono (...)”.

            - GG (fls. 61):

            “(...) lembro-me porque era (...) na Travessa ..., é isso? (...) O banco solicitou (...) para fazer uma vistoria ao imóvel, (...) e era problemas para saber qual era o acesso, (...) se era pelas escadinhas, se era pela parte de baixo. Mas havia um portão em ferro assim meio vermelho, meio castanho que...; (...) entrava-se pela rua (...), pelas escadinhas (...) as casas no outro lado. (...) tinha lá as informações com as pessoas, que se a entrada era por ali, ou se já teve outra entrada por outro lado. (...) já não me recordo se o portão estava aberto…. (...) esse acesso era estreito. (...) era um bocado estreito, mas não tirei medidas. (...) tentei descobrir como seria, (...) passei por baixo, que tem umas moradias pela parte de trás, tem essas escadas e depois vira-se à direita e tem um prédio do lado esquerdo, que tem uma garagem por baixo, onde tem esse tal prédio. (...) tentei falar com os vizinhos do lado, e houve um vizinho (...) que ligou para o Sr. que era o dono do prédio, e que tem um portão de ferro. E eu expliquei-lhe o que é que estava ali a fazer, e o Sr. o que me disse a mim foi (...) que já tinha essa ação em Tribunal, mas as pessoas pretendem passar por aqui, e por isso é que eu vou colocar aqui um portão, para ninguém passar por aí (...).

            Deslocou-se “uma vez” ao local do imóvel da A..

            - FF (fls. 62):

            “(...) vivi lá na casa dele (foi inquilina do Réu). (...) estive lá pouco tempo, porque arranjei uma mais barata (...). Morava lá uma senhora no sótão, morava ele no meio, e eu cá no fundo, no rés-do-chão [habitação hoje pertença da A.]. (...) tinha a minha filha dois anos e meio (...) - já faz cinquenta e quatro no mês de setembro. [ao ser confrontada com algumas das fotografias, disse, designadamente] (...) atrás da casa, entrava no portão que estava para a canada, que agora é uma escadaria e que (...) antigamente era canada, era tudo em terra. (...) já arranjaram, as escadas já lá estão já eu lá não estava. (...) entrávamos num portão, para dentro, e vínhamos por detrás da casa; (...) chamam-lhe as valetas, (...) que é para limparem, (...) para não entrar a água lá para dentro. E então têm aquelas coisas limpas e a gente passava por aí, dava a volta, à frente estava tudo destapado. (...) Era estreito. (...) saíamos (...) naquela porta que agora mostraram, dávamos a volta, atrás da casa da outra senhora, e saíamos ao portão dele, para a parte de fora, para a gente sair. Passavam… mal; (...) se (os sacos de mão) fossem muito cheios, já tínhamos que ir assim, um atrás e outro à frente. Ou então deixávamos no terraço da senhora, e irmos pôr uma casa e ao fim vir buscar o outro. Era estreito. (...) entrávamos no portão deles e não diziam nada. (...) Nunca atravessei quintal nenhum. (...) naquela altura, quer dizer, nem era quintal, era assim o terreno… sem estar cultivado. (...) fizeram a escadaria, mas ainda hoje lhe chamam a canada. (...) E a gente era por aí que subia e descia. (...) olhe, quando eu casei a gente tinha pouca mobília, era só (...) uma mesita, um fogãozito, (...) e então passávamos (...), um pegava atrás e o outro pegava à frente. E íamos assim para diante, devagarinho (...) por aquela valeta afora. (...) Entrávamos no portão, passávamos o terraço, à quina da casa da EE, (...) mais ou menos da minha idade, dava a curva à casa para dentro para aquela orelha, que era assim estreita, pegava o meu homem de um lado e outro Sr. que nos foi lá ajudar, pegava atrás. (...) Um à frente e outro, atrás e pegavam assim. (...) os móveis eram estreitinhos. (...) O frigorífico (pequenino) cabia lá. (...) naquela altura a gente não tinha nada, porque éramos uns pobres. (...) Agora, sim, agora já a gente tem tudo um bocadinho. (...) Tinha fogão mas era pequeno. Era um movelzinho só, da largura assim, daqui para cá, e depois um móvel e era então um fogãozinho assim. (...) o que tenho a dizer é nunca passei naquilo do Sr. AA (Réu). (...) Só abalei de lá foi por causa que arrendei uma casa mais barata. (...) Ficámos bem. Até que morreram coitados... (...) nunca mais para lá passei. (...). Passava, mas era mesmo à reta, (...) não podia pôr as mãos da parte de fora, tinha que as meter por baixo. (...) gostei de lá estar, gostei muito do Sr. VV e gostei muito do Sr. AA e daquela gente toda, nunca lá ralhei com ninguém até ao dia de hoje, nunca me dei de mal com ninguém, sempre fui uma pessoa séria, graças a Deus. Nosso Senhor me guarde até ao dia em que me leve. (...)”

            - DD (fls. 62):

            “(...) Conheço o Sr. AA na altura em que eu lhe montei lá um portão há quarenta e tal anos, é o portão que lá está, fui eu que fiz o portão. (...) Foi o portão (...) da entrada para a garagem, que dá acesso à garagem; (...) o pessoal ali daquela zona descia uma escadaria, que ainda lá está; (...) ao fim da escadaria sei que entravam pelo portão do Sr. WW, (...) que é um Sr. que lá vive, pelos vistos, hoje, não abriram o portão; (...) conhecia-o a ele e conhecia aquele rapazinho que lá vivia em baixo, pelos vistos, na casa. (...) nunca lá vi passar ninguém, ali daquela zona de lado. (...) também fiz aquele portão ao Sr. WW, mas do portão do Sr. AA para dar ligação para o Sr. WW não havia ligação aí, (...) não havia passagem. (...) Das escadinhas é que já havia...; (...) porque há ali à beira da estrada um portãozinho que lá está, ia para casa dele e ia lá por uma quelhazita... (...). A escadaria que lá está até fui eu que fiz os corrimões e tudo, (...) a escadaria que desce para o lado do Sr. WW...; (...) o Sr. WW mora logo ali de lado da escadaria, tem lá um portãozito de entrada; (...) ouvi dizer ele não deixou abrir o portão, pronto. (...) não sei, se deixava abrir o portão, praticamente, estava quase sempre aberto. (...)”.

            Confrontado com as fotografias dos autos, referiu, designadamente: “(...) esta porta que está ali, a porta que está ali vinha (...) deste lado dali da porta do Sr. WW (...). A quelha “era esta daqui”, (...) é um metro, um metro e pouco, isto passava-se e este portão de cima (...), portão do Sr. WW, aqui é a cozinha, vinha assim por trás uma quelhazinha e entrava ali (...).”»

            As restantes testemunhas prestaram depoimentos em idêntico sentido:

            - SS (fls. 61):

            Referiu que o acesso foi sempre pelas escadinhas. Nunca viu passar veículos automóveis para as casas. Nunca viu passar pelo quintal/logradouro dos Réus.

            - TT (fls. 62):

            “(...) Sempre conheci o acesso por essas escadinhas (“Travessa ...”), (...) é o único acesso que conheço para aquelas casas”; nunca viu entrar pelo logradouro da casa dos Réus, “nunca ninguém (...) por lá passou”; viveu naquele local 36 anos e até há cerca de 15 anos.

            - UU (fls. 62):

            “(...) o acesso foi sempre feito pelas escadas (...), é sempre a pé; (...) o acesso foi sempre por ali”.

            f) A prova documental foi adequadamente concretizada, analisada e relevada na decisão sob censura, e a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo atendeu ao que lhe foi dado constatar no âmbito da inspeção judicial documentada a fls. 48 e seguintes (com interesse para o exame e decisão da causa – cf. art.º 493º do Código de Processo Civil/CPC).

4. A descrita e exaustiva fundamentação da decisão sobre a matéria de facto elaborada pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo afigura-se correta.

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal e documental, e ao elementos recolhidos no decurso da inspeção ao local, a factualidade dada como provada (e não provada) respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[5], a Mm.ª Juíza não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[6]

            Relativamente à factualidade concretamente impugnada, nada se poderá objetar ao que se deu como não provado nas “alíneas c), d) e e)”, porquanto ficou por demonstrar o que nelas se contém; quanto à restante factualidade, incluída, sobretudo, nos dois primeiros números da “conclusão 27ª” (ponto I., supra), se, por um lado, o que se indica no primeiro ponto (sem prejuízo do registo do episódio/ocorrência consignado em ata/pág. 3) não releva para o desfecho da lide,  por outro lado, sobre a matéria do segundo número (e o que parece acrescer sob a “conclusão 14ª”, ponto I., supra) fica provado, apenas, o que já consta do ponto II. 1., supra, designadamente, nos seus n.ºs 16), 27), 28), 29), 30), 32), 34), 36), 39), 40) e 41).

            A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, respeitando as normas/critérios dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            Improcede, assim, a pretensão da apelante quanto à modificação da decisão de facto.

            5. A A./recorrente pugnou por diferente decisão de mérito, no pressuposto de que a impugnação de facto seria atendida - cf., v. g., “conclusão 28ª”, ponto I., supra.

            Inalterada a decisão de facto, e não vindo suscitadas, propriamente, questões de direito na base da factualidade dada como provada em 1ª instância, parece-nos que a A. não enjeita a total improcedência do recurso, pese embora o que fez constar das “conclusões” seguintes.

            No entanto, de forma sucinta, indicar-se-á o que se expendeu na decisão recorrida e determinou a improcedência da ação, reapreciando-se, depois.

6. A servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia (art.º 1543º do CC).

O direito de servidão (predial) é um ius in re aliena, um direito real de gozo limitado (menor) - o encargo (sobre o prédio onerado/serviente) é imposto em proveito de outro prédio pertencente a dono diferente (prédio dominante), verificando-se, assim, uma restrição ou limitação ao conteúdo do direito de propriedade sobre o prédio onerado.[7]

7. Partindo da referida noção, do regime jurídico estabelecido nos art.ºs 1550º, n.ºs 1 e 2 do CC, 1551º, n.º 1, 1553º e 1554º do CC[8] - consagrando a lei o direito de constituição de uma servidão de passagem por parte de um prédio que se encontre absoluta ou relativamente encravado - dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência[9] e da factualidade descrita em II. 1. e 2., supra, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo concluiu que não ficou demonstrado que a fração autónoma propriedade da A. se encontre numa situação de encrave absoluto [a mesma tem acesso à via pública por um caminho já existente - cf., sobretudo, II. 1. 27), 29), 30), 34), 35) e 36), supra] e que, aquando da constituição da propriedade horizontal do prédio, em 2002, foi declarado que a aquela fração era independente e isolada entre si, com entrada própria [cf. II. 1. 4), supra, sendo que, nos termos do art.º 1415º, do CC, “só podem ser objeto de propriedade horizontal as frações autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública”, e a falta deste requisito “importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal” - cf. art.º 1416º do CC]; acrescentou que não ficou, igualmente, demonstrada uma situação de encrave relativo [a fração é afeta à habitação, tem acesso pedonal e possibilita a deslocação de pessoas da via pública para a mesma; não se provou a necessidade de passagem de um veículo automóvel para a aludida fração, e, inclusive, que a mesma disponha de garagem, provando-se, ao invés, que nunca entrou ou saiu veículo automóvel - cf. II. 1. 40) e II. 2. a), supra] ou que a habitação em causa se destinasse à residência ou da necessidade de passagem para a mesma de uma pessoa incapacitada, sendo certo que a A. fundamenta que a escadaria não possibilitaria essa passagem, quando atualmente existem mecanismos próprios para assegurar a subida e descida de pessoas de mobilidade reduzida através de escadas - (inclusive daquelas sitas em prédios com vários andares) [ademais[10], a eventual necessidade de acesso à fração por serviços de emergência médica, com a passagem eventual de macas, poderá – atento o seu carácter esporádico e residual – ser satisfeita através da passagem forçada momentânea por outros eventuais caminhos que assim o permitam, eventualmente através do prédio propriedade dos Réus].

            Nesta conformidade - prosseguiu a Mm.ª Juíza - , considera-se que não ficou demonstrado o encrave absoluto do prédio propriedade da A. ou bem assim que o acesso que dispõe para aceder ao mesmo seja insuficiente para prover à normal fruição e exploração da aludida fração com o destino e a afetação que lhe estão atribuídos, não ficando, outrossim, demonstrado que o prédio se encontre em situação de encrave relativo, que possa à luz do artigo 1550º do CC, justificar a constituição de uma servidão legal de passagem.

            Referiu, por último, que ainda que demonstrada a situação de encrave (absoluto ou relativo) do prédio da A., a factualidade apurada não permitiria a constituição da servidão de passagem peticionada, porquanto, tendo a A. alegado que o acesso (à fração) poderia ser efetuado através de duas vias [pelo imóvel contíguo, a nascente, que contempla as frações com os números de polícia ... e ...0 ou através da Rua ..., atravessando o logradouro do prédio dos Réus], contudo, não ficou provado que aqueles “caminhos” sejam os únicos dois acessos possíveis existentes e passíveis de construção para aceder à fração em causa [cf. II. 1. 20) e 21) e II. 2. e), supra], ficando também por demonstrar que o acesso à via pública pelo prédio dos Réus será o que provoca menos prejuízo (inclusive em relação à outra alternativa apresentada, com eventual alargamento ou alteração do caminho).[11]

            Ficou, assim, por demonstrar um dos requisitos para que se pudesse constituir uma servidão legal de passagem pelo prédio dos Réus, sendo que competia à A. o ónus de prova do requisito de “menor prejuízo”, nos termos do art.º 342º, n.º 1, do CC, porquanto constitutivo do seu direito potestativo de constituição de uma servidão legal de passagem.

            Esta, pois, a fundamentação apresentada para a improcedência da ação.

            8. Na situação em análise, a A. considera existir “comunicação insuficiente” de acesso do seu prédio à via pública, sabendo-se que é possível configurar os seguintes casos de encravamento de prédio: i) o encravamento absoluto, derivado da inexistência de qualquer comunicação do prédio com a via pública (art.º 1550º, n.º 1, 1ª parte, do CC); ii) o encravamento relativo nos casos em que só seja possível estabelecer a comunicação com a via pública com excessivo incómodo ou dispêndio; iii) o encravamento relativo, traduzido em comunicação insuficiente com a via pública (art.º 1550º, n.º 2, do CC).[12]

            Decorre da factualidade provada que o prédio da A. se situa numa região com características rurais e alguma dificuldade de acesso direto à via pública rodoviária, sendo que, ao longo dos anos, tal acesso tem-se processado a pé - cf., sobretudo, II. 1. 6), 27), 28), 29), 30), 34), 35), 36) e 39), supra.

            Ante as apuradas circunstâncias objetivas, não se divisa nem a A. demonstra que o mencionado acesso a pé, como tem sido feito ao longo dos anos, tenha restringido, de modo essencial, a fruição normal das utilidades proporcionadas pelo prédio urbano em causa; também não se alega e demonstra a emergência de novas condições habitacionais que o façam supor.

            Ficou por demonstrar que o prédio da A. tenha garagem [cf. II. 2. a) e II. 1. 40), supra]; havendo sido construído há mais de 40/50 anos, será uma habitação, como tantas outras no nosso País, não predisposta para acesso com automóvel.

            E se podemos admitir a maior comodidade de dispor de automóvel até “à porta de casa”, tal não constitui fator indispensável à normal fruição da habitação, como ainda sucede em muitas das habitações existentes em Portugal, quer no meio urbano, quer no meio rural, em que se percorrem a pé distâncias similares à referida nos autos, transportando, por exemplo, “sacos de compras”, o que, de resto, se tende a acentuar pelos conhecidos constrangimentos de circulação e parqueamento automóvel.

            E quanto à necessidade de transporte de pessoas com dificuldades de mobilidade, a A. não provou nem tão pouco alegou que seja essa a situação concreta dos autos.

            De igual modo, a eventual necessidade de acesso a serviços de ambulância ou de bombeiros, de natureza esporádica, pode ser satisfeita, conforme as circunstâncias, por via de medidas pontuais de passagem forçada momentânea, à semelhança dos casos previstos no art.º 1349º do CC.

            Por conseguinte, não se afigura que o prédio urbano da A., com as características inerentes ao quadro fáctico provado, revele insuficiência de comunicação com a via pública, nos termos e para os efeitos do art.º 1550º, n.º 2, do CC.[13]

            Daí que, como na 1ª instância, se conclua pela improcedência da ação.

            9. Fica assim prejudicada a ponderação da (eventual) aplicação do regime previsto no art.º 1553º do CC e se foram efetivamente concretizados, nos autos, os elementos (factos pertinentes) a indagar visando a composição do conflito de interesses entre o dono do prédio dominante e os proprietários dos prédios que o encravam (máxime, do prédio através do qual deva ser constituída a servidão de passagem que causa menor prejuízo).

            Ademais, antolha-se evidente que a factualidade apurada, por insuficiente, também não permitiria aquela ponderação e composição [cf., designadamente, II. 1. 17), 20) e 21), supra].

            10. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.        

            Custas pela A./apelante.


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24.01.2023




[1] Da ata, consta a seguinte súmula do requerimento da A.: «Uma vez que da realização da inspeção ao local a que se procedeu, resultou que a largura do logradouro do prédio dos réus é pouco inferior a quatro metros, o autor requer a redução do pedido para a constituição de uma servidão de passagem pelo prédio dos Réus com 22 metros de comprimento e 2 metros de largura
[2] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[3] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[4] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[5] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares, cit., pág. 277.
[6] Ibidem, pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[7] Vide, designadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, 2ª edição, 1987, págs. 613 e seguintes.

[8]   Estabelece o art.º 1550º, n.º 1, que “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre prédios rústicos vizinhos”. O n.º 2, do mesmo artigo, prevê que de igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio.

   De acordo com o art.º 1551º, n.º 1, poderão ser onerados com uma servidão de passagem as quintas muradas, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos, mas com a faculdade de os respetivos proprietários se poderem subtrair a tal encargo, adquirindo o prédio encravado pelo justo valor.

   Prevê o art.º 1553º que a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios oneradosPela constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao prejuízo sofrido – art.º 1554º do CC.

[9] Nomeadamente, os acórdãos do STJ de 12.10.2017-processo 361/14.4TBVVD.G1.S1 [concluindo-se: «I. Para efeitos de constituição de uma servidão legal de passagem com fundamento em encravamento relativo, nos termos previstos no artigo 1550º, n.º 2, do CC, a comunicação insuficiente deve ser aferida em função do leque de utilidades normais inerentes à afetação específica do prédio dominante, de modo a proporcionar ao seu proprietário um aproveitamento objetivo dessas utilidades, condizente com o destino económico da coisa e com a função social do respetivo direito de propriedade.  II. Não relevam, para tal, as potencialidades de desfrute de raiz meramente subjetiva, nem as pretensões de particular incremento na valorização da coisa, nem tão pouco a simples satisfação de melhores níveis de comodidade do proprietário do prédio dominante.  III. Todavia, em caso de servidão de passagem para habitações, não se poderá deixar de atender aos padrões de vida correntes no tipo de agregado populacional em referência nem às exigências de acessibilidade e desfrute de uma habitação em condições de salubridade, higiene e conforto humanamente condignas. IV. No caso, como o dos autos, de uma habitação situada num trato topográfico de características rurais, desprovida de garagem e sem dispor de espaço para a construir, que tem sido, ao longo dos anos, servida por uma passagem pedonal para a via pública, numa extensão de 28,80 metros de comprimento, não se mostra lícito concluir, sem mais, que essa comunicação seja insuficiente em termos de exigir a constituição de uma servidão de passagem com automóvel. V. Nem para tal releva a eventual necessidade de acesso a serviços de ambulância ou de bombeiros, dada a sua natureza esporádica, que pode ser satisfeita, conforme as circunstâncias de cada caso, por via de medidas pontuais de passagem forçada momentânea, à semelhança dos casos previstos no artigo 1349º do CC.»], da RP de 04.6.2001-processo n.º 0150512 [sumariando-se: “Estando constituída a propriedade horizontal, tem de considerar-se que o seu instrumento de constituição obedeceu aos requisitos legais, não podendo afirmar-se que haja frações autónomas que sejam encravadas e que careçam de servidão de passagem”] e da RC de 14.10.2014-processo n.º 1630/03.4TBAGD.C1 e 10.07.2018-processo n.º 554/14.4T8LMG.C1 [com o sumário: “Nos termos do n.º 1 do artigo 1551º do Código Civil, a servidão legal de passagem pode constituir-se sobre terrenos adjacentes e integrantes de prédios urbanos, como é o caso dos respetivos logradouros”], publicados no “site” da dgsi.
[10] Como se defende no cit. acórdão do STJ de 12.10.2017-processo 361/14.4TBVVD.G1.S1.

[11] Neste contexto foram ainda citados os acórdãos da RC de 10.5.2011-processo n.º 3871/05.0TBLRA.C1 [concluindo-se: «(...) 3. O titular do prédio encravado tem direito, nos termos do artigo 1550º do Código Civil, a constituir uma servidão de passagem sobre os prédios limítrofes. Mas havendo mais que um prédio em condições de suportar a servidão, o titular do direito a constituir a servidão não pode escolher um prédio sem critério: deve observar a regra do artigo 1553º do mesmo Código e pedir a constituição sobre o prédio onde a servidão causa “menor prejuízo”. 4. A alegação da matéria que preenche o critério do “menor prejuízo” é constitutiva do direito de estabelecer a servidão sobre certo e determinado prédio, cujo ónus da alegação e prova compete ao autor (art.º 342º, n.º 1 CC ).»] e 19.12.2018-processo n.º 306/11.3TBCDR.C1 [com o sumário: «(...) 3. O encrave é relativo quando corresponde às situações em que o prédio poderia ter comunicação à via pública, mas apenas com excessivo incómodo ou dispêndio e às situações em que a comunicação do prédio com a via pública é insuficiente. 4. O preenchimento deste conceito legal (comunicação insuficiente com a via pública) terá que ser aferido através da definição daquelas que são as necessidades normais do prédio face à afetação que, em dado momento, lhe está atribuída e à exploração de que está a ser objecto, pelo que a comunicação à via pública será insuficiente se o acesso de que dispõe não permite a normal utilização e exploração do prédio, tendo em conta a sua afetação e a concreta exploração que dele está a ser efetuada. 5. O dono do prédio encravado não tem a faculdade ou direito de escolher, como lhe aprouver, o local de constituição da servidão e os prédios que por ela devam ser afetados. 6. Tendo os autores demandado apenas os réus com vista à constituição de uma servidão a onerar os respetivos prédios, sem que tenham sido demandados quaisquer outros proprietários de prédios vizinhos – tinham os autores o ónus de alegar e provar que os prédios pertencentes aos réus eram os que sofriam menor prejuízo com a constituição da servidão, por se tratar de facto constitutivo do direito à constituição da concreta servidão que reclamam. 7. Os autores – para ver satisfeita a sua pretensão – estavam obrigados a alegar e provar uma de duas coisas: ou alegavam e provavam que a constituição da servidão sobre o prédio dos réus era a única possibilidade viável para estabelecer o acesso à via pública (alegando e provando a eventual inexistência de outros prédios confinantes ou a eventual existência de obstáculos que impedissem o acesso através desses prédios) ou alegavam e provavam que, de entre as várias alternativas possíveis, eram esses os prédios que sofriam menor prejuízo (e tal implicava que alegassem quais eram as várias alternativas possíveis para estabelecer o acesso).»], publicados no “site” da dgsi.

   Com igual entendimento, mormente quanto ao ónus da prova, cf. o acórdão da RG de 25.02.2016-processo 260/13.7TBPTB.G1 [com o sumário: «I – O proprietário de prédio encravado que pretende a constituição de uma servidão legal de passagem, para além de factos demonstrativos do encrave e da confinância do prédio, deve ainda, porque também constitutivos do seu direito potestativo, alegar factos que justifiquem concluir que o prédio vizinho através do qual pretende que seja efetuada a comunicação com a via pública, é aquele que menor prejuízo sofre com a constituição da servidão. II – Em sede do preenchimento em concreto do conceito de «menor prejuízo», e para além do fator óbvio do trajeto mais curto, deve ainda e concomitantemente atender-se a diversos outros elementos/fatores, maxime aqueles que permitam concluir que o prédio serviente, com a comunicação através dele, acaba por ser aquele que menos diferença sofre em relação ao estado em que estaria se não fosse constituída a servidão, e aquele a cujo proprietário é também possibilitada/permitida uma utilização do prédio mais aproximada à que vinha fazendo até à constituição do ónus a favor do prédio dominante.»], publicado no “site” da dgsi.
[12] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, cit., págs. 636 e seguinte.
[13] Cf. situação com alguma semelhança objeto do acórdão do STJ de 12.10.2017-processo 361/14.4TBVVD.G1.S1, aqui seguido de perto.