ESCRITURA PÚBLICA
ANULAÇÃO
FALTA DE CONSCIÊNCIA
FALTA DA VONTADE
INCAPACIDADE ACIDENTAL
Sumário

1. A falta de consciência da declaração negocial a que alude o art.º 246.º CC engloba quer a falta de vontade de ação, ou seja, a consciência e vontade de um comportamento declarativo, quer a falta de vontade da declaração, isto é, a vontade de emitir a declaração como declaração negocial.
2. Trata-se de um dos casos mais graves de divergência (não intencional) entre a vontade e a declaração, em que, podendo existir vontade de acção, falta a vontade de acção como declaração, a consciência de se assumir um comportamento declarativo ou a aparência de uma declaração.
3. A anulação da declaração negocial por incapacidade acidental, nos termos do art.º 257.º CC depende da verificação e prova dos seguintes requisitos:
a) Que o autor da declaração, no momento em que a faz, se encontrava, ou por anomalia psíquica, ou por qualquer outra causa (embriaguez, estado hipnótico, droga, etc.), em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do acto que praticou ou o livre exercício da sua vontade;
b) Que esse estado psíquico era notório ou conhecido do declaratário.
4. Na medida em que estas situações afetam a formação correcta da vontade do declarante, traduzindo-se também numa falta de vontade da declaração, coloca-se o problema de compatibilização do regime da incapacidade acidental com o de outras faltas ou vícios da vontade, como a falta de consciência da declaração, prevista no citado art.º 246° CC.
5. Atenta a afinidade de situações, deve ser o regime previsto no art.º 257.º CC, por expressa remissão legal, a regular os negócios celebrados por pessoas que, por anomalia psíquica (sem estar reconhecido o carácter duradouro ou habitual desta afetação), estejam impedidos de entender o acto que praticaram ou do livre exercício da sua vontade.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

QUESTÃO PRÉVIA:
Nos art.ºs 3.º a 5.º da motivação do recurso alega o recorrente, singelamente, que «vem juntar neste recurso documentos, o que faz nos termos do art.º 425º C.P.C., por remissão do n.º 1, art.º 651º C.P.C., uma vez que, tais documentos só foram descobertos apos a prolação da Sentença, de entre o acervo de MD, acervo este existente no prédio onde a mesma habitava.»
Tais documentos são:
- cópia de um extrato bancário em nome de MD, datado de 29 de novembro de 2019;
- uma mapa de marcações de consultas de MD no IPO, datado de 15 de novembro de 2019.
Nada mais!
Nos termos do art.º 651.º, n.º 1, do C.P.C., «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.»
Dispõe, por sua vez, o art.º 425.º do C.P.C., que «depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.»
Resulta da conjugação dos dois citados preceitos que a junção de documentos na fase do recurso só é admissível em duas situações, a saber:
a) por se ter tornado necessária a junção em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância;
b) por não ter sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em 1.ª instância.
Não está em causa a situação referida em b), pois os documentos juntos pela apelante em sede de recurso são datados de 2019, quando a ação deu entrada em 14 de abril de 2021.
O apelante alega que «tais documentos só foram descobertos apos a prolação da Sentença, de entre o acervo de MD, acervo este existente no prédio onde a mesma habitava.»
Não junta, no entanto, qualquer elemento probatório suscetível de demonstrar tal alegação.
Por outro lado, não alega sequer que se tratem de documentos cuja junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância.
Finalmente, tratam-se de documentos que em nada relevam para a decisão da causa.
Por isso, sem necessidade de mais considerandos, por absolutamente desnecessários, não se admite a junção aos autos dos documentos apresentados com as alegações de recurso do autor, determinando-se o seu desentranhamento dos autos e a sua restituição à ilustre advogada sua apresentante.
*
I – RELATÓRIO:
JD veio, ao longo de exageradamente extensa e prolixa petição inicial[1], intentar a presente ação declarativa constitutiva, contra P-GI, Lda., alegando, em síntese[2], que em 17 de dezembro de 2019, ele e sua irmã, MD, que veio a falecer no dia 8 de janeiro de 2020, eram cotitulares, em partes iguais, de um quinhão hereditário constituído por um prédio urbano em propriedade total, com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, sito na Rua RD, n.º __, freguesia de Arroios, concelho de Lisboa, composto de cave, R/C, 3 andares e quintais, destinado a habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ____, da freguesia de S. Jorge de Arroios, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____ da freguesia de Arroios (antigo artigo ____ da freguesia de S. Jorge de Arroios).
Naquele dia 17 de dezembro de 2019, mediante escritura realizada no Cartório de JM, em Lisboa, FN, outorgando na qualidade de procuradora e em representação de MD, pelo preço de € 700.000,00, declarou vender, livre de ónus e encargos à ora ré, ali representada pelo seu sócio-gerente, AP, que declarou comprar, «o quinhão hereditário de que a sua representada é titular nas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de seus pais e irmão, CB, BB e CDB, constituídas pelo prédio acima identificado.
Sucede que «em 17 de dezembro de 2019, MD já não tinha discernimento de entendimento do ato que nesse dia ia ser praticado», não tendo, portanto, consciência da declaração negocial consubstanciada naquela escritura.
Tal como, aliás, já não tinha à data em que outorgou a favor de FN, a procuração a conferir-lhe poderes para intervir naquela escritura nos termos em que o faz.
Além disso, não foi assegurado ao autor o exercício do direito de preferência na aquisição do quinhão de que MD era titular naquelas heranças.
O autor conclui assim a petição inicial:
«Pelo que se requer a Vossa Exa.:
Julgue procedente estes autos, por provados os factos neles alegados, decretando a anulação da escritura pública celebrada em 17 de dezembro de 2019 do referido imóvel prédio urbano em propriedade total, com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, sito na Rua RD, n.º __, freguesia de Arroios, concelho de Lisboa, composto de cave, R/C, 3 andares e quintais, destinado a habitação, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ____, da freguesia de S. Jorge de Arroios, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____ da freguesia de Arroios (antigo artigo ____ da freguesia de S. Jorge de Arroios), entre a ré e MD, para os devidos efeitos legais.»
*
A ré apresentou contestação, começando por arguir a caducidade do direito de preferência do autor.
No entanto, considerando o objeto do litígio tal como configurado pelo autor na petição inicial, composto pela causa de pedir e pelo pedido, a invocação daquela exceção é irrelevante, importando apenas considerar, para o que aqui e agora interessa, que a ré impugnou que a referida MD se encontrasse incapacitada de entender o significado da escritura celebrada no dia 17 de dezembro de 2019, sendo que, tanto no momento em que celebrou o contrato-promessa de compra e venda que antecedeu a celebração daquela escritura, como no momento em que outorgou procuração a favor da pessoa que a representou naquela escritura, estava no pleno uso das suas faculdades mentais, tendo formado a sua vontade de modo livre e esclarecido.
Conclui assim a contestação:
«Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve a presente acção ser julgada improcedente e, em consequência, ser o R. absolvido do pedido.»
*
Realizou-se a audiência prévia, na qual a senhora juíza a quo, além do mais, fixou o objeto do litígio e enunciou um único tema de prova.
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Na subsequente tramitação dos autos realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Destarte, o Tribunal decide julgar a presente acção totalmente improcedente por não provada, absolvendo a ré do pedido.»
*
Inconformado, o autor interpôs o presente recurso de apelação.
Fê-lo, tal como já havia sucedido com a petição inicial, através de uma extensíssima e prolixa peça recursória, cujas conclusões eram constituídas por nada mais, nada menos, do que 123 (cento e vinte e três) pontos.
Por se tratarem de conclusões manifestamente complexas, prolixas, que de modo algum cumpriam o dever de síntese imposto pelo art.º 639.º, n.º 1, foi proferido o despacho de 5 de dezembro de 2022, a convidar o apelante a vir aos autos, em cinco dias, apresentar novas conclusões, em conformidade com o exposto naquele despacho, onde, de forma sintética, indicasse os fundamentos por que pretendia a alteração da decisão recorrida, nomeadamente em sede de matéria de facto.
Notificado desse despacho, o apelante apresentou o seguinte requerimento:
«(...) notificado de Despacho datado de 5 de Dezembro de 2022, vem apresentar as Conclusões de Recurso, aperfeiçoadas, nos termos do disposto no n.º 3, art.º 639º C.P.C..
Pelo que se requer (...), que:
Admita o presente requerimento e Conclusões de Recurso, aperfeiçoadas, nos termos do disposto no n.º 3, art.º 639º C.P.C., para os devidos efeitos legais.
JUNTA: Conclusões de Recurso aperfeiçoadas.»
E com esse requerimento juntou as seguintes conclusões:
«I. O objeto do recurso interposto pelo recorrente é a decisão proferida na Sentença a quo, datada e assinada de 25 de Abril de 2022.
II. O Exmo. Senhor Juiz a quo fez tábua rasa dos documentos por si admitidos, não impugnados, na ponderação que fez da matéria provada e não provada na Sentença decretada, tendo violado o disposto no n.º 4, art.º 607º C.P.C..
III. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em ter considerado na Sentença decretada que as consultas de hematologia da testemunha MHB com MD, duravam cerca 1 hora, pois aquela não o referiu.
IV. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz      a quo em ter considerado, que a testemunha MHB tivesse negado que os tratamentos e a medicação a que MD foi sujeita lhe tivessem debilitado as funções cognitivas e de entendimento, por aquela não o ter referido.
V. O Exmo. Senhor Juiz a quo incorrectamente ponderou e julgou os factos verbalizados pela testemunha MHB, na sessão de audiência e julgamento.
VI. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em não ter considerado na Sentença decretada que quem sofre de síndrome de acumulação, tem afetação das suas capacidades cognitivas.
VII. O Exmo. Senhor Juiz a quo nada referiu na Sentença decretada acerca da credibilidade, assertividade, objectividade do teor da inquirição da testemunha DAF.
VIII. O Exmo. Senhor Juiz a quo incorrectamente ponderou e julgou os factos relatados pela testemunha DAF, na sessão de audiência e julgamento.
IX. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em não ter considerado provado na Sentença decretada a factualidade que constava na prova documental: os e-mails datados de Julho de 2019, que a testemunha MFN verbalizou na audiência de julgamento, por deles conhecer.
X. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em ter-se baseado na sua ponderação e para prova da matéria de facto, no teor da inquirição da testemunha MFN, a qual, relativamente a MD, verbalizou que estava bem psicologicamente e com discernimento perfeito, em contradição com o teor dos referidos e-mails datados de Julho de 2019.
XI. Há contradição entre o teor dos referidos e-mails datados de Julho de 2019, que fazem prova nos autos a quo e o verbalizado pela testemunha MFN, segundo a qual MD estava bem psicologicamente e com capacidade de discernimento.
XII. O teor da inquirição da testemunha MFN na audiência de julgamento não merece credibilidade, pois conhece o teor dos referidos e-mails datados de Julho de 2019 e não reconheceu o estado anímico e incapacidade de discernimento de que padecia MD.
XIII. O teor da inquirição da testemunha MFN na audiência de julgamento não merece credibilidade, pois apesar de ter entrado na habitação de MD sita na Rua das ..., em Lisboa, não quis fazer referência à acumulação de objectos aí existente, apesar de na referida diligência ter visto as fotos juntas em 1ª instância e reconhecido o local.
XIV. O teor da inquirição da testemunha MFN na audiência de julgamento não merece credibilidade, pois faltou à verdade e entrou em contradição com o seu próprio discurso quando falou em desarrumação versus acumulação de objectos existente na habitação de MD, apesar de na referida diligência ter visto as fotos juntas em 1ª instância e reconhecido o local.
XV. O Exmo. Senhor Juiz a quo incorrectamente ponderou e julgou os factos verbalizados pela testemunha MFN, na sessão de audiência e julgamento.
XVI. A testemunha AHM durante a sua inquirição na sessão de audiência e julgamento demonstrou ter ressentimento e uma grande animosidade contra o recorrente, ostentando hostilidade flagrante contra este, em face do tom utilizado em toda a inquirição.
XVII. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em ter considerado na Sentença decretada que o ressentimento e grande animosidade da testemunha AHM relativamente ao recorrente, não lhe retirou credibilidade.
XVIII. O teor da inquirição da testemunha AHM na audiência de julgamento não foi nada objectivo, foi sim, apaixonado e toldado pela animosidade demonstrada pelo recorrente, pelo tom por ela usado nas respostas dadas.
XIX. O teor da inquirição da testemunha AHM não merece credibilidade, pois que verbalizou inicialmente na audiência de julgamento que a ajuda económica prestada pelo recorrente a MD era insuficiente, mas aí também verbalizou que desconhecia os valores envolvidos, o que revela incongruência.
XX. O teor da inquirição da testemunha AHM não merece credibilidade, pois que verbalizou na audiência de julgamento que MD era gastadora e que o recorrente lhe pagava as despesas, o que é contraditório com o que tinha verbalizado nessa diligência, que o recorrente prestava-lhe insuficiente ajuda económica.
XXI. A testemunha AHM verbalizou na sua inquirição na audiência de julgamento situações ocorridas entre o recorrente e MD, das quais acabou por reconhecer não ter conhecimento integral, o que não merece credibilidade.
XXII. A testemunha AHM verbalizou na sua inquirição na audiência de julgamento situações ocorridas entre o recorrente e MD, nas quais acabou por reconhecer que só ouviu o verbalizado por esta, o que não merece credibilidade.
XXIII. A testemunha AHM verbalizou generalidades na sua inquirição na audiência de julgamento, não as tendo conseguido concretizar, quando instada para o efeito, o que não merece credibilidade.
XXIV. A testemunha AHM verbalizou na sua inquirição na audiência de julgamento, situações que não presenciou, o que não merece credibilidade.
XXV. A testemunha AHM na sua inquirição verbalizou na audiência de julgamento que o recorrente era hostil com MD, não tendo conseguido concretizar e objectivar o que afirmara, o que não merece credibilidade.
XXVI. A testemunha AHM durante a sua inquirição verbalizou na audiência de julgamento, que as amigas de MD não falavam com o recorrente acerca do estado dela e que o recorrente estava alheado do estado de saúde de MD, em clara contradição com o teor dos referidos e-mails datados de Julho de 2019, nos quais existe um relato do estado de saúde e situação anímica de MD, dirigidos ao recorrente.
XXVII. O teor da inquirição da testemunha AHM em audiência de julgamento não merece credibilidade, pois que relativamente ao estado de apresentação da casa onde habitava MD, sita na Rua …, em Lisboa, verbalizou que esta estava em processo de mudança de casa, quando MD e todos quantos a rodeavam tinham plena consciência que encontrando-se ela em cuidados paliativos, não voltaria a fazer qualquer mudança de casa.
XXVIII. O teor da testemunha AHM durante a sua inquirição em audiência de julgamento é contraditório quando verbalizou que o recorrente não se interessava pelo estado de MD, tendo ela também aí dito que os técnicos contactados pelo próprio recorrente para verem o estado da habitação de MD, não agiram.
XXIX. MD manifestava desorientação mental, incapacidade de gerir a sua vida, mesmo quanto à toma de medicamentos, como antibióticos, tendo falta de capacidade de reter as recomendações médicas feitas em consulta.
XXX. É manifesta a contradição no teor da inquirição da testemunha AHM, com o teor da inquirição da testemunha MRM.
XXXI. A testemunha MRM na sua inquirição verbalizou que o recorrente sempre se interessou pela vida de MD.
XXXII. O Exmo. Senhor Juiz a quo avaliou mal a credibilidade do depoimento da testemunha AHM, tendo violado o disposto no n.º 4, art.º 607º C.P.C..
XXXIII. O Exmo. Senhor Juiz a quo não analisou criticamente o teor da inquirição da testemunha AHM.
XXXIV. O Exmo. Senhor Juiz a quo incorrectamente ponderou e julgou os factos verbalizados pela testemunha AHM, como o fez.
XXXV. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em ter escrito na Sentença proferida, que MD não tenha demonstrado qualquer confusão mental, tendo a testemunha MRM verbalizado na sua inquirição que MD manifestava desorientação mental e que não tinha consciência do estado em que se encontrava.
XXXVI. O Exmo. Senhor Juiz a quo incorretamente ponderou e julgou os factos verbalizados pela testemunha MRM, conforme o fez.
XXXVII. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo na Sentença decretada, em ter considerado que o recorrente teve uma intervenção “musculada” relativamente a MD, tendo em consideração de que dispunha nos autos de 1ª instância os referidos documentos datados de Julho de 2019, nos quais consta que o recorrente manifestou preocupação acerca do estado daquela e da necessidade de ela ter ajuda institucional.
XXXVIII. O Exmo. Senhor Juiz a quo mal ponderou na Sentença decretada a prova produzida nos autos de 1ª instância, atento o teor das inquirições das testemunhas e a prova documental ali junta.
XXXIX. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em não ter considerado provado na Sentença proferida que MD, em Dezembro de 2019, se encontrava mais confusa e baralhada.
XL. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em não ter ponderado toda a prova produzida nos autos de 1ª instância.
XLI. O Exmo. Senhor Juiz a quo violou o n.º 4, art.º 607º C.P.C..
XLII. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em não ter considerado provado na Sentença proferida que a medicação administrada a MD tinha efeitos secundários, nomeadamente, desorientação mental.
XLIII. O Exmo. Senhor Juiz a quo não ponderou toda a prova produzida, nos autos de 1ª instância.
XLIV. O Exmo. Senhor Juiz a quo violou o n.º 4, art.º 607º C.P.C..
XLV. MD, em 19 de Dezembro de 2019, era a titular dos seus interesses, estando num estado de desorientação cognitiva e desorientação mental.
XLVI. MD, em Dezembro de 2019, estava num estado de desorientação cognitiva e desorientação mental em consequência da medicação que tinha de tomar diariamente.
XLVII. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em não ter considerado na Sentença decretada o art.º 246º C.C..
XLVIII. O acto notarial celebrado entre MD e a recorrida, em Dezembro de 2019, padece de vicio na vontade.
XLIX. MD, em Dezembro de 2019, não tinha consciência, do ato notarial que ia praticar com a recorrida, pela medicação que tomava e estado de saúde em que se encontrava.
L. MD, em Dezembro de 2019, não tinha a devida orientação cognitiva e orientação mental para a prática do acto notarial com a recorrida.
LI. Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em ter decidido os autos de 1ª instância no sentido em que o fez.
LII. A compreensão do nível de consciência de MD, não era lúcida, que é o que releva para a apreciação da presente recurso.
Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso de Apelação, devendo ser anulada a Sentença, datada e assinada de 25 de abril de 2022, proferida pelo Exmo. Senhor Juiz a quo.
Assim fazendo Vossas Excelências, a costumada Justiça!»
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A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.
***
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer “ex officio”, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art.º 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, “ius novarum”, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal “a quo” (cfr. os art.ºs 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a) se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) se deve ser considerada inválida a escritura celebrada em 17 de dezembro de 2019.
***
III - FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que:
«a) MD, faleceu, após doença prolongada, em 8 de Janeiro de 2020.
b) MD, até 17 de Dezembro de 2019, era co-titular com o autor, em partes iguais, de um quinhão hereditário constituído por um imóvel prédio urbano em propriedade total, com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, sito na Rua RD, n.º __, freguesia de Arroios, concelho de Lisboa, composto de cave, R/C, 3 andares e quintais, destinado a habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ____, da freguesia de S. Jorge de Arroios, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____ da freguesia de Arroios (antigo artigo ____ da freguesia de S. Jorge de Arroios).
c) MD, em 19 de Setembro de 2019, havia celebrado um contrato promessa de compra e venda da parte ideal, não partilhada, da sua titularidade, no referido quinhão hereditário constituído pelo bem imóvel.
d) Em 17 de Dezembro de 2019, MD e a ré, à data, respectivamente, já nas qualidades de vendedora e compradora, celebraram escritura pública de compra e venda dessa parte ideal, não partilhada do dito quinhão hereditário constituído pelo imóvel, escritura pública essa na qual figurava como procuradora daquela, FN.
e) Nessa data, o seu prognóstico vital era muito reservado, tendo inclusive acabado de dar entrada na Unidade de Cuidados Paliativos, com suspensão da medicação que lhe era administrada, oncológica específica e de combate à dor.
f) MD residia na Rua … ,  Lisboa, desde 2005 até à data do seu óbito, tendo anteriormente morado na mesma Rua RD, em Lisboa.
g) Em 2013, foi diagnosticado a MD um mieloma múltiplo, que se veio a agravar com o passar dos anos,
h) No dia 10 de Fevereiro 1993 faleceu CB, tendo deixado como herdeiros, a sua cônjuge BB e seus filhos CDB, MD, JD, este o ora autor.
i) No dia 21 de Fevereiro 2011 faleceu BB, viúva de CB, tendo deixado como herdeiros os seus filhos, CDB, MD e JD.
j) No dia 13 de Novembro 2015 faleceu CDB, tendo deixado como herdeiros os seus irmãos MD e JD.
k) Por óbito de CB, de BB e de CDB, foi deixado o acervo hereditário constituído pelo referido bem imóvel: prédio urbano em propriedade total, com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, sito na Rua RD,  freguesia de Arroios, concelho de Lisboa, composto de cave, R/C, 3 andares e quintais, destinado a habitação, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ____, da freguesia de S. Jorge de Arroios, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____ da freguesia de Arroios (antigo artigo ____ da freguesia de S. Jorge de Arroios), sendo MD e o ora autor, os herdeiros em partes iguais, do mesmo.
l) Em 19 de Setembro de 2019, foi celebrado contrato promessa de compra e venda entre MD, na qualidade de promitente vendedora e a ré, na qualidade de promitente compradora, sendo que no considerando I, nomeadamente, consta que aquela e o ora autor, eram a essa data os únicos herdeiros dos seus pais, CB e BB, bem como de seu irmão, CDB, em igualdade de quinhões.
m) e no considerando II, que o bem dessas heranças é constituído pelo prédio urbano em propriedade total, com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, sito na Rua RD,  freguesia de Arroios, concelho de Lisboa, composto de cave, R/C, 3 andares e quintais, destinados a habitação, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ____, da freguesia de S. Jorge de Arroios, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____ da freguesia de Arroios (antigo artigo ____ da freguesia de S. Jorge de Arroios).
n) O objecto do aludido contrato promessa é o quinhão hereditário já supra descrito, conforme a respectiva redacção do seu n.º 1, clausula primeira “Pelo presente Contrato, a PROMITENTE VENDEDORA promete vender à PROMITENTE COMPRADORA, livre de quaisquer ónus ou encargos, com excepção dos arrendamentos do R/C e do 3º como é do pleno conhecimento da PROMITENTE COMPRADORA e esta promete comprar àquela o quinhão hereditário que a esta pertence nas heranças abertas por óbito dos seus pais, CB e BB e do seu irmão CDB os quais são constituídos unicamente pelo imóvel descrito no Considerando II” e de acordo com a redação do n.º 2 da mesma cláusula, a ora ré, na qualidade de promitente compradora naquele contrato promessa de compra e venda, referiu que “(…) tem perfeito conhecimento do estado em que se encontra o imóvel que compõe os quinhões hereditários ora prometidos, sendo do seu conhecimento por o ter visitado e vistoriado pessoalmente considerando-o perfeitamente conforme à sua vontade de contratar”.
o) Ainda prevê, a clausula segunda de tal contrato promessa que o preço da compra e venda do referido quinhão hereditário, perfazia o total de €700.000,00, o qual foi integralmente pago pela ora ré a MD.
p) Ainda, de acordo com a redacção da cláusula quarta de tal contrato promessa, com a epígrafe “Documentação e Direito de Preferência", MD “(…) obriga-se a obter todos os documentos necessários à outorga da prometida escritura, os quais deverá facultar à PROMITENTE COMPRADORA, com pelo menos 10 (dez) dias úteis de antecedência relativamente à data designada para a Escritura, por forma a não comprometer a realização da mesma, na data que vier a ser marcada”.
q) Em 17 de Dezembro de 2019, a escritura pública de compra e venda foi celebrada entre a ora ré e MD, esta, naquele acto, representada por FN, na qual declarou “(…) Disse então a primeira outorgante, na invocada qualidade: Que pelo preço de setecentos mil euros, já recebido, vende, livre ónus ou encargos, à sociedade representada do seguindo outorgante, P-GI, Lda., o quinhão hereditário de que a sua representada é titular nas supras descritas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de seus pais e irmão, CB, BB e CDB; Disse o segundo outorgante, na invocada qualidade: Que aceita para a sua representada, a venda, nos termos exarados (…)”.
r) Em 20 de Dezembro de 2019, o autor teve conhecimento pelo Senhor Mandatário da ré, Dr. DA que “(…)a m/Constituinte, no dia 17 p.p., adquiriu o quinhão hereditário da Srª D. MD constituído unicamente pelo prédio em epígrafe- de que V. Exª é o outro herdeiro. (…)”, sugerindo o agendamento de uma reunião.
s) Ainda em finais de Dezembro de 2019, em data não apurada, FN, informou o autor, quando se encontravam na Unidade de Cuidados Paliativos onde se encontrava internada MD, que esta tinha vendido a terceiros a parte ideal, não partilhada, no referido bem imóvel (quinhão hereditário), da sua titularidade.
t) Após tal data- finais de Dezembro de 2019- o autor teve conhecimento, que MD remeteu-lhe carta em 24 de Setembro de 2019 (não obstante, por erro de escrita, a data aposta na carta ser 23 de Setembro de 2018), para a morada Rua …, em Lisboa, a informá-lo que decorreram negociações com a ré, as quais estavam concluídas para a venda “(…) do meu quinhão hereditário nas heranças abertas por óbito de CB, BB e CDB, que pretendo efectuar. (…)”,
u) bem como a notificá-lo para ele exercer, querendo, o direito de preferência em tal venda, com indicação dos elementos essenciais do negócio, especificamente, identificação da compradora, a ora ré; Preço; Condições de pagamento; Escritura/Titulo de Compra e Venda; Despesas,
v) O autor não recebeu tal carta de notificação com o registo ____, conforme mesmo documento n.º 7 que já se juntou, no qual consta que em “21 Outubro 2019”, pelas “15:17”, ocorreu “Devolução ao remetente” do objecto.
w) O autor, nessas datas, entre 24 de Setembro de 2019 a 21 de Outubro de 2019, não morava na Rua …, em Lisboa, mas sim no Luxemburgo, __, Rue V, por motivos profissionais, pois aí desempenhava funções desde Junho de 1989, como bem MD tinha conhecimento, tendo ela conhecimento de todos os contactos do autor.
x) O autor, na mesma altura- finais de Dezembro de 2019- teve conhecimento que MD, em 24 de Setembro de 2019, também lhe havia remetido carta com o mesmo teor e data para a morada Rue V __, Luxemburgo.
y) O autor também não recebeu tal carta de notificação com o registo ____, no qual consta que em “2 Janeiro 2020”, pelas “10:14”, o objeto está “Em devolução. Envio para refugos”.
z) O autor teve conhecimento do envio das referidas missivas, com os registos ____ e ____, por se ter deslocado à morada Rua …, em Lisboa, onde encontrou os originais das mesmas.
aa) MD, sem embargo do conhecimento que tinha de todos os contactos do autor, nunca lhe telefonou a comunicar a celebração de quaisquer um dos referidos negócios jurídicos, sequer acerca da procuração que emitiu a FN, nem remeteu e-mail ao autor, nem sequer o contactou pessoalmente, a propósito de tal assunto, nem da sua intenção em lhe remeter as referidas cartas,
bb) MD e o autor sendo irmãos, tinham as suas divergências acerca das posições a adotar em cada momento, mas falavam entre si, nomeadamente, sobre os assuntos que a ambos dissessem respeito.
cc) O autor, era quem sustentava MD, tanto ao nível da alimentação, como no pagamento da parte mais significativa de todas as suas despesas mensais, nomeadamente:
-pagamento de renda da casa;
-pagamento da integralidade do valor dos impostos do imóvel sito Rua RD;
-pagamento de despesas médicas;
-pagamento das despesas dos consumos mensais da casa que habitava: acesso à internet, telefone, água, eletricidade, gás;
-pagamento da integralidade das despesas com o processo sucessório por óbito de CB, BB e CDB,
dd) além de o autor lhe entregar diretamente ou por transferência bancária, mensalmente, o valor de €1.500,00.
ee) O autor suportava economicamente MD, por ela ser uma doente oncológica e de mui parcos rendimentos, sendo o autor o seu único familiar, com possibilidades económicas para tal.
ff) O autor teve conhecimento que, MD já tinha sido contactada por uma ou mais de uma imobiliária, para a venda do referido quinhão hereditário (imóvel) da sua co-titularidade (sito na Rua RD, em Lisboa).
gg) O autor, à época, porque MD o abordou a tal propósito, foi contactado por uma imobiliária, tendo conseguido aí inviabilizar o processo de negociações.
hh) MD, pelo menos desde 2013, data de diagnóstico da sua doença oncológica que tem visto o seu estado de saúde deteriorar-se ao longo do tempo, tanto pela dificuldade de ter de lidar com uma doença terminal e irreversível, a dificuldade dos tratamentos e pelos sintomas, os efeitos secundários dos medicamentos que tinha de tomar, diariamente.
ii) no mês de Dezembro de 2019, MD não estava bem de saúde, mesmo em fase terminal e foi internada numa Unidade de Cuidados Paliativos hospitalar.
jj) Ambas as casas onde MD residiu, há muito tempo, que revelavam um estado de inabitabilidade.
kk) Em ambas as casas, MD que sempre foi vista como compradora compulsiva, ia acumulando bens.
ll) O autor, ainda MD era viva e habitava na morada Rua …, em Lisboa, costumava ficar aí a pernoitar nas suas deslocações a Portugal, tendo deixado de o poder fazer por volta dos anos de 2012 -2013, pois não tinha em nenhuma assoalhada espaço para dormir, mesmo para estar a descansar, sequer para escrever.
mm) Em consequência dos seus hábitos, MD, na Rua … em Lisboa, tinha centenas de sapatos, carteiras, bijutarias, adereços pessoais, livros, revistas, material de desenho e pintura, revistas essas, algumas com o mesmo número, mesmo bens de casa, como toalhas, isqueiros, louça e dezenas de peças de vestuário que ainda tinham as etiquetas da compra.
nn) Tal estado de acumulação de objetos naquela habitação (Rua ..., em Lisboa), tornava impossível levar a cabo as normais operações de limpeza e manutenção de cada uma das assoalhadas.
oo) As peças de mobiliário que estavam na referida habitação não se viam, simplesmente por estarem soterradas debaixo dos bens, roupas, papéis.
pp) O imóvel sito em Rua ..., em Lisboa, onde MD habitava, era arrendado, sendo o valor mensal da renda de €262,00.
qq) O autor constatou, por ter passado a ter acesso à habitação sita na Rua ..., em Lisboa, após o falecimento de MD, que esta foi condenada em inúmeras multas por motivos de infração às regras do Código da Estrada, quer por condução irregular, quer por estacionamento irregular.
rr) O autor tomou igualmente conhecimento, por ter passado a ter acesso à habitação sita na Rua ..., em Lisboa, após o falecimento de MD, que esta, a partir de determinado momento, deixou de abrir as suas correspondências, ou grande parte delas.
ss) MD era uma doente oncológica, tendo de tomar medicação, tanto oncológica específica, como para combate à dor, tendo de fazer uma terapêutica particularmente pesada, forte, que quando a mesma era tomada.
tt) o autor encontrou na habitação de MD uma enorme quantidade de caixas de medicamentos, mesmo por abrir e alguns do mesmo, como F, Z, D, M.
uu) as idas de MD à consulta de IPO em Lisboa, eram frequentes, podendo ter aí acesso a receitas médicas,
vv) MD era utente do serviço de psiquiatria daquele hospital, tendo sido seguida pela diretora daquele serviço, Dra. LM.»
3.1.2 – (...) e não provado que:
«- em 17 de Dezembro de 2019, MD já não tinha discernimento
- MD, à data da outorga da procuração a favor de FN e da celebração da escritura de compra e venda, já não tinha discernimento, nem capacidade de avaliação intelectual dos actos que praticava e da repercussão dos mesmos na sua vida.
- tendo a mesma, fruto da medicação e da deterioração do seu estado de saúde, com a inerente fragilidade, perdido capacidades de discernimento e de avaliação dos actos que praticava, o que era notório em meados do ano de 2019.
- Demonstrativo do estado de confusão mental de MD é o circunstancialismo de ter havido erro na indicação da data constante na carta, concretamente, o ano.
- MD, já pelo menos em Setembro de 2019, não tinha capacidade, destreza intelectual para ter diligenciado por contactar o autor, com eficácia, apesar de ter conhecimento dos meios para tal fazer.
- MD, em Setembro de 2019 já não tinha discernimento para enviar as cartas de notificação para a morada do autor ou o local onde se encontrava de visita, nem para endereçar correctamente as cartas, mesmo indicar correctamente a data, muito menos enviar e-mail.
- Procedeu como é referido em aa) por notoriamente MD já não ter capacidade de entendimento das consequências da prática dos seus actos jurídicos, nem destreza intelectual para tomar decisões.
- O autor ainda decidiu, por sua iniciativa promover que uma outra imobiliária fizesse avaliação do imóvel, tendo sido indicado o valor de cerca de €2.200.000,00, informação essa que o autor prestou a MD.
- Mesmo, tendo um particular apresentado uma proposta concreta de €2.000.000,00, para a compra do imóvel, não se tendo porém concretizado o negócio.
- Tendo em conta esse antecedente, o autor está convicto que MD aceitou a celebração da escritura de compra e venda com a ré, em 17 de Dezembro de 2019 (mesmo já em 19 de Setembro 2019, com a celebração do contrato promessa de compra e venda), por falta de entendimento e capacidade de raciocínio, tendo em conta ter tido conhecimento de oferta de um quantitativo muito superior que já lhe tinha sido feita,
- o mesmo estado incapacitante de que sofria aquando da outorga da procuração a favor de FN (ocorrida presumivelmente no hiato temporal entre a celebração do contrato promessa de compra e venda, em 19 de setembro de 2019, em que MD aí interveio por si e a data da celebração da escritura de compra e venda, de 17 de dezembro de 2019).
- Se MD tivesse a plenitude das suas capacidades intelectuais e de entendimento, bem como da sua capacidade de avaliação das circunstâncias que a rodeavam, não tinha aceite as condições negociais da ré para a compra da sua parte ideal (não partilhada) do referido quinhão hereditário, pois que, repete-se, tinha conhecimento de uma anterior proposta de negócio, cujo objeto era o referido imóvel, com condições de preço mais benéficas, aliás recusada.
- quaisquer empregadas domésticas que MD tentava contratar, recusavam desempenhar as funções, ou se contratadas, abandonavam o local de trabalho, por impossibilidade de desempenhar as funções, perante a anormalidade da situação.
- Devido ao estado do imóvel, foi instaurado pelo senhorio ação de despejo contra MD.
- O senhorio recusou qualquer oferta para a manutenção do contrato de arrendamento com MD, mesmo num aumento do valor da renda para €1.200,00 (igual ao valor que tinha sido proposto por um outro interessado pelo locado), sequer valor superior.
- Foi elevado o valor total das multas aplicadas a MD, de tal forma que foi negociado o pagamento das mesmas, em prestações.
- É notório que MD revelava falta de entendimento e discernimento ao adoptar o comportamento de não abertura de correspondência, qualquer que fosse, mais da Administração Tributária ou de empresas de fornecimento dos consumos domésticos.
- MD desconhecia o teor dessas missivas, sequer mostrava qualquer interesse nesse assunto, sendo-lhe indiferente, por falta de discernimento intelectual, que o assunto que nelas versasse pudesse ser mais ou menos urgente, mesmo relativo a prazos de pagamento de obrigações devidas, mesmo, a possibilidade de corte dos abastecimentos dos consumos na habitação.
- Comportamentos esses que revelam a incapacidade de MD em tomar conta e gerir a sua vida, mesmo de ser confiável na tomada de decisões, tanto mais a venda de um imóvel.
- A mesma falta de discernimento é revelada quando MD não informou o autor de que chegavam cartas à sua habitação, dirigidas a ele, mais uma vez revelando MD falta de capacidade em gerir os assuntos da vida diária com que se deparava, de forma séria e responsável, revelando indiferença, por falta de discernimento, das consequências das suas ações ou inações.
- A administração de medicamentos para a doença de que padecia e para a dor tinha consequências ao nível do seu discernimento da realidade que a circundava, mesmo toldando-a na sua capacidade de entendimento, lucidez e no cumprimento da regularidade da sua toma e controlo da posologia devida.
- MD comprava as caixas dos medicamentos, mas não os tomava, pelo menos regularmente, acumulando-se as mesmas.
- MD comprava as caixas de medicamentos prescritos, informando o médico que os tomava,
- MD ou por tomar a medicação que lhe era prescrita, ou pelas dores que sentia, devido ao seu estado clínico, ou mesmo fosse por não tomar essa medicação, era notória a sua incapacidade de entendimento e discernimento mental, na sua vida do dia a dia.»[3].
3.2 – Mérito do recurso:
3.2.1 – Notas prévias:
3.2.1.1 – A elencagem dos factos não provados na sentença:
Não é a melhor técnica processual aquela que foi utilizada pela senhora juíza a quo na elencagem dos enunciados de facto não provados, sem qualquer ordem numéria ou alfabética.
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, uma tal técnica dificulta, em muito, o labor, quer das partes na identificação dos pontos de facto objeto da impugnação, quer, posteriormente, do Tribunal da Relação na apreciação dessa impugnação.
3.2.1.2 – O relatório da sentença:
A estrutura de uma sentença integra, nos termos definidos nos artigos 607.º, n.º 2 e 3, e 608.º, vários segmentos, o primeiro dos quais, o relatório, no qual devem ser:
- identificadas as partes e o objeto do litígio;
- enunciadas as questões a resolver.
O relatório é a parte inicial ou cabeçalho da sentença, de matriz expositiva, em que, de forma sintética, são identificadas as partes e o objeto da causa e se fixam ou enunciam as questões que cumpre ao tribunal apreciar e decidir.
Se é certo que na economia do relatório, não cabe reproduzir as exposições de facto e as razões de direito feitas pelas partes nos articulados, nem tão pouco consignar o desenvolvimento processual, salvo quando se revele útil mencionar alguma vicissitude que complemente os contornos iniciais da causa, não é menos certo que não pode deixar de traçar de forma sucinta o perfil do litígio, ou seja, indicar a pretensão ou as pretensões formuladas, quanto ao efeito pretendido (o pedido) e ao quadro genérico da sua fundamentação mediante identificação categorial da respetiva causa de pedir.
Também, de forma igualmente resumida, se indicará a defesa impugnativa, excetiva ou reconvencional deduzida, devendo esta última ser identificada em termos similares aos da ação.
A referência às posições substancialmente assumidas pelas partes nos articulados, ou porventura na audiência prévia, sobre as diversas questões e argumentos em apreço terá lugar, na medida do que se afigure necessário, no quadro dos tópicos da fundamentação respeitante à análise fáctico-jurídica.
A linguagem a utilizar na identificação do objeto da causa deve ser, no que for possível, de preferência, em terminologia de recorte elementar.
Por sua vez, as questões a equacionar versam sobre as pretensões deduzidas, integradas pelo pedido e pela causa de pedir, incluindo a eventual pretensão reconvencional, e as exceções invocadas no terreno da defesa ou de que o juiz deva conhecer oficiosamente, nos termos do art.º 608.º do CPC.
Todavia, no âmbito de tais questões, devem ainda ser enunciados os tópicos específicos que importe identificar como configuração da grelha da análise jurídica a empreende. Por consequência, aqui a linguagem terá de ser, necessariamente, de matriz mais técnica, como umbral que é para o discurso jurídico da fundamentação[4].
Tudo isto para afirmar que, no caso concreto, o relatório da sentença recorrida não identifica o objeto do litígio nem enuncia as questões a resolver.
3.2.1.3 – A enunciação factológica:
Tal como sobre as partes recai o dever de alegação de factos essenciais que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas (art.ºs 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d) e 572.º, al. c)), na sentença, a enunciação linear, lógica e cronológica dos factos, tanto dos provados, como dos não provados, dentro dos limites dos temas da prova anteriormente enunciados, deve ater-se igualmente aos factos essenciais alegados no processo por cada uma das partes, de modo a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito; ou seja, a enunciação factológica efetuada pelo juiz na sentença deve abarcar necessariamente uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa), linear, lógica e cronológica, sobre factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou fundar as exceções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com a fattispecie da norma jurídica aplicável, se revelem necessários para a procedência da ação ou da exceção.
Além de que, sendo necessária, deve ainda fazer-se a enunciação dos factos concretizadores, também eles essenciais, da factualidade que se apresente difusa, sendo importante referir que a enunciação dos factos complementares e/ou concretizadores, repete-se, também eles essenciais, deve fazer-se desde que se apresentem como imprescindíveis para a procedência da ação ou da defesa, à luz dos diversos segmentos normativos relevantes para a decisão do caso concreto[5].
Não é, manifestamente, o que ocorre no caso concreto.
Tal como o autor estrutura a petição inicial, o que se impunha à senhora juíza a quo era que, na fundamentação de facto da sentença, procedesse à enunciação, tanto dos factos provados, como dos não provados, de modo a nela abarcar, necessariamente, uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa), linear, lógica e cronológica, sobre os factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir da ação, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com a fattispecie da norma jurídica aplicável, e segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, se revelassem necessários para a procedência da ação.
E que norma era essa?
A contida no art.º 246.º do Código Civil, pois, como claramente resulta da, ainda que prolixa, petição inicial, é à luz da sua fattispecie que o autor estrutura a causa de pedir que serve de fundamento à ação.
Não foi, no entanto, esse o caminho seguido pela senhora juíza a quo na sentença recorrida, pois que, como que acompanhando a prolixidade que caracteriza a petição inicial, enunciou, a esmo, e até de forma repetitiva, na fundamentação de facto da sentença, sem critério, nem linearidade lógica e cronológica, quer em sede de matéria de provada, quer em sede de matéria de facto não provada, dezenas de enunciados:
- uns, a grande maioria, sem qualquer relevo para de decisão da causa, extravasando manifestamente a fattispecie daquela norma.
- outros, que mais não são do que evidentes juízos conclusivos.
São as consequências da incorreta técnica, que infelizmente continuamos a ver frequentemente adotada na prática judiciária portuguesa, consistente no puro decalque acrítico, qual exercício de simples copy paste, sem qualquer filtro ou critério, de artigos dos articulados produzidos pelas partes (no caso, da petição inicial) daí resultando, amiúde:
- umas vezes, enunciados com uma estrutura sintática incorreta e sem rigor gramatical, terminológico e semântico;
- outras vezes, enunciados que mais não são do que conceitos normativos ou de direito;
- outras vezes, ainda, enunciados que mais não são do que proposições vagas, genéricas, abstratas, sem qualquer substrato factual;
- outras vezes, finalmente, enunciados sem qualquer relevo para a decisão da causa.
Conforme exemplarmente afirma Tomé Gomes, «a enunciação da matéria de facto traduz-se na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente por efeito legal da admissão por acordo ou da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados ou não provados durante a instrução, devendo ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas e de excessos de adjetivação.
Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam, e devem ser estruturados com correção sintática e propriedade terminológica e semântica. A adequação dos enunciados de facto deve pautar-se pela exigência de evitar que esses enunciados se apresentem obscuros (de sentido vago ou equívoco), contraditórios (integrados por termos ou proposições reciprocamente excludentes) e incompletos (de alcance truncado), vícios estes que figuram como fundamento de anulação da decisão de facto, em sede de recurso de apelação, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
(...) as partes tendem a adestrar a factualidade pertinente no sentido estrategicamente favorável à posição que sustentam no seu confronto conflitual, daí resultando enunciados, por vezes, deformados, contorcidos ou de pendor mais subjetivo ou até emotivo.
Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente epidérmico dos seus modos de expressão linguística.
Os enunciados de facto devem também ser expostos numa ordenação sequencial lógica e cronológica que facilite a conjugação dos seus diversos segmentos e a compreensão do conjunto factual pertinente, na perspetiva das questões jurídicas a apreciar. Com efeito, a ordenação sequencial das proposições de facto, bem como a ligação entre elas, é um fator de inteligibilidade da trama factual, na medida em que favorece uma interpretação contextual e sinótica, em detrimento de uma interpretação meramente analítica, de enfoque atomizado ou fragmentário. Por isso mesmo, na sentença, cumpre ao juiz ordenar a matéria de facto - que se encontra, de algum modo parcelada, em virtude dos factos assentes por decorrência da falta de impugnação - na perspetiva do quadro normativo das questões a resolver. De resto, só uma adequada ordenação dos factos provados permite compatibilizar toda a matéria factual adquirida, como se determina no artigo 607.º, n.º 4, parte final, do CPC.
(...) os enunciados dos juízos de prova devem nortear-se pela completude, clareza e coerência possíveis, em face dos resultados da prova, de forma a prevenir os vícios formais de deficiência, obscuridade e contradição, que constituem fundamento de anulação do julgamento nos termos do art.º 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC. 
(...) a narrativa factológica processual requer especificidades ditadas pelo seu próprio contexto e funcionalidade, em que predominam exigências de objetividade, clareza e, em suma, de suficiente compreensibilidade para os destinatários das decisões judiciais.
Nessa linha, a segmentação dos factos tem de ser ponderada não em função de arquétipos abstratos, porventura de pendor estético, nem de simplismos redutores, mas atentando no concreto contexto do litígio, em especial na intensidade impugnativa que tenha recaído sobre cada ponto de facto e na conjugação com os concretos meios de prova convocados para a sua demonstração e até mesmo em vista das exigências de operacionalidade na articulação do argumentário probatório com os enunciados fácticos nele reportados.
(...).
Se, porventura, se concentrarem num só enunciado factual vários segmentos que mereceram impugnação e produção de prova específica ou diferenciada, tal concentração dificultará, sem dúvida, o reporte a fazer em sede de argumentação probatória, bem como o exercício do ónus de impugnação exigido ao recorrente e ao recorrido pelo artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 3, do CPC, e, por fim, a identificação e reapreciação dos pontos impugnados por parte do tribunal de recurso.
Em suma, a segmentação dos enunciados de facto deve ter por base a natureza dos factos em causa, a sua estrutura morfológica empírico-normativa, o seu contexto impugnativo e probatório, e ainda as exigências de objetividade e clareza requeridas pela sua conjugação com a respetiva motivação em 1.ª instância e pela impugnação e reapreciação em sede de recurso.»[6].
3.2.2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Dispõe o n.º 1 do art.º 640.º:
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»
Nos termos da al. a) do n.º 2, «no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.»
Conforme refere Abrantes Geraldes, «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art.ºs 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640.º, n.º 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.»[7].
Ainda segundo o mesmo Autor, «as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.»[8].
A necessidade de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, resulta do estipulado no art.º 639.º, n.º 1, segundo o qual, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação.
Assim, a exigência da especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar, visa a delimitação do objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.
Por isso, a ausência de especificação, nas conclusões do recurso, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados não pode ser suprida pela circunstância de, no corpo das alegações, ou seja, na motivação, constarem, eventualmente, os elementos exigidos pelo art.º 640.º.
Sucede que o recorrente não cumpre os ónus cumulativamente previstos no art.º 640.º
Desde logo não especifica, ao longo dos 52 (cinquenta e dois) pontos que constituem as conclusões aperfeiçoadas que apresentou, quais os concretos pontos de facto, provados e não provados, que considera incorretamente julgados.
Essa omissão, por si só, é justificativa da rejeição do recurso quanto à decisão da matéria de facto.
Afigura-se-nos, no entanto, que nem sequer na motivação o apelante faz essa especificação.
Ainda que assim se não entendesse e se considerasse que o apelante efetuou tal especificação na motivação do recurso (o que, reitera-se, não impediria a rejeição do recurso, uma vez que omitiu, nas conclusões, a dita especificação), também não teria indicado:
- os meios probatórios relativamente a cada facto impugnado;
- o sentido da decisão que em relação a cada um deles deveria ter sido tomada.
Pelo exposto, rejeita-se o recurso interposto pelo apelante quanto à decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto.
*
3.2.3 – Enquadramento jurídico:
Como se viu, o apelante fundamenta a sua pretensão com fundamento no art.º 246.º CC, que tem como epígrafe: «Falta de consciência da declaração e coação física».
Dispõe o citado normativo que «a declaração não produz qualquer efeito, se o declarante não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial ou for coagido pela força física a emiti-la; mas, se a falta de consciência da declaração foi devida a culpa, fica o declarante obrigado a indemnizar o declaratário.»
A respeito deste artigo, e no que à «falta de consciência da declaração» concretamente diz respeito, escreve Mafalda Miranda Barbosa:
«Em determinadas situações, o sujeito que emite uma declaração de vontade fá-lo voluntariamente, não tendo, contudo, consciência de que ao seu comportamento é atribuído o valor de declaração negocial. Diz-se, então, que falta a consciência da declaração, a corresponder, em regra (mas não necessariamente, como veremos), a hipóteses em que está ausente a vontade de declaração.
O simples enunciado encerra, porém, questões complexas, que nos fazem mergulhar em aspetos centrais da teoria do negócio jurídico.
Em primeiro lugar, parece estar em causa uma valorização da vontade, em detrimento da dimensão objetiva da declaração. Alguns autores vêm, então, criticar a possibilidade de se invalidar o negócio com base na falta de consciência que dela se tenha. Designadamente, entende-se que a consciência não seria necessária para se poder falar de uma declaração, bastando que a mesma pudesse ser imputável ao declarante, caso em que, mesmo que não se tivesse apercebido de que o seu comportamento podia ser interpretado no sentido de nele ver uma declaração negocial, ficaria por ela vinculado. Em causa estaria uma aproximação ao regime do erro, manifestamente assumida por parte da doutrina, não só porque não se detetaria uma diferença grande entre quem nada quer e quem quer uma coisa diversa daquela que declarou, como pelo regime disciplinador desse mesmo erro, previsto no § 119 BGB. A posição destes autores parece apontar para a importância do elemento objetivo e, consequentemente, pela tutela da confiança, que poderia assim operar em termos positivos.
Mas acabou por ser contestada por outros autores, para quem não bastaria a imputabilidade da declaração ao sujeito, sendo necessário a sua consciência, sem a qual não se conseguir falar verdadeiramente de exercício da autonomia privada. O elemento primordial seria atribuído à vontade, de tal modo que a tutela da confiança apenas poderia operar negativamente, por via da indemnização do interesse contratual negativo (453).
O legislador português autonomizou a falta de consciência da declaração, afastando-a do regime do erro. Não obstante, autores como Menezes Cordeiro acabam por se mostrar críticos da disciplina que foi instituída no Código Civil. Antes de mais, o insigne civilista deteta uma contradição entre o disposto no artigo 246.º CC e no artigo 236.º CC. De acordo com a explicitação do autor, se A emite uma declaração negocial, ela é interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário teria atribuído à declaração. A emite uma declaração, mas não tem consciência de que o seu comportamento corresponde a uma declaração de vontade. Se B, razoavelmente, a puder entender como uma declaração negocial, então é com esse sentido que, de acordo com o artigo 236.º CC, ela deve valer. No entanto, o artigo 246.º retira-lhe eficácia[9].
Por outro lado, o preceito entra em colisão com o artigo 247.º CC, segundo explicitação de Menezes Cordeiro: se uma pessoa diz uma coisa e quer dizer outra, aplica-se o regime do erro obstáculo e o negócio é anulável apenas se determinados requisitos estiverem preenchidos. A pessoa pode ficar vinculada a um negócio jurídico que não queria celebrar por falta de verificação de tais pressupostos. Se não quiser qualquer negócio jurídico, o perigo de vinculação fica absolutamente afastado[10].
Os autores propõem, por isso, uma restrição teleológica do preceito. Não pode estar aqui em causa uma falta de consciência íntima e não detetável. A falta de consciência da declaração que releva é aquela que é percetível no próprio contexto do negócio[11].
Cremos que, tendo em conta uma interpretação sistemático-dogmática, que não se afasta verdadeiramente de uma interpretação teleológica, até porque a consideração da eventual contradição no ordenamento jurídico envolve a ponderação acerca da dualidade proteção da vontade - proteção da confiança, a proposta interpretativa dos autores é a única que se pode defender.
Isto significa que, mediante uma declaração, teremos de lançar mão das regras da interpretação jurídica para saber se, à luz daquilo que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, ela pode ser imputada ao declarante. Caso não possa, então o negócio deve ser considerado nulo[12], nos termos do artigo 246.º CC.
Nessa hipótese, pode ainda haver lugar à tutela negativa da confiança do declaratário. Se o declarante tiver tido culpa na emissão da declaração, sem que dela tivesse consciência, haverá direito a uma indemnização.
Repare-se que, se o declaratário tiver conhecimento da falta de consciência da declaração, isto é, se souber que o comportamento do declarante não foi voluntário, nem sequer se chega a colocar o problema da vinculação, já que ele conheceu a real vontade do declarante e é de acordo com ela que vale a aparência de comportamento declarativo. Pense-se, por exemplo, na famosa hipótese do leilão, no qual o sujeito A entra e acena com o braço a um seu conhecido, não se apercebendo que com isso estava a declarar uma oferta num lance. A falta de consciência da declaração é patente, relevando a falta de consciência da declaração e gerando-se a nulidade do negócio. Mas, em rigor, se o pregoeiro conhecer a falta de vontade de declaração, o negócio nem se chega a formar, porque o comportamento do sujeito A não pode ser interpretado como uma declaração negocial.
Outro problema que com que o jurista se confronta quando lida com eventuais hipóteses de falta de consciência da declaração é saber se a disciplina é aplicável em hipóteses de incapacidade de exercício de direitos e de incapacidade acidental[13].
A questão tem sido amplamente debatida na jurisprudência. O caso discutido e decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Dezembro de 2012 (Proc. n.º 1267/06.TBAMT.P2)[14] pode ser explicitado, para o que nos interessa (e, portanto, deixando de lado algumas especificidades), em poucas palavras: A celebrou um testamento em que instituiu herdeiro de toda a quota disponível o filho C, em detrimento dos restantes filhos. Estes vieram, depois, invocar que, no momento da celebração do negócio, A estava incapaz de entender o sentido da declaração, caracterizando-se o seu estado por senilidade, abalo mental, falta de consciência das coisas, momentos de perturbação nos quais atirava coisas pela janela, puxava os cortinados sem razão, se despia, gritava, falava com flores, se referia ao marido, dizendo que não o era, etc. Alegaram, por isso, que A atuou com falta de consciência da declaração, prevista no artigo 246.º CC.
Considerou, porém, o Tribunal da Relação do Porto que o “campo de aplicação normativo aí se restringe ao declarante que esteja dotado de discernimento, isto é, de capacidade necessária para entender o sentido da declaração”, pelo que se pode distinguir o âmbito de relevância desta divergência não intencional entre a vontade e a declaração do das hipóteses de incapacidade acidental, pensada para a falta de discernimento.
A mesma solução é ditada pelo Acórdão de 19 de Novembro de 2009, do Tribunal da Relação de Lisboa (Proc. nº 4846/05.5TJLSB.L1-6)[15], ao considerar que “a norma do artigo 246º não se aplica aos casos em que o declarante não possui capacidade par[16]a entender a declaração, antes aos casos em que, não obstante a presença dessa capacidade, não se apercebe de ter feito uma declaração negocial”.
 Pelo contrário, no Acórdão de 10 de Abril de 2014 (Proc. nº 1407/11.3TJLSB.L1-7)[17], o mesmo Tribunal da Relação de Lisboa adota posição diversa. Em causa estava um acordo de revogação de um contrato de arrendamento urbano, celebrado em 30 de Março de 2011. Alegou-se que, no momento da aposição da sua assinatura, a arrendatária não estava em condições de entender o alcance do seu ato. Na verdade, em 1989, tinha sido vítima de uma hemorragia cerebral por rutura de um aneurisma, que afetou a sua capacidade de compreensão, de análise, de interpretação, de opção e decisão e a impedia de se responsabilizar em atos complexos e elaborados.
Não obstante a divergência detetada na jurisprudência, é possível extrair uma conclusão: parece ser dominante a posição segundo a qual a cisão entre a falta de consciência da declaração e a incapacidade acidental passa pelo facto de o sujeito ter ou não ter capacidade para entender a declaração. Não cremos, porém, que este seja o melhor critério. Aliás, a doutrina tem vindo a defender – numa aproximação à solução gradativa que o ordenamento jurídico alemão nos oferece em matéria de menoridade – que é possível aplicar o artigo 246º CC aos menores abaixo de uma determinada idade (7 anos), considerando o negócio por si celebrado nulo (e não anulável)[18]-[19].No mais, entende-se que assim seja: por que razão haveríamos de tutelar mais fortemente aquele que, tendo capacidade para entender o ato declarativo, não se apercebeu dele do que aquele que simplesmente não tem aquela capacidade?
Há, porém, que estabelecer adequadamente a cisão. O que separa a falta de consciência da declaração da incapacidade acidental é a presença ou a ausência de vontade no momento da emissão da declaração negocial. Estando em causa a falta de consciência da declaração, inexiste vontade de declaração, ou seja, o sujeito não se apercebe que o seu comportamento – que é voluntário – tem o valor de declaração negocial.
Já no caso de se constatar a incapacidade acidental do sujeito, haveremos de concluir que o ato é não só voluntário, como ele tem consciência da natureza declarativa do seu comportamento. Simplesmente, por força de circunstâncias endógenas ou exógenas, no momento da celebração do negócio, o declarante não consegue entender o alcance do ato que pratica (tendo, porém, consciência de que o está a praticar) ou não consegue determinar a sua vontade de acordo com um pré-entendimento que estabeleça.
Na síntese de Menezes Cordeiro[20], “na falta de consciência da declaração, o agente mantém o discernimento e a liberdade; simplesmente, julga mover-se fora do palco do juridicamente relevante; na incapacidade acidental, o agente, apesar de saber-se na área negocial, não tem discernimento ou liberdade para concretizar a atividade jurígena”. Mas, na prática, “a sobreposição entre as duas figuras é fácil: basta que o acidentalmente incapaz, além da falta de discernimento ou de liberdade quanto ao que declare, também não se aperceba de que profere uma declaração com conteúdo jurígena”.»[21].
Heinrich Ewald Hörster / Eva Sónia Moreira da Silva escrevem que «(...) o artigo 246.º reúne duas situações diferentes, embora idênticas num aspecto, a falta absoluta da vontade, ou uma ausência da vontade, por parte do declarante. Em rigor não há nenhuma divergência entre uma vontade e a sua declaração. As situações abrangidas pelo artigo 246.º distinguem-se da simulação, da reserva mental e da declaração não séria, onde sempre existe uma vontade, embora haja uma divergência entre esta e a declaração feita. Mas, a distinção ainda vai mais longe: enquanto nas três figuras referidas esta divergência é intencional, no caso do artigo 246.º a falta de vontade ou melhor, a sua ausência, não provém de qualquer intencionalidade. A “falta de consciência da declaração” não é voluntária (o declarante nem sequer se apercebe) […].
Deste modo, o artigo 246.º prevê o seguinte: a declaração não produz qualquer efeito (apesar da chegada ao poder ou da tomada de conhecimento por parte do declaratário), se o declarante (1.º) não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial ou (2.°) for coagido pela força física a emiti-la.
(...)
Quanto às consequências de uma tal “declaração”, a lei recorre, novamente, à formulação ambígua de que a declaração não produz qualquer efeito. Tal como no caso da declaração não séria, esta formulação significa a não verificação de quaisquer efeitos negociais, devido à não existência de um negócio jurídico (o que equivale, também aqui, a uma nulidade sem quaisquer efeitos laterais legais). (...).
Abstraindo do caso da coacção física - que quase aparece como um enxerto no seu corpo - o artigo 246.º apresenta, quanto à hipótese da falta de consciência da declaração, praticamente a mesma estrutura do artigo 245.º, apesar de não estar dividido em dois números.
À falta de consciência de fazer uma declaração correspondem duas alternativas: na primeira, há falta de vontade de acção; na segunda há vontade de acção, mas falta a consciência de fazer uma declaração negocial.
Uma acção em sentido jurídico apenas existe quando for comandada pela vontade. Partindo desta premissa, não há vontade nenhuma e, consequentemente, também não há acção nenhuma quando se trata de movimentos inconscientes ou de reflexos. Aqui falta a vontade de acção por completo. Não há o propósito de emitir declaração alguma. É esta a primeira das alternativas referidas.
No entanto, pode existir o propósito de emitir uma declaração, pode haver uma vontade de acção, embora não haja uma vontade de emitir aquela declaração como declaração negocial, mas apenas como, p. ex., declaração de ciência. Aqui falta a vontade de fazer uma declaração no sentido do artigo 217.º, uma vontade no sentido de criar uma vinculação jurídica. (...).
A consequência jurídica da falta de consciência da declaração devida à falta completa da vontade de acção, é, como no caso da coacção física ou da declaração não séria, a não produção de qualquer efeito. Esta não produção de qualquer efeito significa, portanto, a ausência de todos e quaisquer efeitos de natureza negocial.
O mesmo “não produz qualquer efeito” vale também para o caso da falta de consciência da declaração causada pela falta da vontade de fazer uma declaração negocial no sentido do artigo 217.º. A lei não distingue (como talvez fosse de esperar) na sua formulação entre as duas alternativas da falta de consciência da declaração em causa, que são estrutural e conceitualmente diferentes entre si.
A recusa de qualquer efeito de natureza negocial, em ambas as alternativas da falta de consciência da declaração, verifica-se sempre, seja a falta conhecida do declaratário ou não, seja ela reconhecível para ele ou não, uma vez que a lei não estabelece estes pressupostos.»[22].
Também Evaristo Mendes, escreve que «(...) entre nós, a doutrina tem sustentado, ainda que com grande flutuação terminológica, que o conceito legal de não ter a consciência de fazer uma declaração engloba quer as situações de falta de vontade de ação, quer as de falta de vontade de declaração - a falta da consciência da declaração em sentido estrito (cf. as extensas indicações de P. Mota Pinto, 1995: 229 e ss.; para Oliveira Ascensão, 2003:121, a falta de vontade de ação não se acomoda no conceito de falta da consciência, devendo seguir, por aplicação analógica, o regime da coação física).
Na primeira modalidade, a falta de consciência é aferida por referência à existência de vontade de realização de uma ação. Na falta de um comportamento consciente e voluntário, não se poderá sustentar a existência de uma ação, matriz essencial do conceito de declaração (cf. Menezes Cordeiro, 2005: 541, Oliveira Ascensão, 2003: 44, e C. Mota Pinto, 2012: 491). Os casos de falta de vontade de ação não se esgotam na previsão de coação física, visto que esta depende, como à frente se verá em pormenor, da existência de uma força externa que não existe, por exemplo, em situações de movimentos reflexos ou inconscientes.
Na segunda modalidade, e existindo vontade de ação (cf. Manuel de Andrade, 2003: 128), a falta de consciência da declaração significa a ausência de vontade de vinculação jurídica através do comportamento conscientemente realizado e que, objetivamente, valeria como declaração negocial (cf., entre outros, Carvalho Fernandes, 2010:192, e P. Mota Pinto, 1995: 225 e ss.). Esta vontade é, em absoluto, dirigida à participação no tráfego jurídico-negocial e distinta do conteúdo dos concretos efeitos jurídicos a produzir com a declaração. Nestes termos, a consciência da declaração é, para a maioria da doutrina nacional, entendida como um requisito subjetivo legal da declaração negocial (cf. Ferrer Correia, 2001: 306, Carvalho Fernandes, 2010: 192, C. Mota Pinto, 2012: 490, Pais de Vasconcelos, 2012: 562, e, com críticas à solução legal, P. Mota Pinto, 1995: 233 e ss., maxime 249).
Em sentido contrário, entre nós, Menezes Cordeiro (2005: 788) sustenta uma "interpretação restritiva do artigo 246.º/1, na parte relativa à falta de consciência da declaração"; na sua opinião, é apenas determinante para a existência de uma declaração negocial a possibilidade de imputação ao declarante de um comportamento que, segundo as regras da interpretação, tenha valor negocial. Assim, a declaração será imputada ao declarante com o sentido que lhe seria atribuído por um declaratário normal, ainda que aquele dela não tenha consciência, restando-lhe a possibilidade de impugnação da sua declaração negocial através de erro (na mesma linha, cf. JOSÉ VIEIRA, 2006: 581) A declaração apenas não será imputada nos casos em que, perante um declaratário normal, a falta de consciência seja patente, reservando-se para esses casos a nulidade do ato e, em caso de culpa do declarante, a indemnização (para uma crítica a esta concepção, vd. Oliveira Ascensão, 2003:126).
(...)
A lei, sem tomar partido na querela quanto à qualificação do vício que atinge as declarações emitidas sem consciência, comina a sua não produção de efeitos jurídicos (cf. Rui de Alarcão, 1964: 88). A doutrina tem oscilado entre qualificar as declarações como inexistentes (cf. Carvalho Fernandes, 2010:194, Oliveira Ascensão, 2003: 126, e Pais de Vasconcelos, 2012: 562), nulas (cf. Menezes Cordeiro, 2005: 788) ou, numa posição intermédia, inexistentes quando se trate de uma situação de falta de vontade de ação e nulas quando exista falta de vontade de declaração (cf. C. Mota Pinto, 2012: 491). (...).
O ónus da prova da falta de consciência da declaração ou da coação física onera, nos termos gerais (artigo 342.º, n.º 1), aquele que invoca a ineficácia da declaração, sem prejuízo da sua declaração oficiosa pelo tribunal, dentro dos limites do princípio do dispositivo.»[23].
No dizer de Mota Pinto, referindo-se à «falta de consciência da declaração, afirma:
«Falta a vontade de acção ou falta a vontade ou, pelo menos, a consciência da declaração.
Estas hipóteses são abrangidas pelo artigo 246.º: “se o declarante não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial...”. Estatui-se que o negócio não produz qualquer efeito, mesmo que a falta de consciência da declaração não seja conhecida ou cognoscível do declaratário. Trata-se de um caso de nulidade, salvo na hipótese de falta de vontade de acção, em que parece estar-se, antes, perante um caso de verdadeira inexistência da declaração. Com efeito, quando falta a vontade de acção não há um comportamento humano consciente, voluntário, «finalista»; há um comportamento inconsciente, involuntário, reflexo ou, na hipótese de coacção física, absolutamente forçado, embora exteriormente pareça estarmos perante uma declaração.»[24].
Temos, assim, conforme referido no Ac. do S.T.J. de 11.12.2018, Proc. nº 342/15.0T8PVA.G1-s1 (Pinto de Almeida), C.J., Ano XXVI, Tomo III/2018, p. 142, que a falta de consciência da declaração negocial engloba quer a falta de vontade de ação, ou seja, a consciência e vontade de um comportamento declarativo, quer a falta de vontade da declaração, isto é, a vontade de emitir a declaração como declaração negocial[25].
Afirma-se nesse aresto:
«Trata-se de um dos casos mais graves de divergência (não intencional) entre a vontade e a declaração, em que, podendo existir vontade de acção, “falta a vontade de acção como declaração, a consciência de se assumir um comportamento declarativo ou a aparência de uma declaração.
Nos termos do art.º 257° do CC:
1. A declaração negociai feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrar acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercido da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.
2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.»
A anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação e prova destes requisitos:
a) Que o autor da declaração, no momento em que a faz, se encontrava, ou por anomalia psíquica, ou por qualquer outra causa (embriaguez, estado hipnótico, droga, etc.), em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do acto que praticou ou o livre exercício da sua vontade;
b) Que esse estado psíquico era notório ou conhecido do declaratário[26].
Na medida em que estas situações afectam a formação correcta da vontade do declarante, traduzindo-se também numa falta de vontade da declaração, coloca-se o problema de compatibilização do regime da incapacidade acidental com o de outras faltas ou vícios da vontade, como a falta de consciência da declaração, prevista no citado art.º 246º.
Menezes Cordeiro refere que “ele (art.º 257.º) parece sobrepor-se ao artigo 246.º e às figuras nele contempladas da coacção física e da falta de consciência da declaração: em qualquer destas duas hipóteses, o declaratário ou está acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração ou não tem o livre exercício da sua vontade. De seguida, ele usa uma linguagem centrada na pessoa do declarante e não na sua declaração. E, por fim, ele fixa um regime dissonante: a (mera) anulabilidade, contra a nulidade - há doutrina que fala mesmo em inexistência - originada pela coacção ou pela falta de consciência da declaração”[27].
Por seu turno, C. Mota Pinto sublinha que a incapacidade acidental não é regulada na secção das incapacidades por não traduzir uma condição permanente do sujeito, tendo sido incluída entre os casos de falta ou vícios da vontade. Acrescenta que o problema de saber se se trata rigorosamente de uma falta (como no caso do art. 246.º) ou de um vício não tem interesse prático, uma vez que o tratamento é sempre o do art.º 257.º[28].
O art.º 257.º abrange as chamadas incapacidades naturais, que não reflectem uma situação permanente do declarante, existindo apenas nos momentos em que se verificam as suas causas.
Constitui um tipo particular de falta de vontade da declaração, pois prevê especificamente os casos em que o declarante se encontra privado da capacidade necessária para entender o sentido da sua declaração.
Daí que já se tenha entendido que “o art.º 246.º é preceito aplicável (apenas) a pessoas capazes, no sentido de não incapacitadas, isto é, dotadas de discernimento ou capacidade necessária para entender o sentido da declaração”, assim se distinguindo o âmbito de aplicação dos dois regimes[29].
Repare-se, por outro lado, que, ao regular o regime jurídico aplicável aos negócios celebrados pelo incapaz, antes de anunciada a acção de interdição, o art.º 150° do CC remete expressamente para o disposto acerca da incapacidade acidental.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “a interdição não atinge, de per si, os actos praticados antes de anunciada a acção. Esses actos estão sujeitos ao regime dos actos realizados por quem está acidentalmente incapacitado de entender o sentido exacto da declaração negocial ou não tem o livre exercício da sua vontade, isto é, ao regime estabelecido no artigo 257.º”[30].
Atenta a afinidade de situações, parece-nos muito significativo que seja o regime previsto neste artigo, por expressa remissão legal, a regular os negócios celebrados por pessoas que, por anomalia psíquica (sem estar reconhecido o carácter duradouro ou habitual desta afectação), estejam impedidos de entender o acto que praticaram ou do livre exercício da sua vontade.»
Regressando ao caso concreto, na petição inicial o autor alega, reportando-se a sua irmã, MD, que:
- à data da outorga da procuração a favor de FN e da celebração da escritura de compra e venda, já não tinha discernimento, nem capacidade de avaliação intelectual dos atos que praticava e da repercussão dos mesmos na sua vida (12.º e 13.º), encontrando-se num estado de confusão metal (59.º);
- já pelo menos em setembro de 2019, não tinha capacidade, destreza intelectual para ter diligenciado por contactar o autor, com eficácia (66.º e 67.º);
- em setembro de 2019 já não tinha discernimento para enviar as cartas de notificação para a morada do autor ou o local onde se encontrava de visita, nem para endereçar corretamente as cartas, mesmo indicar corretamente a data, muito menos enviar e-mail (69.º a 72.º);
- notoriamente, já não tinha capacidade de entendimento das consequências da prática dos seus atos jurídicos, nem destreza intelectual para tomar decisões (78.º e 79.º);
- aceitou a celebração da escritura de compra e venda com a ré, em 17 de dezembro de 2019 (mesmo já em 19 de setembro 2019, com a celebração do contrato promessa de compra e venda), por falta de entendimento e capacidade de raciocínio (95.º);
- tinha diversos comportamentos reveladores da sua falta de capacidade de entendimento, aquando da celebração da escritura de compra e venda do imóvel com a ré, em dezembro de 2019, mesmo já em setembro de 2019, quando da celebração do contrato promessa de compra e venda, mesmo comportamentos de desnorte na tomada de decisões (102.º a 104.º);
- o mesmo estado incapacitante de que sofria aquando da outorga da procuração a favor de FN (ocorrida presumivelmente no hiato temporal entre a celebração do contrato promessa de compra e venda, em 19 de setembro de 2019, em que MD aí interveio por si e a data da celebração da escritura de compra e venda, de 17 de dezembro de 2019) (105.º);
- era notória a sua incapacidade de entendimento e discernimento mental, na sua vida do dia a dia (207.º).
Não obstante o assim alegado, o autor invoca, em sustento da sua pretensão, o disposto no art.º 246.º do CC.
Tal como referido na sentença, a causa de pedir que fundamenta a ação não tem, manifestamente, enquadramento na previsão daquela norma, mas na previsão do art.º 257.º CC, norma à luz da qual, portanto, tal como referido na sentença recorrida, será resolvido o litígio que opõe as partes nesta ação.
Afirma-se na sentença em crise:
«A consequência prevista no art.º 257º do CC é o da anulabilidade, exigindo-se, porém, um requisito suplementar destinado à tutela da confiança do declaratário e da segurança do comércio jurídico: a notoriedade (cognoscibilidade por uma pessoa de normal diligência, colocada na posição concreta do declaratário) ou o conhecimento da perturbação psíquica pelo declaratário.
Ora, o declaratário aqui (...) é a ré e em momento algum o A alega que a ré tenha tido conhecimento de que a declarante (a irmã do A) tivesse naquele momento incapaz de entender o sentido da sua declaração de venda. Tão pouco alega que aquela incapacidade era notória.
De qualquer forma, considerando o que ficou demonstrado nos autos, e o que não ficou, não podemos sequer concluir que MD estivesse de tal forma debilitada em consequência da sua doença que não conseguia ter consciência e entendimento do sentido da sua declaração.
Não se demonstrou que MD não estivesse lúcida, que não entendesse que iria vender o seu quinhão hereditário, que não quisesse passar uma procuração à afilhada para que esta pudesse tratar dos seus assuntos caso ela não conseguisse e não tivesse consciência de que o fazia, que não tivesse noção do preço da venda e do que este, para si, representava.
O facto de uma senhora com o estado de saúde da irmã do A, com o cansaço natural de quem luta contra uma doença há anos, não ter a destreza, o tempo, a paciência e a vontade de arrumar e organizar uma casa não a torna incapaz. O facto de ser compradora compulsiva e de deixar acumular numa casa durante anos objectos úteis e inúteis não revelam só por si, e sem um diagnóstivo feito por um profissional habilitado que a acompanhe, portadora de qualquer distúrbio, sendo certo que alguém que luta contra uma doença oncológica que progressivamente a vai limitando pode ser, como nos parece natural, menos imune a doenças do foro psicológico e psiquiátrico, que – também – não se demonstrou.
Nenhum dos factos que o A alegou, e alguns que provou, são manifestações inequívocas da incapacidade de MD gerir a sua pessoa e bens: cometer infracções ao Código da Estrada, não abrir correio, não pagar contas, acumular bens e comprar mais do que se precisa são condutas que, só por si, não tornam ninguém incapaz. Já nem falamos em troca de datas que nos parece uma falha absolutamente comum em pessoas de qualquer idade sem qualquer falha cognitiva.
MD estava doente, sim, e esteve doente durante muito anos. MD estava debilitada fisicamente, sim, como é natural. Vivia sozinha mas não se isolou, saia de casa, conduzia, tinha amigas. Dependia do seu irmão e do dinheiro que esteve lhe dava, tinha património mas sem o acordo do seu irmão não conseguia obter deste o rendimento que pretendia. O irmão opunha-se à venda do prédio e MD decidiu vender a sua parte na herança dos pais, algo que poderia fazer sem o seu acordo, sem depender do mesmo. E fez, fez como quis e quando quis e pelo valor que quis.
Não obstante não se ter demonstrado que o prédio valesse muito mais, sempre se dirá que o objectivo de MD era um objectivo de curto prazo, tal como foi curta a sua vida. MD sabia a doença que tinha e que não teria muito mais tempo, pelo que não nos parece também que a sua preocupação fosse maior do que ter ao seu dispor rendimento suficiente para viver como queria até falecer.
De qualquer forma, nenhum facto se provou de que se possa retirar que a doença afectou a sua capacidade de gerir a sua pessoa e bens e de entendimento dos actos da sua vida, pelo que a acção necessariamente improcederá.»
Nada mais há a acrescentar, a não ser, na improcedência do recurso, conformar a sentença recorrida.
***
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, confirmando, sem consequência, a sentença recorrida.
Custas da apelação, na vertente de custas de parte, a cargo do autor – art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 667.º, n.º 6 e 663., n.º 2.

Lisboa, 24 de janeiro de 2023
José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
_______________________________________________________
[1] Os art.ºs 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, al. d), são claríssimos na afirmação de que na petição inicial deve o autor alegar, expor, os factos essenciais que constituem a causa de pedir.
[2] Naquilo que é possível sintetizar dos extensos e repetitivos 266 (duzentos e sessenta e seis artigos) que compõem a petição inicial.
[3] A senhora juíza a quo fez ainda consignar em sede de fundamentação de facto que «não se verteu nestes dois elencos os factos repetidos, conclusivos, juízos de valor ou o que é alegado em termos de direito».
[4] Tomé Gomes, Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, janeiro de 2014, pp. 10-11.
[5] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, 2022, pp. 770-771.
[6] Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, janeiro de 2014, pp. 18-24.
[7] Recursos em Processo Civil, 7ª Ed., Almedina, 2022, pp. 200-201.
[8] Recursos cit., pp. 201-202.
[9] A. Menezes Leitão, Tratado de Direito Civil, II, 794.
[10] A. Menezes Leitão, Tratado de Direito Civil, II, 794.
[11] A. Menezes Leitão, Tratado de Direito Civil, II, 795. Paulo Mota Pinto, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, 248.
[12] E não anulado!
[13] Enunciando o problema, mas não tomando posição sobre ele, cf. C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 492, n. 655.
[14] Relator: Luís Lameiras.
[15] Relatora: Fátima Galante.
[16] Veja-se, igualmente, numa alusão à posição jurisprudencial maioritária, A. Menezes CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, II, 796.
[17] Relator: Orlando Nascimento.
[18] Paulo Mota PINTO, Declaração tácita e comportamento concludente.
[19] O destacado a negrito é da nossa autoria.
[20] A. Menezes CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, II, 805.
[21] Mafalda Miranda Barbosa, Lições de Teoria Geral do Direito Civil, Gestlegal, 2022, pp. 712-717.
[22] A Parte Geral do Código Civil Português, 2.ª Edição, Almedina, 2019. pp. 615-627.
[23] Comentário ao Código Civil Anotado – Parte Geral –, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pp. 580-581.
[24] Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, pp. 490-491.
[25] Cfr. no mesmo sentido, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1987, pp. 125-128.
[26] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, p. 232.
[27] Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 508).
[28] Ob. Cit., 499 (n. 671).
[29] Cfr. os arestos referidos na nota 11 do acórdão do S.T.J. que vimos seguindo.
[30] Ob. Cit., p. 157.