I – É admissível a intervenção principal espontânea de um terceiro num processo de impugnação de um ato administrativo, exigindo-se que os interesses invocados pelo interveniente se possam considerar numa situação de litisconsórcio necessário ou voluntário com os interesses da parte a que se quer associar.
II - É na análise em concreto do ato administrativo impugnado que se afere a existência de interesses que se digam estar numa situação de litisconsórcio.
III - Não existe litisconsórcio de interesses que admita a intervenção principal quando o ato impugnado não se dirigindo concretamente aos autores da ação a quem o interveniente se quer associar, os interesses que se dizem ter sido lesados com o ato só podem ser reclamados como pessoais e individuais.
IV - Mesmo quando a deliberação impugnada incorpore diversas relações materiais controvertidas referente a cada um daqueles a quem o ato é dirigido só é admissível a intervenção principal se a deliberação contiver uma única relação material controvertida que respeite a várias pessoas.
V - Não é admissível a intervenção principal do requerente quando o ato administrativo impugnado se dirige à colocação e gestão dos lugares de juízes, invocando os autores da ação impugnatória terem sido lesados por a deliberação ter retirado da titularidade do processo-crime em que são arguidos o juiz que até aí tinha sido titular, alegando o requerente da intervenção estar o seu interesse numa situação de litisconsórcio com a dos autores.
Processo nº 28/22.0YFLSB
Relator – Juiz Conselheiro Manuel Capelo
Adjunta – Senhora Juíza Conselheira Maria João Tomé
Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Rijo Ferreira
Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha
Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Ramalho Pinto
Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro António Gama
Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Barateiro Martins
Presidente da Secção do Contencioso do STJ – Senhora Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam no Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça
Relatório
Na ação administrativa para impugnação parcial de atos administrativos que AA e BB intentaram contra o Conselho Superior da Magistratura e identificando como contrainteressados CC, DD e EE, ação administrativa para impugnação parcial de atos administrativos, FF veio requerer a sua intervenção principal espontânea, por mera adesão, alegando que:
é, como os autores na presente ação, arguido no processo nº 324/14.... do Juiz ... do Tribunal Central de Instrução Criminal tendo-lhe sido imputada a prática de vários crimes;
o requerente, como os autores, requereu nesses autos de processo-crime a abertura de instrução e encontra-se em situação igual à dos autores tendo um direito/interesse próprio, que é paralelo ao dos referidos Autores;
o requerente podia, pois, ter proposto com os autores a presente ação, na aceção do artigo 32.° do Código de Processo Civil (ou seja, enquanto litisconsorte ativo voluntário) pelo que pode pedir e pede a intervenção principal, nos termos do artigo 313.°, nº 3, do Código de Processo Civil, faz seus os articulados dos Autores.
… …
Por decisão do relator, foi indeferida a requerida intervenção principal espontânea com fundamento em não existir, no caso, qualquer litisconsórcio (voluntário ou necessário) que a permitisse.
… …
Desta decisão singular vem o requerente reclamar para a conferência, pretendendo que sobre o seu requerimento seja proferido acórdão por esta Secção de Contencioso concluindo que:
O art. 10 nº 10, primeira parte, do CPTA admite a intervenção principal e isto mesmo foi já decidido pelo acórdão de 9 de maio de 2019, do Tribunal Central Administrativo Sul de 9-5-2019 no processo nº 744/16.5BELSB-S1 , onde se decidiu que “Nos termos do artigo 10.°, n° 10, 1ª parte do CPTA de 2015 é possível um terceiro vir juntar-se ao autor, através de intervenção principal espontânea, num processo de impugnação que aquele tenha intentado com vista à anulação de um ato administrativo”.
O despacho singular impugnado confunde dois planos distintos porque uma coisa é poder vir a considerar-se que os Autores e o aqui Requerente não têm legitimidade para intentar a presente ação, por falta de preenchimento dos pressupostos da alínea a) do nº 1 do artigo 55.° do CPTA e outra, distinta, é a admissão ou não da intervenção principal espontânea, que é algo que efetivamente deve ser conhecida imediatamente (como foi), mas não sob o prisma da legitimidade ativa propriamente dita, mas única e exclusivamente sob o prisma do preenchimento ou não dos requisitos legais da referida intervenção principal espontânea.
No domínio desta análise, há que atender à relação controvertida, tal como esta foi configurada pelo próprio terceiro, em linha com o artigo 30 nº 3, do CPC.
O Requerente invocou um “interesse igual ao do autor” no sentido de a “relação material controvertida” abranger vários interessados lesados pela deliberação do Conselho Superior da Magistratura, existindo uma relação material controvertida única, pois os atos que lesam Autores e Requerente são exatamente os mesmos e exatamente pelas mesmas razões. Donde decorre existir litisconsórcio voluntário e não coligação, ao invés do que, erradamente, se afirma na douta decisão singular impugnada.
Por ter sido proferido em 23 de outubro de 2022 despacho no processo crime em que o juiz decidiu não serem esses autos o local próprio para assacar ilegalidades a atos do Conselho Superior de Magistratura mas sim a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça confronta a decisão singular impugnada, na parte em que (em antecipação) se refere (ainda que indiretamente) à ilegitimidade ativa dos Autores (e, portanto, do ora Requerente) acabando por inviabilizar o controlo da legalidade dos atos impugnados, pondo assim gravemente em causa a tutela jurisdicional efetiva que constitui direito fundamental do aqui Requerente.
Pelo que não deve este Tribunal, de forma alguma, negar a legitimidade ativa, neste caso, aos Autores e ao Requerente.
Conclui pedindo que seja proferido acórdão pelo pleno da Secção de Contencioso desse Alto Tribunal e que através do mesmo se substitua a decisão singular de 24 de novembro de 2022, com fundamento na violação e/ou errada interpretação ou aplicação dos artigos 32.°, n° 1, e 311.° do CPC, bem como dos artigos 10.°, n° 10, primeira parte, 55.°, n° 1, alínea a), e 88.°, n° 1, alínea a), do CPTA, por decisão que defira a intervenção principal espontânea do requerente nestes autos.
… …
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
Fundamentação
A matéria de facto que serve a decisão é a constante do relatório, designadamente o teor do requerimento de intervenção principal espontânea do requerente e o teor da decisão singular, razão pela qual se remete para essas peças sem necessidade da sua reprodução neste local.
… …
Quanto à solicitação de decisão colegial sobre o requerimento de interposição da providência, temos presente que o art. 169 do EMJ dispõe que "os meios de impugnação jurisdicional de normas ou atos administrativos do Conselho Superior da Magistratura, ou de reação jurisdicional contra a omissão ilegal dos mesmos, seguem a forma da ação administrativa prevista no Código de Processo nos Tribunais Administrativo" acrescentando o art. 170 que " é competente para o conhecimento das ações referidas no presente capítulo a secção de contencioso do Supremo Tribunal de Justiça.". Isto é, a secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça é a instância jurisdicional única de decisão dos recursos interpostos de atos administrativos, praticados pelo Conselho Superior da Magistratura, o que já foi objeto de apreciação pelo TC no ac. 345/15 que julgou não inconstitucional a existência dessa instância única. Nestes termos, a remissão que o EMJ faz para o CPTA deve contar com esta expressão normativa.
Assim, poder-se-ia questionar se a decisão singular tirada sobre a rejeição liminar de um incidente de intervenção principal espontâneo poderia ou não ser objeto de reclamação para a conferência (já que de recurso não poderia ser uma vez que este contencioso é a instância jurisdicional única de decisão). Efetivamente, mesmo sendo possível afirmar-se que do despacho de indeferimento de um incidente de intervenção principal proferido em primeiro grau de jurisdição administrativa caberia recurso nos termos do art. 142 nº5 do CPTA, a circunstância de estarmos em Contencioso no STJ a decidir em último grau onde esse recurso não é admissível recomenda se tenha esta limitação em atenção.
Neste âmbito, o art. 27 n° 2 do CPTA, prevendo os "Poderes do relator nos processos em primeiro grau de jurisdição em tribunais superiores", e estabelecendo o seu nº2 que “dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência, com exceção dos de mero expediente” deve ler-se como de aplicação aos casos em que não se está já em primeiro grau de jurisdição, mas sim no último, e isto para que a decisão possa ter um escrutínio de maior certeza, transparência e segurança.
Admitida nestes termos a reclamação para a conferência, esclarece-se igualmente que ela não se constitui como um recurso sobre a decisão singular, antes sim uma solicitação para que o coletivo aprecie e se pronuncie sobre a mesma matéria que o relator decidiu e em face dos mesmos elementos, isto é, no caso, do requerimento inicial. No entanto, podendo os requerentes apresentar argumentos de interpretação do que antes alegaram, é o que antes se encontra alugado que define o objeto de análise e decisão do coletivo como antes o foi para o relator.
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Conhecendo da reclamação, verificamos que a decisão singular que apreciou liminarmente o incidente da intervenção principal espontânea do requerente FF deixou expresso, como fundamento para o indeferimento, não poder configurar-se a situação discutida nos autos como uma relação material controvertida em sentido técnico-jurídico uma vez que esta é configurada e advém da comparação dos sujeitos da relação jurídica administrativa subjacente com os sujeitos da relação jurídica processual (partes). E porque o objeto da ação é a impugnação de um concreto ato administrativo em que nenhuma verdadeira relação material administrativa subjacente existe envolvendo os autores e o réu, não se poderá configurar, em rigor, a existência de uma relação material controvertida.
Esclareceu-se ainda, na decisão singular reclamada, que na base da invocação e até da legitimidade para se estar em juízo como demandante de impugnação de um ato administrativo está a exigência de se ter sido afetado de forma pessoal e direta por esse ato da entidade ré, o que significa que os efeitos pretendidos com a impugnação/anulação se deve repercutir de forma direta, pessoal e imediata, na esfera jurídica do impugnante, sendo a este que cabe a demonstração de ter um interesse pessoal e direto, porquanto o ato em questão, além de ilegal, o lesou nos seus direitos e interesses legalmente protegidos com repercussões na sua esfera jurídica, causando-lhe direta, pessoal e imediatamente prejuízos reais e atuais.
Com reflexo exclusivo para a apreciação da intervenção principal, a impugnação de um ato administrativo tem um regime próprio (art. 50 e ss do CPTA) no qual se erige a pessoalidade do interesse em demandar como fundamento da legitimidade, afastando-o do sentido técnico jurídico tradicional de uma relação material jurídico administrativa preexistente. E esta exigência de interesse direto e pessoal, por esta razão diferente mesmo que semelhante ao de outros, apreciada no caso em presença, como se afirmou na decisão singular reclamada, não facilita por regra a possibilidade de configuração de litisconsórcios, (voluntários ou necessários) mesmo que invocando interesses idênticos ou fundamentos iguais aos dos autores ou resultados de impugnação coincidentes. E isto porque o interesse pessoal, nomeadamente no caso em decisão, por ser pessoal na sua estrutura e natureza, não é plural nem coletivo.
No essencial a objeção do reclamante a este entendimento está centrada na defesa de existir nos autos uma verdadeira e única relação material controvertida de que ele e os autores fazem parte, configurando-a como aquela que foi estabelecida através do ato administrativo impugnado entre “o Réu Conselho Superior de Magistratura, por um lado, praticou atos que implicam a substituição, que se reputa de ilegal, do Juiz que dirigia a fase de instrução do processo criminal no qual os Autores e o Requerente são arguidos, e estes consideram-se lesados por esses mesmos atos, por entenderem que o efeito dos mesmos é a violação do princípio do juiz natural - não em termos abstratos, mas nesse mesmíssimo processo criminal em que são arguidos.”
Com tributo e sem reservas de respeito, julgamos que a prática de um ato administrativo não estabelece e não terá estabelecido no caso em discussão, que é o único que nos cabe apreciar, qualquer relação material em sentido técnico-jurídico com os autores ou com o ora reclamante porque não existia qualquer relação material administrativa subjacente.
De acordo com a definição de ato administrativo que colhemos no art. 148 do Código do Procedimento Administrativo “consideram-se atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta” reconhecendo-se nesta enunciação legal que o ato administrativo tem por principais características: a natureza jurídico-administrativa; a produção de efeitos jurídicos externos e a intervenção sobre uma situação individual e concreta.
Assim, se o ato administrativo é a expressão de um poder que a lei confere à Administração Publica para que esta possa dizer unilateralmente o direito, ou seja, para que possa introduzir unilateralmente efeitos jurídicos na esfera de outrem sem o concurso da respetiva vontade, a força jurídica do ato administrativo é, em concreto, definidora de situações jurídicas com força vinculativa tanto para o próprio autor do ato como para os seus destinatários. A obrigatoriedade que o ato administrativo contém é uma manifestação de poder de definição jurídica unilateral que os eventuais interessados têm o ónus de impugnar dentro de prazos curtos sob pena de verem precludida a possibilidade de exigirem a respetiva eliminação da ordem jurídica.
Por esta natureza jurídica do ato administrativo entendemos que a sua prática não tem por regra como subjacente uma verdadeira relação jurídica material com aqueles a quem se dirige o camando e julgamos, ainda, ser esta a razão que pode observar-se no CPTA no Título I - Parte Geral, Capítulo II - Das partes - nos arts. 9 e 10, a regulação da legitimidade ativa e passiva (aludindo sempre à relação material controvertida) preceituando o nº10 deste último que “Sem prejuízo da aplicação subsidiária, quando tal se justifique, do disposto na lei processual civil em matéria de intervenção de terceiros, quando a satisfação de uma ou mais pretensões deduzidas contra uma entidade pública exija a colaboração de outra ou outras entidades, cabe à entidade demandada promover a respetiva intervenção no processo.”
Porém, no Capítulo II – Disposições particulares - Secção I - Impugnação de atos administrativos - Subsecção II - Da legitimidade - o art. 55 nº1 estabelece que “Tem legitimidade para impugnar um ato administrativo: a) Quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”.
A colocação da matéria da legitimidade repartida por uma parte geral e por uma parte especial, esta última dirigida à impugnação dos atos administrativos, para lá deixar expressa uma diferença de tratamento impõe que se tome sempre em consideração na própria impugnação a natureza particular de que se reveste o ato administrativo de forma a não o confundir com uma relação material resultante de outra fonte, v.g. do contrato.
Seja como seja, mais importante que promover distinções exegético-normativas em torno da definição do que seja uma relação material controvertida, importa sobremodo apreciar e decidir se, mesmo que criando, ou não, uma relação material com aqueles a quem o ato administrativo é concretamente dirigido, a sua impugnação em contencioso pode admitir a intervenção principal.
A este respeito a reclamante invoca o acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 9-5-2019 no processo nº 744/16.5BELSB-S1, onde no seu sumário se lê efetivamente “nos termos do artigo 10.°, n° 10, 1ª parte do CPTA de 2015 é possível um terceiro vir juntar-se ao autor, através de intervenção principal espontânea, num processo de impugnação que aquele tenha intentado com vista à anulação de um ato administrativo". Todavia, a leitura atenta desta decisão comporta conclusões bem diversas daquelas que o reclamante lhe aponta e, desde logo, não autoriza a que se professe o entendimento de que por se dizer “ser possível” a intervenção principal espontânea de um terceiro num processo de impugnação de um ato administrativo, tal signifique ou tenha significado nesse mesmo acórdão “ser sempre possível essa intervenção”. Aliás, esta cautela revela o seu sentido quando o resultado desse acórdão foi precisamente o contrário do enunciado no seu sumário, isto é, decidiu não ser admissível a intervenção principal espontânea requerida por não se verificarem os pressupostos do litisconsórcio.
Vejamos em pormenor e com utilidade para a decisão em curso.
Tirado esse acórdão sobre um concreto ato administrativo impugnado começou ele por advertir (citando um outro acórdão) que “A questão da admissibilidade do incidente da intervenção principal espontânea no recurso contencioso de anulação tem sido decidida por este Supremo Tribunal no sentido da sua admissibilidade, mas não nos precisos termos em que se encontra regulada na lei processual civil sustentando-se que a mesma tem de ser entendida de acordo com as normas do contencioso administrativo, com a natureza específica deste, e que, como tal, só é admissível quando exercida dentro do prazo em que é permitida ao requerente a impugnação do ato cuja anulabilidade se pretende obter através de tal incidente. Em sentido contrário, sustentando a sua admissibilidade nos precisos termos da lei do processo civil, ou seja, a todo o tempo, enquanto não estiver definitivamente julgada a causa, cfr. Freitas do Amaral, Admissibilidade do Incidente de Intervenção Principal em Recurso de Anulação, in "Estudos de Homenagem ao Prof. Castro Mendes", pág. 269 e segs.”
Decorre deste inciso que a questão debatida na jurisprudência incide e visa, diretamente, os feitos da admissibilidade da intervenção principal, tornando tempestiva a impugnação da interveniente que não o seria se o incidente não se admitisse, e só lateralmente a admissibilidade em substância, isto é, decorrente da natureza da intervenção. E é situado na abordagem a esta problemática que o acórdão de 9-5-2019, citado em abono pelo reclamante, não abordando o confronto entre as duas perspetivas de legitimidade estabelecidas no CPTA, em termos gerais e para o concreto da impugnação do ato administrativo, aceitando em tese que a intervenção principal espontânea é admissível na impugnação do ato (o que consta inscrito no sumário), adverte que esta admissibilidade não é absoluta e está sempre dependente do teor e natureza singular ou coletiva/plural do ato impugnado.
Tendo implícito que é sobre a perspetiva dos interesses em presença que os termos do art. 311 do CPC, e a exigência de litisconsórcio para admitir a intervenção, podem ser importados para a impugnação do ato administrativo, o acórdão citado, salvaguarda que essa admissibilidade deve resultar, sempre, do ato administrativo impugnado e permitir uma leitura de interesses em que se possa entender que o ato administrativo contém, ele mesmo, sem deixar de ser concreto, vários destinatários simultâneos.
Na observação do caso aí em decisão, a concreta deliberação ali impugnada havia decidido a retransmissão de obrigações em determinadas condições e, como se deixou bem sublinhado “A Deliberação Retransmissão tem tantos destinatários quantos os detentores de títulos das cinco séries de obrigações sénior retransferidas (…) os recorrentes, tal como os autores originários, são titulares de certas obrigações objeto da Deliberação de Retransmissão.
A Deliberação, embora formalmente contida num único documento, como aponta o BP, produz efeitos jurídicos na situação individual e concreta de cada um dos múltiplos destinatários (todos os titulares de obrigações sénior das séries descritas no anexo à Deliberação Retransmissão).
Trata-se, portanto, de um ato plural, em que o BP toma uma decisão aplicável por igual a várias pessoas diferentes (cfr Prof Freitas do Amaral, em Curso de Direito Administrativo, II vol., 2002, pág. 229), em que determina a substituição do sujeito passivo (passa a ser o B…… em vez do N…..) em cada uma das relações jurídicas estabelecidas pelas pessoas – singulares ou coletivas – que eram titulares de um ou mais títulos de obrigações das cinco séries identificados.”
E acrescenta como síntese “Neste caso, sob a aparência de um único ato administrativo o que existe, na realidade, são vários atos administrativos, que não perdem a sua individualidade, incluindo a impugnação em juízo (cfr Luiz Cabral de Moncada, em CPA anotado, 2015, pág. 527 e Acórdão do TCA Sul, de 25.10.2012, processo nº 6288/10).
Assim, o caso em análise não consubstancia uma única relação jurídica material, antes pressupõe uma pluralidade de relações jurídicas.
O que configura uma situação de coligação, nos termos e para efeitos do disposto no art 12º do CPTA, e não de litisconsórcio voluntário previsto no art 32º, nº 1 do CPC ex vi art 10º, nº 10º do CPTA, como defendem os recorrentes.
O litisconsórcio distingue-se da coligação pela relação material controvertida. No primeiro caso é uma só, ao passo que na coligação são duas ou mais (cfr Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 3.ª edição, pág. 105; A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 3ª edição, pág. 302; Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, pág. 138 e139).
A deliberação impugnada incorpora diversas relações materiais controvertidas, referentes a cada um dos autores «primitivos», aos ora recorrentes e a outros titulares de obrigações sénior das séries descritas no anexo à Deliberação Retransmissão. Da deliberação não dimana uma única relação material controvertida que respeite a várias pessoas.
Motivo pelo qual, os recorrentes não assumem a qualidade de litisconsortes face aos autores «primitivos» da ação.
É manifesto pois que estamos fora da situação de litisconsórcio voluntário, e menos ainda necessário, o que significa que a situação invocada no requerimento inicial do presente incidente não preenchia nenhuma das situações previstas no art 311º do CPC aplicável por força do art 10º, nº 10, 1ª parte do CPTA – interesse igual ao do autor, nos termos dos arts 32º e 33º do CPC.
Sendo por isso o incidente de intervenção principal espontânea requerido inadmissível nos termos da lei.
Em suma, os recorrentes não se podem juntar aos autores na ação administrativa de impugnação da deliberação do BP, de 29.12.2015, porque não se verificam os requisitos do litisconsórcio, necessários para a intervenção principal espontânea, e não porque deixaram passar o prazo legal dos três meses, do art 58º, nº 3, al b) do CPTA, para reagir contra a mesma deliberação (que a doutrina até admite – cfr Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, pág. 122).
Com interesse para o caso que agora decidimos - desconsiderando que naquele outro existia uma relação material subjacente ao ato consistente na subscrição das obrigações realizadas pelos particulares - interessa que nesse acórdão se toma como fundamento para aferir a legitimidade para a impugnação do ato, o que inteiramente aceitamos, o interesse pessoal e direto na impugnação do mesmo, distinguindo criteriosamente a quem ele era dirigido para se delimitar o círculo de interesses relevantes para os tomar como configuradores de litisconsórcio ou não (como coligação eventualmente) ou configuradores de interesses singulares, diferenciados e individualizados ou coletivos e únicos, na terminologia do acórdão citado - o mesmo se observa no ac. de 8-2-2007 do TCAN no proc. 00441/05.7BEPNF-A, onde se decidiu a admissibilidade da intervenção principal numa ação em que era discutida e os Tribunais Administrativos tinham competência para julgar o pedido formulado numa ação de responsabilidade civil, por atos de gestão pública, contra a seguradora, para quem foi transferida a responsabilidade civil, emergente dos factos ilícitos invocados na causa de pedir. E em igual sentido o acórdão da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo de 29 de abril de 2021 no proc. 0292/08.7BEBJA em que existia como relação subjacente um contrato de empreitada em consórcio.
A alusão à legitimidade não antecipa, da mesma forma que a decisão singular reclamada em parte alguma antecipou (não se referindo a nenhuma decisão já proferida sobre a legitimidade sequer por sugestão indireta) o juízo sobre a legitimidade das partes, porém, não obviamente possível conhecer da admissibilidade da intervenção principal com o que ela impõe de abordagem aos requisitos do litisconsórcio necessário e voluntário, sem aludir à legitimidade coletiva/singular do interveniente no enfoque exclusivo dessa legitimidade nos interesses dos autores e do interveniente na impugnação.
Em verdade, a intervenção principal espontânea como se encontra prevista no nosso ordenamento civil no art. 311 do CPC adverte para a possibilidade/necessidade de intervir na causa pendente entre duas ou mais pessoas aquele que em relação ao seu objeto tenha interesse igual ao do autor ou do réu. Porém, a previsão legislativa circunscreve esse interesse aos casos (aos termos) em que ele configure um litisconsórcio voluntário, necessário ou às ações que tenham de ser propostas por ou contra ambos os cônjuges, isto é, ao prevenido nos art. 32, 33 e 34 do CPC. Só nestes casos a intervenção principal pode ser admitida. E no caso em presença o requerente, como se sublinhou, alegou estar numa situação de litisconsórcio voluntário com os autores na ação, o que significa que defende que a relação material controvertida discutida na ação de impugnação dos atos administrativos respeita a várias pessoas, entre as quais ele mesmo.
A aceitar-se que na impugnação do ato administrativo a descrição da pretensão na petição inicial desenha e configura os termos de uma relação material controvertida, não decalcada sobre outra pré existente à propositura da ação, mas nascida com a petição ela mesma, mesmo nesse contexto, é a identificação do concreto ato impugnado no seu conteúdo, por referência aos interesses pessoais e diretos dos impugnantes e a afetação que ele provocou, que deve presidir à decisão sobre existência de interesses iguais aos exigíveis para o litisconsórcio.
Tomando em atenção o ato administrativo do Conselho Superior da Magistratura impugnado nesta ação, ele está identificado pelos autores como sendo os “consubstanciados nas Decisões do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de 5 de julho de 2022 e de 6 de setembro de 2022 (cf. Documento n.º ..., junto ao Processo Cautelar), na parte em que determinaram:
1) A suspensão do exercício de funções do Dr. CC como titular do lugar de J2, desapossando-o, ilegalmente, desse lugar e afetando-o, abstratamente, ao Tribunal Central de Instrução Criminal;
2) O sequente preenchimento do lugar de J2 por outro magistrado, em comissão de serviço;
3) A afetação, a um magistrado em substituição, desse mesmo lugar”
Nos casos em que a Administração Pública atua exercendo poderes de autoridade estamos perante, normalmente, relações jurídicas multipolares ou complexas que envolvem uma pluralidade de pessoas cujos interesses são afetados pela atuação da Administração qualquer que seja o seu sentido, todavia é da análise do ato administrativo concreto que se pode ou não extrair o círculo de interesses dessa pluralidade sabendo-se a quem o ato foi dirigido, como se realizou no acórdão citado e antes analisado. Nas palavras de Aroso de Almeida “Se, num caso concreto, há um interessado que pretende a anulação de um ato administrativo que considera ilegal ou a prática de um ato administrativo que considera devido, é normal que também existam interessados que, sendo beneficiários do ato ilegal ou podendo ser afetados pelo ato devido, tenham interesse em que ele não seja anulado e, pelo contrário, se mantenha na ordem jurídica, ou que ele não seja praticado e, portanto, tudo se mantenha como está” - O novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra, 2.ª ed., rev. e act., 2003, p.55.
Numa leitura direta e imediata estes atos destinam-se aos aí visados com a suspensão deliberada, o preenchimento do lugar em comissão e a afetação com substituição de lugar. E mesmo que se proteste que esses atos podem lesar interesses de outros que não os indicados no próprio ato, em concreto os autores, e no que agora importa, o reclamante, é para nós inquestionável que no ato impugnado não são indicados/nomeados os autores e o reclamante como destinatários diretos da deliberação tomada. Ou seja, através dos atos impugnados a expressão do poder que introduz unilateralmente efeitos jurídicos na esfera de outrem sem o concurso da respetiva vontade, e a definição da situação jurídica com força vinculativa tanto para o próprio autor do ato como para os seus destinatários não envolve, segundo o teor desse próprio ato, o ora reclamante.
A circunstância de o requerente da intervenção invocar “interesse igual ao do autor” e lesões semelhantes, no sentido de a “relação material controvertida” abranger vários interessados lesados pela deliberação do Conselho Superior da Magistratura não pode assim ser deferida, uma vez que, como referido no próprio acórdão convocado pelo reclamante, não existe uma relação material única, mesmo que se queira configurar como relação material a ligação/conexão de interesses que o ato administrativo realiza entre a entidade que delibera e os destinatários a ele sujeitos. Ainda que se pretendesse que a deliberação impugnada incorpora diversas relações materiais controvertidas envolvendo aqueles que não sendo os destinatários do comando administrativo se dizem lesados nos seus interesse pessoais e diretos, dessa deliberação não dimana uma única relação material controvertida que respeite a várias pessoas, quando muito oferece-se a possibilidade de uma coligação, razão para que se entenda que o reclamante não assume a qualidade de litisconsorte face aos autores da ação. Não se pode sequer consentir que a deliberação do CSM impugnada, podendo ter reflexos nos interesses e na situação individual concreta de cada um dos que se sintam lesados, incorpore uma única relação material controvertida, pois na aceitação da existência dessa relação criada pelo ato impugnado este incorporaria diversas relações materiais controvertidas referentes a cada um dos autores.
Da deliberação não dimana uma única relação material controvertida que respeite a várias pessoas – significativamente o acórdão citado pelo reclamante tipifica como relação material subjacente cada uma das relações jurídicas estabelecidas pelas pessoas – singulares ou coletivas – que eram titulares de um ou mais títulos de obrigações das cinco séries identificados.
Também no caso ora em decisão estamos fora da situação de litisconsórcio voluntário ou necessário aferido que seja pelos interesses dos autores e do reclamante certificando-se que que a situação invocada no requerimento inicial do presente incidente não preenche nenhuma das situações previstas no art 311º do CPC, sendo por isso o incidente de intervenção principal espontânea requerido inadmissível nos termos da lei.
Anote-se por último que a alegação de ter sido eventualmente proferido no processo-crime, pelo seu titular, despacho em que possa ter sido decidido que para conhecimento das ilegalidades atribuídas pelos requentes/reclamante ao CSM é competente a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, não é argumento para a admissibilidade da intervenção principal, nem mesmo na hipotética perspetiva de essa eventual decisão impor a esta Secção de Contencioso a admissibilidade da intervenção, tão pouco a do reconhecimento da legitimidade para a impugnação do ato. Aliás, se nem decisão singular nem neste acórdão, alusão ou indicação se deixou explícita ou implícita quanto ao juízo da legitimidade para a ação, sem embargo do exigido para o tratamento do litisconsórcio, não deve abordar-se (nem por antecipação) a matéria envolvente do conhecimento dessa exceção ainda que com o protesto da gravidade da tutela jurisdicional efetiva que constitua direito fundamental do reclamante, matéria que se encontra nos articulados dos autores a que com a sua intervenção declarou aderir e dos quais beneficiaria apenas se a intervenção fosse admitida.
… …
Síntese conclusiva
- É admissível a intervenção principal espontânea de um terceiro num processo de impugnação de um ato administrativo, exigindo-se que os interesses invocados pelo interveniente se possam considerar numa situação de litisconsórcio necessário ou voluntário com os interesses da parte a que se quer associar.
- É na análise em concreto do ato administrativo impugnado que se afere a existência de interesses que se digam estar numa situação de litisconsórcio.
- Não existe litisconsórcio de interesses que admita a intervenção principal quando o ato impugnado não se dirigindo concretamente aos autores da ação a quem o interveniente se quer associar, os interesses que se dizem ter sido lesados com o ato só podem ser reclamados como pessoais e individuais.
- Mesmo quando a deliberação impugnada incorpore diversas relações materiais controvertidas referente a cada um daqueles a quem o ato é dirigido só é admissível a intervenção principal se a deliberação contiver uma única relação material controvertida que respeite a várias pessoas.
- Não é admissível a intervenção principal do requerente quando o ato administrativo impugnado se dirige à colocação e gestão dos lugares de juízes, invocando os autores da ação impugnatória terem sido lesados por a deliberação ter retirado da titularidade do processo-crime em que são arguidos o juiz que até aí tinha sido titular, alegando o requerente da intervenção estar o seu interesse numa situação de litisconsórcio com a dos autores.
… …
Decisão
Pelo exposto acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça em desatender a reclamação e, em consequência, rejeitar a intervenção principal espontânea requerida pelo reclamante.
Custas pelo reclamante.
Lisboa, 19 de janeiro de 2023
Manuel Capelo (Relator)
Maria João Tomé
Rijo Ferreira (Vencido conforme declaração de voto que junto)
Paulo Ferreira da Cunha
Ramalho Pinto
António Gama
Barateiro Martins
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Presidente da secção)
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Processo 28/22.0YFLSB
Declaração de Voto
Subscrevo o acórdão na parte em que se afirma a possibilidade de reclamação para a conferência.
No mais fiquei vencido porquanto julgaria a reclamação procedente, admitindo a requerida intervenção principal.
Com efeito:
Entendo, na esteira da posição expressa na declaração de voto que exarei no acórdão proferido nos autos de providência cautelar de suspensão de eficácia apensos (24/22....), que os actos do CSM atinentes à nomeação e movimentação de magistrados judiciais não têm a sua esfera de afectação (os destinatários dos seus efeitos) restrita àqueles magistrados, prolongando os seus efeitos aos sujeitos processuais no que tange a direitos fundamentais, como sejam as garantias do juiz natural/legal e da inamovibilidade do juiz.
E nesse sentido a deliberação do CSM que ‘suspendeu / retirou’ (por via da suspensão da promoção) o juiz titular do J2 do TCIC (é esta a deliberação impugnada, sendo o demais peticionado meramente consequencial) estabelece relativamente a todos eles uma ‘relação material’. E se se pode configurar que, embora se trate de um acto único, ele contém uma multiplicidade de distintas relações materiais, por referência a cada um dos seus destinatários, sempre se terá de considerar que, quanto aos sujeitos processuais, ela não se estabelece individualmente, mas por referência ao processo. Daí que sendo o Requerente arguido no mesmo processo em que são arguidos os Autores nos encontramos no domínio da mesma ‘relação material controvertida’ (a determinação do juiz natural/legal daquele processo e a sua inamovibilidade).
(Rijo Ferreira)