Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DECISÃO INSTRUTÓRIA
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
INTERVENÇÃO MÉDICA
INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
CONSENTIMENTO
CONSENTIMENTO PRESUMIDO
REQUISITOS
TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICO ARBITRÁRIO
TRATAMENTO MÉDICO VIOLANDO "LEGES ARTIS"
Sumário
I - O despacho de não pronúncia é obrigatoriamente fundamentado, precisamente com as razões de facto e direito que determinaram a não pronúncia. II - A apreciação da decisão instrutória não se restringe ao texto da decisão recorrida, antes pressupõe a sua análise e o confronto com todo acervo indiciário recolhido em sede de inquérito e instrução, devendo proceder-se à respectiva análise, concatenação e apreciação crítica. III - O conceito de suficiência de indícios não se basta com uma mera possibilidade de condenação, sendo aplicável, na fase de instrução, o “princípio in dúbio pro reo” IV - O artigo 150º do Código Penal estabelece comportamentos médico-cirúrgicos conformes com as “leges artis”, regras recomendadas pela ciência médica e cuidados gerais, sendo que a violação deste comando interfere com a conduta do médico em criar perigo para a vida ou perigo de ofensa grave para o corpo e saúde do intervencionado; V - A previsão do artigo 156º do Código Penal, embora remissiva para o disposto no precedente artigo 150º, é mais grave e configura intervenção e tratamento médico-cirúrgico arbitrário, sem ou com deficiente consentimento. VI - O dever de esclarecimento para efeito de consentimento é particularmente minucioso e compreende esclarecimentos sobre diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção e tratamento, salvo o contributo do paciente quanto à comunicação de circunstâncias que podem colocar em perigo de vida ou são susceptíveis de causar grave dano à sua saúde física ou psíquica. VII - A prática do crime previsto e punido pelo artigo 150º, nº 2 do Código Penal exige, para além de uma violação da “leges artis” que o arguido tenha actuado com dolo, ou seja, violando um conjunto de regras reconhecidas pela ciência médica e, ao postergar esta observância, cria um perigo para a vida, saúde ou corpo do paciente VIII - As intervenções e tratamentos que correspondem ao exercício profissional da actividade médica, exercício normal e levado a cabo segundo as “leges artis”, não constituem ofensas corporais, mas podem ser punidos como tratamentos arbitrários IX - Considera-se presumido o consentimento, quando este tiver sido prestado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente, por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, como meio de evitar um perigo para o corpo ou saúde, e não se verifiquem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado.
Texto Integral
Processo nº 13414/17.8T9PRT.P1 2ª Secção Criminal- Tribunal da Relação do Porto.
Relatório:
Decorrida a instrução de fls. 545/564 decidiu-se não pronunciar o requerente AA, devidamente identificado nos autos.
O teor desta decisão será abaixo transcrito. Inconformada a assistente BB veio recorrer e alinhou as seguintes conclusões:
1. No despacho Instrutório foram considerados suficientemente indiciados os pontos 82, 85, 86 a 92, 97 a 101 e 106 a 107 constantes do RAI:
82. Desde 2011 a assistente é seguida na consulta de ortopedia do arguido, tendo sido submetida a tratamento através de plasma rico em plaquetas (PRP) em diversas partes do corpo, os quais foram surtindo efeitos.
85. Através de ressonância magnética realizada em 17.09.2016, prescrita pelo arguido, foi detectada a rotura do tendão extensor do 4º dedo do plano do pulso.
86. Nessa sequência o arguido comunicou à assistente a necessidade de intervenção cirúrgica para reparação do mencionado tendão.
87. No dia 6 de Outubro de 2016 foi ainda diagnosticada pelo arguido rotura do 3º tendão da mão esquerda.
88. No dia 10 de Outubro de 2016, a assistente compareceu pelas 07:00 horas no Hospital 1 ..., no Porto, com vista à preparação para a cirurgia, a realizar nesse mesmo dia.
89. Pelas 08:00 do dia 10.10.2016, o arguido visitou a assistente, na companhia do médico anestesista e do fisioterapeuta, tendo a assistente comunicado a dificuldade em fazer a extensão do 2º, 3º, 4º e 5º dedos da mão esquerda, o que indiciava rotura dos tendões.
90. Apesar de tais relatos, o arguido não prescreveu a realização de qualquer exame complementar de diagnóstico de forma a verificar se, os 2º e 5º dedos apresentavam rotura e, consequentemente deveria manter ou alterar planeamento pré-operatório.
91. Foi o fisioterapeuta que entregou à assistente um formulário de consentimento informado, necessário para a realização da cirurgia, não tendo sido feita qualquer explicação do procedimento médico-cirúrgico.
92. Refira-se o formulário de consentimento informado fazia apenas menção ao procedimento cirúrgico reparação da rotura crónica do extensor da mão esquerda.
97. A assistente teve alta no dia 11.10.1016, constando do relatório “transferência do extensor radial do carpo para o 2º, 3º e 4º dedos”, mediante o procedimento cirúrgico de “tenoplastia por excerto de tendão da mão 1”, não fazendo qualquer referência à técnica Darrach utilizada.
98. Nem a factura de pagamento da cirurgia faz qualquer referência ao procedimento Darrach, nem a assistente teve conhecimento do procedimento cirúrgico Darrach utilizado.
99. Quando retirou a tala, passadas duas semanas, a assistente questionou o arguido da necessidade de realizar raio-X, atento o desvio exacerbado da mão que apresentava.
100. O arguido refutou a realização de raio-X, recomendando, por sua vez, tratamento terapêutico, consulta de fisiatria e sessões de fisioterapia 5 vezes por semana.
101. À medida que o tempo foi passando a assistente notou o abaulamento do punho esquerdo, insistindo com o arguido se o mesmo havia removido a fileira dos carpos, o que o mesmo negou, respondendo ainda que vontade não lhe faltou.
106. A assistente teve necessidade de ser submetida a uma nova intervenção cirúrgica pelo Prof. Dr. CC por forma a corrigir o colo de cisne do 2º, 3º, 4º e 5º dedos, transferência tendinosas de flexores para extensores do 4 últimos dedos, dermotenodeses do 2º, 3º, 4º e 5º dedos, correcção do desvio cubital da rádio-cárpica, transferência tendinosa para oponência do polegar para reparar a rotura do extensor do polegar, que surgiu após o procedimento Darrach.
107. Actualmente a assistente continua a apresentar diversas limitações, nomeadamente perda da força de preensão, rigidez nos dedos devido à realização da artrodese, instabilidade cubital, crepitação, dor e incapacidade de flexão dos dedos.
2. Apesar de na decisão instrutória se admitir indiciados os pontos supra descritos e ainda que “durante todo o processo de doença da assistente podem ter ocorrido irregularidades, falta de algum esclarecimento, até falta de comunicação”, concluiu-se que resultaram não indiciados os demais pontos do RAI (83, 84, 93 a 96, 102 a 105 e 108 a 115) e, como tal, que deveria manter-se o despacho de arquivamento proferido em fase de inquérito pelo Ministério Público e foi decidida a não pronuncia do arguido por qualquer crime.
3. Entende a assistente que a Mmª Juíza a quo não apreciou correctamente a prova produzida nas fases de Inquérito e de Instrução e os factos que resultam indiciados da mesma, nem retirou as conclusões lógicas que se impunham, decorrentes da análise da prova produzida, testemunhal, documental e pericial constante dos autos, que não deixa persistir quaisquer dúvidas sobre a existência de indícios do preenchimento dos elementos (objectivos e subjectivos) dos crimes imputados ao arguido na acusação constante do RAI.
4. Os pontos que foram considerados indiciado pela Mmª JIC são também eles instrumentais dos restantes pontos que resultaram não indiciados e, como tal, não se compreende, como da análise da prova produzida no inquérito e na instrução, conjugados com as regras da lógica e da experiência comum, podem não ter resultado suficientemente indiciados todos, ou praticamente todos, os factos que constavam da acusação do RAI.
5. Os pontos 83), 84) e 104) do RAI resultam indiciados não só do teor das declarações da assistente, como também das declarações das testemunhas DD e EE, que são peremptórias na afirmação de que a assistente sempre rejeitou qualquer cirurgia óssea, privilegiando tratamentos alternativos, rejeitando a artrodese e apenas consentindo na realização de cirurgia tendinosa, sem qualquer intervenção a nível ósseo.
6. Os indícios da verificação destes pontos, extraem-se ainda das declarações do próprio arguido que confirmou a recusa da assistente em realizar qualquer artrodese, o que é ainda consentâneo como teor dos relatórios pelo arguido subscritos, juntos aos autos, dos quais constam os tratamentos alternativos que foram realizados ao longo dos 5 anos que a assistente foi seguida na sua consulta.
7. Da conjugação daqueles meios de prova é manifesto que os tratamentos alternativos à cirurgia anteriormente realizados, não resolveram a situação clínica da assistente, pois se assim fosse, a mesma não teria tido necessidade de realizar a intervenção cirúrgica preconizada pelo arguido que levou à queixa apresentada nos presentes autos.
8. Tais elementos de prova indiciam fortemente que a assistente, tal como declarou (e foi confirmado pelo arguido), procurou sempre tratamentos alternativos, minimamente invasivos, nunca aceitando tratamentos a nível ósseo.
9. Mais, demonstram que o arguido disso estava ciente, já que acompanhava a assistente desde 2011, bem sabendo que aquela nunca consentiu na realização das cirurgias ósseas anteriormente propostas por aquele.
10. Deviam pois ter resultado suficientemente indiciados os pontos 83) e 84) do RAI, designadamente que “Ao longo dos tratamentos o arguido sugeriu diversas vezes a realização de procedimentos cirúrgicos, como a artrodese do punho direito ou a remoção da primeira fileira de carpos, o que a assistente sempre recusou pois não aceitava qualquer remoção óssea”e ainda que “Relativamente ao punho da mão esquerda o tratamento com PRP não surtiu os resultados esperados, pelo que foi ainda tentado o tratamento com células mesenquimais, que não resolveu igualmente a situação.”
11. Relativamente aos pontos 93) a 96) do RAI, resulta da prova pericial a fls. 502 e 503 que os exames de diagnóstico pré-operatórios permitiam ao arguido decidir, no pré-operatório, se o procedimento Darrach era uma solução possível pelo que deveria estar na lista de opções terapêuticas.
12. Na lista de opções terapêuticas estava apenas a reparação da rotura crónica do tendão extensor da mão esquerda (fls. 24), sem qualquer referência ao procedimento Darrach.
13. É assim evidente que foi esta a única opção terapêutica que foi apresentada à assistente e foi com base em tal informação que a assistente formou a sua vontade de consentir na realização do ato cirúrgico.
14. Desta forma, devia ter resultado indiciado que “Nos exames de diagnóstico pré-operatórios realizados, o arguido deveria ter colocado à assistente a possibilidade de realizar a técnica Darrach e solicitar o respectivo consentimento”.
15. O Juiz não pode retirar eficácia à prova pericial existente, mais concretamente ao parecer do Conselho Médico Legal, com base em documentos e depoimentos de médicos, cujo crédito que lhe é reconhecido não se questiona, incluindo os próprios arguidos, aqui legalmente desligados do dever de verdade.
16. Ao considerar não indiciado o ponto 93) do RAI, colide ostensivamente com o artigo 163 do Código de Processo Penal, que estabelece as regras atinentes ao valor da prova pericial, pois que tal decisão ultrapassou os limites de divergência ali impostos, não tendo sido minimamente justificada tal divergência pelo julgador.
17. Para efeitos de consentimento, a relevância da informação é tanto maior quanto é a gravidade das possíveis consequências, assim considerando as possíveis do procedimento cirúrgico adoptado, que a prova pericial refere ser a “possibilidade de subluxação da rádio cárpica ou translação cubital”, “Dor, limitação funcional do punho e mão, instabilidade do punho e conflito rádio-cubital distal” e “se percebe haver uma maior tendência para piores resultados no Darrach” tinha, necessariamente de ser transmitida toda a informação à assistente.
18. Se o arguido declarou que “durante a cirurgia é que surgiu a necessidade de usar a técnica Darrach”, o que é corroborado pela testemunha FF, que declarou que “durante a cirurgia foram confrontados com uma situação de conflito ósseo”, tal demonstra que o arguido não considerou previamente essa possibilidade, pelo que não é credível que a tenha transmitido à assistente e obtido o respectivo consentimento.
19. A questão de ter ou não sido transmitido no dia seguinte à cirurgia pelo arguido qual o procedimento realizado, não pode influenciar na verificação da suficiência ou insuficiência dos indícios da prática do crime, pois o consentimento só é eficaz e válido se for anterior ao procedimento cirúrgico. Só desta forma se garante a protecção do bem jurídico da liberdade de decisão da assistente.
20. O consentimento deve ser esclarecido e prévio e a sua ausência não pode ser suprida por uma mera comunicação posterior de factos consumados.
21. Dispõe o artigo 157 do CP, que o consentimento deverá ser livre, esclarecido e sem erros, ou seja, aquilo que no direito se designa de consentimento informado, não sendo de valorar o consentimento prestado pelo paciente se este não dispusesse das informações necessárias para poder ponderar e decidir, daí que a exigência de requerer previamente o dito consentimento seja complementada pela exigência cumulativa de fornecer ao paciente as informações consideradas relevantes no caso concreto.
22. Se é verdade que foi apenas durante a cirurgia que o arguido constatou o conflito ósseo, isso significa que terá de resultar suficientemente indiciado que o arguido não preparou a cirurgia – como devia e como lhe impunha a leges artis –, o que, só por si, indicia o preenchimento dos elementos do tipo legal p. e p. pelo artigo 150 do CP.
23. Ou então, se através dos exames pré-operatórios, o arguido verificou a existência de um conflito ósseo (o que reitere-se contraria as declarações do próprio), certo é que não o fez constar do diagnóstico, nem transmitiu tal à assistente, bem como as opções terapêuticas (nomeadamente a técnica Darrach utilizada) e respectivas consequências, resultando assim indiciado o preenchimento do tipo legal p. e p. no artigo 156 e 157 do CP.
24. Uma ou outra situação, importa sempre a conclusão de que, pelo menos, o preenchimento dos elemento de um dos crimes resulta indiciado, e, assim sendo, não se compreende que tenha sido proferido despacho de não pronuncia e sido ordenado o arquivamento dos autos quanto aos dois crimes que constavam da acusação do RAI.
25. A realização deste procedimento não consentido, veio a culminar na realização de outro procedimento, a artrodese, que o arguido estava ciente que a assistente sempre havia recusado, quanto à mão direita.
26. O tipo legal previsto no artigo 156 do CP, é igualmente punível, ainda que o arguido estivesse em erro sobre o alcance do consentimento que foi prestado, representando falsamente os pressupostos do consentimento, desde que ocorra negligência grosseira, o que sempre seria o caso face ao conhecimento do mesmo da recusa da assistente em realizar outros procedimentos a nível ósseo igualmente invasivos, pelo que, também nesse caso, a probabilidade de condenação, seria sempre mais elevada do que a probabilidade de absolvição.
27. O que vale por dizer que a convicção do arguido quanto a previamente à cirurgia lhe ter sido dado consentimento para remoção de osso indispensável à reparação dos tendões e de remoção de todas as espículas e fragmentos ósseos que estivessem em conflito com a finalidade da cirurgia não pode determinar a não pronúncia.
28. Por um lado, porque tal consentimento prévio não corresponde à verdade e, por outro lado, porque ainda que o arguido disso tivesse ficado erradamente convencido, atenta a postura anterior, ao longo de mais de 5 anos, em que a assistente foi sua paciente, tinha a obrigação de saber a posição de recusa desta quanto a intervenções a nível ósseo, sendo de considerar esse eventual erro como enquadrável na negligência grosseira.
29. Não cabe ao enfermeiro de ortopedia o conhecimento de técnicas cirúrgicas. Por outro lado, a assistente desempenhava funções no serviço de ortopedia há menos de um ano. Por outro, porque se lhe fossem explicadas as consequências da intervenção é evidente nunca iria consentir a realização de um procedimento cujas principais consequências são “subluxação da rádio cárpica ou translação cubital”, “dor, limitação funcional do punho e mão, instabilidade do punho e conflito rádio-cubital distal” e “maior tendência para piores resultados”.
30. Não só não tinha a assistente qualquer interesse em assim proceder, como tal seria manifestamente contraditório com a postura que até ali havia assumido optando por tratamentos alternativos.
31. Não estando em causa a vida, o corpo ou a saúde, conforme resulta da prova pericial a fls. 345, a assistente nunca consentiria numa opção cirúrgica que tivesse como consequência antecipar a realização de artrodese, conforme prova pericial de fls. 155 e 156, concluindo-se, pelas regras da lógica e da experiência, que a assistente não foi previamente informada do “alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção”, pois se sempre recusou a artrodese, nenhuma lógica teria consentir na realização de um procedimento que iria potenciar e antecipar a mesma.
32. Por conseguinte, os pontos 108) e 109) do RAI, também deveria ter resultado indiciados.
33. Havendo discrepâncias entre o que (apenas) o arguido declara e as declarações da assistente, das testemunhas DD e EE, relativamente ao prévio consentimento “para remoção de todas as espículas e fragmentos ósseos que estivessem em conflito com a finalidade da cirurgia”, não se compreende como podem ser desabonadas as declarações prestadas pela assistente e pelas testemunhas, uma vez que, ao contrário do arguido, estão vinculados a um dever de falar com verdade nos termos preceituados nos artigos 132, nº 1 alínea d) e 145, nº2 ambos do CPP.
34. Para além disso, as declarações da assistente e das testemunhas encontram suporte na prova pericial e no teor dos relatórios de cirurgia e de alta, ao contrário das declarações prestadas pelo arguido.
35. De acordo com a norma da DGS nº 15/1013 o arguido tinha o dever e a obrigação de requerer, por escrito, o consentimento esclarecido e livre, obrigatório na situação “Realização de actos cirúrgicos e/ou anestésicos, com excepção das intervenções simples de curta duração para tratamento de afecções sobre tecidos superficiais ou estruturas de fácil acesso, com anestesia local”, de acordo com a alínea r) da norma referida.
36. Nos termos da mesma norma, o formulário de consentimento informado, esclarecido e livre dado por escrito deve, entre outros, identificar o ato/intervenção proposto e a sua natureza, descrever o diagnóstico e a situação clínica e os objectivos que se pretendem alcançar com o ato/intervenção proposto, identificar os potenciais benefícios, riscos frequentes e riscos graves associados ao ato/procedimento e as eventuais alternativas viáveis e cientificamente reconhecidas, identificar os potenciais riscos decorrentes de uma não intervenção, em caso de dissentimento.
37. Resulta de fls. 26 dos autos que no consentimento livre e esclarecido para actos médicos consta apenas“rotura crónica tendão extensor da mão esquerda” e tal como a fls. 10 da queixa, a escolha apenas do arguido para realização do ato cirúrgico.
38. Resulta ainda do artigo 100, do Regulamento nº 14/2019 e do artigo 77 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos o dever do médico regista cuidadosamente os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo.
39. A preocupação em omitir o que efectivamente foi realizado na cirurgia é constante e evidente: no registo operatório, no relatório de alta e até nos relatórios da Clínica ..., subscritos pelo arguido, datados de 15/11/2016; 14/8/2017 e 15/5/2018, já requeridos ao abrigo dos presentes autos na fase de inquérito, pelo que, pelo menos nestes últimos, é evidente que o arguido deveria ter feito os mesmos de forma detalhada, o que mais uma vez não aconteceu.
40. Não faz qualquer sentido a decisão instrutória quando conclui que o arguido não tinha obrigação de preencher os relatórios em questão, já que tal resulta de normas de direito e de saúde pública, que vinculam directamente o arguido.
41. A sustentar as conclusões supra, refere a prova pericial, a fls. 145 “daí ser importante informar os doentes da possibilidade de virem a precisar de outros procedimentos cirúrgicos, nomeadamente a nível das articulações metacarpofalangeas e interfalângeas proximais” e que “o consentimento onde está apenas a transferência do Extensor Cárpico Radialis para os extensores dos dedos, faltando efectivamente a menção à eventual necessidade de procedimento complementar…” e a fls. 346, “assinalamos a ausência da descrição do procedimento de Darrach associado à tendinoplastia no registo cirúrgico e na nota de alta da ofendida devendo este, bem como a sua razão, ter ficado documentado no processo clínico.”
42. Também o relatório pericial de fls. 501 e ss. refere expressamente que “a osteotomia não ter feito parte do consentimento, nem da descrição operatória, nem da nota de alta”.
43. Houve violação do dever de informação e esclarecimento e, por conseguinte, violação do consentimento, quer quanto ao procedimento realizado, quer quanto aos médicos que operaram a assistente (pois a opção que incluía o Dr. FF não foi assinada pela assistente – Doc. 5 junto com a queixa).
44. Não foi respeitado o direito de livre opção da assistente, resultando objectiva e manifestamente indiciados factos que preenchem o crime p. e p. nos artigos 156 e 157 do CP.
45. A falta de esclarecimento e respectivo consentimento teve consequências que a assistente não previu e que não lhe foi dada a oportunidade de optar, nomeadamente o desvio cubital da rádio-cárpica e outras roturas (Cfr. ponto 106. do RAI considerado indiciado), perda de força de preensão, rigidez nos dedos, instabilidade cubital, crepitação, dor e incapacidade de flexão dos dedos (Cfr. ponto 107. do RAI considerado indiciado).
46. Da mesma forma que do diagnóstico inicial, que levou à intervenção cirúrgica, apenas constava a “rotura do 3 tendão da mão esquerda” (tal como indiciado na decisão instrutória o ponto 87) do RAI), e o arguido fez constar dos relatórios cirúrgico e de alta os procedimentos relativos à rotura dos restantes dedos, adicionando tal ao diagnóstico, podia e devia adicionar também aos relatórios posteriores ao diagnóstico inicial que fez a osteotomia da extremidade do cúbito, pois tal procedimento é muito mais invasivo e de natureza diferente, não se circunscrevendo aos tendões, mas sim implicando um procedimento a nível ósseo, não existindo qualquer razão plausível para não o tivesse feito.
47. A justificação apresentada pelo arguido para a realização do procedimento, que “o mecanismo da lesão manter-se-ia, e voltaria a cortar a transferência tendinosa, pelo que a cirurgia teria sido impossível e inútil”, não colhe, pois, conforme ficou amplamente demonstrado, a assistente voltou a ter roturas dos tendões, conforme suficientemente indiciado na decisão instrutória os pontos 106) e 107) do RAI, pelo que deveria ter igualmente sido considerado indiciado o ponto 113) do RAI.
48. Também não é qualquer remoto perigo que pode ser invocado para permitir actuar sem expresso consentimento do paciente, especialmente tratando-se de intervenções não urgentes.
49. Não havia qualquer perigo presente para a saúde da assistente, mas apenas e só um eventual perigo futuro.
50. Concluindo, perante o resultado dos exames de diagnóstico pré-operatórios realizados, em primeiro lugar, o arguido estava obrigado a informar a assistente da possibilidade de realização da técnica Darrach, respectivas consequências em virtude do conflito ósseo.
51. Em segundo lugar, incumbia ao arguido solicitar o respectivo consentimento, sobretudo, porque tinha conhecimento da sua recusa da assistente na realização de cirurgias ósseas, como a artrodese ou a remoção da primeira fileira de carpos e sabendo ainda que a artrodese era uma das prováveis consequências da realização da osteomomia isolada.
52. Só assim o consentimento podia ser considerado válido e eficaz, e só assim seria respeitado o direito de opção da assistente.
53. A cirurgia realizada pelo arguido terá, assim, de ser considerada um procedimento arbitrário.
54. Resulta da prova pericial, a fls. 343, que faz parte do procedimento Darrach obter a estabilização do punho, quando possível.
55. Sabendo o arguido que não podia estabilizar o punho através de uma artrodese, não podia ter optado pelo procedimento Darrach, cuja melhor solução de estabilização era precisamente a recusada artodese.
56. Atendendo às graves consequências possíveis do procedimento em causa, supra elencadas, restava ao arguido não realizar a cirurgia, interrompendo a mesma, permitindo à assistente optar pela realização ou não da técnica Darrach e, em caso positivo, isolada ou com mecanismo de estabilização, esclarecendo a mesma das consequências duma e doutra opção.
57. Não cabia ao arguido, unilateralmente, optar por realizar um procedimento que, assim, se revelou ser arbitrário.
58. Na doutrina predomina o entendimento de que quando não haja qualquer perigo imediato, como era o caso, o médico, confrontado com um mal suplementar imprevisível, deve interromper a intervenção para informar o paciente e recolher de novo o seu consentimento.
59. O procedimento Darrach foi utilizado apenas para evitar um dano futuro (preservar a plastia) e não para prevenir qualquer perigo imediato, não sendo justificável que o arguido motu proprio, alterasse o procedimento cirúrgico, ao arrepio da vontade da assistente.
60. Em bom rigor, a cirurgia desempenhada pelo arguido foi efectivamente inútil, pois está indiciado que a assistente, após apenas 6 meses, teve necessidade de realizar nova cirurgia.
61. Devia ainda ter resultado suficientemente indiciado que “De acordo com as leges artis e ponderando as circunstâncias do caso concreto, designadamente o facto de a assistente padecer de uma doença auto-imume (Lupus), deveria o arguido ter considerado que a técnica Darrach, a ser realizada, como foi, devia ser acompanhada da estabilização.”
62. É referido na prova pericial que “faz parte da técnica obter a estabilização com tendão” e “está descrito na técnica Darrach uma possibilidade de subluxação da rádio cárpica ou translação cubital”.
63. Sabendo o arguido da condição clínica da assistente, mais ainda se impunha que tivesse maior cuidado para evitar a produção destas consequências, que se vieram a verificar, pois conforme consta de fls. 503, refere a prova pericial que houve “evolução da deformidade, dado não se ter estabilizado o punho mediante uma artrodese”.
64. Relativamente ao ponto 96) do RAI, o indício de tal facto resulta directamente dos relatórios de fls. 25 e 27, que foi precisamente a realização de uma transferência tendinosa, transferência do extensor radial do carpo para o 2º,3º,4º tendão da mão esquerda, que o arguido fez constar, sustentado pelas declarações da assistente, sendo este o procedimento transmitido à assistente após a cirurgia, pelo que deveria tal ponto ter sido considerado indiciado.
65. Quanto ao ponto 102) do RAI, para além de resultar indiciado das declarações da assistente e das declarações das testemunhas DD e EE, o facto de na 1ª consulta do Dr. CC ter sido realizado um exame fluoroscópico, também corrobora este ponto, pois tal exame não teria qualquer propósito se a assistente já tivesse conhecimento da osteotomia.
66. Não se tratou de uma cirurgia meramente mais invasiva, mas sim de uma cirurgia de diferente natureza.
67. Nem tão pouco se pode afirmar que se trataram de vicissitudes surgidas apenas no decurso da cirurgia pois, reitere-se, nos exames pré-operatórios já era visível o conflito ósseo e, além disso, a dimensão da alteração das circunstâncias, pela sua relevância e carácter, sempre obrigaria a obter um novo consentimento da assistente, considera-se assim que é manifesto que atenta a prova carreada para os autos, devia ter resultado indiciado o ponto 103. do RAI.
68. O ponto 110) do RAI também resulta expressamente das declarações do próprio arguido na fase de inquérito, referindo que a assistente sempre recusou qualquer intervenção que implicasse a remoção óssea a descorticação ou a ressecção de outras estruturas ósseas, como a artrodese ou a remoção da primeira fileira de carpos.
69. É notório que resultou fortemente indiciado que arguido não podia ignorar que a assistente não daria o consentimento à realização de osteotomia e ressecção da extremidade do cubito nem o adiamento da cirurgia, implicava perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde da assistente, pelo que deveria ter resultado também indiciado na decisão instrutória o ponto 111) do RAI.
70. Também da consulta médico-ciêntifica que a técnica Darrach deve ser utilizada selectivamente, adequada ao paciente sendo que o procedimento de forma isolada, é contra indicado em pacientes que possuam translação cubital do carpo, como é o caso da assistente, tal como constava do ponto 112) do RAI que deveria ter resultado indiciado.
71. A assistente apresentava evidência de translação cubital dos carpos nos exames pré-operatórios, conforme esclarece a prova pericial a fls. 501. Esclarece ainda tal prova pericial que “se percebe haver uma maior tendência para piores resultados na Darrach” a fls. 502.
72. O procedimento Darrach utilizado pelo arguido não foi solução pois a assistente voltou a apresentar lesão dos tendões passados escassos 6 meses e foi submetida a nova cirurgia de correcção pelo Dr. CC, obrigando, desta feita, a que fosse realizada a artrodese, pois o procedimento Darrach anterior não viabilizou qualquer outra alternativa, como aliás resultou suficientemente indiciado nos pontos 106) e 107) do RAI.
73. O arguido deveria ainda ter solicitado a realização de exames complementares após a cirurgia, ao ser visível que a assistente continuava a não conseguir fazer a extensão dos dedos e que também tinha dor, conforme refere a prova pericial a fls. 344, que a radiografia de controlo deve ser feita ao fim de seis semanas, acrescentando que aos 3 meses, se o doente não estiver capaz de reiniciar a actividade, o médico deve proceder a uma nova avaliação, nomeadamente através de novos exames, que nunca foram prescritos pelo arguido.
74. A fls. 502, a prova pericial confirma que a técnica isolada tem maior risco do que a técnica combinada. Resulta das declarações do arguido e da testemunha FF, que apenas colocaram a hipótese de técnica isolada, nunca sendo ponderada a técnica combinada. Não houve estabilização do punho porque a cirurgia realizada em 8/5/2017 pelo Dr. CC teve como objectivo precisamente corrigir o desvio cubital da radiocárpica.
75. A fls. 504, a prova pericial confirma ainda se impunha a estabilização do punho com tendão, tal como no relatório de fls.343, refere também que faz parte da técnica obter a estabilização com tendão quando possível. Ora, se tivesse sido feita tal estabilização, tal constaria do relatório do Institut de la Main, conforme constam outras transferências tendinosas realizadas. O que resulta desse documento, é que a estabilização foi feita por artrodese radiocárpica, mas essa sabemos que foi realizada pelo Dr. CC (ponto 106. do RAI), o arguido não realizou qualquer estabilização.
76. Resulta da prova carreada para os autos que o arguido, durante o planeamento pré-operatório, tinha obrigação de fazer o estudo e tomar decisão do procedimento adequado a realizar e, caso optasse pelo procedimento Darrach, teria, além disso, de determinar se o mesmo seria realizado de forma isolada ou combinada.
77. Apesar de tal procedimento já dever constar no pré-operatório da lista das opções terapêuticas, refere o arguido e o seu médico assistente, que só durante a cirurgia é que foram confrontados pelo conflito ósseo, que levou à opção pelo procedimento Darrach.
78. O arguido tinha o dever e a obrigação, de acordo com as leges artis de realizar um planeamento pré-operatório de forma a permitir a assistente decidir se iria submeter-se ou não ao procedimento Darrach e teria ainda, obrigatoriamente de determinar se o mesmo seria isolado ou combinado com mecanismos de estabilização, face às circunstâncias do caso concreto, ou seja, o arguido estava obrigado pela leges artis a determinar se realizaria estabilização cubital, cuja falta de realização através de artrodese a prova pericial a fls. 503, atribui a “evolução da deformidade, dado não se ter estabilizado o punho mediante uma artrodese”.
79. Da conjugação dos elementos que resultaram indiciados e ainda dos que deveriam ter resultado indiciados de uma correta aplicação e interpretação do artigo 163 do Código de Processo Penal, é evidente que resulta da prova produzida em inquérito e em instrução que o arguido praticou o crime de intervenção e tratamentos médico-cirúrgicos com violação da leges artis, p. e p. no artigo 150 do Código Penal e o crime de intervenção e tratamento médico-cirúrgico arbitrário p. e. p. no artigo 156 e 157 do Código Penal, pelo que deveria ter sido pelos mesmos pronunciado.
Nestes termos, deve conceder-se integral provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se por outra que pronuncie o arguido pela prática do crime de intervenção e tratamentos médico-cirúrgicos com violação da leges artis, p. e p. no artigo 150 do Código Penal e pela prática do crime de intervenção e tratamento médico-cirúrgico arbitrário p. e. p. no artigo 156 e 157 do Código Penal, ordenando-se a remessa dos autos para a fase de julgamento…
Resposta do MP.
(…)
Assim, resulta dos autos na versão da assistente:
A assistente refere que foi acompanhada na consulta do arguido entre Janeiro de 2011 e Abril de 2017. Resultante desse acompanhamento a depoente sempre teve bastante confiança no médico. No decurso das consultas tidas com o arguido a assistente sempre recusou qualquer cirurgia óssea, privilegiando tratamentos alternativos. A assistente, devido a esse conhecimento por parte do arguido, estava em crer que se no decurso da cirurgia verificasse que era necessário fazer algo mais do que a reparação do tendão, algo relacionado com a parte óssea da depoente, este interromperia a cirurgia e pediria o consentimento da depoente para o efeito uma vez que tinha conhecimento através das consultas anteriores que as cirurgias propostas para a mão direita com intervenção na parte óssea foram sempre recusadas pela assistente.
No dia seguinte à cirurgia foi visitada pelo arguido que a informou que tinha uma ruptura do 2º, 3º, 4º e 5º tendão da mão esquerda e que tinha sido necessário utilizar o extensor radial da mão esquerda (que também é um tendão) para efectuar um excerto no 2º, 3º e 4º tendão. Também a informou que devido a essa intervenção a assistente deixava de fazer a rotação interna do punho. Nessa ocasião o arguido não a informou de que tinha feito o corte da extremidade distal do cúbito, que é uma amputação de parte do osso. À assistente nunca foi informado de que tinha sido feito o corte da extremidade distal do cúbito, mesmo a fisioterapeuta que a acompanhou apesar de ter falado com o arguido não tinha conhecimento dessa situação.
Sempre que a fisioterapeuta era confrontada pela assistente devido ao facto da impossibilidade de movimentar o punho durante a fisioterapia esta sempre a informou de que isto se devia à fragilidade da mão decorrente da patologia que padece (lupos) e não que resultasse da cirurgia óssea realizada. A assistente foi pedindo relatórios médicos e nestes nunca era referido que na cirurgia tinha sido efectuada um corte da extremidade distal do cúbito.
Apesar da assistente ter questionado o arguido sobre a possibilidade de efectuar um RX para verificar o resultado da cirurgia este sempre se recusou a fazê-lo, alegando que a cirurgia tinha sido muito complexa e que quem fosse analisar o RX não compreenderia as alterações feitas na mão e que não existia qualquer benefício em realizar esse RX. O desconhecimento por parte da assistente do que tinha sido efectuado na cirurgia resultou, como somente o rádio está ligado ao punho, num desgaste maior desse osso que se confirma no RX quando efectuada a comparação entre o realizado em Outubro de 2016 e o realizado em Abril de 2017.
A assistente também notou que estava dificultada a apreensão dos objectos mais pesados, ficou com mais dores, sendo estas constantes. Como a única solução oferecida pelo arguido era o encurtamento do tendão, tendo também sido informada que esta cirurgia poderia não resolver o problema, a assistente resolveu recorrer a outro médico de forma a verificar se existiam outras possibilidades cirúrgicas em que a probabilidade de êxito fosse superior. Teve a última consulta com o arguido em Março de 2017 e em Abril desse ano decidiu recorrer a consulta com o Dr. CC em Coimbra. Aquando da realização da consulta com o Dr. CC este efectuou uma fluoroscopia (equivalente a um RX) e foi quando verificou que havia corte da extremidade distal do cúbito. Devido a ter verificado essa situação o Dr. CC informou-a de que era necessário estabilizar o pulso. Em consulta com o Dr. CC informou-a de que iria tentar durante uma nova cirurgia contrariar manualmente o desvio do punho de forma a conseguir utilizar os tendões para o estabilizar e que caso essa técnica não resultasse que teria de ou colocar uma prótese ou fazer uma artródese parcial (que é a fusão do punho, ligação do rádio aos carpos), tendo a depoente concordado com esta segunda sugestão, por ser a única que existia para estabilizar o punho. Como resultado da cirurgia efectuada pelo arguido a assistente foi obrigada a realizar uma das técnicas que já tinha recusado para a mão direita, mas que neste caso mostrou-se necessária para estabilizar o pulso esquerdo. Como sequelas a depoente tem a apreensão de objectos diminuída, todas as funções da mão encontram-se limitadas (abertura dos dedos, flexão do 2º, 3º, 4º e 5 tendão) e devido ao material (grampo que está a segurar os carpos) sente como se tivesse uma resistência nos movimentos, que é incomodativa. Desde o dia em que foi operada pelo arguido que a assistente não regressou ao trabalho devido à impossibilidade de realizar algumas técnicas. Desde essa data que a assistente é obrigada a utilizar mais frequentemente a mão direita, o que antes evitava, que lhe provoca um desgaste articular superior de que o que se verificava anteriormente. Anteriormente a assistente utilizava a mão esquerda no meio social de forma a evitar constrangimentos com a mão direita, a fim de não mostrar alterações na anatomia da mão direita, sendo que actualmente é obrigada a utilizar a mão que não utilizava anteriormente está esteticamente com mais alterações anatómicas do que a mão direita, estando permanentemente a ocultar a mão esquerda.
Para além das diligências de prova efectuadas em inquérito, em instrução foi ordenado elaborar novo parecer ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP Conselho Médico legal (doravante designado por INML-Conselho Médico legal) sobre as questões suscitadas no RAI, e constante de fls. 501 e ss., onde, em conclusão se entende: Sobre se “Os exames de fls. 18 e 19, permitiam ao arguido, decidir, no pré-operatório, se o procedimento Darrach era uma das soluções possíveis? Resposta: perante as alterações destrutivas do punho seria de admitir esse ou outro procedimento (Sauve-Kapandji ou uma artrodese de punho) para assegurar melhor o tratamento da instabilidade radiocubital distal e aliviar as queixas”.
Em caso de resposta afirmativa à pergunta anterior, o arguido deveria ter decidido no pré-operatório se pretendia realizar o procedimento Darrach isolado ou combinado com o procedimento de estabilização do cubito? Resposta: qualquer um destes procedimentos deveria estar na lista de opções terapêuticas.
O procedimento Darrach isolado é contra indicado em pacientes com evidência de translação cubital dos carpos? Resposta: controverso, dada a falta de evidência clínica na literatura favorecendo a superioridade do Darrach sobre Sauve-Kapandji ou vice-versa.
É difícil atribuir um nexo causalidade directo com a cirurgia, mas sim com a evolução da deformidade.
Após a cirurgia realizada em 10.10.2016 o aparelho extensor da mão esquerda da assistente ficou bem preservado? Resposta: não temos dados para pensar o contrário. A última ecografia mostra integridade da reparação. O problema biológico permanece podendo levar a novas roturas.
Em inquérito foram efectuadas as seguintes diligências de prova:
- prova documental - registos e relatórios médicos;
- Inquirição da assistente BB, a fls. 138/138;
- Inquirição de DD, a fls. 148/150;
- Inquirição de GG, a fls. 151/152;
- Inquirição de EE, a fls. 153/154;
- Inquirição de HH, a fls. 155/156;
- Inquirição de FF, a fls. 157/158;
- Interrogatório como arguido de AA e interrogatório complementar, a fls. 197/198, 391/394;
- Relatório pericial da Consulta Técnico-científica do “Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP”, a fls. 340 e ss.
- Relatórios de perícia médico-legal da “Delegação do Norte do Instituto de Medicina Legal”, a fls. 297 e ss e 373 e ss.
Face a tal prova veio a ser proferido despacho de arquivamento pelo MP titular do inquérito, a fls. 396/407, nos termos do disposto no artº 27, nº2, do CPP, por se considerar que da análise da prova, não resultava, indícios suficientes de que o arguido tenha violado as legis artis, nem que não houvesse anterior consentimento da assistente para remoção de todas as espículas e fragmentos ósseos que estivessem em conflito com a finalidade da cirurgia, o que incluía a técnica de Darrach, até porque esta, pela sua formação profissional, tinha conhecimentos para saber que tal podia acontecer.
E dos autos não se colhiam, em inquérito, e igualmente da instrução, indícios suficientes de que o arguido haja praticado factos susceptíveis de integrarem a prática dos tipos legais de crime, p. e p. pelos artºs 150, 156 e 157, do CP.
O que mudou em instrução em termos de prova, que pudesse abalar o despacho de arquivamento sindicado (face à prova entendida como insuficiente)?
Nada, dizemos nós, apesar da diligência de solicitar novo parecer ao Conselho Médico Legal.
Pelo que bem andou a Mº JIC, ao proferir o despacho de não pronúncia, ora colocado em causa.
O despacho sob censura não violou, qualquer disposição legal, nem foi a mesma foi invocada pela assistente/recorrente.
Termos em que, sem formular conclusões, por não serem obrigatórias (artº 413, nº4, à contrário do CPP) e, contrariamente ao sustentado pela recorrente BB, entendemos que deve ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmado e mantido o despacho recorrido.
Resposta do arguido.
(…)
214. Tendo em consideração tudo o que ficou dito supra e ainda a circunstância de (i) também nesta fase processual vigorar o princípio in dubio pro reu e (ii) se exigir um elevado grau de probabilidade de o arguido vir a ser condenado pela prática dos crimes de que vem acusado para que legalmente se justifique uma decisão de pronúncia, não restam dúvidas que a decisão recorrida não enferma de qualquer erro de julgamento.
215. É evidente, no caso dos autos, não estarem reunidos os pressupostos para se sujeitar o ora Recorrido a um julgamento pela prática dos crimes p. e p. nos artigos 156 e 157, do CP.
216. Decisão inversa consubstanciaria, isso sim, uma decisão totalmente injustificada e desproporcional, violadora do princípio in dubio pro reo e do disposto nos artigos 283, nº 2, e 308, do CPP.
217. Nesta conformidade, deverá o recurso interposto pela recorrente ser julgado improcedente e confirmar-se na íntegra a decisão recorrida.
Já neste Tribunal Superior o Senhor Procurador-Geral elaborou parecer reiterando argumentos da resposta e do despacho de não pronúncia do tribunal a quo.
Cumpriu-se o artº 417 nº 2 do CPP
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso.
Mantém-se a regularidade da instância.
Do despacho recorrido.
(…)
Cumpre decidir.
Iniciaram-se os presentes autos com queixa apresentada a folhas 3 e seguintes, pela assistente BB, contra o arguido AA, pela prática dos factos descritos, que aqui se dão por reproduzidos, e que integrou na «autoria material e na forma consumada, um crime de intervenção e tratamento médico-cirúrgico arbitrário, p. e p. no artigo 156 e 157 do Código Penal, bem como um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das “leges artis”, p. e p. no artigo 150, nº 2 do Código Penal».
Em sede de inquérito foi produzida a seguinte prova:
-Junção de prova documental (registos e relatórios médicos).
-Inquirição da queixosa (assistente) BB –folhas 136-8.
-Inquirição da testemunha DD (irmã da assistente) –folhas 148-50.
-Inquirição da testemunha GG (fisioterapeuta) –folhas 151-2.
-Inquirição da testemunha EE (mãe da assistente) – folhas 153-4.
-Inquirição da testemunha HH (médico ortopedista) –folhas 155-6. -Inquirição da testemunha FF (médico) –folhas 157-8.
- Constituição E interrogatório como arguido do denunciado AA
- AA e interrogatório complementar – folhas 197-8 e 391-4.
- Relatório pericial da Consulta Técnico-científica do “Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP”- folhas 340 e sgs.
- Relatórios de perícia médico-legal da “Delegação do Norte do Instituto de Medicina Legal” – folhas 297 e sgs e 373 e sgs.
Foi ouvida a assistente, em sede de inquérito, que referiu o seguinte:
A depoente confirma na integra o teor da queixa-crime constante dos autos. A depoente foi acompanhada na consulta do denunciado entre Janeiro de 2011 e Abril de 2017. Resultante desse acompanhamento a depoente sempre teve bastante confiança no médico. No decurso das consultas tidas com o denunciado a depoente sempre recusou qualquer cirurgia óssea, privilegiando tratamentos alternativos. A depoente, devido a esse conhecimento por parte do denunciado, estava em crer que se no decurso da cirurgia verificasse que era necessário fazer algo mais do que a reparação do tendão, algo relacionado com a parte óssea da depoente, este interromperia a cirurgia e pediria o consentimento da depoente para o efeito uma vez que tinha conhecimento através das consultas anteriores que as cirurgias propostas para a mão direita com intervenção na parte óssea foram sempre recusadas pela depoente. No dia seguinte à cirurgia foi visitada pelo denunciado que a informou que tinha uma ruptura do 2º, 3º, 4º e 5º tendão da mão esquerda e que tinha sido necessário utilizar o extensor radial da mão esquerda (que também é um tendão) para efectuar um excerto no 2º, 3º e 4º tendão. Também a informou que devido a essa intervenção a depoente deixava de fazer a rotação interna do punho. Nessa ocasião o denunciado não a informou de que tinha feito o corte da extremidade distal do cúbito, que é uma amputação de parte do osso. À depoente nunca foi informado de que tinha sido feito o corte da extremidade distal do cúbito, mesmo a fisioterapeuta que a acompanhou apesar de ter falado com o denunciado não tinha conhecimento dessa situação. Sempre que a fisioterapeuta era confrontada pela depoente devido ao facto da impossibilidade de movimentar o punho durante a fisioterapia esta sempre a informou de que isto se devia à fragilidade da mão decorrente da patologia que padece (lupos) e não que resultasse da cirurgia óssea realizada. A depoente foi pedindo relatórios médicos e nestes nunca era referido que na cirurgia tinha sido efectuada um corte da extremidade distal do cúbito. Apesar de a depoente ter questionado o denunciado sobre a possibilidade de efectuar um RX para verificar o resultado da cirurgia este sempre se recusou a fazê-lo, alegando que a cirurgia tinha sido muito complexa e que quem fosse analisar o RX não compreenderia as alterações feitas na mão e que não existia qualquer benefício em realizar esse RX. O desconhecimento por parte da depoente do que tinha sido efectuado na cirurgia resultou, como somente o rádio está ligado ao punho, num desgaste maior desse osso que se confirma no RX quando efectuada a comparação entre o realizado em Outubro de 2016 e o realizado em Abril de 2017.
A depoente também notou que estava dificultada a apreensão dos objectos mais pesados, ficou com mais dores, sendo estas constantes. Como a única solução oferecida pelo denunciado era o encurtamento do tendão, tendo também sido informada que esta cirurgia poderia não resolver o problema, a depoente resolveu recorrer a outro médico de forma a verificar se existiam outras possibilidades cirúrgicas em que a probabilidade de êxito fosse superior. Teve a última consulta com o denunciado em Março de 2017 e em Abril desse ano decidiu recorrer a consulta com o Dr. CC em Coimbra. Aquando da realização da consulta com o Dr. CC este efectuou uma fluoroscopia (equivalente a um RX) e foi quando verificou que havia corte da extremidade distal do cúbito. Devido a ter verificado essa situação o Dr. CC informou-a de que era necessário estabilizar o pulso. Em consulta com o Dr. CC informou-a de que iria tentar durante uma nova cirurgia contrariar manualmente o desvio do punho de forma a conseguir utilizar os tendões para o estabilizar e, caso essa técnica não resultasse, teria de ou colocar uma prótese ou fazer uma artródese parcial (que é a fusão do punho, ligação do rádio aos carpos), tendo a depoente concordado com esta segunda sugestão, por ser a única que existia para estabilizar o punho. Como resultado da cirurgia efectuada pelo denunciado a depoente foi obrigada a realizar uma das técnicas que já tinha recusado para a mão direita, mas que neste caso mostrou-se necessária para estabilizar o pulso esquerdo. Como sequelas a depoente tem a apreensão de objectos diminuída, todas as funções da mão encontram-se limitadas (abertura dos dedos, flexão do 2º, 3º, 4º e 5 tendão) e devido ao material (grampo que está a segurar os carpos) sente como se tivesse uma resistência dos movimentos, que é incomodativa. Desde o dia em que foi operada pelo denunciado que a depoente não regressou ao trabalho, devido à impossibilidade de realizar algumas técnicas. Desde essa data que a depoente é obrigada a utilizar mais frequentemente a mão direita, o que antes evitava, que lhe provoca um desgaste articular superior de que o que se verificava anteriormente. Anteriormente a depoente utilizava a mão esquerda no meio social de forma a evitar constrangimentos com a mão direita, a fim de não mostrar alterações na anatomia da mão direita, sendo que actualmente é obrigada a utilizar a mão que não utilizava anteriormente. Está esteticamente com mais alterações anatómicas do que a mão direita, estando permanentemente a ocultar a mão esquerda.
Foi ouvida DD, irmã da assistente, que trabalha em regime exclusivo no centro Hospitalar do Porto, nunca tendo trabalhado na clínica do denunciado. Teve conhecimento dos factos através da sua irmã/queixosa que também é enfermeira de profissão e do acompanhamento que lhe prestou, sabendo que desde o ano de 2011 andava a ser seguida pelo Dr AA em consultas e tratamentos alternativos (PRP) identificado no ponto 15 da queixa-crime a fls. 4, nunca sendo submetida a alguma cirurgia óssea por recusa própria. Que estes tratamentos tiveram início em 2011 e duraram até 2016, que os tratamentos surtiram efeito pois aliviavam a dor nas articulações mas teve uma ruptura do tendão do quarto dedo da mão esquerda confirmado através de uma ressonância magnética quando estava em actividade profissional em meados de Setembro de 2016 e quatro dias antes da cirurgia tendinosa a sua irmã notou que não conseguia fazer a extensão do 3º dedo da mão esquerda e em Outubro de 2016 (10/10/2016 foi realizada a "cirurgia tendinosa") e aí em face à situação da queixosa foi a uma consulta por não conseguir elevar o terceiro dedo, foi proposta pelo denunciado na altura uma cirurgia tendinosa à queixosa que deu o seu consentimento à cirurgia tendinosa e não cirurgia óssea e que foi esta que foi realizada pelo denunciado e sua equipa e sem conhecimento prévio nem autorização da sua irmã/queixosa. Que no próprio dia da cirurgia 10/10/2016, pelas 8 horas já a depoente se encontrava presente junto da sua irmã no internamento no Hospital 1 ... em que a sua irmã referiu à depoente que não conseguia fazer a extensão do 2º, 3º 4 e 5º dedo da mão esquerda e perante a avaliação do Dr. AA à frente da depoente este confirmou que tinha ruptura dos quatro tendões, 2º, 3º 4º e 5º tendão dos dedos da mão esquerda. Que perante o acrescentar desta ruptura dos tendões, o denunciado perante tal facto novo, não fez qualquer alteração ao procedimento cirúrgico proposto inicialmente, ou seja referiu sempre que seria a cirurgia tendinosa quando na verdade realizou uma cirurgia óssea, ou seja, uma amputação da extremidade distal do cúbito. Que nem no pós-operatório teve conhecimento da natureza da cirurgia realizada, a única situação que lhe foi transmitida e no pós-operatório "foi complicada a cirurgia, que tinha acontecido uma alteração cirúrgica e que tiveram que realizar uma tenoplastia". Que a queixosa andou em fisioterapia durante cerca de cinco meses, mas antes de realizar a fisioterapia o denunciado deu indicações à queixosa para pedir à fisioterapeuta para passar no gabinete do denunciado para este lhe dar as devidas orientações. Que as sessões de fisioterapia também eram feitas na clínica do denunciado. Que o denunciado deu indicação de que para o caso da sua irmã que a fisioterapeuta indicada seria a GG (desconhece mais identificação). Que soube através da sua irmã que o denunciado tinha dado indicação à fisioterapeuta para não mobilizar o punho esquerdo. Que durante as sessões com a fisioterapeuta a sua irmã questionou a mesma de quais as indicações médicas dadas pelo Dr. AA, onde esta transmitiu que "não poderia mobilizar o punho" tendo a sua irmã questionado o porquê dessa indicação médica, foi quando ficou a saber pela fisioterapeuta que não poderia ser feita a tal mobilização dada a fragilidade do punho. Que durante o tratamento a sua irmã notou um abaulamento que é uma concavidade do punho notou um desvio mais acentuado do punho. Que face a tal situação, a sua irmã questionou a fisioterapeuta do porquê do sucedido e de estar a apresentar o punho daquela forma, a fisioterapeuta não lhe soube responder e após estar na posse de tal informação a queixosa deu conhecimento de tal à depoente porque ficou com dúvida do que estava a acontecer. Que em conversa com a depoente esta aconselhou a sua irmã a marcar nova consulta com o Dr. AA para este explicar o que estaria a acontecer. Que a consulta foi marcada, mas que a depoente não se encontrava presente. Que a sua irmã questionou se lhe tinham removido o carpo, ele negou e que só fez a tenoplastia e nunca a cirurgia óssea. Que ao fim de cinco meses a sua irmã não apresentava melhorias, esteve sempre de baixa médica por não conseguir trabalhar por não conseguir mover ou seja fazer a extensão dos dedos e tinha um desvio acentuado do punho. Que a sua irmã sempre confiou no denunciado e em face à não melhoria e passados cinco meses o denunciado informou da possibilidade de uma segunda cirurgia na tentativa da melhoria da extensão dos dedos, alteração no tendão extensor, mas sem garantias de melhoras. Que a sua irmã na altura não deu parecer na altura e após conversa com a depoente adiaram a cirurgia por surgirem dúvidas e essa possibilidade foi adiada. Que em Abril de 2017 a sua irmã em face ao abaulamento e ao desvio acentuado do punho e sem apresentar melhoras visíveis, resolveu obter outro parecer médico junto do Dr. CC, também médico ortopedista. Que a depoente não acompanhou a sua irmã na primeira consulta pois nunca imaginava, nem foi colocada a hipótese do sucedido, de uma cirurgia não consentida pela queixosa por depositar total confiança no denunciado. Que nessa primeira consulta foi feita um exame de nome fluoroscopia pelo médico no qual foi visualizado que a sua irmã tinha uma amputação da extremidade distal do cúbito. A sua irmã ficou abalada, revoltada, frustrada e sem saber o que fazer. Que a depoente teve conhecimento através da sua irmã a seguir à consulta e algo desnorteada sem saber o que fazer e em busca de soluções possíveis para tentar achar uma solução. Que falaram sobre o assunto e resolveram marcar uma segunda consulta com o Dr. CC, em que nesta consulta a depoente esteve presente e em face ao caso em apreço o Dr. CC sugeriu a possibilidade de uma utilização de tendões que ajudasse na extensão dos dedos, que a cirurgia proposta seria uma artródese do punho, que a sua irmã voltou a questionar esta solução pelo facto de ser esta a única solução cirúrgica possível para resolver o seu problema; foi debatida a possibilidade de utilizar tendões que ajudassem na extensão dos dedos. Que a artródese era uma hipótese cirúrgica remota pois, lhe daria limitação física, daí a possibilidade de recorrer a tendões. Foi ainda informada pelo Dr. CC que durante a cirurgia caso não fosse possível usar os tendões teria que fazer a artródese que acabou por se realizar. Que a sua irmã continua sem trabalhar, está de baixa clínica e que para além dos danos físicos causados encontra-se com danos emocionais pois era uma pessoa activa, independente e autónoma, gostava de exercer a sua profissão (enfermeira no serviço de ortopedia) e neste momento sente-se limitada, pois até nas suas actividades diárias não consegue fazer coisas banais e básicas como apertar um botão, conduzir, partir a comida, agarrar um copo, etc. pois não consegue fazer a rotação do punho esquerdo e pressão dos dedos e em que a própria mobilidade dos dedos é extremamente limitada.
Foi ouvida GG, Fisioterapeuta, que disse que é fisioterapeuta na Clínica do Dr. AA há cerca de doze anos. Que acompanhou a paciente BB desde a cirurgia (para recuperar o músculo extensor dos dedos) a que foi submetida, mas que de momento não consegue precisar data em concreto uma vez que se encontra de licença de maternidade e não teve como consultar o processo. Que na altura foi indicada pelo denunciado para proceder à reabilitação pós cirúrgicos da paciente BB; que ao que se recorda, a paciente fez uma rotura espontânea de um tendão do antebraço e a sua função era a reabilitação funcional da mão. Que o caso da paciente em causa era específico, que teve indicação prévia pelo denunciado uma vez que tinha sido submetida a um tipo de cirurgia que não recorda o nome, mas que teve orientação quanto aos procedimentos de reabilitação como por exemplo não podia fazer determinados movimentos com o punho. Que não consegue concretizar o tempo que acompanhou a paciente BB e que por último recorda que teve evolução, já fazia algum movimento activo com os dedos. Que como já passou algum tempo não consegue recordar-se em concreto do caso apenas recorda que houve uma interrupção da parte da paciente ainda no período de reabilitação em que a depoente a acompanhou, mas que desconhece o motivo. Que a paciente durante o tratamento mostrava alguma ansiedade e por diversas vezes questionava a depoente sobre a reabilitação e se dúvidas surgissem a depoente falava com o professor AA. Que não recorda a data em que a paciente BB deixou de recorrer aos seus serviços.
Foi ouvida EE, progenitora da queixosa, que disse que em Setembro de 2016 a BB, que vive com a depoente, apercebeu-se que não levantava um dedo da mão esquerda. Que acompanhou a BB a uma consulta com o Dr. AA, onde lhe foi diagnosticada ruptura do tendão do dedo da mão esquerda, que ainda transmitiu que teria de fazer uma cirurgia ao tendão e não lhe foi proposta qualquer cirurgia óssea. Que acompanhou a filha novamente a uma consulta com o Dr. AA quatro dias antes da cirurgia porque a sua filha tinha outro dedo da mão esquerda que não levantava; e nessa consulta foi-lhe diagnosticada outra ruptura noutro dedo (não sabe especificar qual). Que um dia antes da cirurgia do dia 10/10/2016 a sua filha deparou-se com mais dois dedos da mão esquerda que não levantava, ou seja, tinha quatro dedos da mão esquerda que não levantava porque estavam com uma ruptura. Que não consegue atribuir a causa de tal ruptura. Que na data da cirurgia - 10/10/2016 - efectuada no Hospital 1 ... pelo Dr. AA, viu a BB sair da cirurgia, mas não falaram por estar ainda sedada. No dia seguinte à cirurgia após a visita médica do Dr. AA, a sua filha BB telefonou à depoente, estava angustiada, triste e preocupada porque o Dr. AA transmitiu-lhe que tinha sido necessário efectuar uma cirurgia diferente daquela que tinha sido falada à queixosa e por ela consentida. Que não sabe caracterizar o tipo de cirurgia apenas sabe que foi diferente da inicial e não consentida pela sua filha. Que a BB andou em sessões de fisioterapia na Clínica ... e após cinco meses, numa consulta com o Dr. AA, este propôs-lhe nova cirurgia porque a BB continuava "a não levantar os dedos". A sua filha confrontada com esta possibilidade de nova cirurgia, decidiu pedir uma segunda opinião a outro médico da mão, Dr. CC em Coimbra. Que a depoente voltou a acompanhar a BB a esta consulta, mas não presencialmente tendo aguardado na sala de espera do consultório. Que quando a BB saiu da consulta do Dr. CC, saiu revoltada, desesperada, angustiada, chateada e sem saber o que fazer porque nesta consulta o Dr. CC fez-lhe um exame na própria consulta em que verificou que o Dr. AA na cirurgia que lhe tinha efectuado a 10/10/2016, lhe tinha cortado a extremidade do cúbito quando era apenas para reparar os tendões. Refere que desde 2011 que acompanhou a sua filha com o Dr. AA e esta sempre recusou cirurgias ósseas quando lhe propunha tanto que optou por tratamentos alternativos como o PRP (plasma rico em plaquetas) no consultório e com o Dr. AA. Que desde a consulta em Coimbra com o Dr. CC a BB deixou de ser seguida pelo Dr. AA e nunca voltou a frequentar as consultas e a ir à Clínica por quebra de confiança. Que passou a ir a Coimbra a uma segunda consulta (não sabe datas) mas desta vez quem acompanhou a BB foi a irmã DD onde foram discutidas as alternativas cirúrgicas para a situação da BB visto que tinha um desvio acentuado na mão esquerda provocado pelo corte do cúbito na cirurgia efectuada pelo Dr. AA e sem consentimento por parte da BB e para tentar levantar os dedos. Que como lhe foi cortado o cúbito, o Dr. CC teve de fixar o punho para corrigir e evitar o desvio que estava a ter, e que actualmente está fixo o punho, mas que tem limitação quase total dos dedos da mão esquerda pois não aperta uma camisa, os cordões, não parte a carne, não conduz por não ter força na mão (não dobra). Que a BB se sente revoltada e inconformada com todas estas limitações provocadas pelo corte do cúbito efectuado pelo Dr. AA, sem consentimento, que obrigou a fixar o punho posteriormente com o Dr. CC para a mão não continuar a desviar. Que a BB está em casa, de baixa médica e que desde então deixou de exercer a actividade que tanto gosta, a de ser enfermeira, há dois anos.
Foi ouvido, HH, Médico Ortopedista que disse que tem consultório em Espinho e não tem qualquer ligação profissional com o denunciado. Que manteve três contactos com a queixosa: o primeiro contacto no seu consultório em Espinho em 14/09/2018 com a queixosa através de uma consulta para avaliação do dano corporal/estado clínico à data. O segundo em 25/09/2018 teve uma segunda consulta com a queixosa no Hospital 2 ... na Póvoa de Varzim onde também exerce a sua profissão e por último em 05/11/2018 na Policlínica ... onde tem o consultório. Que a paciente tem historial de artrite destrutiva do punho esquerdo como resultado do Lupus EritematosoDisseminado - LED e que esta doença terá provocado a ruptura do tendão do 4º dedo da mão esquerda como consequência de acidente profissional, relatado pela paciente. Que o denunciado na cirurgia fez uma técnica de Darrach, com remoção da extremidade inferior do cúbito e que não estava prevista no consentimento informado. Da avaliação que faz ao caso em concreto esta cirurgia agravou a situação da artrose do punho e que em seu entender deveria ter associado uma técnica de osteotomia de encurtamento do rádio ou então recepção ou remoção da primeira fila do carpo (tirar os quatro ossos da primeira fila cárpica). Como não melhorasse do punho e mão operada a paciente foi procurar um especialista "da mão”, o Dr. CC que, após avaliação lhe propôs e realizou uma artródese que é uma fusão óssea no punho, fazendo conjuntamente um transplante do curto flexor dos dedos para os tendões extensores, tentando criar força extensora dos dedos sem grande prejuízo da força flexora (encerramento) da mão. Recuperou com tenolises dos flexores algum tempo mais tarde. Isto sucedeu após sete/oito meses da cirurgia efectuada pelo Dr. AA. Refere ainda que anos mais tarde viria por certo a ser necessário a artródese do punho, pela evolução natural da doença de que padece - Lupus Eritematoso Dissiminado LED - mas que foi antecipado por agravamento criado pela primeira cirurgia feita em 10/10/2016 pelo denunciado. Que se compromete a enviar via e-mail o relatório pericial em processo de responsabilidade civil e elaborado em 20/09/2018 referente à paciente onde explica a situação supra descrita. Refere que pode haver intercorrências, ou falhas técnicas a nível de actos médico-cirúrgicos decorrentes da profissão, algumas solucionáveis no ato pré-operatório.No caso em concreto denota alguma incoerência entre o previsto no consentimento informado e o descrito no documento de alta dois dias após a cirurgia. Que da última consulta que teve e foi recente (05/11/2018) a paciente não apresenta melhoras da mão, tem profundas alterações das mobilidades digitais provavelmente por aderências dos flexores (não permite o encerramento dos dedos) e se nada for feito em termos cirúrgicos (tenólises dos flexores) esta situação clínica "não vai ter melhorias". (sublinhado nosso).
Foi ouvido FF, médico que disse ter sido o 1º ajudante da cirurgia realizada com a equipa médica ali referida, tendo como cirurgião o Profº AA. Que deseja esclarecer quanto ao ponto 72 que existe uma clara contradição relativamente ao ponto 73 uma vez que na verdade foi realizada uma pequena ressecção da extremidade distal do cúbito e que foi feita por revelar conflito com os tendões extensores dos dedos e não foi feita uma "osteotomia do segmento distal do cúbito". Que confrontado com o Doc. 6, junto aos autos a fls. 29 verso refere-se ao punho esquerdo em que é visível a exérese (para retirar o conflito ósseo com os tendões lesados) da extremidade distal do cúbito cfr. referido no ponto anterior. Que durante a cirurgia foram confrontados com uma situação de conflito ósseo entre a extremidade distal do cúbito e os tendões extensores lesionados e por esse motivo foi ponderada e executada a exérese/ corte da referida saliência óssea para eliminar o conflito e possível nova rotura dos tendões. Que só participou na cirurgia e na visita médica no dia seguinte 11/10/2016 e assistiu à informação prestada pelo Dr. AA à paciente com informação do que foi feito e da razão porque o fez. Que não recorda a reacção da paciente face à informação prestada. Que o procedimento adoptado na cirurgia, nada tem a ver com a recusa feita pela paciente nas cirurgias anteriormente propostas pelo professor Dr. AA, como a artródese/ressecção da fileira proximal do carpo.
Em sede de inquérito o arguido optou por, num primeiro momento, não prestar declarações, vindo a fazê-lo posteriormente, referindo, confrontado com o relatório pericial de folhas 340 a 346, ser importante enquadrar o caso em apreço. Por um lado, a queixosa padece da doença de Lupus, e apesar de ser ainda jovem, a destruição articular corresponde a uma pessoa de muita idade. Por outro lado, trata-se de uma enfermeira de ortopedia, que tem muita informação sobre os procedimentos cirúrgicos, e que queria saber tudo ao pormenor, e consequentemente ficou ao corrente da intervenção que iria ser realizada. No tocante ao relatório em apreço, está globalmente de acordo, mas impõe-se tecer algumas considerações. Relativamente à técnica Sauvé-Kapandji, não constituiu alternativa, porque a queixosa antecipadamente recusou toda e qualquer artródese, e, por conseguinte, tal técnica implica uma fixação-artródese rádio cubital distal. O que ficou acordado foi que só removeria o osso indispensável à reparação dos tendões. Durante a cirurgia é que surgiu a necessidade de usar a técnica de Darrach, embora previamente tivesse ficado assente que tinha permissão para remover todas as espículas e fragmentos ósseos que estivessem em conflito com a finalidade da cirurgia, o que incluía a técnica de Darrach. Se não tivesse usado tal técnica, a transferência tendinosa forçosamente falhava, porque mantendo a extremidade do cúbito no estado em que se encontrava, cortaria os tendões transferidos. Ou seja, o mecanismo de lesão manter-se-ia, e voltaria a cortar a transferência tendinosa, pelo que a cirurgia teria sido impossível e inútil (denominado “Conflito na Zona de reparação”). Declarou ainda que existem três tipos de relatórios:
- Administrativo - só se escreve o procedimento cirúrgico principal;
- Financeiro - preenchimento de códigos pré-definidos;
- Descritivo – relatório detalhado da cirurgia, onde se descreve pormenorizadamente, tudo o que foi feito. Este último só se faz quando é solicitado, o que não aconteceu no caso em apreço. Assim, não houve qualquer intenção de ocultar a técnica de Darrach. Aliás, a primeira coisa que disse à queixosa, quando a visitou no pós-operatório, acompanhado do Dr. FF, foi informá-la que tinha sido necessário fazer a exérese da extremidade distal do cúbito (Darrach). E tanto assim foi, que a mãe da queixosa, no seu depoimento a folhas 154 - 1º parágrafo diz isso mesmo, ao contrário do que a mesma queixosa alega. Obviamente que nunca podia esconder que tinha usado tal técnica, pois uma simples radiografia revelaria o procedimento. Relativamente ao item 25 de folhas 346, esclarece que no processo clínico apenas tem de constar o procedimento principal da cirurgia, e não os detalhes das técnicas utilizadas. No tocante ao relatório pericial de folhas 373 a 388, está globalmente de acordo com as conclusões, apenas corrigindo a terminologia de amputação do cúbito, por exérese da extremidade distal do cúbito.
Do relatório da Perícia Médico-Legal – Outros Exames, Processo nº 2019/002058/PT-C- Relatório nº 3 - Data do exame 21/08/2020, junto aos autos a fls. 373 e sgs. resultaram as seguintes conclusões, assentando-se em que a extremidade distal do cúbito esquerdo da queixosa se encontra amputada:
“constata-se a ausência da extremidade distal do cúbito esquerdo”) (…) “No entanto tal poderá ser efectuado como gesto cirúrgico associado ao procedimento de acordo com as técnicas/opções cirúrgicas aplicadas pelo cirurgião”.
Sobre o recurso à fisioterapia ser recomendável, “Por norma, e de acordo com a orientação do cirurgião responsável, sim”.
Sobre se a técnica Darrash (extracção da extremidade do cúbito) é recomendada em pacientes jovens e activos? “(…) não se encontra contra indicada em paciente jovens e activos”.
Sobre as consequências da utilização da técnica Darrash ao nível da mobilização do punho, mão e dedos, (…) “Dor, limitação funcional do punho e mão, instabilidade do punho e conflito rádio-cubital distal.
Sobre se, sendo utilizada a técnica Darrash (osteotomia do segmento distal do cúbito) é adequado proceder à estabilização do segmento proximal do úmero/ulna, “(…) não é um gesto cirúrgico obrigatório na técnica de Darrash”.
Sobre o facto de a queixosa apresentar desgaste do rádio compatível com a não estabilização desse segmento, “De acordo com os exames imagiológicos presentes a examinada apresenta um quadro clínico compatível com uma artropatia destrutiva do punho/mão de etiologia inflamatória relacionável com a Doença Natural que é portadora (Lúpus eritematoso disseminado).
Conclui-se que, “No parecer do perito as sequelas que a examinada é portadora ao nível do membro superior esquerdo e relacionáveis com o evento descrito, não se enquadram numa situação de afectação grave da capacidade de trabalho geral e profissional”.
Do relatório pericial da Consulta Técnico-científica do “Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP”, junto a fls. 340 e sgs., resulta que “Atento o quadro clínico da ofendida, a reparação do 2°, 3° 4° e 5° tendões da mão esquerda através do procedimento cirúrgico (tenoplastia por enxerto de tendão da mão 1) que se traduziu na «transferência do extensor radial do carpo para o 2°,3, 4° e 5° dedos é uma das opções terapêuticas nestescasos onde, dada a má qualidade do tecido tendinoso na patologia em questão, é geralmente muito difícil realizar uma sutura directa do tendão afectado. Assim são frequentes divisões dos tendões vizinhos ou transferências livres como foi o caso. Resulta também que o recurso à técnica de Darrach, considerando, designadamente, a sua idade e sendo a causa das rupturas espontâneas, como aconteceu com a autora, deve ser identificada e reparada, a fim de evitar futuras rupturas. Embora sem grandes estudos observacionais na literatura, efectivamente, múltiplas séries de doentes têm demonstrado esse efeito profiláctico. Assim, antes de realizar a plastia, aconselha a literatura que a sinovite e as proeminências ósseas, nomeadamente procidência da cabeça do cúbito, ou espículas ósseas, sejam removidas. Neste contexto, a cabeça do cúbito poderá ser regularizada ou mesmo removida, mediante um procedimento de Darrach, ficando a decisão dependente das condições anatómicas encontradas intra-operatoriamente. Sobre qual deveria ter sido o procedimento cirúrgico correto e com o intuito de tratar a articulação radiocubital distal no contexto de artrite reumatóide, bem como na profilaxia de rupturas tendinosas no futuro, existem duas técnicas descritas quando a artrodese ou artroplastia não estão em cima da mesa. A Técnica de Darrach e a Técnica de Sauvé-Kapandji, implicando esta última uma osteotomia de ressecção parcial do cúbito, deixando-se a extremidade distal do cúbito aparafusada ao rádio. A opção de uma pela outra é feita com base na experiência do cirurgião e opção do doente, havendo na literatura uma tendência para a utilização da Técnica de Sauvé-Kapandji em doentes mais jovens. Sobre se não fosse utilizada a técnica de "Darrach", a ofendida não tinha de ser submetida a nova cirurgia realizada em 8 de maio de 2017, a resposta foi que, tendo em conta a doença evoluída que a ofendida apresentava, seria de prever no futuro outros procedimentos para além dos efectuados. De facto, na literatura os procedimentos de "Darrach" tendem a ser realizados em doentes com doença mais evoluída, sendo essa a razão pela qual encontramos uma maior taxa de procedimentos cirúrgicos secundários a esta técnica. Dai, ser importante informar os doentes da possibilidade de virem a precisar de outros procedimentos cirúrgicos, nomeadamente, a nível das articulações metacarpofalangeas e interfalângeas proximais. Sobre se a realização de osteotomia e ressecção da extremidade distal do cúbito era necessária para evitar um perigo para a vida, corpo ou saúde da ofendida foi dito que em nada tem a ver com a vida, corpo ou saúde da ofendida mas sim com a tentativa de proteger a plastia. Se analisarmos o relatório do Institut de La Main o aparelho extensor dos dedos está bem preservado”. Esta a prova do inquérito.
Em sede de instrução foi mandado elaborar novo parecer ao INML sobre as questões suscitadas no RAI, junto aos autos a fls. 501 e seguintes onde, entre outras conclusões, se diz:
Sobre se “Os exames de fls. 18 e 19, permitiam ao arguido, decidir, no pré-operatório, se o procedimento Darrach era uma das soluções possíveis? Resposta: perante as alterações destrutivas do punho seria de admitir esse ou outro procedimento (Sauve-Kapandji ou uma artrodese de punho) para assegurar melhor tratamento da instabilidade radiocubital distal e aliviar as queixas.
Em caso de resposta afirmativa a pergunta anterior, o arguido deveria ter decidido no pré-operatório se pretendia realizar o procedimento Darrach isolado ou combinado com o procedimento de estabilização do cubito? Resposta: qualquer um destes procedimentos deveria estar na lista de opções terapêuticas. O procedimento Darrach isolado é contra indicado em pacientes com evidência de translação cubital dos carpos? Resposta: controverso, dada a falta de evidência clínica na literatura favorecendo a superioridade do Darrach sobre Sauve-Kapandji ou vice-versa. É difícil atribuir um nexo causalidade directo com a cirurgia, mas sim com a evolução da deformidade. Após a cirurgia realizada em 10.10.2016 o aparelho extensor da mão esquerda da assistente ficou bem preservado? Resposta: não temos dados para pensar o contrário. A última ecografia mostra integridade da reparação.
O problema biológico permanece podendo levar a novas rupturas.
Sobre os ilícitos em causa:
Dispõe o artigo 150º do Código Penal:
“1 – As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física. 2 – As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal”.
Por seu turno, no artigo 156º do mesmo diploma legal refere-se: “1 – As pessoas indicadas no artigo 150 que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente são punidas com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 2 – O facto não é punível quando o consentimento: a) só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde; ou b) tiver sido dado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina como meio para evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde; e não se verificarem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado. 3 – Se, por negligência, o agente representar falsamente os pressupostos do consentimento, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias. 4 – O procedimento criminal depende de queixa”.
Finalmente, preceitua o artigo 157º do Código Penal, que: “Para efeito do disposto no número anterior, o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar dano à saúde física ou psíquica”.
São indícios suficientes aqueles que relacionados e conjugados, persuadem o Juiz da culpabilidade do arguido, fazendo antever, com razoável grau de probabilidade a sua ulterior condenação.
A decisão de pronúncia deve, pois, ser precedida por um juízo de prognose, devendo apenas ser remetidos para julgamento os casos em que seja manifesta uma futura decisão condenatória. É que,” tendo em conta as gravosas consequências da simples sujeição de alguém a julgamento, exige-se que a acusação e a pronúncia assentem numa alta probabilidade de futura condenação do arguido” - AC da RP, de 20/10/93, CJ, T. IV, pág., 261.
A noção de “indícios suficientes” na jurisprudência e doutrina actuais mantém-se a mesma, como exemplifica o AC da RC, datado de 23/5/2018, nº 80/16.7GBFVN.C1, onde se diz, “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento. O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no nº 2 do artº 283 do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. Os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
No mesmo sentido o AC da RP, datado de 7/12/2016, nº 866/14.7PDVNG.P1, que refere, “Com vista ao despacho de pronúncia a avaliação da prova, pelo juiz de instrução, é feita de forma indirecta, sem imediação, sem oralidade, sem concentração e sem contraditório, tendo por base um texto escrito. A avaliação do seu valor probatório não conduz, por isso, ao mesmo grau de certeza que se adquire no julgamento. A avaliação da suficiência dos indícios que o juiz de instrução tem de fazer no momento dadecisão instrutória da pronúncia, exige somente que conclua ser maior a probabilidade de condenação do que de absolvição. Existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação (teoria da probabilidade dominante)”.
No AC da RC, nº 80/16.7GBFVN.C1, datado de 23-05-2018, no site da DGSI diz-se, “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento. O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no nº 2 do artº 283 do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação”. No mesmo sentido e no mesmo site, o AC da RG, datado de 5/7/2010, onde se diz que os indícios devem ser “precisos, graves e concordantes” e o AC do TC nº 439/02, de 23/10/2002, que fala na exigência de um juízo positivo sobre a efectiva possibilidade de condenação.
É referido a fls. 346, in fine, que o procedimento de Darrach,“bem como a sua razão, ter ficado documentado no processo clinico”. Também é dito no parecer junto em instrução que pode haver “Uma maior tendência para piores resultados no Darrach”. Porém, mesmo considerando o referido, não está demonstrado que fosse responsabilidade do arguido a inserção de tal informação no processo clínico, sendo que o facto de um tipo de intervenção apresentar tendência para piores resultados, nada mais é do que um dado estatístico, e não integra, de todo, a previsão de um crime.
Queremos com isto dizer que durante todo o processo de doença da assistente podem ter ocorrido irregularidades, falta de algum esclarecimento, até falta de comunicação, mas da prova testemunhal colhida não resulta demonstrado que o arguido não tivesse procedido como devia, sendo que é a própria mãe da assistente que não corrobora o seu depoimento, referindo a testemunha FF, médico, que o arguido, na visita que fez à assistente no dia seguinte, informou aquela do que foi feito e da razão por que o fez. Como se refere no despacho sindicado, “ora, este depoimento que atesta que o arguido informou a assistente do que se tinha passado na cirurgia, é corroborado pela mãe da assistente, quando declarou que “no dia seguinte à cirurgia após a visita médica do Dr. AA, a sua filha transmitiu-lhe que tinha sido necessário efectuar uma cirurgia diferente daquela que tinha sido falado à queixosa e por ela consentida”.
Quanto ao procedimento em si, subsumindo a prova dos autos aos tipos legais em causa, não podemos deixar de concluir que não resultam indícios suficientes de que o arguido tenha violado as leges artis,nem que não houvesse anterior consentimento da assistente para remoção de todas as espículas e fragmentos ósseos que estivessem em conflito com a finalidade da cirurgia, o que incluía a técnica de Darrach.
Apelamos aqui ao artigo 127 do CPP e às regras da experiência, pois considerando a formação profissional da assistente, tinha conhecimentos para saber que tal podia acontecer.
Pelas mesmas regras da experiência e aceitando contradições próprias dos actos da vida, atento o facto de um médico querer sempre preservar o seu bom nome e considerando os conhecimentos diferenciados da assistente, não vemos que o arguido tivesse qualquer interesse em ocultar o que quer que fosse à assistente, quer antes, quer depois do procedimento (como relembra nas suas declarações, o que foi feito era visível num simples raio X), pois que o único interesse do arguido, para bem da doente e para bem dele, atenta a preocupação do seu bom nome é que tudo corresse bem.
Por outro lado, quanto ao consentimento, este não pode entender-se apenas para operar, atentas as vicissitudes que podem ocorrer no decurso da operação que não são conhecidas antes, sendo que uma cirurgia pode ser mais invasiva, porque tal é necessário, surgindo tal necessidade apenas no bloco, sendo tal realidade tutelada pela lei.
Foi referido nas conclusões da mandatária da assistente, em sede de debate, a propósito de já ser visível o conflito ósseo que, ou o arguido viu e não preparou bem a cirurgia, ou sabia e omitiu tal facto à assistente porque sabia que a assistente não ia autorizar a cirurgia e “premeditadamente” não a esclareceu. Dizemos nós, que interesse tinha o arguido em assim proceder? Terá sempre querido fazer o melhor, quer pela assistente, quer por ele próprio, pois um médico pode ver a sua carreira arruinada com um erro e essa preocupação está sempre latente. Tudo o resto tem a ver com o facto de a medicina não ser uma ciência exacta.
Por outro lado, não podemos esquecer que a assistente padece de uma doença crónica autoimune que provoca destruição articular.
Sendo enfermeira de ortopedia, com conhecimentos privilegiados na matéria e que gostava de conhecer tudo ao pormenor, sendo que era acompanhada pelo arguido há longos anos (como está demonstrado pela prova testemunhal) faz concluir que o arguido tinha que ter ainda mais cuidado quando procedeu à intervenção em causa. Em nenhum dos pareceres médicos é referido que o procedimento escolhido estava excluído, sendo que o parecer junto na instrução não dá nenhum tipo de suporte ao alegado no RAI.
Quanto ao valor probatório dos pareceres médicos juntos, segundo o artº 388 do Código Civil, a prova pericial “tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.
No que toca ao valor abstracto da perícia, como se refere no AC. da RG, datado de 19/2/2015, nº conv. 165/10.3TBMUR-A. G1, in www.dgsi.pt, “(…) o grau de (…) que o juízo técnico pericial atribui aos factos em crise não é uma certeza científica. (…) é uma plausibilidade, uma presumível realidade do facto objecto de prova; é uma conclusão cientificamente relevante de marcado pendor favorável à existência do facto. O grau (…) obtido naquele exame técnico-científico, coadjuvado pelas regras da experiência e pela ausência absoluta de referências probatórias em sentido contrário, ou seja, ausência de contraprova, pode ser suficiente à formação de um juízo crítico judicial favorável à demonstração do facto”. Segundo Manuel de Andrade e Alberto dos Reis, citados no Acórdão que antecede, a perícia consiste num meio de prova que se traduz na “percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas”, sendo certo que, como diz o segundo dos autores citados, “Claro que os fundamentos invocados pelos peritos para justificar as suas conclusões e os trâmites que eles houverem seguido no desempenho do seu cargo estão sujeitos à censura do juiz, que formará a sua convicção segundo a competência ou incompetência efectiva do perito e a seriedade, diligência e rectidão que ele revelar no desempenho do encargo, ou segundo os defeitos que o laudo apresentar. Mas, por que todo o arbitramento pressupõe a insuficiência de conhecimentos do magistrado, é vão imaginar-se que este se substitua inteiramente ao perito para refazer, por si, o trabalho analítico e objectivo para o qual não dispõe de meios subjectivos. Daí que muitas vezes o litígio é decidido, substancialmente, pelo parecer do perito e se diga também, como no aresto se refere, que “a máxima de que o magistrado é o perito dos peritos, não passa, a maior parte das vezes, de máxima abstracta. Por mais que se afirme a hegemonia da função jurisdicional em confronto com a função técnica e se queira defender o princípio da livre apreciação da prova, não é raro que o laudo pericial desempenhe papel absorvente”.
Acentuamos aqui, que o direito penal, para segurança e garantia de todos nós, só deve intervir quando nenhum outro ramo possa dirimir o conflito, sendo de natureza subsidiária, intervindo sempre em “ultima ratio”.
Como refere Souto Moura, (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, nº 4, pág. 579), “é essencial que o direito penal (...) seja um direito penal da lei. Mas não é menos importante que o direito penal seja um direito penal do facto e um direito penal da culpa”.
Neste seguimento, e uma vez que na sociedade a pessoa humana deve ser o valor fundamental, prevalecendo sempre sobre o interesse punitivo do Estado, só deve ser sujeito a julgamento alguém que, num juízo de prognose, ultrapasse a dúvida razoável, podendo-se antever com segurança uma decisão de condenação.
A este propósito refere também Claus Roxin(“Problemas Fundamentais do Direito Penal”, ed. Veja, pag. 28), citado no despacho de arquivamento do procº de instrução nº 390/98, que “o direito penal é de natureza subsidiária. Ou seja: somente se podem punir as lesões dos bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios de direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se. (...) por ser a reacção mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar. Se for utilizada quando bastem outros procedimentos mais suaves para preservar ou reinstaurar a ordem jurídica, carece da legitimidade que lhe advém da necessidade social e a paz jurídica vê-se perturbada pela presença de um exército de pessoas com antecedentes criminais numa medida superior á que pode ser fundamentada pela cominação legal”.
Existindo dúvidas sobre a actuação do arguido, não devem nunca tais dúvidas ser valoradas contra o primeiro, sendo certo que a alta probabilidade contida nos indícios recolhidos, a que atrás se fez referência, deve aferir-se no plano fáctico e não jurídico. E neste plano, “a falta de provas não pode, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova.…tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido econteúdo que se afirme o princípio “in dubio pro reo.” - Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º, 1974, pág. 214. Ou, “à insuficiência da prova, que equivale, no espírito do tribunal, a uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência de determinado facto, deve seguir-se um “Ersatz do non liquet”; dar-se como não provado o facto desfavorável ao arguido. Por outras palavras, é indicado ao juiz que valore a favor do acusado a prova dúbia” – cfr. Cristina Líbano Monteiro, “Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo”, Universidade de Coimbra, (1997), pág. 11.
O arquivamento, nestas situações, é uma imposição daquele princípio que vigora no processo penal português, por força da sua consagração no artº 32, nº 2, da Constituição da República
Portuguesa - “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Sobre a aplicabilidade do princípio na fase de instrução veja-se, entre outros, o AC da RC, datado de 23/05/2018, nº 80/16.7GBFVN.C1, in www.dgsi.pt, “O Juiz de Instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve ter presente na valoração da prova o princípio in dubio pro reo”.
No mesmo sentido, de que este princípio tem aplicação em todas as fases do processo, o AC da RL de 16.11.2009, processo nº 3555/09.TDLSB.L1-5, disponível no mesmo site, em cuja fundamentação se cita, além do mais, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/02, que considerou que “a interpretaçãonormativa dos artºs 286, nº1, 298 e 308, nº1, todos do Código de Processo Penal, que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no artº 32, nº2, da Constituição”.
Citando ainda o Acórdão da RL, datado de 22/5/2003, Proc. 9675/02 9ª Secção, in www.pgdlisboa.pt: “Se o tribunal não logrou ultrapassar a dúvida, fundada em razões adequadas, razoáveis e aceitáveis - não qualquer dúvida absurda, despropositada ou não racional - então, outro caminho não lhe sobrava que não fosse seguir o princípio "in dubio pro reo". Em suma, não obstante os indícios quanto à autoria do crime, certo é que, produzida a prova em julgamento e permanecendo a dúvida razoável sobre tal autoria, não deve o julgador trilhar uma senda temerária, antes devendo optar pela absolvição do arguido”. No mesmo sentido, o AC da RP, datado de 23/6/21, Processo 1496/16.4T9VFR.P1, Referência: 14738344 E, “como atrás dissemos, importa ter sempre presente que a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um ato neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento para além de constituir sempre um “normal” incómodo, por vezes pode-se traduzir num vexame (neste sentido cfr. Acórdão do STJ de 28.06.2006, in www.dgsi.pt)”.
Não se pode, pois, como já se disse, afirmar de modo pleno, com o nível de segurança mínimo exigido nesta fase processual, que o arguido tivesse cometido os crimes em causa.
Quanto á formalidade da presente decisão e desnecessidade de inventariar factos indiciados e não indiciados diremos ainda que:
Dispõe no nº 1 do artº 308 do CPP que se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. Despacho que começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que possa conhecer, nº 3 da citada disposição legal.
Ora, despacho, nos termos da al. b) do nº 1 do artº 97 do CPP, é decisão judicial que conhece de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termos ao processo fora do caso previsto na alínea anterior (alª a)).
Ou seja, a decisão instrutória é um despacho, não é uma sentença, sendo que quanto á decisão instrutória de não pronúncia, trata-se esta sempre de ”uma decisão de conteúdo estritamente processual, na qual o tribunal não conhece do mérito da causa, mas simplesmente da não verificação dos pressupostos necessários para que o processo possa prosseguir para julgamento. (…) Constitui, do ponto de vista formal, uma absolvição da instância, ouseja, uma decisão que não põe termo á causa” – Acórdão do STJ, datado de 18/01/2006, processo nº 3613/05, 3ª secção.
Como decisão interlocutória o seu formalismo está prescrito nos artigos 97/5, 307, 1 e 308/1, do CPP, que exigem a análise da prova, no sentido do apuramento, ou não, de indícios suficientes da prática do facto, sendo que a decisão pode ser feita por remissão (para a acusação ou para o RAI), nos termos definidos pelo artigo 307/1, in fine, sendo que como se refere no Acórdão do STJ de 03/04/91, processo nº 41612, "a lei apenas exige a motivação ou fundamentação, no sentido de permitir ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz", ou ainda como refere Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal, 229-230: "os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido...".
E sendo os artigos 307 e 308 do CPP normas especiais que regulam o formalismo da decisão instrutória, não se verifica qualquer omissão, sendo esses e só esses os pressupostos a que deve obedecer a decisão instrutória, não se justificando a aplicação analógica do nº 2 do artigo 374 do CPP, requisitos da sentença, sendo que a hipótese da remissão acima referida afasta com clareza tal aplicação analógica.
Não se trata, pois, aqui, nesta fase processual, de factos provados ou não provados, indiciados/imputados ou não indiciados/imputados como numa sentença, sob pena de violação, com a pronúncia, do princípio fundamental em que assenta todo o direito penal: da presunção de inocência, pois, como refere Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 356, no comentário a este princípio: "A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim". Trata-se, tão só e apenas nesta fase de, como refere a lei, art. 308º, nº 1 do CPP, "recolha, ou não de indícios", ou seja, de análise da prova.
Por último há que dizer que, remetendo o artigo 308 do CPP para o artigo 283º, nºs 2, 3 e 4 do mesmo diploma, em lado nenhum daquele preceito consta a exigência de indicação de factos indiciados e não indiciados:
3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) Indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
g) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor;
h) A data e assinatura.
Ainda assim e considerando a jurisprudência sobre o assunto, por referência à acusação alternativa que consta do RAI (fls. 452 e sgs., pontos 82 a 115) consideramos indiciados os pontos 82, 85, 86 a 92, 97 a 101, 106 e 107 e não indiciados os demais. Pelas razões enunciadas, determino o oportuno arquivamento dos autos, mantendo o despacho sindicado.
Do mérito do recurso.
O objecto (fundamentos) do recurso afere-se no âmbito das conclusões – artº 412 nº 1 do CPP.
A recorrente insurge-se contra a não pronúncia do arguido AA.
A recorrente integra o conteúdo do recurso com os seguintes argumentos:
a) O arguido tendo em consideração as exigências legais, formação da paciente e resultado dos exames de diagnóstico pré-operatório estava obrigado a informar a assistente sobre a possibilidade de realizar a técnica Darrach e respectivas consequências (conflito ósseo).
b) Incumbia ao arguido solicitar o respectivo consentimento, sobretudo, porque tinha conhecimento da sua recusa da assistente na realização de cirurgias ósseas, como a “artródese” ou a remoção da primeira fileira de carpos e sabendo ainda que a “artródese” era uma das prováveis consequências da realização da osteomomia isolada.
c) Restava ao arguido não realizar a cirurgiaou interrompe-la,permitindo à assistente optar pela realização ou não da técnica “Darrach” e, em caso positivo, isolada ou com mecanismo de estabilização, esclarecendo a mesma das consequências duma e doutra opção.
d) O arguido tinha o dever e a obrigação, de acordo com as “leges artis” de realizar um planeamento pré-operatório de forma a permitir a assistente decidir se iria submeter-se ou não ao procedimento “Darrach”.
e) Tinha ainda obrigatoriamente de determinar se aquele procedimento seria isolado ou combinado com mecanismos de estabilização, face às circunstâncias do caso concreto, ou seja, o arguido estava obrigado pela “leges artis” a determinar se realizaria estabilização cubital, cuja falta de realização através de “artródese” a prova pericial a fls. 503, atribui a “evolução da deformidade, dado não se ter estabilizado o punho mediante uma “artródese”.
f)… Resulta da prova produzida em inquérito e em instrução que o arguido praticou o crime de intervenção e tratamentos médico-cirúrgicos com violação da “leges artis”, p. e p. no artigo 150 do Código Penal e o crime de intervenção e tratamento médico-cirúrgico arbitrário p. e. p. no artigo 156 e 157 do Código Penal, pelo que deveria ter sido pelos mesmos pronunciado.
Como podemos ver a recorrente responsabiliza o arguido pela prática de dois crimes: intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos em desconformidade com as “leges-artis” (artº 150 do CPP) e intervenção e tratamento médico-cirúrgico arbitrário (artº 156/157 do CPP).
Desde já e ainda antes de referenciar os factos indiciados, salientar aspectos gerais atinentes à conduta: acção ou omissão; resultado da conduta médica e relação jurídica de causalidade. Essência e particularidades da causa de justificação: o consentimento informado. A articulação das normais gerais – artºs 38 (consentimento) e 39 (consentimento presumido), ambos, do CP e o disposto no artº 157 do mesmo diploma legal: o dever de esclarecimento para efeito da prestação do consentimento. O tribunal considerou in fine (despacho de pronúncia) meramente indiciados os pontos:
82. Desde 2011 a assistente é seguida na consulta de ortopedia do arguido, tendo sido submetida a tratamento através de plasma rico em plaquetas (PRP) em diversas partes do corpo, os quais foram surtindo efeitos.
85. Através de ressonância magnética realizada em 17.09.2016, prescrita pelo arguido, foi detectada a rotura do tendão extensor do 4º dedo do plano do pulso.
86. Nessa sequência o arguido comunicou à assistente a necessidade de intervenção cirúrgica para reparação do mencionado tendão.
87. No dia 6 de Outubro de 2016 foi ainda diagnosticada pelo arguido rotura do 3º tendão da mão esquerda.
88. No dia 10 de Outubro de 2016, a assistente compareceu pelas 07:00 horas no Hospital 1 ..., no Porto, com vista à preparação para a cirurgia, a realizar nesse mesmo dia.
89. Pelas 08:00 do dia 10.10.2016, o arguido visitou a assistente, na companhia do médico anestesista e do fisioterapeuta, tendo a assistente comunicado a dificuldade em fazer a extensão do 2º, 3º, 4º e 5º dedos da mão esquerda, o que indiciava rotura dos tendões.
90. Apesar de tais relatos, o arguido não prescreveu a realização de qualquer exame complementar de diagnóstico de forma a verificar se, os 2º e 5º dedos apresentavam rotura e, consequentemente deveria manter ou alterar planeamento pré-operatório.
91. Foi o fisioterapeuta que entregou à assistente um formulário de consentimento informado, necessário para a realização da cirurgia,não tendo sido feita qualquer explicação do procedimento médico-cirúrgico.
92. Refira-se o formulário de consentimento informado fazia apenas menção ao procedimento cirúrgico reparação da rotura crónica do extensor da mão esquerda.
97. A assistente teve alta no dia 11.10.1016, constando do relatório “transferência do extensor radial do carpo para o 2º, 3º, e 4ºs dedos”, mediante o procedimento cirúrgico de “tenoplastia por excerto de tendão da mão 1”, não fazendo qualquer referência à técnica “Darrach” utilizada.
98. Nem a factura de pagamento da cirurgia faz qualquer referência ao procedimento “Darrach”, nem a assistente teve conhecimento do procedimento cirúrgico “Darrach” utilizado.
99. Quando retirou a tala, passadas duas semanas, a assistente questionou o arguido da necessidade de realizar raio-X, atento o desvio exacerbado da mão que apresentava.
100. O arguido refutou a realização de raio-X, recomendando, por sua vez, tratamento terapêutico, consulta de fisiatria e sessões de fisioterapia 5 vezes por semana.
101. À medida que o tempo foi passando a assistente notou o abaulamento do punho esquerdo, insistindo com o arguido se o mesmo havia removido a fileira dos carpos, o que o mesmo negou, respondendo ainda que vontade não lhe faltou.
106. A assistente teve necessidade de ser submetida a uma nova intervenção cirúrgica pelo Prof. Dr. CC por forma a corrigir o colo de cisne do 2º, 3º, 4º e 5ºs dedos, transferência tendinosas de flexores para extensores do 4 últimos dedos, dermotenodeses do 2º, 3º, 4º e 5º dedos, correcção do desvio cubital da rádio-cárpica, transferência tendinosa para oponência do polegar para reparar a rotura do extensor do polegar, que surgiu após o procedimento “Darrach”.
107. Actualmente a assistente continua a apresentar diversas limitações, nomeadamente perda da força de preensão, rigidez nos dedos devido à realização da “artródese”, instabilidade cubital, crepitação, dor e incapacidade de flexão dos dedos.
Antes de analisar a matéria de facto indiciada assinalar que o despacho de não pronúncia é obrigatoriamente fundamentado, precisamente com as razões de facto e direito que determinaram a não pronúncia. A decisão tem natureza processual – o tribunal não conhece do mérito – vale dizer o juiz constata que não se verificam os pressupostos necessários para que o processo prossiga para a fase de julgamento – CPP Anotado – 16ª Edição, 2007 – M.L. Maia Gonçalves – Comentário ao artº 307, fls. 654.
Os fundamentos são vários:
a) Inadmissibilidade legal do procedimento criminal;
b) Nulidade, irregularidade ou excepção…
c) Inexistência de factos ou a sua não integração no preceito incriminador; e
d) Insuficiência de prova indiciária.
Dois aspectos importantes que irão marcar o teor deste despacho. Por um lado a insuficiência da prova indiciária. (2) A apreciação da decisão instrutória não se restringe ao texto da decisão recorrida, antes pressupõe a sua análisee o confronto com todo acervo indiciário recolhido em sede de inquérito e instrução, devendo proceder-se à respectiva análise, concatenação e apreciação crítica (7) O conceito de suficiência de indícios não se basta com uma mera possibilidade de condenação. (8) Nesta fase processual é aplicável o “princípio in dúbio pro reo”. – Acórdão do TRL de 20/05/2015, in processo nº 303/13.4PGDL.L1-3 da Desembargadora Maria Elisa Marques.
O depoimento do arguido, embora tardio, não pode ser olvidado.
Por outro lado, mesmo que dos factos indiciários resulte aparente subsunção ao preceito incriminador, o facto não é crime nos termos do artº 156 nº 2 alª b) do CPP. Voltaremos à análise dos pressupostos desta excepção: consentimento presumido e privilégio terapêutico.
Apesar destes factos consubstanciarem indícios, o tribunal a quo não excluiu a possibilidade de terem ocorrido irregularidades – podem ter ocorrido irregularidades, sobretudo deficiência de esclarecimento e falta de comunicação. O tribunal a quo argumenta ainda que a assistente foi informada no dia seguinte sobre a dimensão da intervenção realizada e razão detalhada deste procedimento: tinha sido necessário efectuar uma cirurgia diferente – depoimento da mãe da assistente referindo a testemunha FF. O tribunal também diz que dada a formação da assistente, esta bem sabia que podia ser realizada cirurgia diferente. O despacho expressa ainda outras generalidades como por exemplo: não vemos que o arguido tivesse qualquer interesse em ocultar o que quer que fosse à assistente, quer antes quer depois do procedimento … Este argumento é irrelevante uma vez que só é decisivo averiguar se a conduta do médico (esclarecimento/intervenção) tem probabilidade de integrar algum dos tipos legais acima enunciados…
Ainda sem entrar na questão do consentimento informado, importa assinalar alguns aspectos de superior relevância. A assistente alega que sempre recusou qualquer intervenção no domínio do conflito ósseo – a assistente diz que não autorizou a cirurgia nos termos executados e o médico, ora arguido, não a esclareceu dessa possibilidade. Por outro lado não podemos esquecer que a assistente padece de uma doença crónica auto-imune que provoca destruição articular… Lembrar que a assistente é enfermeira de profissão, acompanhada há longos anos por este médico, ora arguido. Resulta ainda, segundo o tribunal a quo, que nenhum dos pareceres médicos, afasta a possibilidade de ser aplicado o procedimento médico-cirúrgico contra o qual a assistente se insurgiu. Conclui o tribunal sobre a remota possibilidade de pronunciar o arguido, o que permitiu confirmar o arquivamento, ou seja a não pronúncia do arguido AA.
Recordar que o disposto no artº 150 do CP (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos) deve ser lido numa relação de integração sistémica e de complementaridade normativa com os artºs 156 do CP (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários) e artº 157 do CP (dever de esclarecimento). Comentário Conimbricense ao artº 150 do CP da autoria de Costa Andrade com direcção de Jorge F. Dias – Coimbra Edirora, fls 302 e seguintes. No primeiro caso a protecção da integridade física e no segundo a dimensão da liberdade. O artº 150 do CP estabelece comportamentos médico-cirúrgicos conformes com as “leges artis”, regras recomendadas pela ciência médica e cuidados gerais. A violação deste comando interfere com a conduta do médico em criar perigo para a vida ou perigo de ofensa grave para o corpo e saúde do intervencionado – indicação médica; intervenção segundo as “legis artis” e finalidade terapêutica - A previsão do artº 156 do CP, embora remissiva para o disposto no artº 150 do CP, é mais grave e configura intervenção e tratamento médico-cirúrgico arbitrário, sem ou com deficiente consentimento. Intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente, porém o nº 2 do preceito exclui a punição do factoquando o consentimento a) só puder ser obtido com adiamento e essa tomada de posição implique perigo de vida ou perigo para o corpo e saúde do destinatário; b) Tiver sido dado consentimento para certa,e determinada intervenção mas, tenha vindo a realizar-se outra diferente por imposição do estado dos conhecimentos e experiência da medicina como meio de evitar perigo para a vida, corpo ou saúde. Exige-se ainda não se verificarem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado. Estas alíneas configuram consentimento presumido. Para uma excepção desta natureza será bastante supor razoavelmente (artº 39 nº 2 do CP) que o consentimento seria recusado … É precisamente aqui que urge valorar o princípio in dúbio pro reo (dúvidas subsistentes) e o sentido da fragmentariedade do direito penal, expressos no privilégio terapêutico. Voltaremos a esta temática.
O artigo 156 do CP corporiza a falta de consentimento do paciente e questões conexas. O disposto no artº 150 do CP descreve a violação das “leges artis”, com consequente perigo para corpo, saúde ou vida. Aqui, no domínio das intervenções arbitrárias, protege-se a liberdade de alguém querer ou não sujeitar-se a determinado tipo de tratamento. De forma decorrente, quanto a este último tipo, surge o dever de esclarecimento para consentir… Sentido e alcance do consentimento. O dever de esclarecimento para efeito de consentimento é particularmente minucioso no disposto no artº 157 do CP. Compreende esclarecimentos sobre diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção e tratamento, salvo o contributo do paciente quanto à comunicação de circunstâncias que podem colocar em perigo de vida ou são susceptíveis de causar grave dano à sua saúde física ou psíquica.
Importa registar algumas declarações objecto de prova indiciária.
A assistente sempre recusou qualquer intervenção relacionada com a parte óssea. O arguido, segundo a declarante, não a informou que durante a intervenção tinha sido efectuado o corte da extremidade distal do cúbito, que é uma amputação de parte do osso. Curioso verificar que a assistente inconformada com intervenção praticada pelo arguido, decidiu consultar o médico CC que a informou da necessidade de estabilizar o punho. Aqui a assistente foi obrigada a nova cirurgia para contrariar manualmente o desvio do punho de forma a conseguir utilizar os tendões para o estabilizar e que caso essa técnica não resultasse que teria de ou colocar uma prótese ou fazer uma “artródese parcial” (que é a fusão do punho, ligação do rádio aos carpos), tendo a depoente concordado com esta segunda sugestão, por ser a única que existia para estabilizar o punho.Como resultado da cirurgia efectuada pelo denunciado a depoente foi obrigada a realizar uma das técnicas que já tinha recusado para a mão direita, mas que neste caso mostrou-se necessária para estabilizar o pulso esquerdo. Tudo o que alega ter recusado foi reiterado (conflito ósseo) na intervenção executada pelo segundo médico. Este rapidamente constatou da necessidade de estabilizar o punho, agora com maior abrangência, tendo em conta a “artródese” – fusão do punho com ligação do rádio aos carpos. A irmã da assistente, DD, refere que a assistente, durante o pós-operatório foi informada, sem especificar por quem, que a cirurgia foi complicada, tinha havido uma alteração cirúrgica e tiveram que realizar uma tenoplastia. Depois descreve a procura do segundo médico e respectiva intervenção… A fisioterapeuta GG acrescentou muito pouco e salientou que o objectivo era a reabilitação funcional da mão.
Por sua vez a mãe da assistente acrescenta algo mais. Que um dia antes da cirurgia (10/10/2016) a sua filha deparou-se com mais dois dedos da mão esquerda que não conseguia levantar … tinha quatro dedos da mão esquerda que não levantava porque estavam com uma ruptura. Que não consegue atribuir a causa de tal ruptura… No dia seguinte à cirurgia após a visita médica do Dr. AA, a sua filha BB telefonou à depoente, estava angustiada, triste e preocupada porque o Dr. AA transmitiu-lhe que tinha sido necessário efectuar uma cirurgia diferente daquela que tinha falado à queixosa e por ela consentida.Que não sabe caracterizar o tipo de cirurgia, apenas sabe que foi diferente da inicial e não consentida pela sua filha.
O depoimento do médico ortopedista HH faz o percurso das queixas da paciente e respectivo tratamento médico.
Conclui que a paciente tem historial de artrite destrutiva do punho esquerdo como resultado do Lupus Eritematoso Disseminado - LED e que esta doença terá provocado a ruptura do tendão do 4º dedo da mão esquerda … Que o denunciado na cirurgia fez uma técnica de “Darrach”, com remoção da extremidade inferior do cúbito e que não estava prevista no consentimento informado. Mais tarde viria por certo a ser necessário a “artródese” do punho, pela evolução natural da doença de que padece - Lupus Eritematoso Dissiminado LED - mas que foi antecipado por agravamento criado pela primeira cirurgia feita em 10/10/2016 pelo denunciado… No caso em concreto denota alguma incoerência entre o previsto no consentimento informado e o descrito no documento de alta dois dias após a cirurgia.
O médico FF – 1º ajudante da equipa médica do cirurgião AA – explicou de modo convincente o que se passou durante a cirurgia: durante a cirurgia foram confrontados com uma situação de conflito ósseo entre a extremidade distal do cúbito e os tendões extensores lesionados e por esse motivo foi ponderada e executada a exérese/ corte da referida saliência óssea para eliminar o conflito e possível nova ruptura dos tendões.Que só participou na cirurgia e na visita médica no dia seguinte 11/10/2016 e assistiu à informação prestada pelo Dr. AA à paciente com informação do que foi feito e da razão por que o fez.
O arguido falou da natureza da intervenção: o que foi feito, com a devida informação e da necessidade de utilizar a técnica de “Darrach” - No tocante ao relatório em apreço, está globalmente de acordo, mas impõe-se tecer algumas considerações. Relativamente à técnica “Sauvé-Kapandji”, não constituiu alternativa, porque a queixosa antecipadamente recusou toda e qualquer “artródese”, e, por conseguinte, tal técnica implica uma fixação-artródese rádio cubital distal. O que ficou acordado foi que só removeria o osso indispensável à reparação dos tendões. Durante a cirurgia é que surgiu a necessidade de usar a técnica de “Darrach”, embora previamente tivesse ficado assente que tinha permissão para remover todas as espículas e fragmentos ósseos que estivessem em conflito com a finalidade da cirurgia, o que incluía a técnica de “Darrach”. Se não tivesse usado tal técnica, a transferência tendinosa forçosamente falhava, porque mantendo a extremidade do cúbito no estado em que se encontrava, cortaria os tendões transferidos. Ou seja, o mecanismo de lesão manter-se-ia, e voltaria a cortar a transferência tendinosa, pelo que a cirurgia teria sido impossível e inútil (denominado “Conflito na Zona de Reparação”).
A prova pericial foi devidamente considerada no despacho a quo e por via de dúvida durante a instrução procedeu-se a mais uma perícia com elenco de perguntas e respostas:
Sobre se “Os exames de fls. 18 e 19, permitiam ao arguido, decidir, no pré-operatório, se o procedimento “Darrach” era uma das soluções possíveis? Resposta: perante as alterações destrutivas do punho seria de admitir esse ou outro procedimento (“Sauvé-Kapandji” ou uma “artródese” de punho) para assegurar melhor o tratamento da instabilidade radiocubital distal e aliviar as queixas.
Em caso de resposta afirmativa à pergunta anterior, o arguido deveria ter decidido no pré-operatório se pretendia realizar o procedimento “Darrach” isolado ou combinado com o procedimento de estabilização do cubito? Resposta: qualquer um destes procedimentos deveria estar na lista de opções terapêuticas.
O procedimento “Darrach” isolado é contra indicado em pacientes com evidência de translação cubital dos carpos? Resposta: controverso, dada a falta de evidência clínica na literatura favorecendo a superioridade do Darrach sobre Sauvé-Kapandji ou vice-versa. É difícil atribuir um nexo causalidade directo com a cirurgia, mas sim com a evolução da deformidade.
Após a cirurgia realizada em 10.10.2016 o aparelho extensor da mão esquerda da assistente ficou bem preservado? Resposta: não temos dados para pensar o contrário. A última ecografia mostra integridade da reparação. O problema biológico permanece podendo levar a novas rupturas. Grosso modo esta é a prova indiciária mais impressiva, o que nos leva a considerar a eventual integração das disposições penais propostas pela recorrente no sentido de equacionar a responsabilidade penal do arguido.
A prática do crime previsto e punido no artº 150 nº 2 do CP exige, para além de uma violação da “legis artis” que o arguido tenha actuado com dolo. O arguido neste contexto viola um conjunto de regras reconhecidas pela ciência médica e, ao postergar esta observância cria um perigo para a vida, saúde ou corpo do paciente. Esta actuação consubstanciada no erro médico contraria as boas práticas da medicina e exige um nexo de causalidade adequado. Neste capítulo é bom lembrar que a terapia pode falhar, suposto que o médico cumpra cabalmente as “legis artis”. Os elementos constitutivos do crime de intervenção e tratamento médico-cirúrgico pressupõem a violação das boas práticas médicas (legis artis) por pessoa legalmente autorizada, para tratamento, com a criação de um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou saúde. No presente caso falham ambos os pressupostos pois nem o médico violou as “legis artis”, nem causou perigo para a vida, ou grave ofensa para o corpo ou saúde da paciente, não obstante a particular intervenção e consequências produzidas. Não vislumbramos que o arguido tenha representado como possível a violação das “legis artis” e a consequente criação de perigo de grave ofensa para o corpo e saúde da recorrente, ou seja, que se tenha conformado com este tipo de actuação (dolo eventual).
A questão tem forçosamente que ser equacionada no âmbito das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (artº 156 do CP) e correspectivo dever de esclarecimento – consentimento informado (artº 157 do CP).
Enquanto o artº 150 do CP protege a integridade física (dos crimes contra a integridade física), já o artº 156/157 do CP destinam-se à protecção da autodeterminação pessoal (dos crimes contra a liberdade pessoal). Posto isto, o corpo deste último artigo disciplina … realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente …
Sobre o consentimento informado começar por dizer que quanto a esta intervenção cirúrgica foram observados os seguintes procedimentos:
91. Foi o fisioterapeuta que entregou à assistente um formulário de consentimento informado, necessário para a realização da cirurgia,não tendo sido feita qualquer explicação do procedimento médico-cirúrgico.
92. Refira-se o formulário de consentimento informado fazia apenas menção ao procedimento cirúrgico reparação da ruptura crónica do extensor da mão esquerda.
As versões da recorrente e recorrido são distintas. Aquela salienta que sempre foi rejeitada qualquer intervenção relacionada com a parte óssea, designadamente o corte da extremidade distal do cúbito … Por sua vez o médico/arguido alega que ficou acordado remover o osso indispensável à reparação dos tendões.Durante a cirurgia surgiu a necessidade de usar a técnica de “Darrach”, nomeadamente remover todas as espículas e fragmentos ósseos que estivessem em conflito com a finalidade da cirurgia. Assinalar que a relação paciente/médico prolongou-se por mais de 5 anos, pelo que entre ambos foi discutida a causa da deterioração dos tendões, sobretudo a enfermidade de que padecia a assistente, por sinal enfermeira de profissão e sobejamente esclarecida. Estes factos indiciados, quanto ao consentimento informado, são protocolares mas no decurso dos autos extrai-se informação muito mais vasta. A mais importante prende-se com outras causas biológicas - não podemos esquecer que a assistente padece de uma doença crónica auto-imune que provoca destruição articular… Há por outro lado prova indiciada que demonstra informação mais pormenorizada sobre a intervenção. A mãe da ofendida e o médico assistente referem informação mais detalhada durante o pós-operatório, acresce que a explicação prestada pelo cirurgião, ora arguido, foi esclarecedora e convincente…
As declarações da assistente são sugestivas, sobretudo quando refere ter procurado um outro médico (Dr. CC) para reanalisar a terapia, intervenção com nova cirurgia para estabilizar o punho (esquerdo), o que se conseguiu com o processo inicialmente recusado – “artródese parcial” (fusão do punho – ligação do rádio aos carpos). A recusa desta técnica cirúrgica para a mão direita mostrou-se necessária para estabilizar o pulso esquerdo!... As sequelas continuaram idênticas impedindo a assistente de regressar ao trabalho. De registar o facto indiciado com o nº 107. Actualmente a assistente continua a apresentar diversas limitações, nomeadamente perda da força de preensão, rigidez nos dedos devido à realização da “artródese”, instabilidade cubital, crepitação, dor e incapacidade de flexão dos dedos. Um inevitável remédio para tentar corrigir a degradação articular, causa de enfermidade crónica…
Regressemos ao tipo previsto no artº 156/157 do CPP.
Este tipo legal remete-nos para o disposto no artº 150 do CP. As intervenções e tratamentos que correspondem ao exercício profissional da actividade médica – exercício normal e levado a cabo segundo as “legis artis” – não constituem ofensas corporais, mas podem ser punidos como tratamentos arbitrários. Mezger citado na Revista Julgar nº 21 – 2013 - Álvaro Cunha Gomes Rodrigues e no Comentário Conimbricense … A falta de consentimento remete-nos para a previsão do artº 156 do CP – intervenções ou tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários. O dever de esclarecimento, estruturado no consentimento livre, esclarecido e informado, no caso concreto, só pode ser interpretado como defeito do consentimento, vale dizer não se coloca a questão do não consentimento mas do consentimento sem o devido esclarecimento ou de outras causas surgidas no decurso da operação. Veremos que esta matéria está intimamente ligada com o consentimento presumido e o privilégio terapêutico. Neste sentido o facto está excepcionado no artº 156 nº 2 do CP, quando o consentimento tiver sido prestado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente, por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, como meio de evitar um perigo… para o corpo ou saúde, e não se verifiquem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado. A explicação do médico operador é convincente e não teve por fim ultrapassar o consentimento informado. Lembrar que a relação, médico/paciente era sólida e constante, pelo que entre dois profissionais da especialidade não havia subterfúgios. Não era expectável que a paciente tivesse recusado o consentimento à intervenção efectuada. Apesar do limite fixado na excepção – poder concluir-se com segurança que o consentimento seria recusado – esta é uma das situações que pode ocorrer com frequência durante a cirurgia – tratamentos não cobertos pelo consentimento.
A paciente durante todo este processo beneficiou de informação esclarecida, com maior ou menor amplitude; ainda assim, ter em conta que nada fazia prever que a paciente, caso soubesse plenamente do seu estado, tivesse recusado a intervenção efectivamente realizada (fundada presunção); a intervenção executada foi (medicamente) adequada e a mais indicada; conduziu a uma melhoria da saúde da paciente e, por último que um qualquer paciente (concreto paciente) rejeitasse uma intervenção desta natureza. Ver, pela similitude de critérios em termos cíveis, a procedência da excepção de comportamento alternativo ou hipotético lícito no Acórdão do STJ de 2 de Junho de 2015 - Conselheira Maria Clara Sottomayor.
O médico, ora arguido, bem sabia do historial de artrite destrutiva e das devidas consequências provocadas pelo Lupus Erimatoso Disseminado (LED), designadamente ao nível dos tendões (ruptura).
A técnica “Darrach” não estava excluída e tanto assim que durante o pós-operatório a paciente foi devidamente informada da extensão da operação. É óbvio que o consentimento presta-se antes mas, o presente caso configura uma excepção (aintervenção não é punível), precisamente porque se revelou necessário estender a intervenção, circunstância imposta pelo estado de conhecimentos e experiência da medicina, indubitavelmente como meio de evitar um (perigo actual e sério) agravamento da saúde e funcionalidade da mão da paciente (favor vitae vel salutis). A leitura atenta do depoimento do médico-cirurgião é muito objectiva sobre esta necessidade. O privilégio terapêutico é hoje em dia, no direito comparado, largamente admitido. O direito português vigente não é alheio a estas realidades, questão é definir o alcance normativo da justificação. Esta dimensão tem como limites normativos, no caso sub judice, evitar um perigo para… o corpo ou saúde e impor o diagnóstico ou os riscos da intervenção como variante do esclarecimento. Reafirmamos: os depoimentos do médico/arguido e da sua equipa não brigam com o dever de esclarecer, ocorre que o estado de saúde da paciente era mais grave que o previsto, em termos ortopédicos, hipótese que emerge dos autos (compreensão unitária) suportada na longa relação médico-terapêutica com a paciente.
A necessidade da intervenção veio a ser reconfirmada pelo segundo médico CC que não hesitou em estabilizar o punho com recurso às técnicas alegadamente rejeitadas pela paciente (artródese).
Na intervenção médica sob análise, não é forçoso admitir consentimento presumido – nada permitia concluir com segurança que o consentimento seria recusado. Importante definir a vontade hipotética do titular (assistente) do bem jurídico – um juízo de probabilidade que o interessado (citando Mezger), se tivesse tido conhecimento da situação (dimensão) de facto, teria, do seu ponto de vista pessoal, consentido na acção.Direito Penal Médico - Manuel da Costa Andrade – Coimbra Editora, fls. 58. Os factos subsequentes – ver consultas e intervenções com outros médicos - permitem à saciedade compreender este consentimento presumido e respeitar legalmente a extensão da intervenção. Acontece que a ponderação dos interesses co-envolvidos sai reforçada pelo privilégio terapêutico.
Sobre juízo de prognose e indícios suficientes revemo-nos na narrativa do tribunal a quo. A decisão de pronúncia deve, pois, ser precedida por um juízo de prognose, devendo apenas ser remetidos para julgamento os casos em que seja manifesta uma futura decisão condenatória. É que, ”tendo em conta as gravosas consequências da simples sujeição de alguém a julgamento, exige- se que a acusação e a pronúncia assentem numa alta probabilidade de futura condenação do arguido” - AC da RP, de 20/10/93, CJ, T. IV, pág., 261.
A noção de “indícios suficientes” na jurisprudência e doutrina actuais mantém-se a mesma, como exemplifica o AC da RC, datado de 23/5/2018, nº conv. 80/16.7GBFVN.C1, onde se diz, “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento. O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no nº 2 do artº 283 do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. Os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Além da argumentação já expendida o tribunal a quo faz apelo à natureza subsidiária do Direito Penal, citando Claus Roxin in – Problemas Fundamentais do Direito Penal. Sobre esta matéria Costa Andrade, in Consentimento e Acordo em Direito Penal, fls 458 analisa os afloramentos da fragmentariedade da tutela penal face aos tratamentos arbitrários. O legislador teve propósito de encurtar a área punível onde pontificam a compreensão do conhecimento (dever de esclarecimento) e a própria dimensão do privilégio terapêutico. De facto a autodeterminação, como um conceito abrangente, não pode deixar de compreender o diagnóstico (esclarecimento) e o privilégio terapêutico - imposto pelo estado dos conhecimentos e experiência da medicina como meio de evitar um perigo … para o corpo ou saúde…
Continuamos a fazer apelo à matéria indiciada, onde a longa relação médico/paciente determinou, para efeito de intervenção e tratamento, suficiente esclarecimento e adequada finalidade terapêutica.
Continuando a citar o tribunal a quo veja-se Acórdão da RL, datado de 22/5/2003, Processo nº 9675/02 9ª Secção, in www.pgdlisboa.pt: “Se o tribunal não logrou ultrapassar a dúvida, fundada em razões adequadas, razoáveis e aceitáveis - não qualquer dúvida absurda, despropositada ou não racional - então, outro caminho não lhe sobrava que não fosse seguir o princípio "in dubio pro reo". Em suma, não obstante os indícios quanto à autoria do crime, certo é que, produzida a prova em julgamento e permanecendo a dúvida razoável sobre tal autoria, não deve o julgador trilhar uma senda temerária, antes devendo optar pela absolvição do arguido”.
A incerteza sobre um juízo de prognose de condenação determina a não pronúncia do arguido. Improcede o recurso.
Acordam os juízes que integram esta 2ª Secção Criminal do TRP em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente BB.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC,s – artº 515 nº 1 alª b) do CPP.
Registe e notifique.
Porto 18 de Janeiro de 2023.
Horácio Correia Pinto
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio [DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDO: Discordo da tese que fez vencimento» no que concerne ao arquivamento dos autos quanto ao crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punível pelo art. 156º, n.° 1, do Cód. Penal, pelas razões que, sumariamente, passo a enunciar:
>1ª A relação médico-paciente rege-se, na actualidade, pelo reconhecimento da autonomia deste, enformada, entre outros, pelo direito ao consentimento informado.
>2ª Este direito, constitucionalmente tutelado enquanto direito fundamental, tem igualmente protecção legal, seja na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a Biomedicina, (habitualmente denominada "Convenção de Oviedo"), do Conselho da Europa, ratificada por Portugal[1], seja no Código Penal, precisamente no âmbito das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, como decorre dos seus arts. 156º e 157º.
>3ª Assim, em regra, qualquer intervenção no corpo ou saúde alheios, realizada por um médico, carece de prévia autorização para não ser considerada ilícita.
>4ª Por seu turno, o fornecimento de informação correcta e inteligível ao paciente é um pressuposto fundamental do consentimento o qual só será válido quando assente em prévio fornecimento de dados pelo médico respectivo que permitam uma opção verdadeiramente informada, como, aliás, impõe o Estatuto da Ordem dos Médicos (Lei n.º 117/2015, de 31/08, publicada no DR, Iª Série, n.º 169), ao preceituar, no art. 135°, n.º 11, que "O médico deve fornecer a informação adequada ao doente e dele obter o seu consentimento livre e esclarecido ".
>5ª Depois, o art. 5º, da Convenção de Oviedo, consagra a propósito: "Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido. Esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos (...) " e, na mesma esteira, segue o art. 157º, do Cód. Penal, ao assinalar que "...o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento (...) ".
>6ª Por seu turno, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS), reconhecendo a ocorrência de algumas omissões e deficiências no cumprimento deste dever de informação, formulou, em 2009, algumas recomendações[2] entre as quais a do consentimento ser obtido por escrito por escrito e haver um especial cuidado na obtenção do consentimento nos casos em que se preveja mutilação grave ou perda de um segmento corporal[3].
>7ª Delimitada a questão e descendo ao caso concreto, crê-se que a prova é abundante e concordante - o próprio arguido o reconhece - que foi realizada, no corpo da queixosa BB, intervenção cirúrgica muito diferente, mais gravosa e invasiva ("amputação" parcial do cúbito) para a qual o médico, aqui arguido AA, não obtivera consentimento.
>8ª Os ulteriores esclarecimentos - que possam ou não ter sido prestados após a intervenção cirúrgica em causa - são de todo irrelevantes nesta sede já que o consentimento informado é aferido pelas informações fornecidas antes do acto médico. De todo o modo, sempre se adiantará que, salvo o devido respeito por opinião contrária, as declarações do arguido a tal propósito não são minimamente credíveis quanto à circunstância essencial,ou seja a comunicação de intervenção cirúrgica a nível ósseo, como decorre das declarações da ofendida[v.g. o arguido nunca a informou do corte da extremidade distal do cúbito, só vindo a saber quando o Dr. CC fez uma fluoroscopia], depoimento da mãe (EE) - [...o Dr. AA, no dia seguinte, disse que tinha sido necessário fazer uma cirurgia diferente da que tinha falado com a queixosa e por ela consentida mas não sabe caracterizar o tipo de cirurgia, adiantando que a filha, após consulta com o Dr. CC saiu chateada, revoltada e desesperada por ter descoberto que o arguido “cortou extremidade do cúbito quando era apenas para reparar os tendões”...] - e irmã desta (DD) - [... a irmã nunca foi submetida a qualquer cirurgia óssea por recusa própria. Deu consentimento para cirurgia tendinosa e não óssea. O arguido disse, depois, a sua irmã que "foi complicada a cirurgia" e que tinha acontecido uma alteração cirúrgica e que tivera que realizar uma tenoplastia...] - e resposta ao ponto 19, no Relatório da Consulta Técnico-Cientifica, do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (doravante INMLCF), datada de 11/11/2020, a fls. 340 e segs. dos autos. Aliás, também os moldes como foi entregue - antes da intervenção o formulário de consentimento e o conteúdo deste denunciam claramente, em nosso modesto entender, a pouca ou nenhuma importância que o arguido atribui a tal matéria.
>9ª Também o denominado "privilégio terapêutico" é aqui irrelevante já que atinente aos casos de omissão de informação ao doente nos casos em que "isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica" - v., art. 157º, 2ª parte, do Cód. Penal e, entre outros, Carlos M. Costa Almeida, in "O Consentimento Informado em Cirurgia", Revista Portuguesa de Cirurgia, II Série, n.º 44, Março 2018, Glória Jólluskin in “O consentimento informado na prática clínica: Aspectos bioéticos da relação entre o profissional e o utente dos serviços de saúde”, Revista da Faculdade de Ciências da Saúde, n.º 7, págs. 306-315 (2010) hipótese sem qualquer nexo com aquela que aqui cumpre analisar.
>10ª Do mesmo modo, se afiguram irrelevantes as circunstâncias da queixosa ser enfermeira e a eventual relação de confiança médico-paciente resultante do lapso temporal em a queixosa BB consultou o arguido, uma vez que nenhuma delas justifica o não fornecimento atempado dos esclarecimentos necessários para a verbalização de consentimento livre e informado. Aliás, no reverso, poderá até afirmar-se que o arguido descuidou, indevidamente, o dever de informação prévia a que estava adstrito, precisamente por tais razões. No entanto, a relação de confiança médico-paciente não admite o exercício de qualquer paternalismo clínico ou poder de decisão sobre a intervenção que afecte o corpo ou saúde do paciente, antes impondo integral e minucioso respeito da autonomia deste e do seu direito á autodeterminação, mesmo que a escolha/decisão não seja aquela que o médico considere ser a mais adequada à situação clínica em causa.
>11ª Finalmente, considera-se ainda irrelevante o facto da queixosa se ter, depois, submetido a procedimentos que antes rejeitara (v.g. a artrodese do punho) já que se trata de cirurgia reparadora, sem alternativa possível, situação em nada comparável à que aqui se aprecia.
>12ª Da informação clínica junta aos autos, necessariamente conhecida do arguido, já que era o médico que a queixosa consultava, resultava já a previsibilidade da necessidade de, durante a intervenção cirúrgica, poder ter que vir a realizar-se o procedimento Darrach ou Sauvé-Kapandji, conforme se extrai, entre o mais, das respostas às perguntas das Alíneas A), B) e C), do Relatório da Consulta Técnico-Científica de 22/09/2021, do Conselho Médico Legal, do INMLCF, junto a fls. 501 e segs., pelo que tal questão devia ter sido abordada e devidamente esclarecida pelo arguido junto da queixosa no sentido desta poder reflectir e decidir se consentia na realização de algum deles e qual. Não o tendo feito, resta a conclusão de que não há consentimento válido.
>13ª A não punibilidade das intervenções médico-cirúrgicas realizadas sem o consentimento do paciente reconduz-se à previsão do art. 156º, n.º 2, ais. a) e b), do Cód. Penal, estando dependente de um duplo requisito:
- O consentimento só poder ser obtido com adiamento que implicasse perigo para a vida ou perigo grave para o corpo e a saúde da paciente e não se verificarem circunstâncias que permitissem concluir com segurança que o consentimento seria recusado [al, a)]; ou
- Tiver sido dado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina como meio para evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde e não se verificarem circunstâncias que permitissem concluir com segurança que o consentimento seria recusado[al. b)]
Assim, estando em causa um procedimento cuja necessidade os elementos de diagnóstico pré-operatório já permitiam fazer supor (v. Relatório da segunda Consulta Técnico Científica), entendemos que a situação apenas poderia ser enquadrada na citada alínea a), do n.° 2, do art. 156º, pelo que a sua não punibilidade apenas seria viável se o consentimento só pudesse ser obtido com adiamento que implicasse perigo para a vida ou perigo grave para o corpo e a saúde da paciente.
Ora, está estabelecido pericialmente - v.resposta ao ponto 20 da primeira Consulta Técnico-Científica citada - que tal procedimento nada teve a ver com a vida, o corpo ou a saúde da ofendida. E, recorde-se, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador - art. 163º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal - não podendo ser arredado com base em declarações do arguido ou convicção infundamentada do juiz (v., n.º 2).
>14ª Ainda que se entendesse, como na tese que fez vencimento, que seria antes aplicável a alínea b), do citado normativo legal, a solução seria idêntica já que também aqui se exige que a intervenção não consentida surja como meio para evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde. Na verdade, seguindo na esteira de Guilherme de Oliveira e André Dias Pereira, in "Consentimento informado", Centro de Direito Biomédico, Coimbra 2006, «Quando se obtém o consentimento para uma intervenção, o médico deve informar o paciente de todas as complicações previsíveis que podem ocorrer enquanto o paciente está inconsciente. Isto possibilita ao médico obter antecipadamente o consentimento para o tratamento, caso essa situação se verifique. Por vezes, ocorrem situações imprevistas; nesse caso o consentimento é dispensado quando o alargamento da intervenção servir como meio para evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde do doente (art. 156. n. º 2, al. b) CPen). O perigo não tem de ser grave ou iminente. Porém, é inadmissível que com base num potencial perigo para o corpo ou para a saúde o médico realize uma intervenção não urgente ou que, pelo menos, possa razoavelmente aguardar pelo consentimento do paciente. Estes casos de intervenção sem consentimento estão reservados para situações excepcionais.»[4] - cfr., pág. 73.
>15ª Assim» em termos indiciários, consideraria provados os pontos 82 a 89, 90 (quanto ao facto de não ter sido prescrito exame complementar de diagnóstico), 91 a 98, 99/100/101 (quanto à retirada das talas e prescrição de tratamento terapêutico, consulta de fisiatria e sessões de fisioterapia 5 vezes por semana e abaulamento do punho esquerdo), 102 a 104, 106 (quanto à nova intervenção cirúrgica mas sem estabelecer com o procedimento Darrach) 107 a 111 e 114 do RAI e determinaria a emissão de despacho de pronúncia pelo crime previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 156º, n.º 1 e 157º, do Cód. Penal.
*
[Por mim elaborado e revisto art. 94º, n.º 2, do CPP[5]]
_______________ [1] V. DR, I.ª Série-A, n.º2, de 3 de Janeiro de 2001. [2] Cfr., "Consentimento Informado", Relatório Final, Maio de 2009. [3] O teor da recomendação citada é o seguinte: 11) Sempre que se anteveja uma mutilação grave ou perda de um segmento corporal deve haver um cuidado reforçado na obtenção do consentimento informado e, se possível, deve ser marcada no corpo do doente, de forma perfeitamente perceptível, a porção a amputar, previamente à obtenção do consentimento. [4] Destaque nosso. [5]O texto da presente decisão não observa as regras do acordo ortográfico por opção pessoal da autora.